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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

DEMASIADO HUMANO

basta ser humano
basta, ser humano
basta ser, humano
basta ser humano,

é preciso ser humano?
humano, impreciso ser




Vemos tudo conforme nossa própria ótica; o ponto de vista do humano, tão complexo e restritivo, é somente o que nos resta. Por isso o mundo muitas vezes parece feito em nossa medida. Também é por esse motivo que o que foge dessa medida ganha dimensão de sagrado – a noite estrelada, o oceano infinito, a cordilheira dos Andes, o deserto do Saara; e também as bactérias, as partículas atômicas, os glóbulos vermelhos, as sinapses. A razão científica caminha na direção desse sagrado e o desmistifica. Desvendamos os mistérios do cosmos ao mesmo tempo em que recombinamos material genético; vigiamos a calota polar com satélites orbitais enquanto produzimos nanorobôs para tratar certos tipos de câncer. A humanidade se expande ao macro e ao micro.



No meio persiste o hábito egocêntrico de utilizar o termo "humano" como adjetivo elogioso. Certo idealismo também. Dizemos que o mundo precisa ser mais humano, que as pessoas devem agir com mais humanidade. Como se pudéssemos agir de outro modo, como se houvesse outra perspectiva para nós. Como se a atitude dos homens fosse somente louvável e justa. Como se o dito "desumano" não estivesse contido na humanidade e não existisse somente por causa dela; como se houvesse jeito de escaparmos de nós mesmos.



Temos humanidade em demasia. Os maiores horrores foram todos muito humanos. Inclusive a própria ideia de tragédia é exclusividade nossa; aquilo que chamamos de "tragédia natural" é figura de linguagem – a natureza age conforme suas próprias regras, ela é amoral; nós que a tratamos como boa ou má.

Mesmo a tragédia grega, provocada pela fúria divina, é criação nossa; não existe mito elaborado por outros seres. A tragédia é necessariamente humana.



Assim, precisamos assumir que o Holocausto foi muito humano, no sentido de que só se realizou porque nós o fizemos e deixamos acontecer. Os atentados terroristas e as retaliações militares são ações humanas. O desastre ambiental em Mariana. A violência policial em nosso Estado de exceção permanente, o preconceito racial, a distinção social, o menosprezo pelo feminino, a devastação da Amazônia, a corrupção em todos os seus graus, os abusos e impunidades, isso tudo é próprio dos seres humanos.

O dito "desumano" sugere algo que repudiamos. Pois mesmo ele é completamente humano, um termo está implicado no outro, assim como não existe arqui-inimigo sem que haja também o herói. O desumano é nossa obra. Tanto quanto a ajuda humanitária, o parto humanizado, o tratamento do outro com respeito e dignidade. "Sempre a vida condicionada pela nossa perspectiva e a sua injustiça", escreveu Nietzsche em Humano, demasiado humano. Não há exatidão nem completude, somente disposições e oscilações. Somos seres injustos; todo juízo de valor é injusto porque provém apenas do ponto de vista de quem julga. Entretanto resta a nós uma saída: reconhecer isso e mudar as atitudes.




É necessário admitir que as atrocidades também são humanas justamente porque muitas delas foram pautadas no argumento contrário. Por exemplo, uma vez que os indígenas não tinham alma, acabaram dizimados no maior genocídio que a América já produziu, e que ainda persiste. A escravidão negra, para citar outro exemplo, privou os africanos de sua humanidade e os transformou em mercadoria. Os judeus na Alemanha nazista, considerados "indignos", não tinham direito de viver e podiam ser exterminados. Os internados em hospícios, loucos ou não, tratados com abandono, frieza, eletrochoque e lobotomia. Nossa situação carcerária atual, a pseudossolução de reduzir a maioridade penal e o momento simbólico mais marcante da questão, conhecido como "massacre do Carandiru". As milícias, os linchamentos, as chacinas, a "bancada da Bíblia" pregando violência no governo; todos esses horrores executados em nome do bem da humanidade refletem o tipo de humanos que nós somos. "A maioria acredita no valor da existência porque o quer e o afirma somente para si", escreveu Nietzsche há quase 140 anos.



O filósofo dizia que seus livros são escola da suspeita e do desprezo, pois provocam "inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados". É algo que ainda nos falta. Desconfiar do senso comum, fugir dos holofotes e olhar para a escuridão, levantar o tapete e acolher todas as historietas da humanidade que foram varridas para lá. O que é ser humano? A partir dessa questão podemos revisar os nossos valores e repensar a humanidade que desejamos. Tendo em mente que esse projeto deve se transformar sempre que necessário, jamais ser concluído. Ser humano é inventar constantemente a própria existência, inventar a si e o outro. É aceitar as faltas e saber ser impreciso.


* * *

"Para que serve toda arte que há no mundo?", pergunta Nietzsche. Não acredito em função nem em utilidade da arte, mas podemos pensar numa arte que "serve", não no sentido de serventia ou servidão, mas no sentido da vestimenta, da arte que nos cabe e muda a nossa forma. "A humanidade, em seu conjunto, não tem objetivo nenhum", diz o filósofo. "Apenas o poeta é capaz de perceber isso e sentir sua humanidade despedaçada".



Quem oferece uma boa saída para tal desconstrução é Nicolas Bourriaud, em sua Estética relacional, de 1998. Inspirado na filosofia de Félix Guattari, ele diz que a arte é aquilo sobre o que e em torno do que a subjetividade pode se recompor. Pois ela oferece um "direito de asilo" às práticas desviantes que não encontram lugar em seu leito natural. A arte seria um dispositivo de reconstrução daquilo que foi despedaçado. Tanto quanto daquilo que parece cristalizado, imutável, eterno.

Devemos identificar no cotidiano o tipo de humano que não queremos mais ser. Enquanto que talvez encontremos na arte outras humanidades possíveis para experimentar e, quem sabe, vir a exercer.



Ps: Aviso que encontrei numa loja em São Paulo: "Cachorros são bem-vindos. Humanos, tolerados." Não, não era um pet shop. :)


*As imagens que ilustram este texto circulam na imprensa online desde o rompimento da barragem de resíduos de mineração, ocorrido na cidade mineira de Mariana em 5 de novembro de 2015.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O VÍNCULO URGENTE

Sem título (da série "Droguinhas"), Mira Schendel, cerca de 1965

A vida contemporânea carece de afetividade, basta folhear este jornal* para verificar como estamos distanciados do sentido profundo das notícias (digo "sentido" pensando em "sentimento", não em "significado"). Lemos sobre violência, abuso de poder, destruição da natureza, miséria e logo retomamos nossas atividades ordinárias como se nada tivesse acontecido, isso praticamente não nos toca. Claro que é possível estabelecer relações interpessoais hoje em dia; ninguém vive isolado por completo e, no limite, mesmo o isolamento implica uma relação, seja de afastamento, ignorância, recusa etc. Então, se de alguma forma nos relacionamos com os demais, por que nem sempre criamos vínculo? Aliás, qual seria a natureza desse vínculo e por que ele seria tão urgente?

Algo que falta às sociedades de hoje, de modo geral, é disposição ao vínculo. Digo isso não num sentido moralista, mas porque essa falta provoca sofrimentos de diversas ordens, inclusive morais. Digo também que falta disposição porque vínculo não é algo que se adquire – não compramos vínculo no supermercado, não o encomendamos pela internet, não cozinhamos alimentos ricos em vínculos. Eles se constituem a partir da disposição das pessoas. Portanto não é pela lógica do capitalismo que detemos vínculos – o máximo que podemos fazer é nos abrir ao outro e sustentar a natureza vincular que porventura desperte desse exercício. O que não é pouco – exige uma complexa transformação de comportamento, de sentimento e de pensamento sobre as coisas do mundo, sobre o que está do lado de fora e tudo o que está dentro de nós.

"O tecido do vínculo é o real entre dois organismos. (...) Uma realidade feita de 'sentires', emoções em sua maioria inconscientes, mas também conscientes (...). O que faz o vínculo entre dois humanos são os alicerces de uma presença", a psicanalista Radmila Zygouris explica no ensaio O vínculo inédito.



Sem título (da série "Droguinhas"),
Mira Schendel, cerca de 1965
Durante uma consulta recente com minha endocrinologista, falávamos sobre como mudou a relação entre médico e paciente – ou como deveria mudar – nestes tempos em que a informação não procede mais de uma única fonte. Se antes o "doutor" era o detentor oficial do conhecimento científico – e por vezes abusava do poder a ele associado –, hoje é diferente: o paciente chega já sabendo pormenores da sua saúde e requer cuidado especial. Deseja ser ouvido, deseja que seu corpo seja analisado como um ser inteiro – não somente resultados numéricos de exames laboratoriais –, deseja ser acolhido naquele momento de intimidade e no espaço-tempo do seu histórico pessoal. Deseja vincular-se, talvez. O que contraria a lógica produtivista dos convênios médicos, que cobram caro, pagam pouco, recusam-se a oferecer planos particulares (porque o governo regulamenta o serviço), são coniventes com corrupções diversas – veja a quantidade de obstetras que tem solicitado remuneração à parte daquela que o convênio lhes concede para realizar partos – e alimentam um sistema de atendimento automatizado, insensível e rápido, muito rápido, que nada tem de saudável – o paciente nem se acomodou na cadeira e as guias de exames são chacoalhadas na sua frente, junto com meia dúzia de receitas farmacêuticas, algumas de antidepressivos.

