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domingo, 2 de outubro de 2011

A SE CONSIDERAR

Outro dia, me perguntaram por que tento sempre destacar um ponto positivo nas obras que critico, mesmo naquelas que não me agradam. Ora, acho muito triste quem não encontra algo interessante em livros, músicas, filmes, quadros, danças, esculturas... enfim, na criação artística em geral. Acho, inclusive, que nesses casos o problema não está na obra, mas no crítico. Nada é 100% bom ou 100% ruim, nem a arte nem os homens; o que existe são pontos de vista. O que um odeia, outro pode amar. Quem está errado? Ninguém. O papel da crítica é propor uma leitura, fundamentar reflexões a respeito, instigar o leitor a experimentar – muito se engana quem acredita que o crítico deve falar mal, e só. Penso justamente o contrário. Falar mal é fácil demais. Existe, porém, sempre um ponto positivo, e para revelá-lo é necessário antes vencer a própria mesquinhez. Se você não consegue vê-lo, talvez seja hora de deixar a produção alheia de lado e criticar os seus sentimentos pessoais.

sábado, 3 de setembro de 2011

BEM DIANTE DOS OLHOS

Perto do meu trabalho havia uma casa antiga, daquelas com hall de entrada envidraçado que dava para a rua – uma das poucas construções do tipo que conseguira sobreviver aos prédios espelhados e às franquias de estacionamento. Um casal de velhinhos passava as tardes ali, cada um em sua cadeira de balanço, fizesse chuva ou sol. Eles observavam, simplesmente. Sempre que eu cruzava o local, virava o rosto para conferir e lá estavam os dois, observando o movimento. A cena continha um lirismo particular. Agora, ao terminar a leitura do conto A janela de esquina do meu primo, ela me voltou à lembrança. Já explico por quê.

Trata-se da narrativa derradeira do alemão E. T. A. Hoffmann, publicada entre abril e maio de 1822, dois meses antes de seu falecimento, aos 46 anos, vitimado por uma doença degenerativa muito semelhante a do protagonista, que o impedia de andar e escrever.

Sem dúvida, o teor autobiográfico do texto é irrefutável. Merece destaque, entretanto, o relato que faz da vida social metropolitana daquela Berlim em plena transformação.

O personagem que dá título ao conto, escritor de certo renome, então condenado a passar os dias observando a vida acontecer através da janela de seu apartamento, tenta ensinar ao primo como enxergar a modernidade que se apresenta logo adiante, na feira livre do outro lado da rua.

O frenesi, o efêmero, o senso de civilidade, o comércio, os tipos urbanos, a burguesia em ascensão, as relações sociais e a nítida diferença entre classes – tudo isso aparece no conto de Hoffmann. Talvez o autor tenha sido o primeiro a explorar tais temas com tamanho afinco, embora a façanha ficasse mais conhecida com Edgar Allan Poe (O homem da multidão, 1840) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).

"Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu primo digno e paralítico, ou seja, um olho! Um olho que realmente enxergue! Aquela feira do mercado não lhe oferece senão a visão de um colorido e alucinante amontoado de gente se movendo num afã insignificante. Há, há! Ao contrário de você, meu amigo, vejo desenrolar-se um cenário variado da vida burguesa e meu espírito (...) inventa um esboço após o outro, cujos contornos mostram-se com frequência impregnados de malícia." 
 
Ilustração de Daniel Bueno para edição da Cosac&Naify

Com uma luneta em mãos, o escritor paralítico consegue se aproximar da multidão que se acotovela na praça, caminhar entre as pessoas e as observar uma a uma, em detalhes. Munido de olhos atentos e muita imaginação, passa a preencher as lacunas proporcionadas por esses breves encontros, inventando premissas e desenlaces, modificando a realidade por meio da ficção, recriando o mundo como lhe parece mais conveniente.

É um artifício que permite ao autor desenvolver os mais diversos assuntos, incluindo alguns bastante proféticos. Hoffmann denuncia, por exemplo, o preconceito com estrangeiros e a repulsa que a miscigenação de culturas provoca nos mais ingênuos, que desejam manter a identidade local intacta. Antecede, portanto, em quase dois séculos os anseios da globalização e as diferentes fobias sociais que, infelizmente, ainda constatamos nas cidades de hoje.

Há também o anonimato e o conflito paradoxal de se misturar à massa sem perder a individualidade, questões-chave do modernismo europeu. Observando pela janela o mundo em transformação, os atores do conto nos introduzem uma problemática que renderia reflexões por, no mínimo, mais cem anos.

"Essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!"

O apartamento ocupado por Hoffmann ficava acima da taverna Lutter & Wegner, que ele tanto frequentou

Terminada a leitura, lembrei imediatamente do casal de velhinhos lá de perto do trabalho, que ficava a observar a vida acontecendo através do vidro do alpendre. Não sei o que houve com eles. Passei um dia e não estavam lá, nem no outro, nem no seguinte. A casa acumulou poeira, a janela embaçou, as cadeiras de balanço desapareceram. Então, numa tarde como outra qualquer, um trator colocou tudo abaixo. No lugar, montaram um fast food especializado em yakisoba.

Há diversos prédios comerciais nas proximidades, o restaurante vive lotado. Eu mesmo almoço lá de vez em quando, naqueles dias de pressa em que tenho muito a escrever e prazo curto para terminar. O conto de Hoffmann me fez perceber que, mergulhado nessa realidade alucinante, fico impedido de ver – e de compreender – o que acontece ao meu redor. Na maior parte do tempo, minha vida é uma reação instintiva aos constantes estímulos externos. E só.

Lembrei do simpático casal de velhinhos que ficava a observar o frenesi cotidiano através da janela e, inspirado pelo conto recém-lido, passei a me perguntar que tipo de futuro eles enxergavam ali.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Um escritor, tomado por angústia e desilusão, fala sobre a sua dificuldade de escrever um bom romance. Paradoxalmente, ele termina o relato com um romance escrito, que é bom o bastante para desmentir a si mesmo. Parece meio esquisito. Parece também meio clichê – quantos livros você já viu sobre escritores que escrevem sobre outros escritores tentando escrever? Um monte. Pois bem. Quem se lembra de David Foenkinos?, do francês David Foenkinos, é as duas coisas ao mesmo tempo, meio esquisito e meio clichê. Mas é também bastante bom, coisa que só fui perceber quando terminei de lê-lo.

Comprei o livro por acaso, num saldão. Estava tão barato que acabei levando-o por curiosidade, esperando apenas folhear e, quem sabe, encontrar ali alguma coisa interessante. Li as primeiras trinta páginas num pulo. E as outras cento e trinta em outro.

A história é meio deprimente, já vou avisando. O personagem David Foenkinos escrevera um romance de sucesso, seguido por outros cinco que passaram despercebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Agora, ele está atrás de uma grande ideia perdida num trem, concebida e esquecida numa viagem entre Genebra e Paris. Por conta dessa obsessão – e da apatia gerada pelos fracassos –, sua vida pessoal desmorona, em especial o relacionamento com esposa e filha. Afinal, é sobre isso que ele escreve.

O livro tem boas passagens. Embora pouca coisa aconteça, a leitura flui rápido. Vamos nos embrenhando na vida de David e experimentando o gosto repugnante da derrota que ele outorga a si próprio.

O mais bacana talvez seja justamente não saber quanto dali foi inventado e quanto foi apropriado da vida real do Foenkinos autor. Fica claro que toda biografia não passa também de mera ficção, e que qualquer história pode ser recontada conforme convier às partes interessadas. Como lemos logo nas primeiras páginas, só as nossas certezas conhecem intimamente as nossas incertezas.

