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quarta-feira, 29 de maio de 2019

POTÊNCIAS DO COLETIVO

Tenho o privilégio de compor dois grupos diferentes entre si e com muitas qualidades em comum. A principal delas talvez seja a maneira como se organizam, conforme a disponibilidade de cada pessoa em cada momento e em cada projeto. Refiro-me ao coletivo de criação literária Discórdia e ao GEPPS – Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível.

7.000 carvalhos (1982), de Joseph Beuys

O primeiro se formou ao término do Curso Livre de Preparação do Escritor, oferecido pela Casa das Rosas, em São Paulo. Após quase um ano se encontrando duas vezes por semana, parte da turma decidiu que não bastava; criamos então um grupo de trabalho movido pela amizade, colaboração e desejo comum. Adotamos o nome Discórdia, que diz muito sobre o funcionamento do coletivo: trata-se de um espaço em que o consenso interessa bem menos do que o dissenso, ou seja, somos unidos pelas diferenças. Pois são elas que impulsionam o motor da criatividade e possibilitam realizar ações tão variadas.

O coletivo Discórdia me trouxe a oportunidade de participar de feiras de literatura; organizar saraus e lançamentos de livros; criar publicações conjuntas; explorar o universo das produções independentes; ler, comentar e acompanhar passo a passo os projetos dos colegas; ter meus textos criticados por eles; conhecer pessoas e lugares; ministrar oficinas; divulgar ideias; administrar redes sociais e compartilhar opiniões, sonhos e risadas.

Nossos interesses são vários: zines, cartuns, humor, poesia, ficção científica, ensaios, prosas de diferentes gêneros e formatos, colagens, cartazes, entre outros. Essa aparente incompatibilidade poderia ser um empecilho, como acontece com associações que ainda prezam pela tediosa homogeneidade; no caso do Discórdia, é ela que torna o movimento possível.

Certa vez fomos instados a diferenciar grupo de artistas e coletivo artístico. Percebemos que coletivo, mais do que o mero trabalho em equipe, é uma forma de estar juntos, compartilhar uma comunidade, participar de algo vivo e complexo, que é o encontro com o outro. É generosidade, abertura, interesse. A partir da nossa experiência pudemos afirmar que o coletivo não é um agrupamento de autores, mas um espaço comum em que as individualidades se dissolvem e se confundem para que alguma criação possa acontecer. O coletivo Discórdia é uma oportunidade para discordar e permanecer unidos, tensionar limites estético-políticos e resistir às opressões, produzindo por meio da diversidade que, no fim das contas, é feita das potências de cada integrante dispostas numa relação ética.

O GEPPS, por sua vez, nasceu como um grupo de orientação de pós-graduação que num determinado momento se emancipou. É composto por pesquisadores com formações diversas: artistas, escritores, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, produtores culturais e historiadores, teóricos e críticos de arte decididos a elaborar outras formas de relação, atuação e funcionamento. Somos atravessados por inquietudes que apontam para temas como: poéticas e políticas do sensível; experiências na interface entre arte e produção da saúde; aspectos da experiência no contemporâneo; teoria, curadoria e crítica de arte; processos escriturais; ética, estética e política; clínica; produção de subjetividade; linguagens e poéticas artísticas; territórios; memórias, histórias e narrativas; formas de emancipação.

Diante de políticas que avançam sob a racionalidade neoliberal, em que territórios – geográficos, científicos, subjetivos, entre tantos outros – são cada vez mais disputados, prevalecendo a lógica da posse, da acumulação e da concorrência generalizada, propomos inventar espaços para experimentar modos de pesquisa e de produção de conhecimento pautados em outras perspectivas. Criações singulares que emergem de uma lógica transdisciplinar, em que as composições de campos distintos parecem mais urgentes do que os especialismos que pretendem salvaguardar territórios do saber e da ciência. Partilhas tecidas como artifícios de insurgência, convocando modos de pensar e de se posicionar criticamente diante de questões atuais.

No GEPPS também compartilhamos sonhos, e a potência de sonhar coletivamente é tão forte que quase podemos agarrá-los com as mãos. Ao longo dos anos aprendemos a produzir juntos, desfazendo a autoria individualista; abandonamos certezas; criamos textos, cursos e projetos de intervenção; colaboramos com mobilizações políticas em defesa da universidade; organizamos eventos; sustentamos grupos de estudo; encubamos desejos ainda informes; negociamos responsabilidades e apoiamos uns aos outros em nossos projetos pessoais.

Compor grupos assim é um privilégio raro, ainda mais por eles tentarem escapar de uma tendência à institucionalização. Esse desvio não é simples, assim como não é simples sustentar lugares de troca e de criação que não sejam baseados na obrigação, na subordinação ou na falta de opção. Lugares horizontalizados, que não dependam da imposição hierárquica para operarem e onde cada integrante tenha o espaço que deseja e do qual pode cuidar. Onde a força do trabalho coletivo ganhe corpo, pautada no respeito e no propósito de estar junto, fazer junto, aprender com o outro e colaborar com todos sem intenções mesquinhas.

Uma aproximação com tal qualidade entre pessoas é, por si só, uma forma de recusa às opressões que infelizmente modelam grande parte das relações sociais, organizacionais, empresariais etc. É também uma forma de realizar o que, sozinho, seria impossível.

Cada vez mais precisamos abrir os acontecimentos e observá-los sob diferentes escalas e ângulos para combater a naturalização das máquinas de governança que achatam formas e homogeneízam modos de fazer, de pensar, de dizer e de se movimentar, aprisionando a vida.

Com a cultura e a educação brasileiras ameaçadas, a potência desses coletivos constitui um lugar de proteção, uma oportunidade de partilha de certo sensível fragilizado diante da racionalidade dominante e, sem dúvida, uma preciosa forma de sobrevivência.

terça-feira, 23 de abril de 2019

E-BOOK GRATUITO SÓ ATÉ DOMINGO

Para celebrar o Dia Mundial do Livro, a versão digital da minha primeira publicação está disponível para download gratuito na Amazon até domingo (28 de abril). É só clicar e começar a ler no computador, celular ou Kindle: Por que a Lua brilha

Baixe o seu agora mesmo e divulgue para amigos e inimigos. ;)

Veja o que já se disse sobre o meu livro Por que a Lua brilha:

O conto é uma ficção disfarçada de ensaio científico. Em que o autor investiga a relação entre os seres humanos e os fenômenos luminosos da Lua, com intenção de avaliar as implicações culturais do projeto de Lei que visa apagá-la.

Em Por que a Lua brilha, Eduardo A. A. Almeida inventou uma realidade – não tão alternativa assim – em que os homens exploram a vida de outros seres para o próprio bem.