Algo semelhante ocorre nas salas de aula. Cada vez mais cheias e administradas por professores desestimulados, sua forma não incentiva qualquer vínculo que leve a conhecimento consistente ou que permita ao aluno buscar emancipação. Todos os anos inúmeros estudantes saem da faculdade sem habilidade intelectual, crítica ou analítica; passaram duas décadas copiando o conteúdo exposto pelo professor sem apreendê-lo adequadamente ou, pior ainda, ficaram esses anos todos a ignorar o que lhes era oferecido. São pessoas que chegam ao mercado de trabalho justamente como produtos – ofertados, patéticos, nada profissionais e ainda assim responsáveis por levarem o país adiante, seja no setor público ou privado.

Citei esses exemplos para mostrar que a questão do vínculo não é puramente abstrata – ela implica sofrimentos de diversas ordens, como vimos. Para pensá-la, vale retomar algumas ideias de Zygouris. Embora ela trate de uma relação oriunda da experiência analítica, acredito que provoque também uma reflexão sobre as demais relações experimentadas em nosso cotidiano. Podemos traçar um paralelo e, dessa maneira ampliada, destacar os seguintes pontos:

– O vínculo pertence ao território, não ao mapa. É da ordem do vivido, uma experiência que se vive em relação ao outro. Ele não se sustenta como teoria, é necessário vivenciá-lo na prática, no contato, no contágio.

– Não se interpreta o vínculo, ele não tem razão de ser, não há metáfora que dê conta da sua potência. Trata-se de um lugar de sentimentos, de silêncios; ele estabelece um plano de sensibilidade, um não-verbal que existe enquanto pessoas estão juntas – é o encontro em si.

– Sua natureza é fisiopsíquica. Isso quer dizer que não se basta numa afetação racional, ele é também visceral, vivido nas diferentes profundidades do corpo. Um vínculo "musical", que nos toca em tonalidades diversas.

– Ele requer implicação dos envolvidos, o que é mais do que participação. O vínculo exige que o "eu" esteja liberto para ser formado a partir do encontro. Não pelo poder, ao contrário; para ser formado por dissociação.

– A experiência vincular nunca se repete, ela é um fluxo sempre atual e cativante. Até ser interrompida e deixar de existir.

Antes de racionalizar, analisar ou criticar, é necessário sentir o outro na questão. Porque o "pensamento é, em primeiro lugar, um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem", diz Zygouris. Toda pessoa que pretende assumir a responsabilidade de oferecer um pensamento à sociedade precisa saber que "pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento" – isso é muito grave e muito urgente, veja quantas agressões trocamos cotidianamente sem afeto algum, sem qualquer cuidado com o outro. Enquanto não desenvolvermos a sensibilidade, que é vital ao humano e imprescindível ao convívio, continuaremos com medo, isolados e infelizes, desvinculados inclusive de nossa própria potência de ser juntos.

*Este texto foi publicado originalmente no Caderno C do Correio Popular.

sábado, 26 de dezembro de 2015

UM BRINDE AOS VAGA-LUMES



A última lembrança nítida que tenho deles remete à infância, às férias vividas no litoral. Já naquela época era difícil vê-los na cidade grande. Desde então, é possível que um ou outro tenha se exibido para mim, assim como é possível ter sido apenas o relampejar de uma fantasia minha que logo se apagou.

Onde estão os vaga-lumes?, Pier Paolo Pasolini quis saber ainda na primeira metade do século passado. Questão retomada por Georges Didi-Huberman num dos livros mais tocantes que li neste ano assombroso, intitulado Sobrevivência dos vaga-lumes. Nele, o autor retoma o trabalho poético e político do cineasta italiano para refletir sobre as situações que vivemos na atualidade. Faz isso com graça, delicadeza e maturidade invejáveis, que resultam num inspirador modo de fazer crítica.

É um texto lindo, sensível, flutuante e muito urgente no que diz respeito a inventar curvas nesta barbárie reta e veloz que estamos produzindo em escala local e mundial, cuja trajetória leva certamente ao precipício.



Naquele contexto, os vaga-lumes são luzes menores que lutam para sobreviver em meio ao iluminismo feroz dos holofotes. Essas máquinas espetaculares, que pretendem trazer tudo à luz do dia e expor à razão exacerbada, ofuscam a existência daquelas luzinhas pulsantes, frágeis, ansiosas por uma escuridão que possam habitar, onde possam mostrar seus dotes, encontrar seus pares; enfim, onde possam viver as suas vontades e alegrias. Luzes intermitentes, que dançam a poesia da resistência.

Desses vaga-lumes pude ver uma porção em 2015. Um pequeno grupo aqui, uma reunião pouco maior ali, movimentando-se, requerendo a atenção dos nossos olhos para questões invisíveis, para demandas suplantadas pelos refletores dominantes, pela ignorância e pela indiferença em relação ao outro. Vaga-lumes que insistiram em brilhar apesar de todas as tentativas de repressão; os cassetetes, as palavras de ordem, as manobras políticas, os abusos de poder, a incitação e a execução de violências as mais diversas, desde o rompimento com a ética até a violação de direitos constitucionais, desde a verborragia à agressão física, as prisões, os silenciamentos, preconceitos, menosprezo e morte.

Para Didi-Huberman, os vaga-lumes desaparecem da nossa vista porque já não estamos no melhor lugar para vê-los. Não é que deixam de existir, eles simplesmente se reorganizam e se realocam quando seu habitat é invadido. Portanto fica a nós uma tarefa vital: reinventar os territórios de modo que os vaga-lumes possam habitá-los, seja esse território um país, uma cidade, uma comunidade, uma casa ou um jardim, seja esse território nem mesmo um espaço, mas uma temporalidade ou um registro afetivo. Nas palavras do filósofo, "há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes".

Existem mais de duas mil espécies desses insetos. Milhares de modos de ser. Para conhecê-los, não devemos capturá-los e os trazer à luz, "é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite", diz o autor. Pois jamais compreenderemos os vaga-lumes se os arrancarmos de seu lugar; para falar deles é necessário experimentar a escuridão.

Humanos têm algo de vaga-lume, uma vibração interior que pode ganhar vida e iluminar o arredor. A luminescência de alguns esmaece por conta da carapaça grossa, pesada e enrijecida que a oprime. Despojar-se das couraças, abrir-se à experiência sensível, amolecer o juízo e desconstruir os dogmas implicam expor a si mesmo a ameaças variadas. Mas existe outro jeito de produzir luz própria?

Sustentar o próprio brilho é um gesto poético corajoso; um ato político, social, estético. Tanto quanto deixar-se encantar pela luz dos outros. Ser atraído por ela, desejá-la; ambos tão frágeis e tão belos! Capazes de brilhar uma única vez e marcar para sempre a retina de quem os viu.



Didi-Huberman conta que, na década de 1970, após intensa batalha contra o neofascismo incorporado aos modos de agir italianos, Pasolini caiu em desespero e não conseguiu mais sustentar sua resistência poética. Os vaga-lumes deixaram de existir para ele. Não porque foram extintos, embora ele acreditasse nisso, mas porque ruiu algo central no seu desejo de ver. "O que desapareceu nele", diz o autor, "foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade 'inocente', no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar".

Vivemos tempos sombrios, em que é difícil enxergar ao longe. Tempos varridos por refletores de vigia ou de espetáculo. Também são tempos propícios para compartilhar nossa luminescência interior. Neste ano que se inicia, desejo que você brilhe, se puder. Que se deixe sensibilizar pela poesia dos vaga-lumes. E, independentemente do que venha a acontecer, que jamais deixe de procurá-los. Eles estarão dançando em algum lugar, mais perto do que você imagina.

>> Este texto é dedicado aos estudantes e professores que têm lutado em diversas frentes pela educação no Brasil, porque acreditam que toda transformação social passa necessariamente por ela. Pessoas que têm ensinado a importante lição de que política não se faz de cima para baixo nem de baixo para cima, mas horizontalmente: disponível, dialogada e, claro, com respeito pela potência luminosa dos demais.

domingo, 29 de novembro de 2015

CERTA DESCONEXÃO

Cartas de agradecimento (2015), Chiharu Shiota
Na última década, trabalhei em frente ao computador num regime de dez horas por dia, com folgas ocasionais nos fins de semana. Informação de todo tipo chegava até mim sem que fosse necessariamente solicitada; em contrapartida, eu também alimentava essa rede de conexões ao mesmo tempo maravilhosa e potencialmente perversa chamada internet. Seguia o fluxo, às vezes era arrastado por ele, nunca sabia que corredeiras aguardavam adiante. Então senti necessidade de parar, tomar fôlego e refletir sobre essa infinidade na qual estamos todos imersos, que tenta nos convencer de que continuará a existir independentemente da nossa vontade.