David Foenkinos estava mesmo esquecido? Seus romances anteriores foram tão ignorados quanto o personagem afirma? Sua estreia fez aquele sucesso todo? Sabemos que aqueles livros existem porque está escrito nas orelhas do atual e, suponho, essas orelhas não fazem parte da criação original. Mas posso estar enganado. Sim, claro. Esse é o mérito do autor. Ele nos engana sem que percebamos, justamente porque nos faz acreditar em sua história reinventada.

Na fronteira entre ficção e realidade, David nos leva a refletir sobre o amor, a ansiedade e as relações humanas; sobre tudo que está ao nosso alcance e sobre aquilo que independe da nossa vontade. Ele procura um bode expiatório para sua mediocridade e, como resultado, acaba produzindo um livro nem um pouco medíocre. Um livro sobre o próprio livro, que conseguiu prender minha atenção enquanto rolavam as páginas.

Já próximo do desfecho, o personagem Foenkinos se pergunta: "Pode-se amar mais uma mulher do que confundindo-a com uma ficção?" Imagino que não. O mundo, em geral, existe apenas como uma ideia de mundo. As coisas não existem por si mesmas, mas da maneira como nós as concebemos. Quer dizer, uma casa, para mim, é diferente daquilo que você entende por casa. Uma maçã possui diferentes significados para quem planta e para quem come. Um livro idem. É o que o autor Foenkinos sugere nas entrelinhas: é impossível amar a vida sem escrever, a partir dela, a nossa própria ficção.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Eu continuo a escutar Norah Jones. E continuo a cantar Norah Jones. As músicas permanecem em repeat perpetuum em minha cabeça. Mas é um pop disfarçado de jazz, você vai dizer, melancólico e inocente. Também é. Além de pop jazz, é uma porção de outras coisas.

Eu gosto cada vez mais de Norah Jones. A cada disco, descubro uma nova artista. Só que o disco que continua a tocar, nesse momento, é o seu primeiro. Come away with me, vou explicar por quê. Porque gosto tanto dele, apesar dos pesares que a crítica ácida insiste em corroer. Há um lirismo escondido atrás daquela banalidade toda. Um lirismo que, inclusive, ganha forças com a tal banalidade.

Em Feelin’ the same way, letra assinada pelo baixista Lee Alexander, Norah canta: o sol acaba de escorregar sua mensagem por debaixo da porta, e eu não posso me esconder, enterrada em meus lençóis. Eu já li aquelas palavras antes, então agora sei que o tempo chegou novamente para mim. E eu me sinto do mesmo jeito, de novo, eu canto os mesmos versos, de novo, não importa o quanto eu finja que não.

Acho lindo. Se fosse simplesmente banal, ela poderia dizer “vejo o sol na fresta, sob a porta, e eu não posso ficar na cama para sempre”. Mas o lirismo dá as caras, para nossa sorte, e o sol não aparece, ele não se deixa ver, apenas escorrega um bilhete. Um bilhete que ela já leu muitas outras vezes, e que insiste: o tempo está correndo, o novo dia veio lhe buscar, ávido por novidades; não adianta se enterrar, não adianta morrer, é preciso vencer. Dia após dia, é preciso vencer a mesmice de ser sempre você.

Na música que dá nome ao disco, essa sim escrita por Norah, para você não dizer que o mérito é alheio, ela canta o amor do jeito mais banal possível. Porém, ao invés do escorraçado “eu amo você”, que o nosso sertanejo pop esfolou ao limite, até que ele não significasse mais nada, até que não passasse de mera rima, Norah diz: venha comigo, num ônibus; venha para onde eles não podem nos tentar com as suas mentiras. Eu quero acordar com a chuva caindo num telhado de lata, enquanto estou a salvo em seus braços.

Cenas banais, fugazes, porém belíssimas. Belas justamente porque banais.

É possível ser pop, jazz e lírico, tudo ao mesmo tempo? É possível falar a mesma coisa, mas diferente? É possível retirar do banal, da rotina, do dia a dia, algo estupendo? Fazer complexo das coisas simples? Norah acredita que sim. Então eu a deixo tocar.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

NOTA DA TRADUTORA

Estou lendo Como funciona a ficção, livro de crítica literária escrito pelo americano James Wood que propõe reflexões bastante interessantes sobre técnicas narrativas, construção de personagens, relação da fantasia com a realidade etc. Para melhorar, a edição brasileira chegou com algo a mais: Denise Bottmann, responsável por verter a obra para o português, criticou publicamente a escolha da editora Cosac Naify de utilizar trechos traduzidos anteriormente das obras citadas por Wood. Para ela, o mais correto seria traduzi-los novamente, de modo que fossem compatíveis com a análise do autor.

A crítica não invalida ou prejudica a edição brasileira, muito pelo contrário; discussões como essa são mais do que pertinentes quando o assunto é literatura. Melhor ainda quando vêm a público.

Quem gosta de escrever tem obrigação de ler o livro de Wood. Quem gosta de ler também vai adorar, porque passará a conhecer mais a fundo os detalhes dessa arte. Depois – ou antes, como preferirem – leiam também os argumentos da tradutora Denise Bottmann. Esse "capítulo extra" está disponível aqui: Como engripa a ficção.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

PARA PENSAR TUDO AO CONTRÁRIO

Consegui visitar a exposição O Mundo Mágico de Escher, finalmente! Eu tinha tentando uma vez, logo que ela chegou a São Paulo, mas o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) estava tão lotado que não dava nem para entrar. Agora entendi por quê: aquilo é superdivertido!

Como as gravuras do artista podem ser vistas em qualquer livro sem que o entendimento seja comprometido, os organizadores da mostra prepararam  instalações especiais para os visitantes experimentarem as ilusões na própria pele.

Tem o quarto de Escher, reproduzido tal como consta em seu autorretrato, e podemos segurar uma bola de metal para ver nossa imagem lá; tem portas que correm sobre trilhos e formam desenhos, tem escadas malucas e muitos jogos de espelhos. Resultado: todo mundo se diverte, até os menos interessados em arte.

O mais legal disso tudo: conseguimos perceber claramente que o maior mérito do artista não estava na sua técnica ou na habilidade com o lápis, que são indiscutíveis, mas na sua maneira de pensar. Sabe-se lá como, Escher conseguia desbloquear o cérebro das convenções e imaginar o mundo de ponta-cabeça, com a ponta vista por um ângulo e a cabeça por outro, com as águas correndo no sentido inverso e com escadas que começam e terminam no mesmo ponto. Obras de arte dignas de um verdadeiro mágico.


Relatividade (1953), M. C. Escher

O mundo mágico de Escher é um ótimo programa para o feriadão de Corpus Christi. Mais informações: CCBB/SP.


Belvedere (1958), M. C. Escher

Site oficial de M. C. Escher: www.mcescher.com

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ILUSÃO E DESILUSÃO



O mágico (L’illusionniste, 2010) não é uma animação 3D, não foi criada pela Disney/Pixar ou por qualquer outra gigante americana, não é uma refilmagem, não é a modernização de uma fábula clássica, seus personagens não são super-heróis, bichos falantes, robôs, extraterrestres ou comida, mas seres humanos como quaisquer outros; ainda assim, é uma animação digna de aplausos. Quantas dessas você viu na última década?

O roteiro e a produção, na verdade, são franceses. A França possui excelentes escolas de animação, pena que poucos filmes cheguem até nós. Mesmo O mágico, que tem roteiro do veterano Jacques Tati e direção de Sylvain Chomet, foi difícil de assistir. Ficou em cartaz apenas durante uma ou duas semanas naqueles mesmos cinemas alternativos de sempre, em São Paulo, e de repente retornou do esquecimento em uma sessão ‘cult’ promovida pelo Cinemark do Shopping D. Consegui assisti-lo numa segunda-feira, às duas horas da tarde, somente porque estava de férias. Inclusive, foi uma cena curiosa, pois nem mesmo os atendentes do cinema sabiam que ele estava em cartaz. Quando pedi o bilhete, me olharam com desconfiança e foram procurar no computador. Nem preciso dizer que a sala estava às moscas, né?