Apesar do caráter fantástico, o livro possui diversas referências à política e a instituições científicas que legitimaram ou ainda legitimam comportamentos autoritários, opressivos e fascistas.

Com o subterfúgio da forma ensaística, o escritor coloca em questão o poder que a própria linguagem tem de produzir verdades, por mais absurdas que possam parecer. Denuncia também o argumento intelectual científico que influencia o comportamento das pessoas com o pretexto de oferecer informações verídicas ou de formar opiniões incontestáveis.

Sua distopia parece cada vez mais factível de se realizar no mundo atual, em que se banalizam os métodos sórdidos do Neoliberalismo, o terrorismo, os levantes militares, a perseguição e a cegueira religiosas, o racismo, o machismo, o ódio pelo diferente, entre outras violências enraizadas, incorporadas, instituídas e legitimadas.

Trata-se de um livro provocante, que nos faz questionar as nossas próprias maneiras de pensar, fazer e dizer a realidade contemporânea.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

PRELIMINARES DEMAIS

Resenha do livro:  Chester Brown. Pagando por sexo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. 

Com forte apelo autobiográfico, o quadrinista canadense Chester Brown narra nesse livro as aventuras sexuais do personagem Chester, que decide conhecer o mundo da prostituição após o término de um namoro e a subsequente desilusão amorosa. São memórias em formato de história em quadrinhos, segundo o autor; registro de todas as vezes em que pagou por sexo até o final de 2003.

De fato, a HQ quase é somente uma listagem das mulheres que o protagonista visitou ao longo dos anos. Não se aprofunda na intimidade e, pior, mantém uma distância própria da relação entre patrão e empregado. Por outro lado ele debate com seus amigos, durante várias páginas, questões morais, legais e curiosidades sobre o tema.

O autor se justifica logo no prefácio, explicando que nos encontros as prostitutas compartilharam detalhes da sua vida pessoal, os quais ele preferiu omitir para preservar a identidade delas. É uma pena, pois fazem falta; com essas histórias, e seus prováveis conflitos, o livro ganharia substância e afetividade para conquistar o leitor.

Sabemos que o nome das mulheres foi duplamente mascarado: Chester Brown inventou novos, diferentes dos reais e dos “profissionais”. Por que não utilizou o mesmo artifício para tratar suas histórias? Poderia manipulá-las, reinventá-las, trocá-las de corpo e de alma ao bel-prazer da ficção, mas ficou atado a certo compromisso com a realidade, o que não deixa de ser uma fantasia, e acabou por prejudicar a potência da obra.

(Observação: o corpo das mulheres foi retratado “com precisão”, afirma o autor. Não fosse uma constatação estranha por si só, vale lembrar que os desenhos não são nada realistas.)

Esse problema adquire outras formas ao longo do livro. É tal compromisso com a realidade que entrevejo na escolha de publicar introdução, prefácio, posfácio, vinte e três apêndices, notas e bibliografia, que somam cinquenta e cinco páginas e fazem da HQ uma espécie de estudo de caso. Os aspectos “técnicos”, por assim dizer, são explicados, argumentados e justificados em minúcias. As pesquisas preparatórias, infelizmente, têm mais espaço do que as empíricas. Os excessos são inúmeros, como, por exemplo, a nota referente ao quadro 5 da página 44, que explica: “Acredite, foi isso mesmo que eu disse”. Outras tentam remendar trechos mal resolvidos pela narrativa, como a nota ao quadro 7 da página 65: “Só para esclarecer – ela estava recusando a gorjeta, não o cachê da meia hora”. Nos apêndices encontramos até mesmo comentários de um amigo quadrinista que leu o manuscrito e quis acrescentar explicações, fazendo uma espécie de réplica.

Isso tudo, deixado de fora, não faria a menor diferença se tomássemos o livro como uma ficção, não como um ensaio a respeito da prostituição no Canadá. Sem dúvida Pagando por sexo ajuda a conhecer e problematizar o tema. E seu ponto forte é a sinceridade com que o autor empresta sua voz, nome e fisionomia a um personagem para lidar com tamanho tabu.

Por sua vez, quem espera um mergulho no submundo da prostituição se decepcionará. Chester contrata apenas os serviços de profissionais com padrão econômico razoável, como se fosse ao shopping center. Prostitutas que às vezes sequer permitem ser chamadas assim; preferem o termo “acompanhantes”, ainda que o serviço prestado dure meia ou uma hora inteira, a depender da remuneração, e sempre acarrete relação sexual.

Esse nível aburguesado resulta na aventura de um personagem homem, branco e classe média num ambiente controlado, portanto não muito aventureiro. Poderia ser radical, politicamente incorreto, comovente, asqueroso, violento, dramático etc. Mas sustenta esse lugar da crônica do sujeito ordinário que se propõe um novo hobby, ainda que não muito bem aceito pelos seus próximos nem completamente repelido por eles.

Por fim, vale a constatação de que temos um homem a refletir sobre a legalidade da prostituição, sua aceitação social, benefícios e malefícios etc. Duas mulheres têm papel de coadjuvantes na trama: a ex-namorada e uma amiga. Ambas pouco opinam; são meros ouvidos que acolhem os argumentos do protagonista e raras vezes o interpelam. As demais mulheres, apesar de numerosas, são figurantes. Esse ponto de vista pode não inviabilizar a obra, mas deve ser considerado por quem se propõe a ler.

No apêndice 23, o amigo quadrinista e personagem Seth diz que, na vida real, apelidou Chester Brown de “robô” dada a sua “ausência de emoções humanas”. Isso nos ajuda a compreender a escassez de sensibilidade do livro. A superficialidade afetiva em momento algum adquire caráter crítico, portanto não é uma estratégia estética do autor em sua abordagem; é mesmo uma limitação que compromete o resultado e mantém Pagando por sexo num lugar-comum. Para compensar a falta de afeto, o autor optou por embasar seus argumentos tanto quanto pôde em seções exaustivas, que acabam por sufocar a narrativa. Costuma-se criticar a falta de preliminares num ato sexual. No caso desta HQ, é o excesso delas, somado à frieza do texto, que prejudica o prazer da leitura.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA: INSPIRAÇÃO NAS ARTES VISUAIS

Mulher escrevendo (1934), de Pablo Picasso

Todos convidados para o curso que oferecerei no Sesc Belenzinho nos meses de março e abril.

A proposta é olhar movimentos artísticos do século XX em busca de inspiração para aperfeiçoar a escrita criativa. Venha compartilhar textos e ideias com a gente!