Por trinta dias estive de férias e tentei uma experiência: quis me desconectar da urgência por informação e pertencimento virtual. Foi bom, está sendo bom e sustentarei um pouco disso na medida do possível. Para dosar essa vontade é necessário assumir que não conseguimos estar completamente conectados ou desconectados da rede – uma ingenuidade utópica acompanha ambas as opções. Por sua vez, somente uma parcela mínima de toda essa informação a que estamos expostos se converte em experiência, e o tempo dedicado a ela poderia ser melhor aproveitado, seja fazendo outra coisa, seja fazendo nada.

Lembro-me de um post de Facebook em que a pessoa se fotografou numa lagoa "distante da civilização" e escreveu: "Nada como me desconectar". Lembro e sorrio; ela foi até a lagoa, tirou uma selfie com o celular, compartilhou na rede e ainda acreditava estar "desconectada". Sim, é difícil arrancar o plugue da tomada. Talvez seja pior ainda aceitar que, no fim das contas, ele não faz tanta diferença assim. Não existe necessidade de vivermos conectados virtualmente a tudo e a todos a todo instante. Isso é uma bobagem à qual o "estilo de vida moderno" deseja nos incorporar. Por outro lado, não é o caso de considerar patológico o uso de tablets, smartphones, smartwatches, entre outras engenhocas high-tech que continuamos a inventar. Ouço a crítica com frequência: “Esse aí é viciado em celular”, “A criança só quer saber de tablet” etc. Por excessivo que seja, falta de bom senso é diferente de doença. Além disso, já somos hipocondríacos o suficiente.

Claro que um bocadinho de noção sobre o que está acontecendo não faz mal a ninguém, seja qual for sua opinião a respeito, seja qual for a atitude que tomará a partir daí. Só não pense que certa desconexão, na medida em que é possível e saudável, significa optar pela ignorância, como se fechássemos as portas para o mundo atual ou quiséssemos nos isolar dessa humanidade cool. Negar a tecnologia e seus benefícios é uma barbaridade. As oportunidades de conhecimento que hoje temos à disposição estão entre as maiores conquistas de todos os séculos.

Se não é de negação que falo, é de produzir consciência: saber se desconectar é a inteligência que precisamos exercitar. Perceber o esforço empregado nessa ilusão de compartilhar experiências com o mundo inteiro, quando na maior parte do tempo apenas buscamos distração ou fuga das nossas próprias realidades. E pesar os prós e contras desse esforço.

Neste contexto atual de superexposição, é prudente desenvolver a inteligência de nos recolher quando necessário, de selecionar aquilo que nos chega e a forma como vem. Temos que desenvolver a inteligência de gerir nossos veículos de informação ao invés de sermos dirigidos e digeridos por eles. Aprender a dizer não, a não estarmos sempre disponíveis, a organizar nosso dentro e nosso fora, a controlar o que entra e o que sai por essa membrana sensível, por vezes tratada com relapso. O que ainda nos cabe? Qual é o nosso limite?

Uma amiga fez a corajosa escolha de não receber notícias em primeira mão via mídia convencional, seja revistas, noticiários, sites ou rádios. O que chega a ela percorre outros caminhos, outros filtros, outras temporalidades. Ao contrário do que parece, ela é uma das pessoas mais bem conectadas com o contemporâneo, sustentando com ele uma fina sintonia ao mesmo tempo em que está de alguma maneira protegida dos perigos (de aparência inocente) que vão nos afetando aos poucos sem que os percebamos, até que se tornam "normais". Ao tomar aquela decisão, restou tempo e disposição para ela desenvolver novas formas de relação com os outros; sensibilidades mais aguçadas, maneiras mais profundas de apreender o que acontece à sua volta e que a toca, seja no círculo imediato (família, amigos, trabalho), seja no outro lado do planeta. Há tantas outras formas de conexão possíveis!

Cartas de agradecimento (2015, detalhe), Chiharu Shiota

Ilya Prigogine, Nobel de Química em 1977, escreveu no fim do século passado uma "Carta para as futuras gerações", na qual afirma: "Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a 'sociedade de rede', com seus sonhos de aldeia global. (...) Minha mensagem às futuras gerações é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcações ainda não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais".

Segundo ele, a ciência de hoje nega o determinismo, e essas bifurcações que exigem de nós uma tomada de decisão são ao mesmo tempo sinal de instabilidade e de vitalidade. Em suas palavras: "Quanto mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. (...) O homem é até agora a única criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. (...) Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência. (...) Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro".

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

CARTA PARA AS FUTURAS GERAÇÕES

Texto de Ilya Prigogine (1917-2003), cientista russo, Nobel de Química em 1977. Publicado no Brasil em Caderno MAIS! Folha de SP. São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000. 

Escrevo esta carta na mais completa humildade. Meu trabalho é no domínio da ciência. Não me dá qualquer qualificação especial para falar sobre o futuro da humanidade. As moléculas obedecem a "leis". As decisões humanas dependem das lembranças do passado e das expectativas para o futuro. A perspectiva sob a qual vejo o problema da transição da cultura da guerra para uma cultura de paz -para usar a expressão de Federico Mayor- se obscureceu nos últimos anos, mas continuo otimista.

De qualquer forma, como poderia um homem da minha geração -nasci em 1917- não ser otimista? Não vimos o fim de monstros como Hitler e Stálin? Não testemunhamos a miraculosa vitória das democracias na Segunda Guerra Mundial? No final da guerra, todos nós acreditávamos que a História recomeçaria do zero, e os acontecimentos justificaram esse otimismo.

Os marcos da era incluem a fundação da Organização das Nações Unidas e da Unesco, a proclamação dos direitos do homem e a descolonização. Em termos mais gerais, houve o reconhecimento das culturas não européias, do qual derivou uma queda do eurocentrismo e da suposta desigualdade entre os povos "civilizados" e os "não-civilizados". Houve também uma redução na distância entre as classes sociais, pelo menos nos países ocidentais.

Esse progresso foi conquistado sob a ameaça da Guerra Fria. No momento da queda do Muro de Berlim, começamos a acreditar que enfim seria realizada a transição da cultura da guerra para a cultura da paz. No entanto a década que se seguiu não tomou esse rumo. Testemunhamos a persistência, e até mesmo a ampliação, dos conflitos locais, quer sejam na África, quer nos Bálcãs. Isso pode ser considerado, ainda, como um resultado da sobrevivência do passado no presente. No entanto, além da ameaça nuclear sempre presente, novas sombras apareceram: o progresso tecnológico agora torna possível guerras travadas premindo botões, semelhantes de alguma forma a um jogo eletrônico.

Sou uma das pessoas que ajudaram a formular as políticas científicas da União Européia. A ciência une os povos. Criou uma linguagem universal. Muitas outras disciplinas, como a economia e a ecologia, também requerem cooperação internacional. Fico, por isso, ainda mais atônito quando percebo que os governos estão tentando criar um exército europeu como expressão da unidade da Europa. Um exército contra quem? Onde está o inimigo? Por que esse crescimento constante nos orçamentos militares, quer na Europa, quer nos Estados Unidos? Cabe às futuras gerações tomar uma posição sobre isso. Na nossa era, e isso será cada vez mais verdade no futuro, as coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Vou usar um exemplo científico.



Quarenta anos atrás, o número de cientistas interessados na física de estado sólido e na tecnologia da informação não passava de umas poucas centenas. Era uma "flutuação", quando comparado às ciências como um todo. Hoje, essas disciplinas se tornaram tão importantes que têm consequências decisivas para a história da humanidade.

Crescimento exponencial foi registrado no número de pesquisadores envolvidos nesse setor da ciência. É um fenômeno de proporção sem precedentes, que deixou muito para trás o crescimento do budismo e do cristianismo. Em minha mensagem às futuras gerações, gostaria de propor argumentos com o objetivo de lutar contra os sentimentos de resignação ou impotência. As recentes ciências da complexidade negam o determinismo; insistem na criatividade em todos os níveis da natureza. O futuro não é dado. O grande historiador francês Fernand Braudel escreveu: "Eventos são poeira". Isso é verdade? O que é um evento? Uma analogia com "bifurcações", estudadas na física do não-equilíbrio, surge imediatamente. Essas bifurcações aparecem em pontos especiais nos quais a trajetória seguida por um sistema se subdivide em "ramos". Todos os ramos são possíveis, mas só um deles será seguido. No geral não se vê apenas uma bifurcação. Elas tendem a surgir em sucessão. Isso significa que até mesmo nas ciências fundamentais há um elemento temporal, narrativo, e isso constitui o "fim da certeza", o título do meu último livro. O mundo está em construção, e todos podemos participar dela.

