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quinta-feira, 30 de julho de 2009

FANTASMAS


Francis Bacon - Autorretrato, 1971

Na época da faculdade, adquiri olheiras profundas que nunca mais me deixaram. Não foram feitas de estudo ou trabalho em excesso. Devo minhas olheiras às recorrentes madrugadas de bebida, música e bate-papos de internet.

domingo, 26 de julho de 2009

SOBRE O SEBO PINHEIROS, NO SEBO PINHEIROS

Quando relatei o acontecido comigo no Sebo Pinheiros, jamais poderia imaginar que dali se originaria uma relação de amizade tão bacana. Meio sem graça, entreguei a eles uma cópia do jornal como sinal de agradecimento e fiquei bastante contente ao saber que o presente foi bem recebido. De lá para cá, muita coisa aconteceu.

Na semana passada, fui convidado a entrar no blog do sebo e adivinha o que estava lá: minha crônica, com direito a foto e dedicatória. Mais uma vez, gostaria de agradecer todo este carinho.

Aproveito para convidar você a conhecer um pouco mais sobre esse pessoal e, quem sabe, passar lá para tomar um café e xeretar os livros. Clique aqui e compre uma passagem expressa!

domingo, 5 de julho de 2009

YASUNARI KAWABATA – PINTAR COM PALAVRAS

Oficialmente falando, este é meu primeiro exercício crítico. Quer dizer, é o primeiro a que me dediquei espontaneamente, que se desvinculou das pesquisas acadêmicas e que teve um resultado interessante. Quem ditou o tema foi apenas meu gosto pessoal. Conheci os livros de Yasunari Kawabata (1899-1972) há poucos anos, quando eles finalmente começaram a ser publicados no Brasil, traduzidos diretamente do japonês por um pessoal gabaritado. Um exemplo destas boas traduções são as feitas por Meiko Shimon, mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela USP, especialista em sua obra e autora de Concepção estética de Kawabata Yasunari em Tanagokoro no shosetsu (UFRGS, 2000). Por enquanto, ficaram sob sua responsabilidade os livros: Mil Tsurus, Kyoto e Contos da palma da mão, todos publicados pela Estação Liberdade. Também é de sua autoria um ensaio complementar publicado junto com a novela A dançarina de Izu, bastante elucidativo quanto à vida e obra do escritor.

As histórias de Kawabata foram muito importantes para mim. Seu tom leve e simbólico me fascinou de imediato, deixando uma marca permanente em minha vida assim como quando continuamos a ver um ponto luminoso mesmo depois de cerrarmos as pálpebras. Ele fala de furacões com a sutileza de uma brisa; quem o lê, sente o toque delicado de suas palavras, porém, ao fim do texto, percebe a devastação de suas críticas.

Gostaria de compartilhar essas percepções com você, leitor. Por isso, ao pensar num tema para criticar, não titubeei. Foi logo Kawabata. Espero que minha empolgação por seus textos contagie a ponto de levar mais pessoas a lê-los.


No mais, gostaria de agradecer a Daniel Piza pelos ensinamentos e comentários que fizeram esta crítica acontecer.


Prato na técnica sometsuke com motivo de pinheiro, bambu e ameixeira.
Porcelana Nebeshima, período Edo (1770-1790).


Chieko descobriu que as violetas floresceram no tronco do velho bordo.
Ah! Elas haviam florido naquele ano de novo, pensou ela diante da suavidade da primavera.
O bordo era realmente grande para o pequeno jardim no meio da cidade, seu tronco mais corpulento que os quadris dela. Muito embora a superfície velha e áspera do tronco, coberta de musgo, não pudesse ser comparada a seu corpo jovem e delicado...
Na altura do quadril de Chieko, o tronco ligeiramente retorcido da árvore dobrava-se à direita, logo acima da cabeça dela. A partir dessa dobra, numerosos galhos se estendiam em todas as direções e dominavam o jardim. As extremidades dos longos ramos pendiam um pouco devido ao próprio peso.
Logo abaixo da dobra parecia haver duas pequenas cavidades, e em cada uma delas cresciam violetas que floriam a cada primavera. Pelo que se lembrava Chieko, aqueles dois pés de violeta sempre estiveram ali.
Trinta centímetros separavam as violetas de cima das de baixo. Chieko, que chegava à plenitude da mocidade, às vezes se perguntava a si mesma se elas se encontrariam algum dia.