Mais informações no site do Sesc: Oficina de escrita criativa: inspiração nas artes visuais 

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

DICA DE LIVRO: EM CONFLITO COM A LEI

“O menino sem pai sem mãe sem tio sem tia sem irmão sem irmã com polícia com promotor com juiz” (trecho do livro Em conflito com a lei).

Li esse livro no final de 2017 e o reli em 2018, algo que faço raramente. Trata-se de um projeto literário difícil de definir, embora o leitor desavisado suponha ser apenas um apanhado de contos curtos sobre jovens infratores. Lucas Verzola os criou com base em autos processuais, conversas de oficina e textos de adolescentes em conflito com a lei. “Ainda que verossímeis, as narrativas fazem parte do universo da ficção”, adverte.

Os textos têm quase sempre um parágrafo único e apresentam cenas flagrantes, por assim dizer – um conflito, uma situação derradeira, uma ação breve capaz de marcar para sempre a vida de um personagem. Alguns são violentos, outros são delicados; a maioria é violenta e delicada ao mesmo tempo, o que põe abaixo idealizações sobre a criminalidade, a pobreza e o sistema socioeducativo, além de permitir ao leitor uma aproximação com esse universo. Tudo pela via da humanidade, que não é boa nem má; é apenas complexa demais para ser reduzida a uma classificação, um preconceito ou um clichê do gênero “mocinhos x bandidos”.

O autor usa recursos de apropriação, diálogos, formatos pouco convencionais como listas e documentos, entre outros. Mais do que esse ou aquele conto, é a consistência do projeto que sobressai. A edição cuidadosa da Reformatório contribui.

O livro nos ajuda a compreender as contradições, as linhas de força e os paradoxos do que por vezes simplesmente condenamos como “violência”. Também ajuda a perceber que os conflitos com a lei não são “problema do outro”, a serem resolvidos pelo endurecimento das regras e das punições. Trata-se de uma falta grave de todos nós.

Em conflito com a lei
Lucas Verzola
(Reformatório, 2016, 136 páginas)

Obs.: Este destaque do que li em 2018 foi escrito para compor as dicas de leitura do coletivo Discórdia, que você encontra aqui: Medium do Discórdia

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

"PROTOCOLO" GANHA MENÇÃO HONROSA NO PRÊMIO USP NASCENTE 2018


Protocolo foi a primeira peça que escrevi. Ela já tinha me dado a alegria de ser selecionado para o Núcleo de Dramaturgia do Sesi - British Council. A novidade é que também foi finalista e recebeu Menção Honrosa no prêmio Nascente USP 2018 (categoria Texto).

Pretendo revisá-la para, quem sabe, tentar uma publicação no futuro. Para mim, trata-se ainda de um texto em processo de criação. Mas você pode ler do jeito como está agora, além de conhecer os demais vencedores do prêmio, basta clicar aqui: http://prceu.usp.br/nascente/premiados-2018-texto/

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

É OFICIAL: MEU 1º ROMANCE CHEGARÁ EM 2019


Imagem de fundo: Pintura n. 125, de Felipe Góes

Contrato assinado, agora é oficial: meu romance Bem diante dos meus olhos foi selecionado no Edital de Publicação da Prefeitura de São Paulo. Sabe o que isso significa? Vem livro novo em 2019!

Versões prévias dessa obra já ganharam menções honrosas no Prêmio Nascente USP 2015 (Categoria Ficção) e Prêmio Sesc 2016 (Categoria Romance).

O que já se disse sobre o romance: “Bem Diante dos Meus Olhos é um livro que usa como tema a morte — um rapaz enterra o pai com quem pouco se relacionava e de quem pouco sabia. À medida que a narrativa evolui, cresce também o clima de estranhamento, que vai dar numa revelação encantadora” (Assis Brasil e Cintia Moscovich, jurados do Prêmio Sesc 2016).

Gostou? Mais novidades em breve. ;)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ACREDITAR NO LIVRO


Quando estive pela primeira vez em Buenos Aires, o número de livrarias me surpreendeu: era como se houvesse uma a cada quarteirão, mais ou menos como drogarias em São Paulo. Não eram “megastores”, pelo contrário, eram comércios pequenos, alguns com charmosas estantes de madeira pesada, outros apenas empoeirados, a venderem livros novos e usados. A língua espanhola permite o trânsito de títulos editados em países diversos. Xeretar aquelas prateleiras foi uma experiência cultural inesquecível. Diante da situação crítica que nosso mercado livreiro vive nos dias atuais, retomo a viagem de mais de uma década em busca de alguma explicação.

Não tenho dúvidas de que a tendência global às grandes redes comerciais nos levará a um buraco negro. Isso vale para o livro e para todos os demais ramos. Ao valorizarmos padronizações de marca, ficamos reféns de empresas que engolem a concorrência, dominam setores, extinguem singularidades e, em períodos de queda, fazem tudo desabar com elas.

Não tenho condição de analisar tecnicamente os pedidos de recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, ou mesmo o encerramento das atividades da multinacional Fnac. Sei lá que tipo de lambança administrativa levou cada uma delas à beira do precipício. Como ávido consumidor de livros, entretanto, tenho cá meus palpites, válidos em especial para as duas últimas: o maior erro delas foi não acreditarem no livro. E talvez tenham cobiçado mais do que o nosso potencial pode oferecer.

Se o brasileiro em geral lê pouco, isso não significa que nosso mercado editorial é enxuto. Somos mais de duzentos milhões. Se uma parcela discreta dessa população lê, ainda é um público consumidor maior do que países inteiros. O Uruguai não atinge quatro milhões de habitantes, e eu me lembro bem das livrarias de Montevidéu. Eram numerosas e pequenas como as argentinas. Se o Chile tem mais pessoas, proporcionalmente deve ter mais livrarias também.

Trabalhei durante dez anos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde havia uma Fnac enorme. O setor de livros tomava metade do prédio. Eu passava meu horário de almoço lá. Encontrei mil maravilhas entre as lombadas à mostra. Com o tempo, porém, os best sellers ocasionais começaram a predominar, até que eles próprios perderam espaço para videogames, camisetas, bonecos, cafeteiras, computadores e assim por diante. Meus desejos de leitor eram cada vez menos contemplados. Quando o mercado editorial encolheu, a Fnac o abandonou sem pestanejar. E eu a abandonei em seguida.

O leitor fiel, que compra livros como arroz e feijão, aos poucos deixou de frequentar as livrarias que perderam a fé nos seus principais produtos. Sempre me pareceu perigoso preferir pilhas de livros do youtuber da vez à obra completa de José Saramago, para citar um exemplo entre inúmeros outros. Porque o famosinho só pagará as contas deste mês. Quem pagará as do mês seguinte? Perto da Fnac havia a Cultura do Shopping Villa Lobos. Uma loja especialíssima, com corredores labirínticos onde adorava me perder. Lembro-me de buscar uma nova tradução de Foucault e o vendedor não apenas saber qual era, mas já a tinha lido e podia comentá-la – enquanto numa Saraiva me fariam careta e digitariam no terminal de busca: fucô. O atendimento da Cultura também era capaz de acolher e incentivar leitores principiantes, indo além de somente efetuar vendas. Frequentar livraria desse tipo era uma experiência estética por si só.