Metáforas úteis

Como escreveu Immanuel Wallerstein: "É possível -possível, mas não certo- criar ou construir um mundo mais humano e igualitário, melhor ancorado no racionalismo material". Flutuações do nível microscópico decidem que ramo emergirá em cada ponto de bifurcação, e portanto que evento acontecerá. O apelo às ciências da complexidade não significa que estejamos sugerindo que as ciências humanas sejam "reduzidas" à física. Nosso empreitada não é de redução, mas de reconciliação. Conceitos introduzidos das ciências da complexidade podem servir como metáforas muito mais úteis do que o tradicional apelo a metáforas newtonianas. As ciências da complexidade, assim, conduzem a uma metáfora que pode ser aplicada à sociedade: um evento é a aparição de uma nova estrutura social depois de uma bifurcação; flutuações são o resultado de ações individuais. Todo evento tem uma "microestrutura". Tomemos um exemplo histórico a Revolução Russa de 1917. O fim do regime czarista poderia ter tomado diferentes formas, e o ramo seguido resultou de diversos fatores, tais como a falta de previsão do czar, a impopularidade de sua mulher, a debilidade de Kerensky, a violência de Lênin. Foi essa microestrutura, essa flutuação, que determinou o desfecho da crise e, assim, os eventos que a ela se seguiram. Desse ponto de vista, a história é uma sucessão de bifurcações. Um exemplo fascinante de como isso transcorre é a transição da era paleolítica para a neolítica, que aconteceu praticamente no mesmo período em todo o mundo (esse fato é ainda mais surpreendente dada a longa duração da era paleolítica). A transição parece ter sido uma bifurcação ligada a uma exploração mais sistemática dos recursos minerais e vegetais. Muitos ramos emergiram dessa bifurcação: o período neolítico chinês, com sua visão cósmica, por exemplo, o neolítico egípcio, com sua confiança nos deuses, ou o ansioso período neolítico do mundo pré-colombiano. Toda bifurcação tem beneficiários e vítimas. A transição para a era neolítica trouxe a ascensão de sociedades hierárquicas. A divisão do trabalho implicou em desigualdade. A escravidão foi estabelecida e continuou a existir até o século 19. Ainda que o faraó tivesse uma pirâmide como tumba, seu povo era enterrado em valas comuns. O século 19, da mesma forma que o 20, apresentou uma série de bifurcações. A cada vez que novos materiais eram descobertos -carvão, petróleo ou novas formas de energia utilizável-, a sociedade se transformava. Será que não se poderia dizer que, tomadas como um todo, essas bifurcações conduziram a uma maior participação da população na cultura, e que de lá por diante as desigualdades entre as classes sociais nascidas na era neolítica começaram a diminuir?

Homem e natureza

No geral, bifurcações são a um só tempo um sinal de instabilidade e um sinal de vitalidade em uma dada sociedade. Elas expressam também o desejo por uma sociedade mais justa. Mesmo fora das ciências sociais, o Ocidente preserva um espetáculo surpreendente de bifurcações sucessivas. A música e a arte, por exemplo, mudam a cada 50 anos. O homem continuamente explora novas possibilidades, concebe utopias que podem conduzi-lo a uma relação mais harmoniosa entre homem e homem e homem e natureza. E esses são temas que ressurgem constantemente nas pesquisas de opinião sobre o caráter do século 21.

A que ponto chegamos? Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como a multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a "sociedade de rede", com seus sonhos de aldeia global.

Mas qual será o resultado dessa bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A palavra "globalização" cobre uma grande variedade de situações diferentes? É possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com globalização, uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo cultural e o respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras. Mas há outros riscos no horizonte.

Cerca de 12 mil espécies de formigas são conhecidas hoje. Suas colônias variam de algumas centenas a muitos milhões de indivíduos. É interessante notar que o comportamento das formigas depende do tamanho da colônia. Em colônias pequenas, a formiga se comporta de forma individualista, procurando comida e a levando de volta ao ninho. Quando a colônia é grande, porém, a situação muda e a coordenação de atividades se torna essencial.

Estruturas coletivas surgem espontaneamente, então, como resultado de reações autocatalíticas entre formigas que produzem trocas de informação medidas quimicamente. Não é coincidência que nas grandes colônias de formigas ou térmites os insetos individuais se tornem cegos. O crescimento populacional transfere a iniciativa do indivíduo para a coletividade.

Por analogia, podemos nos perguntar qual será o efeito da sociedade da informação sobre nossa criatividade individual. Há vantagens óbvias nesse tipo de sociedade -basta pensar na medicina ou na economia. Mas existe informação e desinformação. Como diferenciá-las? Claramente, isso requer cada vez mais conhecimento e um senso crítico desenvolvido. O verdadeiro precisa ser distinguido do falso, o possível do impossível. O desenvolvimento da informação significa que estamos legando uma tarefa pesada às futuras gerações. Não devemos permitir que surjam novas divisões resultando da "sociedade de redes" baseada na tecnologia da informação. Mas é preciso igualmente examinar questões mais fundamentais.

Em sentido geral será que a bifurcação reduzirá a distância entre os países ricos e os pobres? A globalização será caracterizada pela paz e democracia ou por violência, aberta ou disfarçada? Cabe às futuras gerações criar as flutuações que determinarão o rumo do evento correspondente à chegada da sociedade da informação.

Minha mensagem às futuras gerações, portanto, é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcação ainda não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais.

Quanto mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. Fomos da idéia geocêntrica de um sistema solar para a heliocêntrica, e de lá para a idéia das galáxias, e, por fim, para a dos múltiplos universos. Todos já ouviram falar do Big Bang. Para a ciência, não existe um evento único, e isso conduziu à idéia de que múltiplos universos podem existir. Por outro lado, o homem é até agora a única criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. Minha esperança é de que as gerações futuras aprendam a conviver com o espanto e com a ambiguidade.

A cada ano, nossos químicos produzem milhares de novas substâncias, muitas das quais derivadas de produtos naturais -é um exemplo da criatividade humana no seio da criatividade natural como um todo. Esse espanto nos leva a respeitar os outros. Ninguém é dono da verdade absoluta, se é que essa expressão significa alguma coisa. Acredito que Richard Tarnes esteja certo: "A paixão mais profunda da alma ocidental é redescobrir a unidade com as raízes de seu ser".

Essa paixão leva à afirmação prometéica do poder da razão, mas a razão pode também conduzir à alienação, a uma negação daquilo que dá valor e significado à vida. Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência, algo que ponha fim às profecias quanto ao "fim da ciência", "fim da história" ou até quanto ao advento da "pós-humanidade".

Estamos apenas no começo da ciência, e muito distantes do tempo em que se acreditava possível descrever todo o universo em termos de algumas poucas leis fundamentais. Encontramos o complexo e o irreversível no domínio microscópico (tal como associado às partículas elementares), no domínio macroscópico que nos cerca e no domínio da astrofísica. Cabe às futuras gerações construir uma nova ciência que incorpore todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua infância.

Da mesma forma, o fim da história poderia ser o fim das bifurcações e a realização das visões de pesadelo de Orwell ou Huxley quanto a uma sociedade atemporal que perdeu sua memória. Cabe às futuras gerações manterem-se vigilantes para garantir que isso jamais aconteça. Um sinal de esperança é o de que o interesse pela natureza e o desejo de participar da vida cultural jamais foi maior do que hoje. Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão. São responsabilidades pesadas.

Uma carta às gerações futuras é sempre e necessariamente escrita de uma posição de incerteza, de uma extrapolação arriscada do passado. No entanto, continuo otimista. O papel dos pilotos britânicos foi crucial para decidir o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Foi, para repetir uma palavra que usei com frequência nesse texto, uma "flutuação". Confio em que flutuações como essa surgirão sempre, para que possamos navegar seguros entre os perigos que hoje percebemos. É com essa nota de otimismo que eu gostaria de encerrar minha mensagem.

Ver publicação original: Caderno MAIS!

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

INUNDAÇÃO

Jovem triste num trem (1911), Marcel Duchamp
arrastado
o menininho
agarrado pela mão
no último instante, o derradeiro
frágil braço lançado entre
forças e fluxos
a mãe, lutando
contra o turbilhão
de gente

Passa gente de todo lugar. Venham, gentes. Vão, gentes. A casa é de vocês, fiquem à vontade. Indivíduos, sujeitos, gêneros, pessoas de toda cara e idade, de todos jeitos e suspeitos. Só de passagem. Afagam o celular com esse carinho próprio de nossos dias, esse amor maquinal, cheio de jogos e aplicativos. Leem um livro e eu estico olhos curiosos para saber qual é. Muitas vezes me surpreendo. Ulysses, você!, aqui?, no metrô?! Moby Dick? David Copperfield!, que saudade, rapaz, apareça quando quiser. Atenção, senhores passageiros, a companhia alerta para risco de tijolada iminente. São as iminências da poética, a Bienal deu a dica uns anos atrás.

