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domingo, 2 de fevereiro de 2014

TODOS POR UM

Você sai às ruas para exigir um país mais digno. Vem um policial militar e passa por cima de toda dignidade. Refiro-me ao caso brutal do soldado da ROCAM que, após espancar uma garota completamente desarmada de más intenções, subiu com sua moto na calçada e passou por cima da vítima, colocando abaixo qualquer protocolo, bom senso ou moralidade. Em entrevista posterior, ela confessou que nem se lembrava do atropelamento, tão atordoada que estava pelos socos e pontapés. Uma estudante do ensino médio que saiu às ruas para pedir dignidade. Pois bem. Esse PM volta para sua casa, na periferia, com a farda na mochila para não chamar atenção. Ele tem medo. Ele gostaria de viver num país mais digno, em que as pessoas, inclusive policiais, fossem respeitadas. Em que todos estivessem seguros de verdade.


Quando escrevo este texto, alguns dias antes da publicação, as notícias dizem que a Corregedoria da Polícia Militar recolheu outros vídeos além daquele que originou a denúncia, gravado a partir de uma janela alta. O investigador explicou que as câmeras de segurança dos prédios vizinhos mostram a vítima sozinha, indo embora da manifestação, quando é alcançada por uma tropa e espancada covardemente, sem esboçar qualquer reação. Foram oito ou mais policiais fardados e armados contra uma garota de 18 anos. Depois de a atropelarem com a moto, os agressores continuaram a chutá-la no chão, e a abandonaram sem prestar qualquer socorro. As testemunhas que filmaram o crime resgataram a vítima com vida, e por sorte ela agora está se recuperando.

O atropelador é um criminoso, sem dúvida. Ele agiu com cúmplices. O mínimo que se espera é que sejam identificados e punidos conforme a Lei. A PM não precisa desse tipo de gente. A sociedade tampouco.

Existe outra questão aí: eles se aproveitaram da situação suscetível da moça para aplicar as "medidas corretivas" a que gostariam de submeter todos os manifestantes. Do mesmo modo, ao praticaram seu crime, colocaram em xeque a corporação inteira, suas falhas e inaptidões. Um por todos.

"O desafio consiste em não ser polícia", Eduardo Sterzi publicou no Facebook. Claro que ele não se refere à profissão somente, mas às atitudes de todos nós, em geral, que tendemos a reprimir, julgar, querer justiça com as próprias mãos, fazer mau uso do poder, violentar pessoas física e moralmente. O desafio consiste em resistir a isso tudo. Porque fomos, de alguma maneira, doutrinados a acreditar que a ordem deve ser mantida a qualquer custo. A preservar "os bons costumes" (quais mesmo?). A acreditar que o castigo resolve problemas, que a vingança deve ser buscada, que a PM deve atacar ao invés de proteger o povo manifestante. Somos doutrinados a emitir opiniões condenatórias sem conhecer o caso, sem compartilhar dele – porque, na prática, todos são culpados, exceto nós mesmos, não é assim? Nós somos santos, o inferno são os outros.

"Ao invés de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão", propõe Félix Guattari. Ao invés de sustentar esse sistema violento e presunçoso, é sempre a hora de revê-lo, reinventá-lo, adequá-lo às novas realidades. A tradição da PM, caso seja o empecilho, deve ser revistada e transformada, provavelmente abandonada, se é de interesse da corporação não cair em desuso. Sua pertinência no contemporâneo depende disso.

O medo da farda não opera mais conforme a princípio. Porque o povo tem medo da farda que deveria protegê-lo, porém oprime. Os soldados têm medo da farda porque denuncia sua profissão, expondo-o ao crime, e também porque é mais forte do que suas próprias convicções, obrigando-o a agir contra a vontade, quando esta existe, em prol de uma corporação falida. Por outro lado, os criminosos, fardados ou não, não têm qualquer medo, ao menos são o suficiente para impedir suas ações.


A polícia precisa morrer. Não no sentido literal, mas no trágico. Conforme escreve Sterzi em Aleijão: "Foram tantos / que me mataram / Não tenho bocas / para agradecer". Morrer como ideal ultrapassado, rever princípios e protocolos, proteger o povo durante as reivindicações, que é uma das mais importantes provas de democracia. Entender que elas buscam um bem maior, do qual todos, policiais inclusive, poderão usufruir.

"A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem 'proveito' a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade", escreve Guattari.

Por sua vez, os manifestantes não podem agir como fazem as forças opressoras, sustentando o sistema que criticam. A estratégia deve ser outra. Nesse sentido, os rolezinhos foram eficazes: usaram do banal, da facilidade de mobilização e da legalidade para denunciar preconceitos, truculências e falta de estrutura em diversos níveis. Expuseram questões graves, antes reprimidas, e nos puseram a pensar nelas. Expuseram a insuficiência das instituições e a incapacidade dos gestores.

Concordo com Jacques Rancière, para quem "política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. (...) É a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem 'natural' que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-se sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. (...) A política é a prática que rompe a ordem da polícia".

Gostaríamos de contar com o apoio da PM, não com o ódio. Nós, povo brasileiro, policiais inclusive, temos coisas mais urgentes para odiar e melhorar.


Obs.: Vale a pena ouvir a entrevista com o pai da menina atropelada à rádio Band News. Fica mais fácil entender o que aconteceu e o que está acontecendo: entrevista com Boechat