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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

EXCESSIVAMENTE NADA

Na companhia de objetos #2, 2008, de Flávia Junqueira
Faço um monte de nada. Tenho feito um monte de nada desde... sei lá. Quer dizer, faço coisas, um monte de coisas, excessos – ler, andar, comer, espreguiçar, trabalhar, checar e-mails compulsivamente – que resultam em nada, um monte de nada. Até que, um dia qualquer, resultam em alguma – outra – coisa e me trazem a sensação de que fiz muito. A sensação do muito dura pouco. Retorno ao nada. Que me conduz ao lugar algum. Ao tempo oco. Ao reverso do mundo. Ao buraco negro. Um grande buraco no espaço que atrai tudo ao seu redor para transformar tudo em nada. Outrora. Outra hora. Mais. Para nada.

Saiba mais sobre: Flávia Junqueira.

domingo, 15 de setembro de 2013

A CONDENAÇÃO LÓGICA

"Aquilo que o condenado, em silêncio, compreende finalmente, na sua última hora, é o sentido da linguagem. Os homens, poder-se-ia dizer, vivem a sua existência de seres falantes sem entenderem o sentido da linguagem; mas para cada um deles trata-se de uma sexta hora na qual até o mais estúpido vê a razão abrir-se. Naturalmente, não se trata da compreensão de um sentido lógico, que também poderia ser lido com os olhos; trata-se de um sentido mais profundo, que não pode ser decifrado a não ser através das feridas, e que só é atribuível à linguagem enquanto punição (é por isso que o domínio da lógica é o do juízo: de fato, o juízo lógico é uma sentença, uma condenação). Compreender esse sentido e medir a culpa própria é um trabalho difícil; e só depois de concluído esse trabalho se pode dizer que foi feita justiça."

Giorgio Agamben
Ideia da Prosa

HOJE, NO TREM:

1.
– A senhora viu ou sonhou?
– Eu vi. Só não sei se eu estava dormindo ou acordada.

2.
– Você está desconectada.
– Em que sentido?

3.
– Se eles querem ou não Jesus, o problema é deles. Se eles querem ou não servir o senhor, o problema é deles.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

INVERSOS PARALELOS

Quando Mariana Teixeira me convidou para escrever o release do seu primeiro livro "solo", fiquei tão feliz quanto ensimesmado. Porque, se já é difícil escrever sobre o trabalho de outra pessoa, fica pior ainda quando se trata de uma amiga. Só que o livro é bom, muito bom, a começar pelo título. Repleto de poesia em todos os sentidos. Eu fui escrevendo, escrevendo, até que tinha em mãos um texto mais extenso do que o necessário. Acabei por fazer uma versão resumida, que foi utilizada na divulgação oficial. E resolvi postar aqui a versão completa, assim você pode ter uma ideia da literatura que aquelas páginas têm a oferecer.


Inversos Paralelos. O mundo às avessas. Todos os mundos; os mundos de cada um. Correndo lado a lado, ignorando-se mutuamente num universo particular – um pacto silencioso –, até que se cruzam, impactam, embatem, empatam. Caem na real.

Clique na imagem para ampliá-la.
Sem grandes utopias, o primeiro livro de Mariana Teixeira não romantiza o mundo, apenas o deseja menos estúpido, mais gentil, menos racional, mais acolhedor, menos partilhado, mais compartilhado; mais e/ou menos humano.

São versos cotidianos, feitos de pão na chapa, falta de tempo, (des)encontros, lembranças, sofás, andanças, paisagens urbanas, lágrimas, sinas e signos, resistências, rimas, tv, manchetes de jornal, coisas. Da vida. Quebra-cabeça rejuntado por certo incômodo errante, porém preciso e necessário, de quem observa sem saber direito o que está errado; suspeita de quem percebe, no vai e vem, as pecinhas fora do lugar. De quem não se deixa ludibriar pela amortização permissiva do dia a dia: o "deixa pra lá" que consente. Andar oscilante, insatisfeito, de quem enfrenta a realidade com as armas que tem à mão: uma lata de cerveja, um rinosoro, um celular tijolinho pré-pago, um arrepio de amor – talvez de frio –, cartão de crédito, café com leite para dar coragem. Condições do ser e do não ser. Questão delicada.

Em versos e prosas, a autora evoca cenas entrevistas nas ruas, onde procura a poesia das esquinas, a literatura dos botecos, as rimas sugestivas perdidas na primeira ou na segunda gaveta do criado-mudo, entre calmantes para dormir, estimulantes para trabalhar e um livro do Machado para fazer alguma coisa valer a pena, afinal.

Dores de cabeça de quem não sossega e pega o problema para si. Um tapa na cara, algumas sabedorias populares, afetos e desafetos, apontamentos e desapontamentos; risos e esperanças também, por que não? Todos os – muitos – lados da moeda. Tudo o que se vive num único dia, se tiver sorte, se estiver disposto a botar os pezinhos descalços na realidade dura. Sonhos e jovialidades entremeados pela vontade decidida de colocar os pingos nos is (somente pontos, sem coraçõezinhos). Vontade de consertar "o que não tem conserto; nem com fé nem com jeito; nem com pé nem com peito".

Cutucões, despropósitos, obsessões, politicagens, instantes fotográficos nem sempre fotogênicos, sarcasmos, diferenças, realidades surreais, relativismos. Porque, veja bem... A natureza tenta sobreviver no mundo dos homens, enquanto os homens falecem em sua própria natureza, sozinhos. Os paralelos se invertem.

O que Mariana Teixeira quer contar "vai além do conto. Vai além dos dias, das noites. Do sapato molhado e dos espirros vazios. Dos passeios sozinha pelo centro. Da companhia do gato preto".