Observo e as pessoas não param, os retratos ficam borrados, desfigurados, futuristas. Um movimento incessante, pêndulo de Foucault, para lá e para cá, para aqui e acolá. Narrativas enviesadas que só acontecem nos cruzamentos, transculturalmente, sem começo, meio e fim. Apenas errância e acertância. Uma estação de baldeação, um desvio no caminho. Um ponto de fuga? Que nada! Não tem por onde, não há escapatória. Há somente saída. Muitas saídas. Todas dão no mesmo lugar. O nível das ruas, a superfície plana da humanidade, mil platôs.

Saia não, fique um tanto mais. Para que essa correria? Vamos operar com velocidade reduzida e maior tempo de parada. Problema? Nenhum. Precisa ter? Precisa não. É uma experiência, vamos provar ritmo diferente, deixar para outro dia o arroz com feijão, e mais outro, e mais outro. Desse prato eu já comi demais, deu moleza. Venha provar do coletivo, essa iguaria popular, cultura local que gringo deseja com água na boca.

Veja lá quem vem na nossa direção. Conhece? Vejo todo dia mas não conheço não. Devemos ter coisas em comum, porém compartilhamos somente o caminho. Caminhamos juntos e separados, lentos e apressados, cada um na sua mas com alguma coisa em comum. Free, distraídos. A distração é por segurança. Tá olhando o quê? Nunca viu? Olha, não se ache demais, especial aqui só o assento mesmo, aqueles de cor diferente em que todo mundo planeja descansar o traseiro, ainda que poucos detenham o privilégio. Lição de democracia. Aprende aí e não reclama. Eu chamo o segurança, tá pensando o quê?

As filas andam, às vezes se trançam, dá a maior confusão. Acelera, freia, acerta o passo, acerta o calo, recolhe o pé, deixa passar quem tá com pressa, eu tô, eu também, sai pra lá, folgado!, tira esse cotovelo daqui, empurra não, bota essa mochila pra frente, diminui a música que eu não gosto dessa pouca vergonha. Tem quem se ache no direito, mas aqui ninguém é mais direito nem mais esquerdo, sem exceção, estamos juntos no mesmo barco. No mesmo trem, se você me entende. Quando um desequilibra, um monte vai pro chão. Que não é chão, se você me entende. É assoalho. Coisa fina.

Não entende, não faz mal. A vida é assim. Claro, você não vê? Essas estações são a síntese da convivência social, bicho. Tem conflito de classes, propaganda, exploração de desabastados, indiferença. Eu disse desabastadados, com A! Abestado tá no Congresso. Aqui tem gente vendendo bala, chiclete, chocolate invalível, doçura de origem duvidosa, papelzinho xerocado. Ajuda, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, eu podia estar transferindo a sua ligação, mas eu estou é ganhando a vida, com licença, com licença, questão de sobrevivença.

Ai, madame, bobeia com esse celular novinho não, custa o olho da cara, com um desses eu teria até onde morar por seis meses, se não chover. Olha ali, o sujeito lendo em voz alta, pregando como se todo mundo se interessasse. Essa história eu já sei como acaba! O final parece feliz mas não é. Não importa o céu se o inferno ainda existe, isso não é salvação, é só a enganação nossa de todo dia. Nos dai hoje um pouquinho de paz, por favor!, pare de martelar nossas cabeças, anda, deixe cada um com seu próprio livro ou jornal, cada um que acredite na verdade que quiser.

Bom mesmo é encarar as diferenças com indiferenciação, olha que palavrona bonita! Já basta de gente controlando a minha liberdade. Vou pitacar na vida alheia? Tenho mais o que fazer!

Ai, se tem coisa que me incomoda é ficar parado no túnel. Perda de tempo... Algum objeto na linha, só pode ser. Um braço, uma perna, indigente. Passa por cima que eu tô com pressa! Passa por cima do respeito! Digo, do sujeito! Infeliz. Tá com pressa vai de táxi, vai pra Cuba, vai no jatinho do Neymar, vai na Ferrari do Neymar! E para onde vai com essa urgência toda? Vou pagar os meus impostos, sou um cidadão de bem, gente de família! Ah, taí ostentando ignorança, truculença, verborragia!? Só pra chegar primeiro? Gente sem coração...

Aperta não que a malmita abre, não é gurmê. Crise? Conheço não. Dólar? Aquele do 44b? Corrupção eu uso pra pescar robalo. Livre-arbítrio? Claro que sei!, moreninho, apitou a final do Brasileirão, idos de 1990. Tava comprado. Péra aí, tá livre de novo? Esse país não tem solução. É o fim da picada!

Será que o metrô chega lá? Um dia ainda desço na estação final, ahh, vocês vão ver. Só para poder voltar sentado. Que alívio! Passear de barco nesse mar de gente, nessa represa transbordante! Isso é que é vida! Mas hoje não, hoje não dá, tô atrasado. Dá licença que desço aqui, falei demais, dá licença, moço, segura a porta, por favor, obrigado. Desculpa aí por atrasar a viagem de vocês. E de todos os outros trens.



O vídeo acima foi gravado na estação República do metrô de São Paulo.
Conheça mais do trabalho artístico de Adam Magyar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

PENSAMENTO PERDIDO

já não se sabe
o que atravessa
a cabeça arremata o
pensamento perdido
atirado de longe
sem cara nem coração
sai nos jornais
comentário assassino
sem experiência viva
nem pulso de coragem
tomado de assalto
feito bala de fuzil
vitimando inocentes
pelo prazer algoz
pela justiça falha
insegurança
atravessa a carne se
aloja no cerne
do suspeito
veias abertas da América
marginal de cor, de raça
perseguida, impedida
graças adeus

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

resistir a Darwin
acolher fragilidades, aprender
com elas convidar ao mundo
deixar as portas abertas
a quem quiser participar
fendas, fissuras, intervenções
onde os fracos não têm vez
fazê-los visíveis, olhar por eles
inventar lugares onde tenham
potência corporal
existência, liberdade
involuir para ser sutil
menos super-homem, menos moralismo
menos reis e suas leis
menos direitos enrijecidos
mais gentileza, por favor
mais poesia, ainda que dura
seja poesia

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

SÓ MAIS DEZ MINUTINHOS

diz a lenda
a voz das ruas
o gigante acordou
retorcendo-se
desejando
que fosse apenas um
pesadelo
de uma ilusão
recobrou-se e não
entendeu
nada sabia,
inocente
o gigante acordou
suando frio bebeu
um copo d’água
aliviou-se, tirou um peso
desrazão
dormiu novamente
um pouquinho mais, por favor
piedade de nós
até despertar
o smartphone

segunda-feira, 6 de julho de 2015

QUE EXPERIÊNCIA NOS RESTA?

Ler um texto como O narrador, que Walter Benjamin escreveu quase 80 anos atrás, em 1936, e perceber com espanto sua atualidade sugere algo sobre aquilo que poderíamos chamar de contemporâneo, no sentido de que condiz e é pertinente às questões que agora nos atravessam. Em primeiro lugar, sugere que o contemporâneo não se refere ao tempo cronológico, portanto não segue a linha do progresso – em vez de Benjamin poderíamos citar autores de séculos antes que parecem ter escrito especialmente para nós. Em segundo lugar, diríamos que o contemporâneo não é pleno: não conseguiríamos distinguir uma totalidade nem na apreensão sensível do tempo nem no senso comum sobre a experiência da vida; não existe comportamento padrão em nossas sociedades, mas lampejos que sugerem mudanças de atitude em meio ao previsível, lugares que privilegiam o dissenso em meio ao conforto da tradição pré-estabelecida. São pontos que brilham por um instante e logo se apagam; um surge aqui, outro responde acolá, como um grupo de vaga-lumes à noite, que vemos em sua singularidade tanto quanto na efemeridade.

O contemporâneo se constituiria, entre outras coisas, de reminiscências: passados retomados pela memória; resíduos, restos, fragmentos postos em conexão numa nova estrutura; lembranças imprecisas ou indecisas que evocam imagens borradas. Seria como um vulto: que passa sem se revelar por inteiro – restaria do contemporâneo mais uma sensação daquilo que ele manifesta do que um conceito propriamente formulado, aceito e contestável segundo os métodos da crítica conservadora.

Como as narrativas sobrevivem nos tempos atuais? Se na época de Benjamin já se notava certa precariedade dessa forma de compartilhamento de experiências, hoje em dia as perspectivas não são melhores. Conforme o filósofo escreveu, "cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação".

Enquanto a informação só tem relevância quando é fresca, a sabedoria da experiência, tecida na forma de narrativas, compartilhada geração após geração, não tem prazo de validade. Seu valor independe do tempo e por conta desse alargamento não determinado ela é mais contemporânea nossa do que o preço do dólar ou o próximo capítulo da novela.

Jorge Larrosa Bondía certa vez explicou que é preciso separar o saber da experiência e a posse de informações. Porque, ao contrário do que acontece por aí e somente diz respeito aos outros, a experiência é o que nos acontece, o que nos toca. Em suas palavras: "O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação (...), o que consegue é que nada lhe aconteça".

