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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

[live] UTOPIAS: COMO IMAGINAR NOVOS MUSEUS?

Eu e minhas colegas do GEPPS receberemos o museólogo mineiro André Leandro Silva para uma conversa aberta com o tema Utopias: como imaginar novos museus?



André é autor de uma pesquisa sobre o trabalho artístico “A nova crítica”, de Frederico Morais, que propôs algumas utopias para o museu de arte pós-moderno.

Nesta conversa, queremos levantar pistas daquela produção para pensar: qual é o papel da utopia num museu? Como imaginar novos formatos e relações entre instituição, acervo e público? Como ativar a potência criativa e a crítica sensível dos museus a fim de rever suas formas de captura e ampliar acessos?


André Leandro Silva é bacharel em museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi eleito Conselheiro Municipal de Cultura em Belo Horizonte. Tem se dedicado a pensar a relação entre museus e acervos, considerando os agenciamentos provocados pelos acervos e as idealizações de museu neles encontradas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

HISTORINHA PARA DESPERTAR

Foto de Camila Jacques em Unsplash


Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

SELEÇÃO OU CURADORIA?

 

Foto de Martino Pietropoli em Unsplash


Acho impressionante como o mundo corporativo rapidamente se apropria de termos de outras áreas para lançar modas, quase sempre os deturpando em seu favor. Um dos mais recentes é “curadoria”, oriundo dos museus e comum às exposições de arte e demais eventos culturais, que algumas empresas têm usado especialmente durante a quarentena para se referirem, com pretensa diferenciação, às suas seleções de programas educativos e de entretenimento. Curar, ao que parece, é mais nobre do que escolher, listar, reunir.

Dia desses ouvi uma colaboradora – não se diz mais “funcionária” e muito menos “empregada” – de multinacional afirmar que vem fazendo curadoria de experiências culturais – não se diz mais “atividades” – para seus clientes usufruírem em casa, quando na realidade ela apenas compartilha links para sites de filmes, cursos ou dicas de bem-estar gratuitos. Com a única preocupação de não ferir as políticas da empresa onde trabalha nem o gosto do cliente, o qual anda cada vez menos tolerante, diga-se de passagem.

Não vou negar que existem semelhanças, mas curar uma exposição de arte, por exemplo, é um tanto mais complexo. 1) Se em ambos os casos existe um rol de trabalhos a serem exibidos, no que tange às artes visuais há um cuidado excepcional com o que permanece invisível ao espectador. 2) Se, assim como aquela colaboradora, o curador do museu planeja disponibilizar itens para apreciação pública, ele está atento não apenas ao conjunto, mas também às potencialidades que se desenvolvem entre eles. Pois a proximidade entre uma e outra obra é capaz de modificar o sentido percebido das duas, do espaço e inclusive das pessoas que estão a observá-las. 3) Enquanto a seleção de atrações enviadas aos clientes daquela empresa visa “produzir conteúdo” por meio de um “storytelling que agregue valor e traga resultado específico” para a marca, a curadoria de arte, em especial a da arte contemporânea, visa criar aberturas nas narrativas, tanto nas oficiais hegemônicas quanto nas da própria mostra em questão, sejam relacionadas ao contexto, à biografia do artista, ao tipo de produção exibida etc. Essas aberturas são bem o contrário do resultado desejado com antecedência: são mais como vacúolos onde um acontecimento qualquer pode advir; são reservas para o imprevisível, por paradoxal que seja, onde o ímpeto criativo do outro possa se manifestar.

Para esse outro existir, não basta expressar sua satisfação em pesquisas ao consumidor; ele deve se deixar instigar, provocar, inquietar o suficiente para executar um movimento, dar um sinal de vida, deixar-se tocar de maneira irreversível. Talvez a curadoria mais bem-sucedida seja essa que, ao pôr em contato um espectador e um trabalho artístico, cria a condição para que ambos jamais sejam os mesmos novamente, ao menos um em relação ao outro.

Para que isso ocorra, o curador precisa deixar que inclusive o seu projeto mais arrojado escape ao programa e se renda ao inusitado, ao ingovernável, ao não instituído. Deve mirar o real dos trabalhos de arte e errar. Não falo aqui de margem de erro na comunicação com um público-alvo, mas de um grau intensivo de falha da linguagem, lapso da razão, fratura; isso é constitutivo do gesto curatorial, não algo a ser corrigido.

Há poucos meses, Luiz Camillo Osorio publicou um artigo na revista Ars em que esmiúça a “função-curador”. Em certo momento sintetiza que “curadoria é isso: produzir relações conceituais, afetivas, históricas, políticas, formais, enfim, fazer ver as semelhanças no seio das diferenças e constituir diferenças onde tudo parece idêntico”.

Não quero aqui engrandecer o mundo da arte, que já sofre de desmedidas suficientes para afastar as pessoas menos aficionadas, o que é uma pena para ambas as partes. Tampouco é minha intenção restringir o uso do termo “curadoria” às exposições de arte ou museus em geral. Só alerto para as complexidades implicadas nele porque o trabalho no mundo corporativo com certeza deixará a desejar se comparado ao que se espera de uma curadoria feita naqueles lugares onde ela se originou.

O que eu gostaria de ter dito à tal colaboradora de grande empresa é que nada adianta mudar o nome e não mudar a coisa. Para evitar frustrações, o melhor é manter as expectativas mais realistas, fazer uma boa seleção de indicações aos seus clientes e deixar que ela fale por si mesma.