Voltando à questão principal, o enredo explora a decadência de algumas artes de entretenimento clássicas, que vão aos poucos sendo substituídas por outras mais em voga. Além daquela que dá nome ao filme, vemos a de palhaço, ventríloquo, trapezista etc., as quais desaparecem sem que ninguém perceba, condenadas a uma morte lenta e difícil de reverter. Tratando-se de uma animação 2D, considerando o discreto público que atraiu por aqui e comparando tudo isso à alta demanda de filmes 3D, acho que podemos considerá-la autorreferente – fora de moda, o estilo parece dar seu último suspiro e morrer junto dos próprios personagens que criou.

Não que eu acredite no fim dos desenhos 2D, especialmente dos bonitos como esse, feitos com aquarelas e traços caricatos nos moldes do ótimo As bicicletas de Belleville, também de Sylvain Chomet. Mesmo com as duas indicações ao Oscar que este último recebeu em 2004, além de diversas menções honrosas, o 2D dificilmente recuperará tão cedo o público que obteve anteriormente, nos tempos dos clássicos Disney. Ao menos não enquanto os espectadores continuarem empolgados com as novas possibilidades tecnológicas.

O mágico também é autorreferente quanto ao próprio Tati: além de o protagonista lembrar muito seu famoso personagem Monsier Hulot, uma breve cena do filme Meu tio aparece aqui numa citação discreta e saudosista.



No geral, podemos dizer que se trata de um filme adulto; triste, melancólico e reflexivo, acaba provocando meia dúzia de sorrisos constrangedores. Afinal, estamos falando de artistas rejeitados pelo público, lutando para não abandonarem as profissões pelas quais são apaixonadas.

Em resumo, o mágico protagonista parte da França atrás de novas plateias e acaba por descobrir uma garotinha que, em sua inocência, ainda acredita no ilusionismo. Mas o quadro logo se corrompe e as últimas esperanças se perdem.

“Mágicos não existem”, diz o bilhete que antecede o truque derradeiro. Então o mágico desaparece para nunca mais voltar. Uma inesperada atitude que abre nossos olhos para a realidade.

É mesmo um filme que fala muito, apesar de não ter diálogos explícitos – pois é, toda a comunicação se dá por murmúrios e expressões corporais. Vale muito a pena ver, especialmente quem nunca se deparou animações do gênero.

Talvez, por meio desta preciosa carta na manga, Chomet consiga lhe apresentar um mundo espetacularmente rico em mistérios e possibilidades, que às vezes é chamado de arte, às vezes de poesia e, às vezes, simplesmente de cinema – nomes que lhe cabem muito bem.


Site oficial: L'illusionniste

quarta-feira, 16 de março de 2011

PRETO NO BRANCO



"Está tudo ali", diria Freud, "tão claro quanto a soma de 1 + 1". O diretor do balé dá a dica logo no início: ele quer reinterpretar o clássico Lago dos Cisnes e precisa de uma dançarina que incorpore o bem e o mal, que transite com facilidade entre esses dois pontos de vista tradicionalmente antônimos. "Todo mundo possui um lado bom e outro ruim, basta se esforçar para aflorá-los". Dizer é fácil, mas assumir a face oculta da personalidade pode causar transtornos que nem a psicanálise explica. A força do filme Cisne Negro se concentra justamente aí, nesse dilema já bastante explorado no cinema, mas que ainda tem potencial para render ótimos dramas. Basta fazer direitinho, com cuidado e sensibilidade, como conseguiu o diretor Darren Aronofsky.

Repare no cenário e no figurino: tudo é preto ou branco, não existem meios tons. Bem típico do nosso costume maniqueísta de encarar a vida, em que o bem e o mal não ocupam o mesmo lugar no espaço. Bobagem. Quando a personagem interpretada por Natalie Portman – a princesinha que é o cisne branco em pessoa – precisa ser também seu algoz, o conflito se coloca. E contamina todos ao redor.

Na plateia, a gente se confunde, não dá para saber o que é alucinação e o que é real. Enquanto a bailarina luta para arrancar a casca pálida que acoberta seu interior sombrio, as teorias psicanalíticas surgem como as melhores coadjuvantes – tem a questão do duplo, da sombra, dos desejos reprimidos e da sublimação. Tem também algo muito mais forte, que lembra o romance O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde: a perigosa mistura de vida e arte.

Para quem não leu, a história trata de um jovem muito vaidoso que, querendo ser – e permanecer – perfeito, amaldiçoa um retrato seu, fazendo-o envelhecer em seu lugar. Acontece que, com o passar do tempo, a visão da pintura corrompe sua sanidade, até que não se distingue mais quem é o verdadeiro Dorian.

Em Cisne Negro, as personagens assumem o papel da bailarina, invadem sua vida pessoal, deixam o palco para ganhar as ruas. Tudo que antes parecia claramente dividido se transforma. Vida e arte, assim como realidade de ficção, passam a ser uma coisa só.



Preste atenção nos detalhes, como o rosto do diretor do balé, que, indeciso entre as concorrentes para o papel principal, é focalizado exatamente na emenda de dois espelhos. E ainda nas sombras no fundo do palco, depois da maravilhosa transformação da bailarina no cisne negro, que permanecem com asas, embora os espectadores não vejam nada além da mera representação artística – o público vê a obra, mas ignora a alma. São detalhes como esses que acrescentam significado às cenas e, antes de tudo, mostram o cuidadoso trabalho de Aronofsky.

"Foi perfeito", diz a bailarina no final da dança. Ser perfeita, assim como Dorian Gray, era tudo que ela desejava. Aquilo que antes parecia fadado a competir eternamente se funde então em uma única entidade, uma mistura de bem e mal, branco e preto. Para que os dois cisnes ganhassem vida num espetáculo sublime, a bailarina agiu como o ambicioso Dorian e abriu mão de sua sanidade. Ao incorporar ambas as personagens, deixou de ser a si mesma; cedeu à pressão, seu conflito interior extravasou e acabou por destruí-la.

Um corpo consegue assumir formas diversas no palco, transformar-se a si próprio é imprescindível à boa atuação. Só que talvez a mente não seja forte o bastante para distinguir a verdade da mentira. O espelho se quebra e, nos cacos que restam, vemos apenas breves indicações da identidade que se perdera. Foi perfeito. Só que o perfeito, como sabemos, é impossível.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

VICE-VERSO

Quando ouvi comentários sobre a série Verso, do brasileiro Vik Muniz, achei que se tratava apenas de mais um factoide inventado para chamar atenção da mídia. Ele tinha selecionado diversas pinturas e fotografias famosas, reproduzido o verso das mesmas com o maior realismo possível e as exibido numa galeria de Nova York. O que poderia haver de interessante naquilo? Na ocasião, achei que nada. Mas algo ficou em meu inconsciente, algo provocador, exigindo uma reflexão a respeito. Até que, na última quarta-feira, comprei o catálogo da mostra e dediquei algum tempo às ideias do artista. Descobri que meu pré-julgamento estava errado – como todo pré-julgamento costuma estar – e que a série tem seus méritos, alguns verdadeiramente relevantes.