Por que nada nos acontece? Por que nada mais ganha a gravidade da experiência digna de ser narrada, que nos toca e transforma, além de ser passada adiante ao longo dos séculos, tal como nas mitologias que sobreviveram desde os tempos mais remotos? Talvez porque não tenhamos, justamente, tempo: na correria em que vivemos, não encontramos um instante sequer para dispor à possibilidade de irromperem experiências. Ou melhor: não arranjamos tempo para nos colocar à disposição do mundo. E as verdadeiras experiências só acontecem a quem está aberto.

Benjamin acreditava que esse processo "exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro". Para ele, tal distensão se encontraria no tédio.

Almoço na relva (1863), Édouard Manet

Tenho quase certeza de que, se eu perguntar quem se sente entediado, boa parte das pessoas responderá que sim; nos sentimos entediados com a rotina puxada, o cansaço, a falta de perspectivas, descobertas e desafios. Mas não é a esse tédio que o filósofo se refere. Estamos mesmo esgotados, porém continuamos mergulhados no excesso de informação e de tarefas. Esse excesso afasta o tédio proposto por Benjamin, que seria obtido pelo desligamento da máquina produtiva, pelo "dolce far niente" dos italianos, quer dizer, a doçura do não fazer nada, de abrir terreno para que o inusitado germine.

Para Bondía, "a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço".

Houve um tempo em que se buscava nas drogas uma espécie de interrupção, que na realidade era uma dilatação de sentidos contra a dureza da razão moral, com objetivo de experimentar outra relação com o mundo. Até mesmo isso foi desaparecendo durante o século XX, e hoje as drogas acabam usadas no sentido oposto, de anestesia, como meio de escapar das experiências da vida. Uma fuga no lugar da descoberta, embora na prática a coisa não seja tão diferente assim. Acontece que nem mesmo o estímulo dos sentidos consegue se sustentar por muito tempo, talvez por conta da sua artificialidade. Há uma frase no romance Demian, de Hermann Hesse, que sintetiza bem essa ideia: “As pessoas que vivem todo o dia nas tabernas já perderam por completo essa exaltação. Tudo se transforma num hábito”. Pois nos acostumamos até mesmo com o excesso de novidades, e logo ele próprio assume o status de banalidade.

Acredito mais no gesto de interrupção que se revela uma atitude estético-política. Sensível. Profunda, complexa e necessária. Um gesto singelo de resistência crítica à velocidade, à informação em demasia que nos provoca a falsa sensação de pertencimento ao mundo, à tecnologia que afasta a possibilidade de que as coisas nos toquem diretamente, ao trabalho mecânico, produtivista e inconseqüente, ao consumismo exacerbado de produtos, serviços e verdades; resistência a tudo isso que de alguma maneira preenche nosso cotidiano como se o completasse, e que nos configura como máquinas ligadas incessantemente no modo automático. Não precisa ser uma grande força contrária, é preferível até que seja um gesto frágil, que transforma e que também se transforma durante o processo. O que nos resta fazer? Resistir poeticamente, sim. Não porque aquelas coisas não sejam importantes, mas porque não podem ser absolutas.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

É, NEM

“Até gosto de Humanas”, disse um cara atrás de mim, na escada rolante do metrô, “mas não gosto desse negócio de abraçar árvores”. Ele conversava com uma amiga, e pelo jeito ambos planejavam prestar o vestibular. Fiquei tentado a perguntar se ele não confundia Humanas com algum ramo pervertido da Botânica. Fiz bem em me manter calado. Porque logo na sequência ele emendou: “Gosto também de Biologia. Mas eu não quero saber de cuidar dos animais. Quero botá-los na mesa e picá-los todinhos”.

domingo, 28 de junho de 2015

MAIS EDUCAÇÃO, MENOS ARMAS

Resolvi trazer um ponto de vista diferente sobre o que Bene Barbosa escreveu no Correio Popular de 24 de junho passado. Talvez porque eu tenha me identificado com o que ele chama de “desarmamentistas, profetas do caos”, nessa sua lógica paradoxal. Ao contrário de Bene, não sou especialista em segurança pública, e mesmo assim não é difícil mostrar outras perspectivas sobre o assunto. Afinal, aquela sua opinião acaba restrita a uma única maneira de pensar, tanto que não se sustenta se considerarmos:

1) O objetivo final da arma de fogo é provocar tragédias (guerras, mortes, ataques, violências de diversos gêneros). Ela não é fabricada para evitá-las e, ainda que alguém as empunhe com esse propósito, só poderá fazê-lo por meio de tragédia similar a qual combate. Porque é assim que as armas de fogo funcionam. Elas sustentam a própria lógica da violência.

2) Bene afirma que, quando os seguranças de shopping center passaram a portar armas, os assaltos deixaram de existir. Se seguirmos o mesmo raciocínio, nunca deveria ter ocorrido assalto a bancos ou carros-fortes, uma vez que seus seguranças sempre estiveram armados. Sabemos que isso é absurdo. E sabemos que um ambiente armado necessariamente implica maior risco potencial do que um ambiente livre de armas. Em outras palavras, o risco de consumidores tomarem um tiro no shopping é maior quando o número de balas e armas naquele ambiente aumenta. Se o tiro é disparado ou não, isso não depende somente de os seguranças apresentarem maior ameaça aos bandidos. A análise de um contexto como esse é muito mais complexa do que o fato de os seguranças estarem ou não armados. É difícil aceitar um argumento tão reducionista.

3) Acharia até engraçado, se não fosse lamentável, alguém chamar de “profetas do caos” aqueles que desejam viver num mundo sem armas. Quem seriam os armamentistas, então? Profetas da ordem? Ora, a ordem mantida pela ameaça é sempre impositiva, repressiva, violenta. Vide as ações do Estado Islâmico e dos soldados norte-americanos. Vide todas as ditaduras estabelecidas mundo afora. Vide nosso próprio dia a dia, a realidade dos morros brasileiros, a realidade das nossas ruas etc. Cada um deles impõe sua ideia de ordem à sua própria maneira.

4) Bene parece ter uma visão distorcida sobre educação. Pois, ao citar um segurança de shopping com quem conversou – e fazer questão de explicitar a pronúncia errada do sujeito (como forma de menosprezá-lo?) –, ele defende o argumento de que “os bandos de moleques que gostavam de fazer arruaça” deixaram de agir assim porque ficaram mais educados. Não, claro que não. Eles ficaram acuados porque os seguranças apresentaram maior poder. Isso não é educação, é coerção. Enquanto desconhecemos limites da educação, sabemos que a coerção sobrevive somente até que um poder maior se apresente. Em suma, acho impossível concordar com seu argumento final, de que armas nas mãos certas significariam mais educação.

Este é o texto que originou o meu. Clique na imagem para ampliá-la.

Não bastassem esses argumentos, compartilho ainda uma inquietação que me atravessa. Pois a conclusão lógica para todos esses meus pontos seria: vamos proibir o porte de armas. Porém eu não posso defender a proibição de algo como solução. Entendo que proibir é sempre uma forma de exercer violência, ainda que “cidadãos de bem” a façam com “a melhor das intenções”, conforme alguns discursos falsamente moralistas que observamos com frequência em relatos de confrontos. O mesmo vale para suprimir direitos que os cidadãos têm de agir conforme suas crenças, dentro de um limite socialmente saudável, com vontade libertária, respeito pelo outro e conduta ética. Direto de fazer suas escolhas e assumir as consequências. Talvez seja esse o único ponto em que concordo com as propostas da ONG presidida por Bene. Conforme li no site do Movimento Viva Brasil, “Não defendemos de que a população deva se armar indistintamente, mas tomamos por inaceitável que lhe seja retirado o direito de escolha em o fazer ou não”.

Entre o sim e o não, eu acredito, acima de tudo, no investimento em educação. Acredito que uma sociedade culta, capaz de refletir por si mesma e também de aceitar suas diferenças não recorreria às armas. E quem acredita em educação não aposta em armas de fogo. Simplesmente porque, em essência, as duas coisas são diametralmente opostas. Uma deseja a emancipação, a outra propõe a morte.

Não quero armas nas mãos de “pessoas certas”, até porque é o fato de estarem armadas que costuma dar razão às pessoas que as portam. Quero, sim, uma sociedade sem armas. Que não se exponha aos riscos desse porte.