As lojas que apostaram nos leitores e nos livros, e que talvez tenham evitado extravagâncias capitalísticas, mantiveram a saúde em dia. A carioca Travessa, no auge da crise, abre loja em São Paulo e em Lisboa. A Martins Fontes continua encantadora, inclusive com suas programações culturais. Livrarias da Vila idem. Sabe o que elas vendem? Livros. De todos os tipos e a leitores de gosto variado.

Preciso citar também as livrarias pequenas que ganharam espaço com produtos e programação cultural de qualidade, como lançamentos, debates, oficinas, grupos de leitura etc. Tais como Tapera Taperá, Zaccara, Banca Tatuí, LopLop, entre muitas outras.

Sou um autor iniciante, com apenas dois livros publicados por editoras de pequeno porte. Um terceiro título sairá no próximo ano. Dada essa perspectiva, as contradições do mercado não me parecem tão pessimistas. Visitei uma Festa de Livros da USP lotada, cada vez maior e melhor organizada. A Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade, foi a mesma coisa. As feiras estão com tudo. Diversos amigos tiveram livros publicados em 2018. As editoras independentes, apesar do adjetivo questionável, conquistaram prêmios, espaços nas lojas e interesse dos leitores. Isso porque acreditaram em escritores, no público e nos livros, fazendo corpo para segurar as quedas da economia.

Como bem disse Luiz Schwarcz em seu apelo de amor aos livros, precisamos incentivar o editor pequeno e suas publicações minoritárias, não só em número de exemplares, mas nas causas que defendem. O livro ainda é um ponto de resistência em que a diferença pode se apoiar. Mas para isso precisamos comprá-los, lê-los e valorizá-los.

A queda de 40% na arrecadação desde 2014 mostrou que as editoras não podem se iludir com os incentivos do governo, que ora aquecem o mercado, ora deixam todos à deriva. Se a Amazon espreme as margens de lucro dos fornecedores e recentemente começou a editar por conta própria, não é sem motivo que insiste no consumidor brasileiro. Por outro lado, existe uma experiência de compra em livraria que, ao menos por enquanto, a gigante norte-americana está longe de proporcionar.

De minha parte, suponho que o caminho está esboçado. É preciso acreditar nos livros, investir na qualidade da experiência com eles e na formação de público leitor. É preciso acreditar nos escritores, em suas obras e em seus admiradores. Talvez a crise atual sirva para mostrar que nosso mercado editorial não precisa crescer como as indústrias farmacêuticas; talvez sejam as doses homeopáticas que manterão a saúde livreira por aqui. Ao menos é assim que os pequenos editores vêm remediando a crise, com perseverança, página por página.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO

José Nunes tem um projeto incrível chamado Como Eu Escrevo, que apresenta o processo criativo de escritores, acadêmicos e juristas (Juristas? José cursa Doutorado em Direito na UnB. Ah!).

O arquivo está à disposição e já tem centenas de entrevistas. O propósito é oferecer inspiração às pessoas com dificuldade para escrever. Aplausos para José Nunes. Compartilhar ideias é mesmo uma excelente maneira de enfrentar os desafios da escrita.

Tive o prazer de responder às perguntas do projeto. A entrevista abaixo foi publicada em comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida


Se você ainda não leu meu livro mais recente, encomende seu exemplar aqui: Testemunho Ocular. Ou entre em contato comigo e receba o livro com dedicatória: edualmeida@artefazparte.com

 
1. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Quem me desperta é minha filha de 8 meses, quase sempre entre 6h e 6h30. Às vezes mais cedo. A essa hora, minha esposa já saiu para trabalhar. Lavo a louça da noite anterior, troco fralda, dou mamadeira e tomo café com a nenê no colo, tentando fazendo com que ela pare de puxar a toalha da mesa e jogar tudo no chão. Brincamos até às 9h, quando a deixo no berçário. Só então a escrita tem início.

2. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Sempre escrevi melhor de manhã, quando a mente ainda está fresca. É meu período criativo favorito. Também gosto de ler e estudar nesse horário. Sinto que, depois do almoço, a cabeça vai dormir e deixa o restante corpo a fazer trabalhos mais mecânicos como pagar contas, responder emails, revisar textos. À noite estou exausto, raras vezes consigo botar uma boa frase em pé.

Não tenho um ritual propriamente dito, mas gosto de abrir espaço na mesa de trabalho, que quase sempre está atulhada de livros e anotações, esqueço o celular em algum canto da casa e tento não ligar o computador. Gosto de silêncio e caneta-tinteiro. São poucas as ocasiões em que consigo realizar isso tudo porque sempre existe alguma tarefa banal a convocar minha atenção e a abalar o mundinho ideal. Mesmo longe o telefone toca. Chega um email urgente. Tenho que resolver qualquer coisa na rua. Além disso, estão subindo um prédio atrás do outro em meu bairro, e já são anos que passo as manhãs a ouvir serras elétricas, martelos, bate-estacas, entre outros prenúncios do caos.

3. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo quando é possível e quase sempre incentivado pelo prazo que se esgota. São os prazos que ditam as prioridades. Preciso entregar a coluna do jornal, depois tenho que ler o livro para resenhar, não posso esquecer de revisar o artigo acadêmico, e então, ou antes, ou assim que puder, preciso desenvolver os itens deste e daquele projeto, preparar a aula, enxugar a palestra, enviar o orçamento.

A literatura sobrevive em meio a isso tudo porque é mais forte, atravessa as ordenações, me arranca da cadeira ou da cama, nas madrugadas, e me obriga a desenhar palavras no papel. Minha meta diária é terminar alguma coisa, seja o que for, contanto que termine e abra espaço para algo mais. Não é comum eu escrever à toa. Mas quando tenho um projeto na cabeça, ele volta e meia me requer, sugere ideias, atira a agenda longe para ocupar o tempo possível e, com sorte, o impossível também.

4. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Costumo acumular ideias, interesses, imagens. Então sento e escrevo de uma só vez. Acontece de nascer um texto que escapou de todas as anotações, como se tivesse se contorcido por entre elas. Outras vezes o texto é uma costura de notas que, a princípio, não tinham nada em comum. Às vezes a pesquisa leva anos, outras vezes o texto aparece sem qualquer pesquisa que esteja diretamente relacionada com ele. Mas é claro que toda obra se realiza a partir dos materiais reunidos ao longo da vida, tivessem ou não um propósito específico. Isso varia conforme o tipo de texto. Ensaios costumam exigir muitas notas, leituras, diálogos. Textos ficcionais, por outro lado, saem à revelia do planejamento. Não é difícil escrever; difícil é arranjar as condições para que a escrita se realize.

5. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

A escrita só destrava quando escrevo. Antes de começar, o texto parece impossível. Entretanto uma palavra solicita outra, um sentido sugere outro, e assim o processo anda. Às vezes desanda e o texto nasce torto, requer muita plástica ou a lixeira, a depender de quão grave é seu estado. Não costumo forçar demais a barra. Se um texto não quer nascer, gesto um pouco mais, escrevo outro para compensar. Quando vier, será saudável.

As expectativas, por sua vez, podem ser minhas ou dos outros. Dou atenção às expectativas em textos de não ficção, cuja ideia a ser transmitida deve ser mais precisa. No caso de textos artísticos, a expectativa é tanto uma ilusão quanto uma violência. Ilusão porque não se pode prever a reação do leitor. Violência porque, quando se acredita em tal previsão, o escritor está determinando um perfil, um público-alvo, um preconceito. O leitor não deve ser reduzido nem menosprezado assim. Textos que preveem seus receptores são publicitários.

Um projeto precisa se manter vivo durante sua realização, tenha uma página ou cinco mil. Sua longevidade não tem a ver com longitude. Se o projeto estiver vivo, consigo trabalhar nele quanto tempo for preciso. Se morreu, escrever uma só linha será doloroso e, no fim das contas, uma falácia. O melhor teste de vitalidade ainda é a gaveta: pego o texto inconcluso e o guardo. Se volta e meia a gaveta se mexer, gritar, liberar algum feromônio, é meu dever retomá-lo.

6. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Uma coluna de jornal, por exemplo, é reescrita por volta de três vezes antes de ser publicada. Adoro mostrar rascunhos ou ao menos contar a ideia a alguém para saber sua opinião, embora nem sempre consiga, por razões variadas.

Textos acadêmicos são reescritos algumas vezes também, mas nunca estão de fato finalizados porque as ideias vão se transformando, novas associações são tecidas, novas leituras levam a diferentes concepções etc.

Contos, romances, poesias são reescritos muitas vezes, lidos por amigos, compartilhados aos pedaços. Meu livro Testemunho Ocular foi lido por uma dezena de cúmplices antes de ser publicado, em especial os escritores do coletivo Discórdia, do qual faço parte. Eles comentaram os textos, sugeriram mudanças, compartilharam impressões de leitura. Alguns contos do livro vinham sendo reescritos há anos, outros eram recentes.

Meu primeiro romance, que deve ser publicado em 2019, teve sua versão inicial escrita dez anos atrás, e desde então foi reescrito uma porção de vezes. Já foi lido por vários amigos, algumas versões foram inclusive premiadas, mas só agora estou prosseguindo com a publicação.

A vontade de publicar logo e me livrar do texto é imensa. Ainda bem que outras tarefas me ajudam a controlá-la. Enquanto isso o livro fica se rebelando dentro da gaveta.

7. Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Sempre gostei de escrever as primeiras versões à mão e só depois digitá-las. O manuscrito é mais lento, e esse tempo colabora com o pensamento. Sem contar que é muito mais fácil desenhar setas no papel, rabiscar, tracejar etc. É uma artesania que depois ganha outros contornos quando passa ao computador. Essa fase seguinte privilegia o ritmo, a técnica, a revisão.

Neste ano de 2018 estou integrando o Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council. Entrei ali com a proposta de experimentar modos diferentes de fazer. Tenho escrito as peças diretamente no computador. É um processo estranho, com prós e contras que ainda estou avaliando. Tem sido uma boa oportunidade para tentar e errar.

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

As ideias vêm do mundo. Elas ganham forma escrita e recaem no mundo. É ingenuidade pensar que têm origem na “profundidade do ser”, no “interior obscuro”, nesses lugares de teor expressionista. O mundo nos atravessa e, com sorte, conseguimos sustentar uma ideia ou outra, quase como uma peneira a sustentar uma pedra maior, que não poderia atravessá-la sem provocar um rombo.

Os hábitos que cultivo são todos relacionados a manter essa abertura na relação com o outro. Leio sobre assuntos variados, interesso-me pelas demais artes, prefiro caminhar entre as pessoas a dirigir minha bolha espacial. Gosto de ouvir histórias.

9. O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Com muito esforço fui desconstruindo algumas idealizações e apurando o senso crítico em relação às criações. Aprendi técnicas de escrever, revisar e apreciar. Mas principalmente quis conhecer melhor as potências estéticas e políticas das artes, suas relações com as pessoas, as organizações sociais, os regimes de ver, pensar e dizer. Ainda há tanto para aprender!

Se pudesse voltar àqueles escritos antigos, eu diria para não deixarem a satisfação durar tempo demais. É vital que um texto satisfaça seu autor porque ninguém consegue sobreviver em constante frustração. Mas a satisfação precisa ruir para assinalar um movimento. Não se trata de evolução, mas de pulsação; não se trata de fazer melhor numa escala qualitativa trazida de fora, mas de fazer de um jeito que renove o próprio fôlego, os pensamentos, os interesses. Se um texto antigo ainda me satisfaz, alguma coisa em mim não saiu do lugar desde que o escrevi, e isso é perigoso.

10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Difícil identificar quais projetos ainda quero fazer, mas de alguma maneira eles já foram iniciados. A pesquisa e a criação precedem o projeto, que vem apenas dar forma a elas.

Nos próximos anos pretendo lançar um estudo sobre a Estruturação do Self, trabalho derradeiro da artista Lygia Clark, que comecei a pesquisar durante o mestrado. É uma proposta instigante que inventou um lugar entre a arte e a clínica, e que infelizmente é pouco conhecida. Passados vários anos das minhas primeiras investigações, sua obra ainda pulsa.

Eu gostaria de ler um livro que provocasse em mim um corte radical, como os cortes que Lucio Fontana fazia em suas telas. Será que ainda não existe? Deve estar por aí, eu é que preciso encontrá-lo.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

DESAPRENDER A DIZER


Por diversos motivos, volto de tempos em tempos à aula inaugural de Roland Barthes no Colégio de França, oferecida em 1977 e publicada no Brasil na forma de um livrinho. Desta vez eu quis relembrar sua denúncia sobre o fascismo da língua, que sempre achei muito ousada. Para o semiólogo, a língua é fascista não porque impede de dizer, mas justamente pelo contrário: ela obriga a dizer. E, sempre que proferida, a língua se põe a serviço de um poder.