Assim começa o romance Kyoto (1962), do mestre japonês Yasunari Kawabata, livro que determina um marco importante em sua carreira e um dos três títulos citados quando o escritor recebeu o Prêmio Nobel de 1968. Ao ler o trecho acima, depois de já ter conhecido boa parte das suas criações, fiquei me perguntando como é possível pintar usando palavras, assim como se escreve com pincel e tintas. Pois já me deparei com milhares de pinturas narrativas, que retratam acontecimentos da história por meio de execuções magistrais. A Idade Média está repleta delas; basta voltar aos anos de 1200 e observá-las em castelos e igrejas. É verdade que a prática já existia desde muito antes, talvez desde a pré-história, mas foi com artistas do porte de Cimabue, Duccio e Giotto que ela atingiu o auge da condensação narrativa pela primeira vez, resumindo mitologias complexas a uma única cena, aglutinando paisagens, momentos históricos e personagens bíblicos diversos para a composição de uma só peça de altar, por exemplo. Algumas vezes, estão presentes na mesma composição duas cidades que na verdade ficam bem distantes uma da outra; ou Jesus, Adão, um governante contemporâneo ao pintor, vestimentas gregas, criaturas fantásticas orientais etc., tudo isso por conta de um alto grau de estilização e com objetivo de incluir uma lenda inteira em uma única obra.


A tentação de Cristo na montanha, de Duccio di Buoninsegna, (1308-1311).


Esta narrativa em forma pictórica continuou firme e forte até o século XIX, com o romantismo, aperfeiçoando-se e atingindo novos patamares técnicos. Ainda hoje se encontra artistas praticando-a, consciente ou inconscientemente, ao redor do mundo. Em certo nível, talvez a narrativa seja inerente à pintura. Mas, e o oposto? Quer dizer, é possível pintar usando palavras no lugar de tintas ou, para ser mais claro, criar cenas pictóricas em páginas de livros?

A resposta óbvia seria dizer que sim, isso se faz retratando cenários ou pessoas, descrevendo-os detalhadamente e contando com a imaginação do leitor para preenchê-los de cor. Grandes escritores fizeram obras-primas seguindo por este caminho. Émile Zola, com O germinal (1885), quis até mesmo banir toda imaginação da obra literária, tentando criar uma espécie de documentação sobre o operariado francês – mineradores, mais precisamente – em meio às segregações causadas pela Revolução Industrial. Marcel Proust, por sua vez, conseguiu compreender e retratar a alta sociedade francesa do início do século XX – da qual ele próprio participou ativamente durante quase toda a vida – como ninguém jamais havia feito antes, revelando uma realidade escondida no comportamento das pessoas e distribuindo sua crítica inteligente pelos sete volumes de Em busca do tempo perdido (1908-1922). O resultado é um panorama muito mais rico, dinâmico e interessante do que se faria hoje com estudos acadêmicos, por exemplo, tomados à distância e possivelmente escritos com tom mais frio e impessoal.

Embora cada um o tenha feito à sua maneira – bem diferentes, cá entre nós –, estes dois escritores souberam muito bem pintar com palavras, descrevendo paisagens, retratos e naturezas-mortas para tratar de universos complexos em uma única obra; aglutinando momentos e figuras importantes da história mais ou menos como faziam os pintores góticos, num movimento de condensação que parte do todo em direção ao uno.

Mas a pintura literária não precisa necessariamente acontecer assim, tentando retratar complexidades por meio de descrições detalhadas ou excessos de informação. Nesse sentido, o escritor japonês Yasunari Kawabata foi um mestre. Nascido em 1899 e assumidamente influenciado pelas vanguardas europeias do início do século seguinte, em especial o surrealismo francês, Kawabata usou palavras tal qual os pintores modernistas usaram suas tintas, criando imagens aparentemente ingênuas porém repletas de conceitos e significados implícitos. Não tratou de condensar universos complexos, mas de simplificá-los até encontrar sua essência, explorada depois na forma de metáforas. Seus romances são leves, curtos, com poucos cenários e personagens rasos. Mas através de histórias aparentemente banais, contemplamos um Japão em crise, com seus valores antigos sendo substituídos pela cultura estrangeira que ganha espaço dia após dia.