Bene considera excelente um artigo do major norte-americano L. Caudill, intitulado “A arma é civilização”. Admito que sim, infelizmente. A nossa civilização acolhe violências de muitos tipos. Então, de alguma maneira, arma e civilização compartilham características que as aproximam. Só não podemos confundir, nesse caso, civilização com civilidade. Porque a arma pode ter alguma relação com o modo como a civilização se constitui. Mas portar armas jamais será uma atitude de civilidade.

sábado, 23 de maio de 2015

OCUPAR A CIDADE


No último século observamos um movimento de abertura no mundo. Que, apesar das exceções, coincide com aberturas culturais, econômicas, de fronteiras etc. Os territórios que habitamos se ampliaram: desde nossa casa, nossa rua, nossa cidade até nosso país, nossa língua, nosso continente, nossa galáxia. Não precisamos estar presentes fisicamente para que os lugares nos pertençam ou para que nós pertençamos a eles. Quase no mesmo instante em que as coisas acontecem alhures nós ficamos sabendo aqui: vitórias no esporte, transações comerciais, acidentes de trânsito, desavenças amorosas, conflitos militares e assim por diante. Assistimos a tudo pela internet, no conforto de nossas poltronas. Podemos nunca ter ido a Nova York ou Paris, mas algo que lá acontece também nos afeta.

Ao mesmo tempo em que nos abrimos para esse viver global nós realizamos um movimento contrário: corremos para casa quando anoitece, circulamos em carros blindados, instalamos cercas elétricas e câmeras de vigilância, restringimos nossos grupos sociais a padrões – moralmente, cruelmente, preconceituosamente – estabelecidos (ricos, brancos, machos, jovens, europeus).

O paradoxo é curioso. Quer dizer, o senso comum entende que abrir-se implica maior exposição, seja a boas experiências ou a ameaças diversas. Mas o que talvez passe despercebido é que fechar-se resulta apenas nas ameaças, ou seja, é ainda pior, ainda mais perigoso, ainda mais neurótico.

No livro Tempos líquidos, o sociólogo Zygmunt Bauman propõe uma perspectiva interessante a respeito das nossas atitudes. Para ele, a exposição advinda dessa abertura provoca a sensação de falta de segurança, e, querendo nos sentir mais protegidos, abrimos mão de liberdade.

Abstrato demais? Não é, basta olhar a popularização dos condomínios fechados, que isolam apartamentos ou casas dos perigos da cidade grande; basta olhar o recente projeto de lei francês que concede ao governo o direito de vigiar – leia "espionar" – qualquer cidadão sem necessidade de autorização judicial.

Em vez de construir condições para que a liberdade exista, o governo e também o povo promovem um policiamento generalizado. O que não é exclusividade da França – penso, entre tantos exemplos que poderia dar, na violência com que o Estado do Paraná tratou seus professores, num ato político movido a ignorância e incompetência. Penso também na máxima malufista da "ROTA na rua", repetida a torto e a direito como solução contra o crime – que, no limite, significa o mesmo que "estupra mas não mata", outra das suas propostas políticas. Com exceção de que a ROTA mata. E mata muito.

Enfim, se a proteção não é provida pela polícia nem pelos políticos, se eles não dão conta de garantir a liberdade e preferem a heteronomia à população, o que podemos fazer? Uma das respostas possíveis é simples, embora a solução exija um belo esforço coletivo: precisamos ocupar a cidade.

Sabemos que os vazios não permanecem assim por muito tempo, há sempre quem reivindique poder sobre eles. Em outras palavras, toda vez que nos recolhemos em nossos bunkers, toda vez que preferimos nossos carros, abandonamos o espaço do entorno, que acaba tomado pela violência.

Bauman explica que "a vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar. Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo".

O medo da livre circulação leva à baixa autoestima. A sensação generalizada de impotência nos empurra pouco a pouco para o abismo. O estado social se torna cada vez mais policial e prisional. O combate às ameaças é feito com guerra – a fórmula estúpida da tal "guerra ao terror". As grandes corporações lucram um absurdo com nossos medos de inimigos fantasmas, ou seja, nossa fragilidade as fortalece no poder. Ficamos reféns do excesso de informação. Consumimos altas doses de opiniões fabricadas porque não temos tempo para refletir e construir as nossas próprias – não temos tempo a perder porque "tempo é dinheiro".

Parece urgente a necessidade de realizar um gesto de interrupção nesse assombroso declínio da "experiência autêntica", conforme Walter Benjamin já alertava cerca de 80 anos atrás. Um gesto poético e político de interrupção, que seja: reatar vínculos sociais e ocupar a cidade. Conversar, concordar ou discordar, refletir e construir pensamentos coletivamente só para poder desconstruí-los depois – em vez de apenas reproduzir o que se ouve por aí. Pedalar, criar grupos com interesses culturais comuns, produzir algo engrandecedor (em outro sentido que não o financeiro). Organizar hortas comunitárias, fazer manutenção no parque mais próximo, oferecer oficinas na escola pública do bairro, usar transporte público, visitar bibliotecas, universidades e museus públicos da cidade. Exigir melhores condições para aquilo que é de interesse de todos – e não somente da sua família! Abandonar o racionalismo perverso e deixar-se levar pelo sensível. Tocar violão na praça, ler poesia em voz alta, frequentar cinema de rua, andar a pé. Porque ocupar também significa cuidar – tomar posse em vez de exercer poder. Ocupar a cidade é o primeiro passo para melhorá-la, transformando ausências em espaços de convivência. Porque num planeta ao mesmo tempo "globalizado" e fragmentado não temos condições de transformar o todo senão começando por nosso próprio eu e seu arredor.

Peço desculpas por escrever tamanhas obviedades, mas elas parecem tão necessárias!

sexta-feira, 1 de maio de 2015

UNIVERSO SUBENTENDIDO

a Verdade é
de fato algo
perigoso
      – em absoluto! –
exatamente como
seria se fosse
outra?

existiriam demais verdades
pulverizadas num ar de dúvida?
      – claro! ou melhor: obscuro! –

creio em teses, perspectivas, possibilidades
ficciono, para ser sincero
tenho fé
nas tentativas frustradas
      – abertas, disponíveis –
que nada concluem
em definitivo

há camadas sob a superfície
      – das coisas, dos homens –
germinando contra a razão
esclarecida
      – o mundo superior seria
      somente justificativa
      para nossa inferiorização –

desejo habitar as profundezas
do ser sem dono nem dogma
sem violência contra
talvez
      – sequer isso pode ser
      verdade, enfim –

terça-feira, 21 de abril de 2015

CARRO-CHEFE

Ramon Casas and Pere Romeu on a Tandem (1897), Ramon Casas i Carbó

– Não é lindo?
– Parece que sim. Parece bonito.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece pequeno.
– Acha mesmo? Cabem quatro pessoas aí, até cinco, se apertar.
– Cabe um cavalo?
– Um cavalo? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, esse seu carro. Eu só sei andar a cavalo.
– Mas o carro substitui o cavalo. Você não precisará mais dele!
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

(…)

– Não é linda?
– Parece que sim. Parece bonita.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece cansativo.
– Acha mesmo? É saudável, é agradável.
– Cabe um carro?
– Um carro? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, essa sua bicicleta. Eu só sei andar de carro.
– Mas a bicicleta substitui o carro. Você não precisará mais dele.
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

terça-feira, 14 de abril de 2015

DESDE CIMA E DESDE FORA

“A América Latina é difícil de compreender, principalmente quando se olha de fora e de cima. As coisas que se entende de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo. Se a gente olhar de cima, com a típica arrogância dos nossos professores de democracia dos Estados Unidos ou da Europa, e se além de olhar de cima a gente olhar de fora, não entende nada. Por um motivo muito importante: a nossa região é provavelmente a mais diversa de todas, é a pátria das diversidades humanas. Isso que para mim é uma virtude, visto de cima e de fora é um grave defeito, porque se não cabe naquele modelo, acredita-se que aqui não existe democracia. E a prova de que há é que aqui se misturam e brigam todas as cores, os cheios e as dores do mundo.” Eduardo Galeano

domingo, 1 de março de 2015

NOTAS SOBRE UM PIANO

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Eu quis escrever este texto no mês passado, assim que vi a recepção incrível do projeto Piano no Metrô, em São Paulo. Um projeto bastante simples: botaram um piano na estação e uma placa convidando os usuários a tocar. Desde então, não importa a hora, não importa o dia, toda vez que passo ali ouço alguém tocando, desde curiosos tendo o primeiro contato com o instrumento até músicos talentosos complementando a apresentação com canto lírico, desde o jazz mais complexo ao mais tímido dó-ré-mi-fá fá-fá. Passo todo dia pelo piano. Diversas vezes parei com intuito de ouvir a música até o final. Vi dezenas de pessoas se acumularem ao redor, vi pianistas serem ovacionados em plena hora do rush. E pensei algumas coisas a partir disso:

1) Vivemos um vazio. Não é que vivemos no vazio, pelo contrário: vivemos um vazio de experiências no excesso da metrópole, neste conturbado cotidiano de horários rígidos, informações desencontradas, imagens, consumo, whatsapp, imagens, imagens, baboseiras, bobagens, violência, impessoalidade, banalização, imagens, desafeto. O que falta para preencher o vazio? Existência, claro. Falta experiência de vida, experiência estética e política; ser, estar, ouvir, participar, compartilhar. Então o sujeito se depara com um piano no metrô e começa a tocar. Outro acha bonito, aproxima-se. A mulher, atrasada para o compromisso, reconhece a música e canta baixinho. Antes do fim, são quinze, vinte desconhecidos cantando juntos, batendo palmas no ritmo, preenchendo um pouquinho do vazio alheio.
      (A 28ª Bienal de SP: Em Vivo Contato, à época criticada como "bienal do vazio", volta à memória, revela potencial e pertinência, dando sequência à 27ª: Como Viver Junto. Não é lindo?)