Fui relembrar essas ideias por incentivo de Peter Pál Pelbart, uma das nossas vozes filosóficas mais instigantes, que mencionou Roland Barthes durante a palestra sobre a “Experiência nômade da escrita”, oferecida no Sesi-SP como evento de abertura do Ciclo de Dramaturgia deste ano. Eu queria – ou melhor, eu precisava de – algumas palavras que me ajudassem a pensar outro fascismo, recorrente na política atual, que de política preserva bem pouco na medida em que mina debates e sustenta autoritarismo de variadas ordens. Se a campanha dos candidatos foi um horror, a atuação dos eleitores foi pior: ignorante, violenta, impositiva etc.

“Por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância”, diz Barthes com a sua lucidez tão característica.

Seremos solicitados a nos acostumar com esses autoritarismos nos anos que vêm. Para mim é impossível, aviso de antemão. Para outros milhões de brasileiros também será.

Como escapar do fascismo anunciado? De acordo com Barthes, a linguagem humana é sem exterior, só podemos sair dela pelo preço do impossível. Entretanto o autor oferece uma alternativa: se é impossível escapar do fascismo que a todo instante obriga a dizer, podemos trapacear a língua. “Essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” é o que Barthes chama de literatura.

Ele aproveita para explicar que a força de liberdade da literatura não depende do engajamento político do escritor, que afinal é um déspota entre tantos outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que exerce sobre a língua.

Eu estava, como sempre, encantado com seus pensamentos. E pretendia chamar atenção para o engano comum que tenho observado ao meu redor: a confusão entre a obrigatoriedade de dizer e a liberdade de expressão. Trata-se de um engano grave. Pois liberdade de expressão não é o direito de dizer tudo o que vem à cabeça; isso na realidade quase sempre configura um aprisionamento, que é próprio do tal fascismo da língua. O que se diz, no caso, são meras fórmulas, repetidas à exaustão; violências normalizadas, discursos prontos que colonizam o sujeito que fala, notícias falsas e lógicas escusas a corromperem todo o sistema de comunicação. Trata-se, enfim, de enclausurar a própria expressão, sufocar a vida, abrir a mão da potência de não dizer.

A verdadeira liberdade de expressão é muito mais difícil de exercer. Pois implica libertar a própria expressão das amarras já subjetivadas que impregnam, deturpam e modulam os discursos. Implica destituir o governo que se impõe sobre o dizer e o faz delirante.

Se é de fato impossível, é ainda a utopia que a literatura deve perseguir. E não apenas ela: cada um de nós precisa aprender a desarmar a própria língua, desarticular o próprio discurso e escapar dessa condição de cativo.

Vou preenchendo meu caderno com notas, apoiando-me numa aula que se atualiza desde a França de décadas atrás e me ajuda a pensar o Brasil de hoje. Lá para o fim do livro, deparo-me com a seguinte frase: “o que pode ser opressivo num ensino não é o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto”.

É nesse momento que encontro palavras para botar ordem em minhas próprias inquietações. E afirmar, em primeiro lugar, que suprimir das nossas escolas conteúdos urgentes – como a consulta pública do Senado que sugere criminalizar o debate sobre questões de gênero – é impedir que a diferença seja visível e problematizada por estudantes que têm plena capacidade de aprender com ela. Estudantes inteligentes que não precisam dessa censura disfarçada de tutela.

Em segundo lugar, e também relacionado a outra consulta pública, é preciso desfazer a ilusão da tal “escola sem partido”, a qual é por princípio impossível. Ao contrário de mais restrições, que tendem apenas a gerar mais violências, impedir debates e autorizar opressões, é preciso dar voz a todos os que desejam falar. De maneira que, novamente pela diferença, seja possível experimentar a força arrebatadora da democracia e a resistência ao fascismo dos discursos autoritários.

Com sorte, todos nós teremos a chance de atingir o ápice da maturidade do ensino, que para Roland Barthes é a experiência de desaprender. Eu, ainda distante de tamanha sabedoria, só tenho a concordar com ele e, humildemente, agradecer o privilégio de sua aula e toda a abertura que ela oferece.

domingo, 4 de novembro de 2018

COLETIVO DISCÓRDIA NA FEIRA MIOLO(S) 2018


O coletivo de criação literária Discórdia, do qual faço parte, foi selecionado para a Feira Miolo(s) 2018, um dos mais importantes eventos de publicações independentes do país, realizado pela editora Lote 42 e pela Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo/SP).

Entre editoras, artistas e outros coletivos (são cerca de 150 expositores), estaremos lá com nossos zines, artes gráficas e livros. Faremos inclusive o lançamento de uma coletânea de contos. Imperdível!

Visite nossa banca e conheça a literatura do Discórdia. O evento é gratuito, basta chegar e se perder entre os livros.

Sábado, 10 de novembro de 2018, das 11h às 23h
Local: Biblioteca Mário de Andrade
Rua da Consolação, 94, São Paulo (pertinho do metrô Anhangabaú)

Confirme sua presença no Facebook e convide seus amigos para o evento: Discórdia na Miolo(s) 2018

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

LEIA UM CONTO DO MEU NOVO LIVRO

Meu conto “Bons tempos, aqueles” foi publicado na revista Originais Reprovados #12. É uma pequena amostra do que você encontra no livro Testemunho Ocular, recém-lançado pela editora Lamparina Luminosa.


Minha avó e três dos seus irmãos juram de pés juntos que era um índio, ele se perdera da tribo e foi dar na cidade. Seus outros cinco irmãos, menos preconceituosos, falam num negrinho, só não têm certeza da origem. Meus pais sorriem da anedota. Todos concordam apenas neste ponto: a árvore genealógica da família teve um ramo enxertado, e daquele tio-avô, de que tanto falam e pouco sabem, resta somente uma fotografia embaçada, sem cores; um homem enrugado, com lábios grossos e chapéu de linho, que podia ser tanto índio quanto negro. Restou também um nome, Jacó Bento de Lima, que não devia ser negro nem índio, mas era.

Falam da caridade do bisavô, que o adotara de imediato, ainda muito menino. Quantos anos? Ninguém sabe.

Calam-se sobre a morte trágica da bisavó, afogada no poço da fazenda.

Pensam na maldição que contaminou aquela água e a todos que beberam dela durante gerações. Sentem um arrepio.

Que fazenda era essa?

Virou cidade, não existe mais.

Contam, orgulhosos, que o bisavô apareceu certo dia com esse menino meio negro ou meio índio, botou no meio dos filhos, batizou com seu sobrenome. Calam sobre o fato de que, daquele dia em diante, a bisavó viveu amuada.