Em Kyoto, a metáfora fica a cargo de tecidos para quimono, que se encontram no meio de um conflito travado entre a modernidade (representada por teares mecânicos de alta produção e baixa qualidade) e o passado (desenvolvimento de estampas para serem tecidas à mão, normalmente por membros de famílias especializadas). A escolha não poderia ser mais pertinente, pois a arte da tecelagem tem valor inestimável para a cultura japonesa – costuma ser usada até mesmo para contar a história do país, uma vez que cada dinastia desenvolveu seu próprio estilo e ditou a moda à sua maneira. Mas Kawabata não põe esta questão no centro da obra; ao contrário, vamos percebendo-a por entre os conflitos pessoais dos personagens, as relações amorosas, a rotina, os festivais, o contato com a natureza, as dificuldades em lidar com a tradição e as divergências da geração mais nova com seus pais.

Como o escritor sempre esteve muito ligado à arte moderna que se produzia no ocidente, a abstração é um tema usado constantemente para ilustrar os desentendimentos entre o novo e a tradição:

– A disposição destas pedras seria abstrata também? – perguntou Shin’ichi.
– Não seriam abstratos todos os jardins japoneses? – volveu Chieko. – Como os musgos sugigoke do jardim do templo Daigoji, de que tanto se fala como exemplo de arte abstrata. Chega a ser até enjoativo, mas...


Sua linguagem é leve e poética, carregada de imagens simbólicas, de modo que consegue significar muito falando pouco. A mesma força sintética pode ser observada em Mil tsurus (1951), onde um incomum triângulo amoroso entre um rapaz e duas ex-amantes de seu pai se forma durante uma cerimônia do chá. O evento é típico da sociedade japonesa, ensinado de geração em geração e envolve significados profundos, tais como respeito, harmonia, pureza e tranquilidade. Kawabata se aproveita destes significados para mostrar a decadência das artes tradicionais do país no pós-guerra, perante a rápida ocidentalização dos costumes.

Naquele cenário quase religioso, a profanação se dá por meio de fofocas, mentiras e encontros amorosos secretos. Uma das principais personagens do romance, a mestra da cerimônia, usa o chá para futilidades, tais como apresentar pretendentes a casamento. Assim que vencemos o estranhamento causado pelas diferenças culturais entre Brasil e Japão, começamos a perceber a crítica implícita em situações aparentemente corriqueiras, vividas por personagens que flertam com o passado já sem conseguir amá-lo. As sutilezas dessas controvérsias se mostram em passagens como esta:

Aquela cerâmica havia saído de um forno antigo, devia ter pelo menos trezentos ou quatrocentos anos. Talvez, originalmente, tivesse sido concebida como mukôzuke, utensílio de mesa, ou similar. Talvez nunca tenha exercido a função de chawan. Suspeitava-se de que começara a ser utilizada como utensílio da cerimômia do chá havia muito pouco tempo. Os antigos cuidaram bem dela a fim de passá-la à posteridade. Era fácil imaginar os viajantes trazendo-a de longe, acondicionada em caixas de madeira. Por mais que fosse um desejo de Fumiko, Kikuji jamais permitiria que fosse quebrada.
Além do mais, era a cerâmica que estava manchada na borda pelo batom da mãe dela.
O batom impregnado na cerâmica era difícil de ser removido, foi o que a mãe dissera a Fumiko. De fato, a mancha resistira apesar das lavagens aplicadas pessoalmente por Kikuji. Sua tonalidade era amarronzada, longe da cor viva do batom, e com um leve toque rosado, que bem podia ser de um batom velho... Quem sabe fosse apenas a coloração natural das cerâmicas Shino. Ou ainda, a sujeira deixada pelo proprietário anterior à viúva Ota, pois, quando usada como chawan, a boca do usuário toca sempre o mesmo lugar. O certo é que a viúva fora a pessoa que mais tinha usado aquele Shino para tomar chá.

Em O país das neves (1947), seu primeiro romance, os habitantes de um vilarejo místico, esquecido no meio das montanhas do norte, são envolvidos pela fumaça branca do trem que chega trazendo pessoas de cidades distantes para se misturarem às nativas, pela paisagem gélida, pelos vapores das casas termais e pelas brumas oníricas da pureza. Kawabata precisou inventar uma outra localidade para justificar esta tradição ainda intocada. Mas, como se sabe, tudo tende a desaparecer um dia:

Enroscando-se uma na outra, as borboletas foram atingindo alturas superiores às das montanhas fronteiriças, e o amarelo de suas asas foi embranquecendo, até elas se afastarem para longe.

Ali, a brancura é tudo que se vê; as relações humanas jamais se exibem com clareza, estando sempre ocultas pelo mistério, perdidas na neblina, significando mais do que as primeiras impressões deixam perceber.