Entre eles, por exemplo, está o de revelar que a parte de trás dos quadros se transforma de um jeito diferente da frente. As marcas do tempo ficam mais perceptíveis ali. Na medida em que viajam para exibições mundo afora, as pinturas ganham adesivos, anotações e arranhões – espécie de carimbos de passaporte. Dá para desvendar todo o seu trajeto por meio deles.



As fotografias, por sua vez, até o advento da era digital, receberam notas no verso sempre que foram publicadas por algum veículo de comunicação, que vão desde uma simples data até a própria legenda ou manchete que as acompanhou. Visitamos, assim, os bastidores do espetáculo, como diz o crítico Luc Sante no texto de apresentação do catálogo.

Outros dois pontos importantes para compreender a proposta de Vik Muniz são:

1) A questão do fac-símile. Pois o que estava em exibição em Nova York não eram os versos originais das obras, mas reproduções deles, que poderiam ser consideradas quase tão enganosas quanto uma falsificação deliberada da frente, não fosse o aviso do artista. Ainda que a cópia tenha sido realizada com uma minúcia inimaginável, sabemos que, ao virarmos as peças, não encontraríamos nenhuma pintura ou fotografia do outro lado.

2) Posicionar a série no conjunto de trabalhos do artista. Porque a escolha dos versos foi criteriosa – como ele mesmo diz na entrevista concedida a Eva Respini –, tanto as pinturas quanto as fotografias deveriam despertar a imagem original na mente dos espectadores pela simples menção do título. Vik Muniz continua, dessa maneira, a trabalhar com ícones da História da Arte e com a ambiguidade, duas das suas marcas que podem ser vistas em obras anteriores feitas com chocolate, pigmentos coloridos e lixo.

Por fim, acredito ainda que o maior dos méritos do artista é mostrar que os versos daquelas obras nos ajudam a compreender melhor a imagem da frente e seu lugar na história. Com essa série de reproduções inusitadas, Vik Muniz nos revela um segredo que antes pertencia somente aos curadores, às equipes de montagem de exposições e aos restauradores dos museus. O verso é a face oculta que, em diálogo com a imagem original, acaba por complementá-la, preenchendo uma lacuna que eu jamais me dera conta de que existia. Com perspicácia, técnica e muita curiosidade, Vik Muniz nos permite fazer novas leituras daquilo que já está tão presente em nossas memórias visuais.

Saiba mais sobre o artista: Vik Muniz e Artsy.net

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

"NEM TODO INIMIGO DE UM PARANOICO É IMAGINÁRIO"

A gente nunca vai saber, certo? Não dá para saber o que aconteceu, não dá para explicar, é aquele tipo de coisa que não faz sentido. Simplesmente acontece. O cara reaparece depois de passar um ano sumido e não se lembra de nada do que aconteceu. Ele nem percebeu que ficou um ano inteirinho fora de circulação. Desconhece o paradeiro da esposa e da filha, chegou inclusive a cogitar que elas nem existiam, que eram fruto da sua imaginação. Todo mundo achou que eles estavam mortos. Sequestrados, estuprados e enterrados, essas coisas que se acha por aí. Então, o cara reaparece e bota todo mundo para sofrer de novo. Esperança? Não, a esperança já se foi. A gente só quer uma explicação. Só que a gente nunca vai saber, certo? Não dá para saber o que aconteceu.

Essa é a premissa do livro Nada me faltará (Companhia das Letras, 2010), do paulistano Lourenço Mutarelli. Um livro em que nada se explica, muito pelo contrário: a ideia é colocar o leitor para duvidar e se angustiar.

"O que eu quero dizer é que a impressão que eu tenho é que... é como se fossem eles que, sei lá, caso isso tenha realmente acontecido, caso eu tenha ficado mesmo um ano fora do ar... Talvez eles é que de repente tenham avançado no tempo... ou coisa do tipo. Percebe a loucura disso tudo?"

Transcrevendo apenas as falas, Mutarelli obriga o leitor a criar todo o resto e a se tornar coautor da história. Porque os ambientes, as características físicas, as roupas e as expressões faciais das personagens estão ali, eu me lembro deles, apesar de não haver qualquer descrição a respeito. Ou será que tudo está em minha cabeça? É realmente uma coisa muito louca.

Incrível como um diálogo realista é suficiente para o leitor acrescentar todos os outros elementos tradicionais da narrativa. Mais ou menos como um teatro sem movimento, sendo representado no escuro, bem diante de nossos olhos fechados. Basta um locutor para fazer um espetáculo indescritível.

O cara que reapareceu do nada não dá a menor bola para a preocupação dos familiares e amigos. Para ele, foi como chegar em casa depois do trabalho, dormir e acordar na manhã seguinte. Só que, ao invés de uma noite, um ano inteiro se passou, seu apartamento foi devolvido ao locador, suas coisas foram doadas, sua rotina se perdeu. Ele não entende, eles não entendem.

O cara logo começa a ser pressionado, todo mundo precisa compreender, precisa de uma resposta lógica ou minimamente plausível para aquelas questões que não os deixam em paz.

"Ficam cobrando uma atitude exagerada de minha parte, (...) não admitem o fato de que eu esteja bem". Todos preferem achar que as meninas estão mortas, que eu as matei e sumi com os corpos. Isso explica tudo facilmente, é fácil de aceitar. Mas como posso afirmar algo em que não acredito? Eles exigem um culpado, embora eu não acredite nisso. Acredito que, como eu, elas também poderão voltar. De qualquer maneira, não importa. Só quero mesmo é ficar em paz.

É como se nada fizesse falta para ele, nem mesmo a lógica, nem mesmo os dias perdidos. "Nada me faltará", diz o título. Pois, se o fato de não saber coisa alguma lhe angustia, imagine não ter como descobri-las! É insuportável, não dá. Sendo assim, nada faz mais sentido do que encarar a vida com apatia. Nada é mais confortável.

O texto de Mutarelli é tão fluido e instigante que li tudo numa única tarde. Pode ser consequência da experiência do autor – escritor e ilustrador – no ramo dos quadrinhos. Quem assistiu ao filme O cheiro do ralo (2007), adaptação de outro livro seu, deve ter percebido o ritmo alucinante que o caracteriza.

Quanto ao Nada me faltará, eu não conseguia largá-lo. Assim como a mãe e os amigos do tal desaparecido reaparecido, eu também precisava descobrir o que se passou. Só que a gente nunca vai saber, certo? Não dá para saber o que aconteceu, não dá para explicar, é aquele tipo de coisa que não faz sentido. Simplesmente acontece.

Demais.


Lourenço Mutarelli

Detalhes da obra você encontra aqui: Companhia das Letras
Esta resenha também foi publicada na Revista Psicanalítica. Aproveite para conhecê-la!

domingo, 26 de dezembro de 2010

AS METADES DA LARANJA

Tive o prazer de ler o romance Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess, e na sequência rever o filme homônimo (1971) de Stanley Kubrick. É uma experiência que recomendo a todos e não somente a ser realizada com essas duas obras-primas, mas com todos os romances, roteiros e adaptações cinematográficas disponíveis. Só não se prenda àqueles comentários típicos de “o livro é melhor que o filme, é muito mais completo”. Pois é normal que seja mais completo – no livro, a história pode se estender, os dramas se aprofundam, os personagens parecem mais próximos e é o leitor quem dita o ritmo. O filme, em compensação, costuma ser um recorte do livro, uma maneira de lê-lo, uma interpretação pessoal e, por isso mesmo, uma nova criação feita nos moldes próprios do cinema. Em outras palavras, o filme sempre será diferente, porém não necessariamente melhor ou pior.