Onde foi parar esse homem?

A família ignora minhas impertinências.

Teve filhos? Onde estão meus primos índios ou meus primos negros?

Minha avó e seus irmãos se entreolham, meus pais pensam um instante. Calam-se.

Minha avó diz que, quando geava na fazenda, todos os irmãos corriam a acender tochas para proteger a plantação. Uma correria danada, eles se lembram muito bem.

Gostou? Compre o livro aqui: www.lamparinaluminosa.com

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

LER PARA CRER

Foto por Lamparina Luminosa

Entre as diversas sensações que a literatura pode provocar, uma das mais promissoras é o estranhamento. Digo promissora no sentido da experiência estética que desloca o leitor do seu lugar-comum, de maneira a terminar a leitura diferente de como a iniciou. Por vezes confundimos o estranho com o grotesco, o exagerado ou o explícito. Não é a isso que me refiro, mas ao estranhamento tão sutil que chega a ser difícil identificar. Como uma pecinha que não se encaixa no conjunto e gera um ruído. Apenas a escuta atenta é capaz de distingui-lo. No entanto, uma vez percebido, o ruído se transforma numa espécie de “punctum”, para usar o conceito que Roland Barthes criou ao analisar fotografias. Com isso quero dizer que aquele pormenor quase imperceptível, assim que notado, domina a cena, sendo impossível desconsiderá-lo. Ele escapa das nossas convicções e expectativas, incitando-nos a perguntar: por quê? Será isso mesmo? Como é possível?

Foto por Lamparina Luminosa

Tentei explorar essa sensação nos contos do livro Testemunho Ocular, publicado algumas semanas atrás. Ali, o estranhamento está quase sempre associado ao invisível, ao implícito, ao “assassinato do Real”, como dizia Jean Baudrillard. Minha aposta é produzir tensionamentos entre territórios bem delimitados, conhecidos e habitados. De maneira que o leitor encontre nesse atrito a possibilidade de criar junto com o livro, imaginando justamente as imagens que não estão dadas – elas são, no máximo, sugeridas.

É verdade que não antecipei a proposta. Ela foi surgindo na medida em que eu escrevia, e o resultado é um livro de literatura, não uma tese. Durante o processo de criação, quando percebi um fio condutor a atravessar os textos, reuni a coletânea sob o título de Testemunho Ocular, aludindo à condição da imagem como legitimadora de verdades.

Temos ao nosso redor uma lógica perigosa ganhando força política, pautada na certeza e na razão absolutas, opressoras, fascistas na medida em que denegam formas menores de existência. Minha resposta poética para isso é celebrar a ambiguidade, o paradoxo, a obscuridade.

Capa do livro
Testemunho Ocular venceu o concurso da editora Lamparina Luminosa em 2017, e o processo de edição durou cerca de um ano. A definição da capa foi especialmente trabalhosa. Afinal, como é possível escolher uma imagem para um livro que tenta colocar em questão a nossa dependência da visualidade? Nestes tempos em que somos filmados, produzidos e compartilhados a todo instante, qual imagem contrariaria a sua própria vocação de evidenciar, esclarecer e testemunhar?

Eu e Christian Piana, editor responsável pelo projeto gráfico, consideramos diversas alternativas, até enfim concordarmos que os urubus voando em círculos resolveriam a questão sem de fato solucioná-la por completo. Era fundamental que a cena não fosse explícita. As aves têm relação com um dos contos da coletânea, chamado Rapinagem, e à primeira vista parecem lindos passarinhos voando livres no céu. Lá de cima são capazes de testemunhar extermínios das mais variadas ordens, dos quais somos cúmplices.

O projeto editorial condiz com o conceito do livro, que é espelhado desde a epígrafe do início à que o encerra. Há também dois poemas e vinte textos em prosa. No centro se encontra um trecho de páginas pretas com letras em branco, que chamo carinhosamente de “ponto cego”, repleto de provocações, expressões corriqueiras revisitadas e jogos de palavras que tentam escapar dos seus sentidos imediatos.

Foto por Lamparina Luminosa

Se existe um lugar de sobrevivência da literatura neste oceano de esclarecimento em que estamos naufragados, atormentado por ondas de verborragia, realismos e certezas moralizantes, talvez seja a poética do incerto, do não dito, do desvio, do obscuro e do estranhamento que o contato com o diferente pode provocar. Talvez possamos abrir aí uma brecha por onde a ameaça escoe e onde apareçam formas de vida mais contemporâneas.

Gostou? Compre seu exemplar aqui: www.lamparinaluminosa.com

sábado, 15 de setembro de 2018

CRIME PERFEITO

The guest (2004), de Adriana Varejão

o que há de criminoso
no crime perfeito é
a sua perfeição, pois bem:
o assassinato do Real

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

ENTREVISTA SOBRE O TESTEMUNHO OCULAR

Concedi a entrevista abaixo ao jornalista e escritor Alex Xavier, que propôs questões sobre o processo criativo e outras um tanto inusitadas a respeito do recém-lançado Testemunho Ocular, meu novo livro de contos. Bateu uma curiosidade? Clique e encomende seu exemplar no site da Lamparina Luminosa.



O que justifica esses contos compartilharem um mesmo livro?
Os contos foram escritos ao longo de vários anos. Com o tempo, percebi que havia entre eles uma inquietação comum, uma espécie de estranhamento com relação às imagens e à visualidade. Foi nesse momento que optei por reuni-los e desenvolver um projeto gráfico compatível. O livro coloca em evidência esse meu interesse pelo inquietante e pelas imagens que, apesar de dominarem nosso dia a dia, são insuficientes em muitos quesitos.

Do que você abriu mão durante o processo do livro? (contos inteiros? ideias desconexas? um palavreado muito formal? seu sono?)
Alguns contos selecionados na primeira versão da coletânea foram excluídos, mas isso faz parte do processo editorial. Acho que não abri mão de muitas coisas. A editora respeitou minhas escolhas e colaborou bastante para a qualidade do livro, tanto gráfica quanto literária. Até mesmo o ano e meio que levou desde a seleção no concurso até a publicação foi bom, apesar de angustiante, porque permitiu que a poeira assentasse, detalhes pudessem ser revistos e as decisões fossem mais acertadas.

Cite uma sugestão de alguém que leu seu livro que mudou a forma como você enxergava o próprio trabalho?
Os amigos do coletivo de criação literária Discórdia leram uma das primeiras versões do livro e fizeram sugestões imprescindíveis. A mais radical talvez tenha sido do Filipe Souza Leão, que sugeriu uma redução de 50% do conto que, por coincidência (ou não?), se chama A Metade de Tudo. Foi quando percebi que, escrevendo menos, era possível dizer muito mais.