2) Vão quebrar o piano, esse povo sem educação. Pois não quebraram. Não depredaram, não fizeram arruaça. E o piano vai completar dois meses. Vândalo não ouve música, é a conclusão mais fácil, que farão você apoiar, e não poderia ser mais enganosa. Os mesmos usuários do transporte público que cantam ao piano são os que quebram trens e plataformas. Somos os mesmo sujeitos, somos iguais; nem eu nem você: nós. Diferenciar-nos não leva a nada, exceto a mais violência. O que "resolve" a questão é andar de metrô, ocupar os espaços públicos, participar do dia a dia da cidade. É preciso mais piano e menos lotação, mais qualidade e menos tarifa, mais respeito e menos acusação, mais vontade política e menos pilantragem. É preciso que os cidadãos gostem do transporte público, que experimentem e cuidem da cidade. Convidá-los a fazer parte em vez de fazer vítimas. As ciclovias e corredores de ônibus seguem o mesmo caminho. Um dia você vai usá-los. E vai gostar.

3) Um responsável quis barrar o projeto, disso você pode ter certeza. Existe sempre quem duvida que um insetinho pode emitir luz própria. Talvez tenha sido você, que num primeiro momento achou bobagem, achou que não daria certo, que a prioridade seria outra. Afinal, somos todos responsáveis, não é necessário o cargo. Seja quem for essa pessoa, tenho um recado: bem feito. Seja por ter perdido o páreo, seja por ter cedido ou apoiado, bem feito, deu certo, foi uma experiência válida. Ninguém precisou construir estádios de futebol ou desviar bilhões de reais. Bastou um piano para irromper uma experiência coletiva positiva. O show fica por conta dos participantes, cidadãos, vândalos, pode nos chamar do que quiser, obrigado.

4) Ultimamente, à noite, tenho visto gente se reunir em volta do piano, botar as mãos ao alto e cantar música religiosa, transformando a estação numa espécie de culto, usando a oportunidade da experiência estética para pregação ideológica. Muita gente, mesmo. Fazem isso apesar do aviso de que "o projeto Piano no Metrô não tem finalidade política, religiosa ou esotérico-mística e não pode ser utilizado para a prática de cerimônias religiosas ou atividades afins". Ainda não sei o que pensar, já debati o assunto sem chegar a um acordo (liberdade de expressão, respeito ao espaço do outro, apossamento, segregação, profanação da música sacra, e se fosse Bach, poderia tocar?). Deixo aqui somente a constatação, além da suspeita de que logo isso vai se tornar um problema (aliás, o aviso sempre esteve ali ou foi incluído depois?).

5) O piano no metrô é um vaga-lume, cujo brilho resiste ao excesso de esclarecimento que ofusca sua tentativa de sobrevivência. "Desapareceram mesmo os vaga-lumes?", pergunta Georges Didi-Huberman. "Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (...) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (...) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes". Caminhamos pela cidade sem os notar, esses pequenos lampejos de beleza. Assim eles desaparecem para nós.

Eu quis escrever um mês atrás, mas foi bom esperar o projeto se desenvolver. Agora posso afirmar que a melhor realização do metrô de São Paulo, nos últimos anos, foi colocar o piano na estação República (parece que há outro na Luz). Poderia ter sido a construção de 50 estações, mas foi o piano. E mesmo que houvesse as 50 estações, mesmo que tivessem sido construídas sem corrupção, eu ainda gostaria mais do piano. Porque a ampliação da rede é obrigação do governo. Já o piano é um toque de sensibilidade na vida de quem habita aquele vazio superlotado tão carente de afeto.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus

sábado, 31 de janeiro de 2015

EU PREFERIRIA NÃO

Faz uns anos que li Bartleby – o escrivão, o escrevente, o escriturário, conforme a tradução. E o que restou do livro foi uma lição de resistência aos mecanismos perversos da vida. Não ao "Sistema", no sentido macropolítico. Mas às engrenagens menores que botamos em funcionamento no dia a dia e que, talvez para valorizar a nossa própria existência/relevância, acreditamos que não podem parar. A micropolítica que nos atravessa o tempo inteiro, desde o bom dia ao boa noite, senão além; na padaria, no ônibus, no banco, na correria do escritório, na conversa com os filhos sobre o que aprenderam na escola, na hora de preparar o jantar. Não é exclusividade de Bartleby – quer dizer, eu raramente lembro das artimanhas da ficção. Os pormenores evaporam, faço uma miscelânea de cenas e personagens, não consigo refazer a história de cabo a rabo. Por fim, resta somente um sentimento, que carrego comigo, em especial quando o livro deixou marca mais profunda. Uma sensação de literatura. Que não guardo propriamente na memória, mas no corpo inteiro. Se me perguntam o destino de tal personagem, por que falou tal coisa, em que momento o segredo se revelou, o que aconteceu depois, admito que não sei. Seguindo a linha do raciocínio, não lembro sequer das tramas que eu mesmo escrevi. Quase nunca sei recontá-las. Porém cada livro deixa uma sensação, uma espécie de aura de significados; um despertar pela literatura.

A Metamorfose, de Kafka, se revelou uma angústia de ser; K., de Kucinski, sintetizou a violência do poder e seus métodos; Bonsai, de Zambra, tratou do imenso potencial das coisas mais singelas. Não é raro eu me lembrar apenas de que esse livro é leve, aquele é azul, o outro, quente, acolhedor.


Bartleby me mostrou um caminho alternativo para a resistência; é o que vejo de mais contemporâneo nele. Para quem não conhece, essa breve história de Herman Melville fala de um sujeito peculiar, estranho, que é contratado por um advogado para fazer cópias de documentos, numa época em que elas eram feitas à mão. Um bom funcionário, no sentido produtivo: quieto, dedicado, que não enrola nem comete erros. Uma engrenagem bem azeitada na máquina do capital. Que em algum momento começa a querer girar num outro sentido. E que responde, às ordens do patrão, "I would prefer not to", eu preferiria não, talvez uma das frases mais emblemáticas do século XX – ainda que o texto seja mais antigo, publicado em 1853.

Sua perspicácia está, justamente, em não "bater de frente" com seu empregador. Ao dizer que preferiria não cumprir a tarefa – ao invés de recusá-la terminantemente –, Bartleby coloca-se sob responsabilidade do outro, que deve decidir seu destino. Ele não enfrenta a autoridade, mas com a sutileza de um toque a enfraquece toda. O patrão daria a Bartleby uma tarefa que ele não recusaria para não desagradá-lo, mas que faria contra a própria vontade. Ele sabe disso. Só não sabe como reagir. É esse jogo de consciência que se estabelece e quase leva todos à loucura, retirando-os da zona de conforto, desestabilizando o que já estava instituído.

Isso me marcou profundamente. E sempre que parece necessário intervir numa situação que incomoda, apelo ao estratagema do escrivão, perguntando a mim mesmo qual seria o caminho alternativo ao confronto direto, uma vez que este certamente levará ambas as partes à violência e, portanto, à derrota. Nem sempre funciona, claro. Mesmo assim esse método de resistência é mais inteligente e menos desgastante.

É também um método menos narcisista. Porque não se pauta numa certeza, mas em suposições, hipóteses, possibilidades diferentes. No lugar de "donos da verdade" disputando o poder, insere-se a inexatidão, a dúvida, o convite à reflexão e à revisão dos princípios.

Existe uma grande quantidade de interpretações do livro de Melville, inclusive que o vê como sintoma de esvaziamento e tendência à depressão, como Joel Birman escreveu em O sujeito na contemporaneidade. E uma interpretação não invalida necessariamente a outra. Seja como for, é surpreendente como uma ficção tão curta permaneça tão relevante.

Para mim, sua força está no próprio uso da linguagem, que rompe a dialética do sim e do não ao criar uma zona de indiferença entre o sim e o não, conforme Gilles Deleuze propõem em Bartleby, ou a fórmula. Ele insere uma fratura na ambivalência do mundo. Expressando um "nada de vontade", põe fim à lógica dos pressupostos, daquilo que procura se sustentar porque "sempre fora assim", baseado numa tradição por vezes importuna aos tempos atuais.

Bartleby rompe a ordem. Depõe a verdade absoluta sem inserir outra no lugar, sem continuar a alimentar o mesmo mecanismo de poder e dominação. É essa resistência mais inteligente e menos violenta que a sociedade contemporânea precisa produzir; é sua voz ambígua, subjuntiva, que precisa ganhar ouvidos diante dos urros da ignorância imperativa, antes que o sistema entre em colapso pelo excesso de ordem, antes que o absurdo do real se imponha pelo excesso de razão.