É o caso de Laranja Mecânica, em que ambas as produções são magníficas. O romance, por inovar o gênero de ficção futurista – ao invés de criar máquinas voadoras e pistolas de laser, Burgess inventou uma espécie de dialeto que, ao mesmo tempo em que causa estranhamento, permite ao leitor se identificar rapidamente com o universo proposto. É um futuro mais plausível do que o descrito no romance “1984”, de George Orwell, e mais realista do que o de “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley.

No filme, por sua vez, fica claro o esforço de Kubrick no sentido de recriar a atmosfera do Laranja Mecânica original e de resolver visualmente situações sugeridas apenas com palavras pelo escritor – coisa que ele faz com talento e perspicácia. Os cenários são ao mesmo tempo futuristas e bizarros, os personagens são fortes e a narrativa não se alonga além do necessário. Para isso, diversos trechos do romance tiveram que ser suprimidos e outros tantos modificados. O motivo é simples: algumas coisas que são aceitáveis no papel perdem o apelo na tela, caso sejam tomadas ao pé-da-letra. Quais seriam elas? Só vai descobrir quem estiver disposto a repetir minha experiência de ler o romance e assistir ao filme.

Vou citar apenas um exemplo para incentivar sua empreitada: Laranja Mecânica foi publicado na Inglaterra com os 21 capítulos originais. No entanto, os editores norte-americanos acharam que seu final otimista não combinava com o resto da história e simplesmente excluíram o último capítulo. Quando Kubrick escreveu seu roteiro, tomou por base esta edição do livro. É por isso que as duas histórias acabam de jeitos bem diferentes.


Para quem se interessar pelo romance, indico esta edição nacional, que além do texto original completo traz ainda um vocabulário do linguajar Nadsat (utilizado pelo protagonista Alex e seus druguis), um prefácio esclarecedor escrito por Fábio Fernandes e interessantíssimas notas sobre a tradução: Editora Aleph

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A VIDA COMO ALEGORIA (EM UM TEATRO DE BONECOS)

Adoro filmes que me proporcionam uma experiência nova quando os vejo. Pode ser um jeito diferente de contar a história, um visual exuberante, um toque pessoal do diretor ou uma atuação particularmente especial. É por isso que cansei dos blockbusters hollywoodianos, que se esforçam para serem exatamente como o grande público espera que sejam e, no final, ficam todos iguais – tenho visto cada vez menos desses. Aliás, tenho visto menos filmes de modo geral; porém, venho selecionando os títulos a dedo e, nos últimos tempos, descobri grandes pérolas. A de ontem foi Dolls (2002), longa-metragem escrito, dirigido e editado pelo japonês Takeshi Kitano.

São três histórias dentro de uma só, que se misturam e que, aos pouquinhos, vão se ajudando a contar, aproximando-se e se afastando num ritmo imprevisível. Até aí, nenhuma grande novidade – existem diversos filmes assim, inclusive recentes, tais como Babel e Crash. Só que Dolls possui algo a mais: aquele simbolismo típico da cultural oriental, que concede significados a objetos ou gestos e vai nos revelando a narrativa com sutileza. Uma folha que se solta da árvore em uma das histórias, por exemplo, representa a morte de um personagem na outra, e a gente compreende isso mesmo que não seja dito explicitamente.

O visual impressiona de tão bonito, dá para perceber de cara que cada plano foi cuidadosamente estudado. As cores saltam da tela e, muitas vezes, tive vontade de pausar o vídeo para emoldurá-las. Talvez seja herança de Akira Kurosawa, aquele mestre do cinema japonês que, não por acaso, queria ser pintor. Ou talvez seja mesmo um novo artista de sensibilidade aguçada, destacando-se por mérito próprio.

Dolls fala de amor, perseverança e compromisso. Mistura vida e arte, realidade e ficção, às vezes tendendo ao absurdo. As histórias foram inspiradas no teatro bunraku, aquele com bonecos e música ao vivo em que o drama beira a tragédia. Pena que a trilha se repete demais, o que deixa o filme um pouco cansativo. Talvez se ele fosse um tantinho mais curto resolveria. De qualquer maneira, não vou entrar nesses detalhes. Quero apenas registrar aqui minhas impressões positivas e incentivar os fãs do cinema a irem buscar as suas.

Em resumo, Dolls me conquistou porque contraria a ideia pessimista e apática de que o cinema não pode mais se reinventar, e faz isso de um jeito lírico, tranquilo e sutil, sem apelar para efeitos mirabolantes, computação gráfica e 3D. Quem disse que não dava?

Algumas imagens dizem melhor do que eu:




sábado, 11 de dezembro de 2010

HISTÓRIA SEM FIM


A persistência da memória (1931), de Salvador Dali

O ano vai acabar e, se não tivéssemos calendário, nem teríamos notado. Afinal, um dia termina em 2010 e outro começa em 2011 exatamente da mesma maneira como os outros 364 que os antecederam. Mas a gente sabe que não é assim. Chega dezembro, chegam as férias escolares, chegam convites para confraternizações e cartões de felicitação. O ritmo diminui, deixa-se para o ano que vem o que poderia ser feito hoje, mas é Natal, é compreensível. É hora de pensar nos presentes, na decoração, no cardápio da ceia e em convencer as crianças arteiras a se comportarem, de modo a provarem ao Papai Noel que merecem uma recompensa. Acho incrível esse poder que o fim do ano exerce sobre nós, capaz de mudar o comportamento do mundo inteiro. Tudo isso por quê? Não se trata apenas de uma data como outra qualquer, inserida num calendário inventado pelo próprio homem? Aliás, o calendário que usamos hoje foi modificado diversas vezes ao longo do tempo, seguindo os interesses mais variados. Como era quando ele ainda não existia? Como o tempo era percebido? Porque o tempo não são os ponteiros do relógio ou os dias que vamos riscando na folhinha; é algo muito mais complexo, um conceito físico e psicológico que mal conseguimos definir.

As horas, os dias e os anos não são o tempo; são apenas uma maneira que inventamos para mensurá-lo. Como um grande número de pessoas concorda e aceita, o tempo é assim. Mas poderia ser diferente. Veja o calendário judaico, já está no ano 5771. Está errado? Claro que não, trata-se apenas de um outro jeito de medir o tempo. Se pensarmos que a idade da Terra é estimada entre 4,6 e 15 bilhões de anos, que diferença faz uns milhares a mais ou menos?

Certa vez, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty fez uma observação acerca do ato de ver. Segundo ele, a visão não está no olho e nem no objeto visto, mas na relação que se estabelece entre eles. Portanto, a visão é algo que está no mundo e que pertence a ele, e todos nós vemos e somos vistos pelas coisas. Merleau-Ponty chamou essa relação de transcendência. Acho que o mesmo vale para o tempo: não está em nós e não está nos objetos; está no mundo, estabelecendo relações que são percebidas de maneira diferente pelas pessoas. É por isso que uma tarde atarefada passa mais rápido que uma ociosa, assim como as férias voam enquanto os outros meses se arrastam. O dia 31 de dezembro chegará e não será igual aos outros. Será o encerramento de mais um capítulo do livro inesgotável que chamamos de história.

Isso me lembra duas obras de arte do brasileiro Antonio Dias que vi há poucos meses numa bonita individual realizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. A primeira, de 1968, é um saco plástico cheio de terra e etiquetado com o título História. Pois o passado em que acreditamos é isso: apenas um pedaço do que existiu, recolhido e etiquetado como uma amostra de pesquisa. A margem de erro é imensa, ou seja, muita coisa aconteceu e não deixou registro, não temos a menor ideia do que foi, quando foi e como foi, assim como nossas atitudes no dia-a-dia se perdem sem que a História seja capaz de registrá-las com a devida precisão científica.