O olhar crítico está presente nesses e em todos os seus outros romances. Mas sua arte, ao contrário das de Proust e Zola, é mais “literal”, com o perdão do termo. Digo isso porque Kawabata constrói cada cena como se realizasse uma pintura: risca alguns arbustos aqui, esboça as paredes de um templo ali, indica bosques de cedros com passagens sutis, esmiúça detalhes, tais como folhas secas cobrindo o chão e umidade em ripas de madeira, acrescenta um ou dois personagens para equilibrar a composição e dá os últimos retoques com diálogos breves e poderosos. No final, resta-nos uma bela imagem, bastante simbólica, para admirar.

O cuidado com o enquadramento também fica evidente: Kawabata escolhe trechos específicos da vida de seus personagens, excluindo tudo de passado e de futuro que seja desnecessário ao assunto, invadindo e abandonando sem jamais fechar o círculo, como se o leitor devesse interpretar para tirar suas próprias conclusões. Vemos aí um exemplo do que há de esteticamente moderno em sua literatura: o fluxo de pensamento e o abandono da estrutura aristotélica, com romances que fluem sem ficarem presos a um começo, meio e fim. Kawabata não quer falar do todo, mas trabalha sobre uma essência que pode vir a significar este todo, ainda que somente naquele breve instante representado. O movimento da obra, neste caso, vem de dentro para fora. E termina em nós.

Cada um dos seus livros acaba por ganhar forma de quadro. Ou de uma série deles, espalhados pelas páginas como numa exposição, revelando o ponto de vista do autor como se fossem paisagens capturadas por um observador atento e impressas em telas com pinceladas precisas. Kawabata soube ver o mundo com olhos de pintor. Por fim, ao lermos sua obra completa, descobrimos um Japão tomado por angústias, conflitos e incertezas, retratado com as palavras hábeis de quem testemunhou e soube passar para o papel o início de uma nova era.

Para quem quiser experimentar, sugiro as edições que a Estação Liberdade vem publicando desde 2004. Elas trazem pela primeira vez ao Brasil traduções cuidadosas, feitas diretamente do japonês e que não deixam o tom original se perder. Pois não resta dúvida de que a pintura com palavras é possível, mas ainda me pergunto como alguém é capaz de reunir tamanha habilidade para realizá-la. Yasunari Kawabata, do mesmo modo como fizeram grandes mestres do pincel, não revelou seu segredo, embora tenha nos deixado uma obra riquíssima para admirar e, quem sabe, obter dali uma resposta satisfatória. Por seu talento, recebeu o Nobel de Literatura em 1968. E, por seu olhar apurado, mereceria também o de artes plásticas, se tal categoria existisse.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

OLÁ! COMO VAI?

Este é o blog de que falei no jornal.

No espaço que este texto ocupa agora será exibido todo o conteúdo que preparei para receber você. Para visualizá-lo, vá clicando nos links aqui à direita, identificados pela data de postagem.

Deixei disponíveis todas as crônicas publicadas pelo Correio Popular de Campinas até agora, organizadas cronologicamente, e também algum material inédito, como fotos, pinturas e contos, entre outros.

Se quiser, por exemplo, saber por que escolhi a imagem acima para ser o cabeçalho do blog, clique no post de 1º de março. Se quiser ler uma crônica inédita, clique no link do dia 22.

E tem mais: no fim de cada texto há palavras-chave para que você possa encontrar facilmente outros relacionados a ele. Basta escolher a sua e SHAZAM!, eles aparecerão.

Espero sinceramente que você aprecie a visita e volte sempre. Se quiser fazer críticas ou sugestões, envie um e-mail para mim – o endereço também está aqui ao lado.

Por enquanto é isso. Um forte abraço e até a próxima!

COMO SE FAZ UM BLOG

1. Desde que a onda de blogs ganhou os mares da internet, me bateu uma vontade de arriscar. Isso já tem uns dez anos, talvez mais. Só não tinha certeza do que postar e, entre fazer qualquer coisa e não fazer nada, fiquei com a segunda opção. Mal sabia eu que o primeiro passo já estava dado.

2. Para que serve um blog? Hoje em dia, é muito mais difícil encontrar uma resposta direta, pois o formato é usado com uma infinidade de objetivos. Existem aqueles feitos para divulgar trabalhos, expor opiniões, criticar, propor discussões, fazer contatos, hobbie e até terapia. Na época, no entanto, a moda entre a molecada era manter uma espécie de diário virtual, que raramente interessava a outros de fora do círculo de amigos. Eu, que jamais gostei de me expor, abominava a ideia. Pensava: por que alguém leria meus conflitos adolescentes? Ou, ainda, o que faria com eles?