Há quem cruze com um gato desses e faça o sinal da cruz. Por sua vez, Mariana Teixeira agarra o gato, abraça, faz dele um filho. Cruzes!

Ela agarra o que há de promissor no cotidiano, intimidado pelos (des)prazeres que correm soltos por aí, sufocado por eles. Assim, desmistifica atitudes e pensamentos mundanos que só têm a prejudicar a vida. Sua e a do gato. Nossa também.

Lançamento:
2 de outubro, das 18h30 às 21h30, na Livraria da Vila.
Rua Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena – São Paulo/SP.

Conheça também o blog da autora: Correndo com os Dedos

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

AFETIVAR

outrar-se:
     fazer-se outro
     sempre num
     devir-a-ser.

trocar-se:
     realizar trocas
     entre
     o dentro e o fora
     sem saber direito
     qual é qual.

encontrar-se:
     poroso, permeável
     disposto
     ao atravessamento;
     engendrar a potência
     de si.

criar-se:
     a todo instante
     de novo
     e novo;
          conforme
     disforme
          enorme.

conscientizar-se:
     pelo corpo
     – em fluxos –
     por causa dele.
          fazer efeito
          pelo afeto:
          afetivar.

expandir-se:
     na direção do mundo
     inteiro
     aberto
     a implicações
     na direção contrária.

transbordar-se:
     num im-pulso.

diferenciar-se:
     sempre
     em formação.

sábado, 7 de setembro de 2013

CORPOS CONTEMPORÂNEOS: ANOTAÇÕES DE AULA


Quem estava ali era um corpo cansado. Tinha acordado mais cedo do que o costume, engolira qualquer coisa no café por receio de se atrasar. Enfrentara uma hora e quinze minutos de trânsito. Respondera e-mails no escritório e preparara a tarefa dos assistentes. Dirigira mais uma vez, agora até a universidade. Combinara rapidamente o programa do dia com a docente responsável. Às 10h30, a aula se iniciava, e foi assim que me apresentei à turma de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, com a qual tenho colaborado neste semestre. Um corpo cansado, agitado, ansioso com o trabalho que iniciava, curioso para conhecer os alunos, cheio de atribuições mas com vontade de assumir outras, de participar de tudo, do possível e do impossível, por mais insano que seja.

Um a um, fomos descrevendo nosso "estado de alma", fazendo-nos conhecer e aproveitando para pensar sobre a carga depositada naquele misto indissociável de corpo e mente. Sentimentos, razões, dores musculares, sono, tensão, frio, curiosidade, timidez, empolgação, estresse, apreensão, expectativas, preguiça, cansaço. Sempre o cansaço, presente na fala de todos.

Não é de surpreender. Somos demandados e superativados no contemporâneo por um sistema de produção que remonta a Revolução Industrial, no século XVIII, e que hoje em dia opera de maneira peculiar. Estamos sempre apressados, buscando o além dos limites, exauridos por excesso de informação, horas extras, trajetos longínquos, atuação nos mundos reais e virtuais, conexões várias que transformam as noções de privacidade e põem a nu as experiências mais íntimas, expondo-as, quase sempre as banalizando. Homens de execução, não de reflexão.

Isso desemboca na ansiedade, que cada um vive à sua maneira e em seu grau, e que se resume no ato de colocar-se à frente de onde deveria estar – ou seja, de antecipar questões futuras para vivê-las no presente, quando nada pode ser feito para resolvê-las.

Estávamos todos cansados antes mesmo de iniciar os estudos. O contemporâneo já se manifestava em nossos corpos sem que nós o percebêssemos. Uma das propostas da disciplina de Práticas Corporais é, por isso mesmo, tomar consciência desses sentimentos e preparar os terapeutas para acolher, cuidar e transformar outros sujeitos afetados pelas pressões da vida.


Ora, onde está a sensibilidade nos dias de hoje? Para Giorgio Agamben, "uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época; que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de 50 anos".

Este trecho foi publicado originalmente em 1985 e permanece atual. O contemporâneo, vivido como um sistema em processo, portanto sem forma definitiva, acaba por impossibilitar a apreensão exata dos novos tempos.

Nas pesquisas de Terapia Ocupacional, percebo alguns caminhos para esse estado de alma, que pela sensibilização do corpo levam a camadas profundas da existência. Por isso, escreve Flávia Liberman, "faz-se necessário um olhar que investigue o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão, ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir".

Sensibilizar é uma estratégia de descoberta e conscientização sobre nossas atitudes, sobre os papéis que exercemos no dia a dia e que, de certo modo, confluem para as realidades compartilhadas. "Pensar, viver e refletir sobre como as pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros corpos, com outros mundos", diz a terapeuta.

Nesse sentido, arte e clínica estão mais próximos do que se imagina, e ambos se agenciam no âmbito da vida comum. Porque se trata de criar corpos para o enfrentamento, para os embates cotidianos, para superar ou contornar os excessos, a ansiedade, o cansaço, o esgotamento etc. Um trabalho da Estética, localizado na fronteira entre o sentimento e o pensamento. Corpos atuando numa realidade de estrutura ficcional, inventados para certos desafios e reinventados a cada nova demanda. Que se apresentam como dispositivos – quer dizer, dispostos em relação com o outro, abertos ao entorno, à disposição das implicações contemporâneas. Postos no mundo ao mesmo tempo em que constituem o próprio mundo.


*As imagens acima foram emprestadas da tese de doutorado de Flávia Liberman, à qual você tem acesso aqui: Delicadas Coreografias: Instantâneos de uma Terapia Ocupacional