History (1968), de Antonio Dias

Aliás, a segunda obra trata justamente disso. Criada em 1971, seu título, escrito em inglês, diferencia dois conceitos de história de um jeito que a língua portuguesa não permitiria: History/Story, ou seja, "história como ciência/história como ficção". Ambas as palavras estão inseridas numa tela de grandes dimensões, cuja pintura faz alusão ao Universo. Elas compartilham o mesmo espaço e, naquele momento, ficou claro para mim o que são ciência e ficção: nada mais do que dois modos distintos de perceber a mesma coisa. Qual é o verdadeiro? Nenhum. Qual merece crédito? Os dois.

Tudo que guardamos na memória pessoal está fadado a desaparecer com nós. O que sobrevive ao tempo é somente aquilo que pertence à memória coletiva – são os fatos que "entram para a história".

Dia a lenda que Aquiles, filho de um deus grego com uma mulher humana, teve que escolher entre ter uma vida breve porém gloriosa ou viver muito como homem comum. Para desespero de sua mãe, ele optou pela primeira, impediu a derrota dos gregos na Guerra de Troia e morreu como herói. Para sustentar sua escolha, Aquiles disse que a verdadeira morte não é aquela que consome o corpo, mas a que o apaga da memória alheia. Realmente, nesse sentido, ele permanece vivo até hoje, basta abrir um livro de mitologia e conferir.


History/Story (1971), de Antonio Dias

Na 16ª edição da revista Chiclete com Banana, de 1989, os cartunistas Laerte e Angeli publicaram a irônica História do sujeito que queria entrar para a história. Ali, um mauricinho metido a esperto chega à porta da História e tenta convencer o segurança a deixá-lo entrar. Como seus feitos não são dignos de nota, ele se desespera e cai no choro, até que seu pai, um desses magnatas que estamos cansados de ver, paga "duzentos paus" e coloca o filho para dentro.

Será que é fácil assim entrar para a história? Em alguns casos, talvez. Mas acredito mesmo é nas palavras do artista francês Marcel Duchamp, para quem é a própria história que decide quem desaparece e quem permanece existindo, não importa quais são os nossos desejos e esforços.

A História é como o tempo: não está em nós e não está nos objetos; ela está no mundo. Por isso, minha filosofia para 2011 continua a mesma: procurar ser bom, não tirar vantagem dos outros, não me achar melhor do que ninguém e agir sempre pensando no coletivo, ética e moralmente, procurando entender suas razões e as aceitando.

Com o tempo, aprendi que é assim que as portas se abrem, independentemente de termos ou não duzentos paus no bolso. Porque a vida acaba, mas a história que estamos encenando não termina nunca. Desejo sinceramente que todos sejam felizes durante o espetáculo. Um dia, quem sabe?

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O LUGAR DO GRAFITE NA CIDADE E NA SOCIEDADE

"As pessoas que passam por nossas cidades não entendem o grafite porque acreditam que nada deve existir a não ser que dê lucro, o que torna essa própria opinião sem valor."

Foi com essa lógica ácida e simples que o grafiteiro inglês Banksy conquistou minha admiração. O primeiro contato com sua obra ocorreu recentemente, quando ele reinventou a vinheta de abertura do seriado Os Simpsons a convite da produtora e obteve repercussão bastante polêmica. Na ocasião, Banksy criticou o próprio programa, o sistema capitalista de que faz parte, a máquina industrial chinesa, o trabalho infantil e a atitude indiferente da sociedade que consome os produtos desse processo. Tudo isso em pouco mais de um minuto de desenho animado.

Acho muito difícil concordar totalmente com alguém que viola e depreda patrimônio alheio – público e particular – para exercer sua arte. Mas assumo que o trabalho de Banksy, apesar do meio em que atua, é no mínimo intrigante. Veja bem, a abertura de Os Simpsons foi uma exceção, quase toda a produção do artista está nas ruas. Então, fico me perguntando se é possível dissociar o grafite desse meio; quer dizer, será que ele se sustentaria se não estivesse ocupando ilegalmente os muros da cidade? A resposta mais provável é "não".

Banksy precisa dos muros, mesmo que essa dependência não seja recíproca. Ele precisa da ilegalidade, do atrevimento, pois é isso que dá significado às suas criações – para não dizer visibilidade. Grafite sem violação é alma sem corpo, que vaga por aí sem jamais ser percebida pelos passantes.

Por mais que às vezes eu me convença das reais necessidades dessa prática, do engajamento, da subversão dos valores, da crítica política e social, como poderia justificá-la? Como poderia argumentar a favor, estando do lado da lei? Não, defendê-la seria hipocrisia, seria abrir precedente para diversas outras práticas tão ou ainda mais danosas. Nosso papel nessa relação é ser contra. Aquela obra precisa dessa forma paradoxal de legitimação para sobreviver, precisa dela tanto quanto das paredes em que ganha corpo, precisa da madrugada, da adrenalina e da ousadia. Em outras palavras, o consentimento da comunidade destruiria o conceito da obra ou, no mínimo, a condenaria a se adequar ao universo da arte reconhecido oficialmente – título que, com certeza, o grafite não deseja.

Como disse antes, é muito difícil estar totalmente de acordo com Banksy e seus semelhantes, mesmo que os argumentos utilizados por eles se baseiem na tradição amplamente aceita de que "a parede sempre foi o melhor lugar para exibir o trabalho [artístico]".

Aliás, o livro de onde tirei essa citação é uma fonte de pesquisa bastante irreverente. Chama-se Wall and Piece (Muro e Obra), uma analogia com War and Peace (Guerra e Paz). Escrito pelo próprio Banksy, ele apresenta um panorama de seus trabalhos e elucida a maneira como o autor entende a arte de rua. Se não nos convence a aceitá-la, ao menos dá a oportunidade de refletir sobre o assunto e imaginar, por exemplo, os motivos de o grupo Pixação SP ter sido convidado a participar da 29ª Bienal de São Paulo, mesmo após os ataques polêmicos ocorridos durante a edição anterior. O catálogo da nova mostra explica a decisão dos curadores afirmando que "nem tudo que é arte o campo institucional é capaz de abrigar ou de entender plenamente". Acho que o mesmo vale para nós, cidadãos-espectadores.

O fato de Banksy chegar à televisão e às livrarias, de o grupo Pixação SP estar na Bienal e de muitos outros grafiteiros serem aos poucos incluídos em galerias e museus de todo o mundo prova que a sociedade se interessa cada vez mais por esse tipo de arte, não somente por curiosidade, mas também para aprender a lidar com ela. No entanto, é bem difícil prever o futuro dessa relação. Pois já constatamos que o grafite conquistou um lugar de destaque na cidade; agora, resta saber com exatidão que lugar é esse, se deve continuar ilegal, se é célebre ou banalizado, atraente ou banido, cultuado ou apenas perseguido. Mesmo estando a apenas alguns passos de um muro grafitado, ainda vai levar um tempo para nos posicionarmos com segurança em relação a ele. Enquanto isso, as discussões estão abertas e são muito bem-vindas.


Ria agora, mas um dia nós estaremos no comando, de Banksy


Este artigo também foi publicado em Psicanalítica – Revista de Cultura e Arte

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

DESLUMBRAR

Sou provavelmente o único brasileiro que não leu Comer, Rezar, Amar, livro que ficou meses na lista de mais vendidos e, se bobear, ainda está por lá. Desse modo, minha opinião sobre o recente filme deve divergir bastante da sua, que ansiava por ver no cinema aquelas páginas devoradas em tão poucos dias, tudo para conferir se a Julia Roberts ficou bem no papel de Liz Gilbert, reviver as passagens mais emocionantes e ver com os próprios olhos as paisagens magníficas antes traduzidas em letrinhas. Eu, em compensação, não esperava absolutamente nada, seria apenas mais uma comédia romântica recheada dos clichês habituais. Só que o filme me surpreendeu, saí do cinema entusiasmado.