Quem (vivo ou morto, famoso ou não) você gostaria que lesse seu livro e comentasse (bem ou mal)?
Por mais que críticas negativas algumas vezes nos ensinem a escrever melhor, todo escritor prefere os comentários elogiosos. Não apenas pelo ego, que de qualquer maneira precisa ser rebaixado para produzir um bom texto, mas principalmente porque o trabalho de escrita é demorado e solitário. Quando o livro chega, após anos de gestação, uma acolhida gentil é sempre bem-vinda. Eu gostaria que Julio Cortázar lesse. Apesar de conhecer pouco da obra dele, tenho um fascínio que é também certo fetiche. O mesmo vale para o Murilo Rubião. Esses são famosos. Porém eu gostaria que muitos leitores comuns lessem e se inquietassem com as histórias, do mesmo jeito que eu me inquieto quando leio outros livros. Para mim, essa é a sensação mais interessante que a literatura pode provocar.

Quem dirigiria uma adaptação de seu livro (ou de um conto específico) para o cinema?
Sou péssimo com nomes de cineastas. Aliás, depois de pesquisar sobre problemas das imagens na arte e na literatura, a relação com o cinema ficou mais difícil. Talvez Wim Wenders fosse um bom diretor para a adaptação. Já o vi, em diversas ocasiões, questionar as imagens cinematográficas de um jeito que mostra certa proximidade com o Testemunho Ocular.

Mencione uma pessoa próxima que não gosta ou não entende sua prosa (e qual crítica essa pessoa costuma fazer).
Não faz muito tempo, minha esposa leu uma dramaturgia que eu estava escrevendo. O comentário foi: bom, você é artista, deve saber o que está fazendo. Ela se esforça para conhecer meus textos, mas eu sei que são muito diferentes do que gosta de ler. Essa distância é boa, no fim das contas, porque traz uma perspectiva diferente e me faz abrir os olhos para demais possibilidades.

Com qual personagem do seu livro sairia para jantar ou levaria para um mochilão pela América do Sul?
Eu tomaria um cappuccino com Lucia, que aparece no último conto, chamado Flashes. Para descobrir o motivo desse encontro, sugiro leia o livro. ;)

O livro Testemunho Ocular está disponível aqui: www.lamparinaluminosa.com

Entrevista publicada originalmente em: Medium / Alex Xavier
Siga o Medium do coletivo Discórdia.

domingo, 19 de agosto de 2018

ESCREVER COMO QUEM DEPÕE AS ARMAS

Desembarque das tropas norte-americanas no Dia D (1944), de Robert Capa

Eu me aproprio de uma ideia de Jacques Lacan com intuito de transtorná-la. No Livro 11 dos seus seminários, em que trata dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, há um trecho sobre pintura. Para ser mais específico, refiro-me à afirmação de que o pintor convida o espectador a depor o olhar no quadro “como quem depõe as armas”. Lacan chama atenção para certo efeito pacificador da pintura, que se oferece como “pastagem para o olho”. Essa ideia não me interessa tanto quanto a oportunidade reversa sugerida pela própria frase que a concebe; penso que não se trataria de olhar passivamente, no sentido pejorativo da apatia, mas de abandonar as armas do combate previsível.

Quer dizer, é possível vivenciar a experiência estética diante de um quadro depondo todas as armas que temos para subjugá-lo, combatê-lo, ameaçá-lo? Ou, ainda, é possível abandonar os instrumentos que armam o olhar e que exigem do quadro uma correspondência às nossas expectativas? Tal desafio ao espectador deve ser também método de todo pintor: fazer imagens a partir de um desfazimento daquilo que entende por pintura. Criar a partir de uma desconstrução.

Dou essa volta toda para chegar à escrita, que pode ter aqui um ponto de interesse, e perguntar se o mesmo se aplicaria aos leitores e aos escritores: é possível depor as armas durante o embate com o texto? Negar as expectativas de como se gosta de ler ou de como já se acostumou a escrever? Depor os clichês, as formas convencionais, os meios e métodos pressupostos da “boa” escrita?

Nossa condição atual não cansa de mostrar que o bom e o bem são enrascadas, sempre prontos a oprimir o outro em função daquilo em que o eu – ou talvez alguns nós – acredita. Em suma, bondade tem endereço. Se o texto se apresenta adjetivado assim, nossas primeiras questões a ele deveriam ser: bom para quem? Por qual motivo, segundo quais parâmetros, conforme quais interesses?

Isso vale para a literatura de caráter experimental e, em certa medida, precisa valer também para tudo o que escrevemos no dia a dia, da mensagem de Whatsapp à tese de doutorado. Até que ponto estamos presos à norma? Quais potências do escrito são prejudicadas por ela? Por qual motivo não as depomos?

Existe um universo a ser combatido. Com as armas de sempre, porém, o resultado será conhecido, e a vitória será meramente ilusória; permaneceremos subjugados pelo senso comum.

Nesse sentido, Jacques Lacan liderou um ataque inesperado pelos flancos: escrevia sem o propósito de ser entendido. Alertava assim os demais psicanalistas para o cuidado de jamais compreenderem seus pacientes. Pois, uma vez compreendidos, o mistério da vida se desfaria num rótulo, numa fórmula, num diagnóstico, numa pressuposição ou num preconceito qualquer, reduzindo toda a potência daqueles ao cadáver ponto para o sepultamento.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

É OFICIAL: VEM AÍ MEU NOVO LIVRO

Testemunho Ocular, meu novo livro de contos, será lançado daqui duas semanas. \o/
Já deixo aqui o recado para você se programar. Data e local estão no pôster abaixo.
A gente se encontra lá!

ATUALIZAÇÃO: você já pode comprar seu exemplar no site da editora: www.lamparinaluminosa.com


quinta-feira, 12 de julho de 2018

MEU NOVO LIVRO ESTÁ CHEGANDO


Está confirmado o lançamento do meu novo livro de contos em São Paulo!
Será 18 de agosto na Tapera Taperá, a partir das 14h.
A livraria fica na avenida São Luís, 187, loja 29, pertinho do metrô República.

Junto comigo estarão outros três vencedores do concurso da editora Lamparina Luminosa (categorias poesia, HQ e autor regional). Os livros estão lindos. Então venham, aguardamos vocês!

segunda-feira, 26 de março de 2018

para Victor Heringer, que não conheci 

Morre um jovem
morrem milhares todos os dias
dizem: o país não se importa
exceto por este sujeito,
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país.

É preciso matar muitos países supostos
para fazer viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos sujeitos sem jeito
teimam em envelhecer
ao ponto em que a morte eterna
confunde-se com salvação.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.