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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

"ELE VIA O MUNDO DO JEITO QUE UM SANTO SEM CABEÇA O VERIA"

Como um esquizofrênico percebe o mundo? É algo que me pergunto desde que comecei a pesquisar a relação entre arte e espectador, segundo aspectos psicológicos, onde o assunto vive dando as caras. Porque o mundo é sempre o mesmo. Se parece diferente para mim ou para você, é porque nós somos diferentes, temos vidas diferentes, conhecemos pessoas diferentes e temos interesses diferentes. Os esquizofrênicos também têm suas peculiaridades, porém não tantas quanto se supõe – são pessoas como eu e você, que, no entanto, não separam muito bem o consciente do inconsciente, como se vivessem no mundo dos sonhos. Pelo menos é assim que Freud explica. Quando descobri que esse era o mote do romance Afluentes do rio silencioso, fiquei curiosíssimo. O que estaria me esperando ali?

A história se resume às perambulações de um garoto, conhecido como Lowboy (um tipo de cômoda baixa, título original do livro), que foge do hospital psiquiátrico em que trata sua esquizofrenia paranóica e se embrenha nos túneis do metrô nova-iorquino. Ele quer salvar o mundo do aquecimento global. Para encontrá-lo, a mãe e o policial responsável pelo caso devem reconstituir seu percurso – uma frágil linha de raciocínio que, tal como o metrô, se cruza com uma infinidade de outras.

É muito bacana a maneira como o autor – o norteamericano John Wray – retrata o fluxo de pensamentos do garoto, intercalando-os com capítulos racionais e dedutivos protagonizados pelo detetive. Esses contrapontos nos permitem sentir melhor as diferenças psicológicas existentes entre eles. Em diversos momentos, fiquei me perguntando: "Será que é assim mesmo? Será que é assim que um esquizofrênico pensa? Que vê o mundo?" E tudo que Lowboy inventa, as pessoas imaginárias com quem conversa, os planos conspiratórios de que se sente vítima, tudo é confuso, chega a nos tirar o fôlego e embaralhar a realidade. Verdade ou mentira? Fato ou ficção? Como um escritor são pode descrever o processo cognitivo de um esquizofrênico?

Os capítulos sobre Lowboy são difíceis de entender. Não se sabe ao certo o que está acontecendo, não se tem noção precisa do tempo e não é possível deduzir o próximo passo. Por quê? Porque nossa tendência de racionalizar encontra ali uma barreira. Ora, se nem sempre há sentido lógico em nossas escolhas, imagine nas de um doente mental. Evidencia-se um ponto em comum: somos todos movidos pela emoção.

Isoladamente, as falas do garoto são desconexas, mas, no contexto de seus pensamentos, elas fazem sentido – um sentido que, na maioria das vezes, só ele compreende, mas que é suficiente para decidir e agir.

Durante o romance, outras questões cruciais vão surgindo: os esquizofrênicos conseguem mentir? Por que teriam essa necessidade? Qual é a diferença entre mentira e ficção? Existe imaginação pura? Como sabemos que estamos de acordo com a normalidade? Qual seria o parâmetro? As ideias não viriam de momentos de delírio? Nossos desejos não influenciam nossos pensamentos?

Além do fluxo de informação, que deixa a história com aspecto desordenado, há outros recursos que o autor utiliza para obter a sensação de desconforto mental, tal como perguntas sem pontos de interrogação, vírgulas fora de lugar e falas, pensamentos e narração misturados, sem indicação ou destaque. Deve ter dado um trabalhão para a tradutora, Vanessa Barbara.

Vamos a cada página nos enfiando no lodo contagiante da esquizofrenia, acostumando com a falta de exatidão, com o pouco ou nenhum controle sobre a sequência de fatos. Lemos, imaginamos, percebemos tudo que acontece à nossa volta e, de repente, tudo faz sentido e pode ser experimentado, por mais estranho que seja. Não existe certo ou errado, apenas a verdade entendida à nossa maneira. Todo o poder a que um leitor poderia almejar.


Trechos:

"Lentamente, seus pensamentos também se encaixaram. Mesmo a mente estreita e claustrofóbica de Lowboy sentiu afeição pelo túnel. Afinal, era sua cabeça que o fazia de refém, não o túnel nem os passageiros do trem. Sou um prisioneiro do meu próprio crânio, pensou. Refém do meu sistema límbico. Não há saída além do meu nariz." (p. 9)

"Conforme ela se aproximava, o túnel contraía-se como uma boca e Lowboy começou a ficar preocupado. Havia gente no caminho, mas ele as ignorou. Eu fiz um bom trabalho Rafa, ele gritou. Os grafites me disseram. Vá mais devagar, srta. Covington. O mundo pode parar de acabar. Mas então ele correu direto para o Caveira e o Esqueleto." (p. 293)


Afluentes do rio silencioso, de John Wray
Companhia das Letras, 2010, 304 páginas
Página oficial: Cia das Letras