Talvez porque ele tenha tocado num ponto-fraco: adoro viajar. Sou daqueles que assiste aos documentários do National Geographic sem dar a menor bola para o locutor, completamente hipnotizado pelos cantos exóticos do planeta e doido para tomar o próximo avião para lá.

Portanto, confesso não ter me atentado muito aos blá, blá, blás dos atores, exceto por um ou outro aforismo sobre aproveitar a vida, respeitar a si mesmo e colocar um ponto final no passado. Imagino que esse diálogo com o espectador funcione melhor no livro, quando sobra mais tempo para assimilar as ideias. Cinema é outra coisa, fortemente visual, linguagem diferente, profundidade de reflexões idem. Ainda mais quando falamos de blockbusters. Tudo fica mais rápido. É por isso que você vai sair da sala dizendo: “Mas no livro assim, no livro assado”. Tudo bem, reinventaram mesmo. Só não deixe a angústia afetar a apreciação dessa outra obra.

Deu para perceber que o roteirista tentou respeitar ao máximo a história original, porque alguns momentos ficam bem cansativos. São aqueles em que nada especial acontece, sabe?, estão ali só para ganhar tempo. Mas, no final, ficamos com a sensação de termos visto um filme bonito, com alto teor emotivo, relatado num sedutor tom de confissão.

As paisagens podem ter sido escolhidas com toda a parcialidade do mundo – já estive em Roma e Nápoles, sei que não são exatamente daquele jeito –, mas tudo bem, estamos no cinema para sermos enganados. Ficção é isso aí.

O que importa é que a Julia Roberts cumpre bem o papel, a fotografia é espetacular justamente pelo deslumbramento que provoca e o enredo ficou redondinho, não tem o que tirar nem por. Como o roteirista Lusa Silvestre vive dizendo, os caras sabem fazer direitinho.

Se for seu tipo de filme, assista, porque vai agradar com certeza. Se não for, acompanhe algum entusiasta do gênero e tente assisti-lo com olhos menos criteriosos. Talvez ele também encontre um ponto-fraco seu. E, se depois de tudo isso sua opinião ainda divergir da minha – ou não –, deixe um comentário aqui embaixo. Nesse meio-tempo, vou correr para ler o original de Elizabeth Gilbert e riscar essa falta grave da listinha.

Ps.: Agora, cá entre nós, o Javier Bardem interpretando um brasileiro com aquele sotaque semidisfarçado é bizarro. Talvez sejamos os únicos do mundo a notar, mas podíamos ter passado sem essa. Tanto ator bom sobrando nas bandas de cá, foram escolher um fajuto!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A DIFÍCIL TAREFA DE EXIBIR IDEIAS

Quero fazer uns breves comentários sobre a exposição de Joseph Beuys no Sesc Pompeia, tão breves quanto foi minha passagem por lá. Verdade que se trata da maior retrospectiva do artista já realizada no Brasil. São cerca de trezentas obras reunidas, entre cartazes, múltiplos e vídeos, além de uma sede simbólica da F.I.U. (Universidade Livre Internacional), responsável por ministrar cursos, palestras e debates a quem interessar. Ainda assim, é uma exposição meio chata de se ver.

Talvez porque Beuys tenha sido um artista conceitual, preocupado com questões políticas e filosóficas a respeito da sociedade, a qual ele queria transformar usando essencialmente arte. Foi inclusive afirmando que todos somos artistas – e, portanto, plenamente capazes de participar dessa revolução – que Beuys, por exemplo, mobilizou um grupo de pessoas para produzir azeite e vinho na Itália. O objetivo era incentivar a revalorização da agricultura local e as garrafas estão à mostra no Sesc, entre outras dessas criações chamadas “múltiplos”. Porém, é importante esclarecer que a obra não é a garrafa em si, mas o projeto e a ação que a geraram. O problema vivido pelo curador Antonio d’Avossa, que torna a restrospectiva um pouco sem graça, não poderia ser mais contemporâneo: como exibir esse tipo de arte?


A responsabilidade recai sobre os textos de parede e vídeos. Agora, cá entre nós, quem tem paciência para apreciar uma exposição assim? Os textos, sempre vítimas do dilema “tamanho x superficialidade”, são difíceis de ler. Primeiro, porque os outros visitantes cruzam o caminho e atrapalham. Depois, porque nossa atenção fica dividida entre tantas novidades que a leitura exige um esforço absurdo.

Os vídeos, por sua vez, demandam tempo e implicam frustração certa, porque pegá-los no começo é tão difícil quanto ganhar na loteria. A mostra em questão conta com vinte deles, divididos em quatro cubículos pouco convidativos, em exibição permanente. São importantes registros de performances e documentários sobre a vida do artista, alguns com até duas horas de duração. Se no cinema, com luz e som ideais, poltronas fofinhas e pipoca já seria uma maratona considerável, imagine ali, em pé, com pessoas circulando e comentando ao redor. Desisto antes mesmo de tentar.

Também está exposta a bonita coleção de cartazes do italiano Luigi Bonotto, que soma duzentas peças, boa parte delas assinada pelo próprio Beuys. Muito mais do que mera divulgação de atividades, os cartazes serviam como um canal de comunicação para as ideais revolucionárias do artista. Um registro histórico que pode até ser revelador, mas que não consegue se livrar do tedioso rótulo de “documentação”.



O mais bacana mesmo são as atividades programadas pela unidade simbólica da F.I.U., que oferece aulas, debates, minicursos, seminários e oficinas. Os professores entendem do assunto e qualquer um pode participar, tal como almejava Beuys.

Também merecem elogios o catálogo e o folder. O primeiro porque, além de ótimas imagens e textos, está sendo vendido por trinta reais – valor convidativo até mesmo para quem deseja apenas folheá-lo por curiosidade, sem grandes pretensões. O segundo, porque traz informações completas e fáceis de consultar. Tem trinta e duas páginas impressas com capricho, que explicam o propósito da mostra e esclarecem a filosofia do artista. Até quem nunca tinha ouvido falar dele vai ler, gostar e guardar na estante.

Se quiser um conselho de um apaixonado pela obra de Joseph Beuys e pelas iniciativas culturais do Sesc, dê uma passada rápida por lá, veja tudo à maneira de Baudelaire – ou seja, ‘flanando’, atentando-se somente ao que lhe instiga – e leve um folder para casa. Justamente por se tratar de uma produção conceitual, é muito mais interessante compreender as ideias do artista do que vivenciá-las por meio de uma experiência de corpo presente. Com isso feito, seu entendimento estará completo.

domingo, 26 de setembro de 2010

COMO UM GATO ESCALDADO FICOU FORA DA BIENAL

Hoje o dia amanheceu com chuva forte. Abri a janela e pensei: tempo perfeito para dar o pulo do gato. Isso significa que o mundo conspirava a favor da minha primeira ida à 29ª Bienal de São Paulo, porque a chuva afasta os atletas de fim de semana que normalmente tomam conta do Parque do Ibirapuera e disponibiliza vagas de estacionamento àqueles seres estranhos que, como eu, jamais derramaram uma só gotinha de suor por ali. Só que logo a chuva parou, depois voltou, depois parou de novo e me contaminou com a sua indecisão – fiquei em casa, sentado no sofá, refletindo se deveria arriscar. Escolha difícil, pois moro a pelo menos vinte e cinco quilômetros de lá e não estava a fim de desperdiçar valorosos minutos de paz dominical. Resolvi deixar a manhã em observação e tomar a iniciativa depois do almoço.

