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terça-feira, 14 de abril de 2015

DESDE CIMA E DESDE FORA

“A América Latina é difícil de compreender, principalmente quando se olha de fora e de cima. As coisas que se entende de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo. Se a gente olhar de cima, com a típica arrogância dos nossos professores de democracia dos Estados Unidos ou da Europa, e se além de olhar de cima a gente olhar de fora, não entende nada. Por um motivo muito importante: a nossa região é provavelmente a mais diversa de todas, é a pátria das diversidades humanas. Isso que para mim é uma virtude, visto de cima e de fora é um grave defeito, porque se não cabe naquele modelo, acredita-se que aqui não existe democracia. E a prova de que há é que aqui se misturam e brigam todas as cores, os cheios e as dores do mundo.” Eduardo Galeano

sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Lucioles (2008), Renata Siqueira Bueno
 
"Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (…) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar para vê-los. (…) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes."

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SÁBIAS PALAVRAS


Toda vez que penso em publicar um comentário no Facebook ou aqui no Arte Faz Parte, lembro do que o escritor Bernardo Carvalho disse em entrevista a Um escritor na biblioteca. Então, alguns dos meus comentários são publicados, outros são revistos e abandonados. Compartilho o método com quem for suficientemente humilde para aceitá-lo.

Eis o trecho: "Tive que reescrevê-lo [o romance Reprodução, na época ainda inédito] muitas vezes, porque queria que os personagens fossem todos do mal e muito burros, mais ou menos o modelo dos comentaristas de internet. Eu queria que os personagens, todos eles, fossem como esses caras que fazem comentários na internet, que querem se expressar, gente que tem ideia sobre tudo, que são super orgulhosos com as próprias opiniões. Queria fazer um livro que só tivesse personagens assim, que todos fossem uns idiotas."

A entrevista completa está aqui, a quem se interessar: Bernardo Carvalho, um escritor na biblioteca

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#JeSuisCharlie

Que atitude tem mais chance de fazer um mundo menos ignorante?
a) Cartum
b) Ataque terrorista


"Sobretudo, o problema é evitar o julgamento. Não digo evitar o castigo. Porque o castigo sem julgamento é suportável. Ele tem, aliás, um nome que garante a nossa inocência: a infelicidade. Não, pelo contrário, trata-se de fugir ao julgamento, de evitar ser continuamente julgado, sem que jamais a sentença seja pronunciada. (…) A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles [meus semelhantes] uma vocação irresistível para julgar. (…) A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas."

A QUEDA, de Albert Camus

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Em Kafka, a instituição é um mecanismo que obedece a suas próprias leis que foram programadas não se sabe mais por quem, nem quando, que não têm nada a ver com os interesses humanos e que são portanto ininteligíveis."

[Kafka só não é brasileiro porque é universal.]

"Os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos (aparentemente inacreditáveis e desumanos) são os mesmos que regem as situações íntimas (inteiramente banais e muito humanas)."

Milan Kundera, A arte do romance
"O que nos salva da civilização ocidental?"

Georg Lukács [pensando nos possíveis resultados da 1ª Guerra Mundial]

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

(Há pouco, no metrô:)

- Minha mãe disse, você lembra seu pai, com esse cabelo! Que ótimo, mãe, vou cortar, respondi.
- Ela gostou um dia.
- Gostou, mas hoje deve odiar.

(Pronto, pode continuar o romance.)

sábado, 6 de dezembro de 2014

O HOMEM PENSA, DEUS RI

"François Rabelais inventou muitos neologismos que em seguida entraram para a língua francesa e para outras línguas, mas uma dessas palavras foi esquecida e podemos lamentá-lo. É a palavra agélaste; ela é tomada do grego e quer dizer: aquele que não ri, que não tem senso de humor. Rabelais detestava os agélastes. Tinha medo deles. Queixava-se de que os agélastes eram tão 'atrozes contra ele' que esteve a ponto de parar de escrever, e para sempre.

Não existe paz possível entre o romancista e o agélaste. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agélastes são convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin.

(...)

A erudição de Rabelais, por maior que seja, tem portanto um outro sentido que a de Descartes. A sabedoria do romance é diferente daquela da filosofia. O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor. Um dos fracassos da Europa é jamais ter compreendido a mais europeia das artes – o romance; nem seu espírito, nem seus imensos conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus é, por sua essência, não tributária mas contraditória das certezas ideológicas."

KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 147-148.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A SABEDORIA DA INCERTEZA

“O que quer dizer o grande romance de Cervantes? Existe vasta literatura a esse respeito. Há os que pretendem ver nesse romance a crítica racionalista do idealismo obscuro de Dom Quixote. Outros veem nele a exaltação do mesmo idealismo. Ambas as interpretações são errôneas porque pretendem encontrar na base do romance não uma interrogação, mas um preconceito moral.
      O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado.
      Nesse ‘ou – ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”

A arte do romance 
Milan Kundera

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ESQUERDA DE DELEUZE



– O que é ser de esquerda para você?

 – Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não veem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo, depois a França etc., até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro se percebe o horizonte.

– Mas os japoneses não são um povo de esquerda…

– Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode durar mais. Não é possível essa injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser ou devir minoria. Não deixar devir minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário.

– É vazio.

– O homem macho adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

[transcrição da entrevista com Gilles Deleuze disponível no vídeo]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A TRANSDISCIPLINARIDADE E A MODERNIDADE

"Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo – que crê que o real se pode deixar fechar na ideia, e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias."

ROQUE THEOPHILO
A Transdisciplinaridade e a Modernidade

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"Escrever, então, passa a ser uma responsabilidade terrível. Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda lei e sua própria lei."

Maurice Blanchot
A conversa infinita 1: A palavra plural

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

EXCESSO (DE INDIFERENÇA)

"Estamos anestesiados.
Jeanne Marie Gagnebin, em sua conferência no seminário 'Vida Coletiva' da 27ª Bienal de São Paulo, utiliza-se das análises do sociólogo alemão Georg Simmel para dizer que o excesso de estímulos, demandas e exigências leva o homem moderno a desenvolver mecanismos para se proteger da quantidade imensa de informações a que é submetido diariamente e não sucumbir física e intelectualmente. Esses mecanismos de proteção tomam a forma de uma atitude de indiferença e frieza, e dão lugar a uma sociabilidade marcada pela indiferença em relação ao outro. Uma indiferença que muitas vezes torna-se o primeiro grau de um sentimento de hostilidade para com o outro. É preciso nos darmos conta de que a indiferença diante do que acontece em nosso próprio território, com nossos colegas, nossos estudantes, é uma faceta da indiferença mais geral, que nos anestesia e que desenvolvemos para poder continuar."

Elizabeth M. F. Araújo Lima
(Se) Ocupar (d)a Universidade

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

LIMITE

"A poesia se converte em religião para aquele que chegou ao limite do despossuimento da fala. Quando o mundo vai se desvanecendo e indo embora, quando os outros vão ficando estranhos e o insondável vira o nosso cotidiano companheiro, tudo o que desejamos é um religamento; um maçarico amoroso que solde novamente nossa pertença quebrada e nos retire deste divórcio de suspensão.

Quando todas as outras prosas vão morrendo e se gastando, só a poesia pode nos acordar e reintroduzir-nos na vitalidade e na trama do tempo...

Mas a poesia deve então instaurar um novo mundo, pois o antigo já não tem mais sentido para nós... já perdemos a familiaridade... e sonhamos com uma nova espessura do tempo – o tempo feito de outra tecitura."

Sabedoria do Nunca
Juliano Garcia Pessanha

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"O esgotamento do possível é o esgotamento de um certo possível, aquele 'dado de antemão', o repertório de possíveis que nos é ofertado em forma de múltipla escolha a cada dia. (...) Para Deleuze, tal esgotamento nada tem de negativo, é apenas condição para alcançar outra modalidade de possível, o possível como o 'ainda não dado', o possível 'a ser inventado', e a ser inventado numa situação de 'impossibilidade', portanto, de 'necessidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 297]

terça-feira, 29 de julho de 2014

"Agamben lembra que a mídia nos oferece fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá, portanto, um fato em relação ao qual somos impotentes. A mídia gosta do cidadão indignado, mas impotente, o homem do ressentimento. Em contrapartida, um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e, ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibi-la enquanto tal, como no caso de Godard ou Debord, introduz-se uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 296]

domingo, 20 de julho de 2014

"Se esta não lhe agrada, não lhe convém, pegue outra, coloque outra no seu lugar. (...) Há apenas palavras inexatas para designar alguma coisa exatamente."

Gilles Deleuze
Diálogos, p. 13