Estava friozinho também. Seria impossível o parque lotar. Resolvi ignorar toda a minha experiência adquirida em bienais passadas e assumir o risco.

Quando cheguei, sobravam vagas, foi ótimo. Só que o impossível se provou bastante plausível quando deparei com uma fila imensa, que tomava toda a lateral do pavilhão. Incrível! Centenas, talvez milhares de pessoas aguardando na chuva uma chance de respirar arte. Observei o fluxo, conferi o processo de revista e aprovação e cheguei à conclusão de que, para entrar, eu levaria ao menos uma hora de um gostoso chá de cadeira (sem cadeira e sem chá, para piorar; em outras palavras: uma hora, de pé, na chuva).

Também cheguei a outra conclusão: quem acha que os brasileiros não estão interessados em arte, ainda mais contemporânea, está surpreendentemente enganado. Em seu primeiro domingo, a 29ª Bienal não estava apenas concorrida – estava disputadíssima por reais aficionados. Acabei cedendo meu lugar a um deles. Gostaria muito de evitar essa concorrência e visitar a mostra durante a semana; mas, como as circunstâncias não permitem, resta-me aguardar o próximo sábado ou domingo chuvoso. Ficam registradas aqui minhas dicas e frustração. Tomara que a tal segunda chance venha logo.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PRÊMIOS E CRITÉRIOS DA CRÍTICA

Estive olhando uma apresentação digital da Associação Brasileira de Críticos de Arte – pois é, tem gente que faz coisas assim – e me surpreendi com alguns prêmios concedidos. Não porque mereceram ou desmereceram, nem quero entrar no mérito, até porque isso exigiria um estudo muito mais aprofundado e, de qualquer maneira, não mudaria o passado. O que me deixou surpreso de verdade foram as diferenças entre obras vencedoras, formalmente falando, em curtos espaços de tempo. Especialmente essas que reproduzo abaixo, que têm dois e um ano entre elas, respectivamente. Não parecem feitas em décadas ou mesmo séculos diferentes? Que maluquice...


Alberto da Veiga Guignard
Paisagem de Ouro Preto, 1960 – Óleo s/tela

Prêmio da Crítica, 1960


Rubem Valentim

Sem título, 1989 – Serigrafia colorida s/papel

Prêmio da Crítica 1962


Emiliano di Cavalcanti 

Mulher e Paisagem, 1931 – Óleo s/eucatex.
Prêmio da Crítica, 1971


Alfredo Volpi
Bandeirinhas, 1970 – Têmpera s/tela

Prêmio da Crítica, 1972

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

POLÍTICA E, TALVEZ, ARTE



A 29ª Bienal de Arte de São Paulo está chegando – estreia dia 25 de setembro – e já se fala muito dela, basta abrir qualquer jornal ou revista especializada. O tema escolhido está diretamente relacionado com arte e política e, neste estranho ano eleitoral, parece bastante pertinente. Na verdade, espera-se que as discussões não o tomem ao pé da letra, mas que entendam "política" como uma manifestação social e expressiva, de significação mais ampla. Só que o argentino Roberto Jacoby deixará toda a poesia de lado e fará uma instalação inspirada na paixão que sente pelo PT. Ao que tudo indica, esta será precursora de alguns escândalos.

"Ao longo dos dois meses e meio da megaexposição internacional de arte, Jacoby terá cerca de 25 'cabos eleitorais' argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata à Presidência da República", diz a Folha de São Paulo.

Segundo o autor da obra, "tudo é artístico" e a presença de Dilma Rousseff na Bienal é inevitável.

Será possível dissociar sua instalação de uma simples propaganda política?

Não que eu concorde com Jacoby ou aprecie a proposta, mas acho que existe sim uma possibilidade de entendê-la como arte e não como propaganda, e a resposta está num fato simples: ela acontece "no museu", quer dizer, dentro da instituição artística.

Essa solução é antiga. Em 1917, por exemplo, Marcelo Duchamp levou um mictório para dentro da galeria e aquela mudança de ambiente, somada à atitude do artista, o transformou em arte. Se voltarmos um pouco mais no tempo, chegaremos aos famosos Salões, que ditavam o que era arte de verdade e o que poderia ser descartado. Como faziam isso? Selecionando as pinturas que seriam expostas em suas paredes, ou seja, lá dentro, condecoradas e institucionalizadas.

Ao que parece, o PT não tem nenhum envolvimento direto com Jacoby; a manifestação acontece de pura e espontânea vontade, fruto de um fanatismo pra lá de esquisito. Mais esquisitas ainda foram suas declarações à Folha, ao admitir que gosta de Lula, porém não conhece Dilma muito bem: "O que conheço é o que está na internet. Sei que é economista, muito capaz, estudiosa e se transformou em especialista em energia elétrica num país tão grande como o Brasil. De Serra, não sei muito".

Fiquei curioso para ver a instalação. E ansioso pelos debates subsequentes. Porque, nessa proposta de unir arte e política num mesmo espaço – público, diga-se de passagem –, o mínimo que se espera é discussão. A arte está aí para isso. A reação dos visitantes também.


Leia a matéria completa da Folha.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ARTE DE VERDADE, NUA E CRUA



A mostra Umbraculum, do belga Jan Fabre, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, não combina com estômagos fracos. São dezenove trabalhos, entre instalações, desenhos e vídeos, que quase sempre fazem referência à morte. Basta um primeiro olhar para sentir o clima: um crânio verde fixado à parede de maneira semelhante a um troféu de caça, mantos sacerdotais flutuantes e bichos pendurados em ganchos que pendem do teto. Só que é o segundo olhar que gera mais repulsa, amplificando aquele sentimento anterior. Isso acontece quando lemos as plaquinhas informativas e descobrimos que o crânio, por exemplo, é verde por conta das cascas de besouro que o envolvem; os mantos são constituídos de ossos humanos finamente cortados e costurados uns aos outros; e os bichos são – ou foram – reais, agora empalhados. Essa mudança na percepção do visitante é, na minha opinião, o mais curioso da mostra.

A opção do artista por materiais “de verdade” transforma completamente a apreensão do conteúdo. Os desenhos de papagaio, por exemplo, adquirem um novo significado quando descobrimos que foram coloridos com esperma. Na parede oposta, há outros, feitos com sangue. Além disso, o visitante ainda encontrará carne apodrecendo, um autorretrato coberto com pregos dourados e motosserras espalhados pelas salas do instituto. Esse aspecto grotesto, macabro, muitas vezes se sobrepõe ao simbolismo dos materiais, tais como a metamorfose do besouro e a transcendência da meditação e do trabalho, que a curadora Beatriz Bustos destaca no texto de apresentação. Mas, vencido o impacto inicial, é possível perceber ali algo além de nossos próprios preconceitos.



A tarefa não é fácil. Pois o artista se aproveita do choque para trazer à tona assuntos que normalmente evitamos no dia-a-dia, ou que preferimos mascarar com mitos, crenças e sentimentos enganosos. Como isso acontece contra a nossa vontade, nos sentimos agredidos, moralmente violados. Parte do mérito de Jan Fabre vem daí.

As obras exibidas abarcam cerca de trinta anos de uma carreira internacional consistente, que só agora recebe a primeira individual no país. Trata-se de uma boa oportunidade para conhecer o trabalho do artista e, de quebra, fazer um teste de resistência a enjoo. Ainda bem que os cérebros utilizados em uma das obras são de resina. Porque, se fossem de verdade, eu também teria colocado algumas entranhas à mostra. Eca!


UMBRACULUM para São Paulo.
Um lugar na sombra para pensar e trabalhar.

De 13 de agosto a 10 de outubro.
www.institutotomieohtake.org.br