3. Depois do Orkut, esse tipo de blog foi sumindo e outros bem mais interessantes ganharam espaço. Muita gente inteligente começou a escrever sobre determinadas áreas de conhecimento e disponibilizar os textos a quem quisesse ler. Gente famosa também, tais como escritores, fotógrafos, jornalistas, artistas plásticos etc. Assim, os blogs se tornaram ótimos locais onde cruzar informações, disseminar cultura e mostrar talento.

4. A popularização da internet deixou tudo mais fácil. Hoje em dia, basta um pouco de boa vontade para você montar seu próprio blog. Complicado é conseguir mais boa vontade ainda para atualizá-lo com frequência. Tudo bem que cada um tem seu propósito e apenas uma parte deles requer postagens diárias. O importante é que, agora, todo mundo tem o direito de manter um espaço na rede para expor suas ideias – uma oportunidade bastante democrática, cá entre nós. Sem dúvida, o fato de passarmos boa parte do dia na frente de um monitor ajuda. E quem gosta de navegar pode visitar, comentar, colaborar e se aproximar de pessoas ou trabalhos antes inacessíveis.

5. Quando me dei conta disso, aquele antigo desejo de ter um blog aflorou. Comecei a pensar em criar um arquivo de crônicas já publicadas e, para aqueles que têm vontade de conhecer as diferentes facetas da minha produção, também postaria contos, críticas, fotografias e pinturas, entre outras coisas que surgissem pelo caminho. Pela primeira vez em anos, isso parecia uma boa ideia.

6. Parecia, seria, faria... Desta vez, a vontade não morreria na praia. Assim, quando percebi, já estava trabalhando no projeto.

7. O primeiro passo foi encontrar um local compatível com minhas intenções. Descobri uma série de novos formatos desenvolvidos para finalidades específicas, como o Flickr, por exemplo, que é uma espécie de “fotolog” ou, melhor ainda, uma galeria virtual. Ali você encontra de fotógrafos famosos a entusiastas talentosos, passando por diretores de arte, ilustradores, designers, artistas plásticos etc., todos com seus respectivos contatos. Quer cartão de visita melhor?

Os músicos, por sua vez, encontram-se no MySpace, onde se pode conhecer bastante gente nova a expor seus trabalhos com toda liberdade. Alguns até conseguiram alavancar carreiras apostando no canal, como a Mallu Magalhães, que agora já está ficando bem conhecida no Brasil. As chances são grandes, pois os caça-talentos sabem onde procurar. Em outras palavras, quem busca uma oportunidade precisa ter apenas um pouco de boa vontade.

E quem nunca ouviu falar do Twitter? Trata-se de uma espécie de rede social formada por miniblogs que avisam seus assinantes quando são atualizados. As mensagens são enviadas até para celular! Somando-se as informações de perfil dos usuários com a chance de saber das últimas fofocas em primeira mão, vemos por ali uma tietagem danada. Muitas empresas já perceberam as oportunidades do Twitter e estão aproveitando seu potencial de comunicação. As mais antenadas, inclusive, utilizam vários sites e blogs ao mesmo tempo, levando o relacionamento com seus consumidores a outro nível.

8. No meu caso, optei por um formato tradicional, que se enquadrou melhor na proposta. E agora, depois de mais ou menos três meses de trabalho, convido todos vocês a conhecerem meu primeiro blog, comentarem e retornarem sempre que quiserem. Trata-se, antes de tudo, de uma experiência que deve caminhar junto com este espaço no jornal, complementando-o com informações mais extensas, links e, em breve, área para discussão de leitores. O endereço está no fim desta coluna.

9. Também convido vocês a acreditarem em seus esforços, reservarem um pouquinho de boa vontade e usarem a rede para algo produtivo, criando blogs pessoais ou coletivos. Vamos aproveitar esta ferramenta para colocar ideias em prática e expandir o alcance da cultura! Sinceramente, espero que esta crônica sirva de incentivo. Então, boa sorte!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

CONFORTAVELMENTE APÁTICO*

O conto que cito nesta crônica já foi publicado no Brasil por diversas editoras. Atualmente, creio que há edições da L&PM e da Cosac Naify. Esta última é especialmente interessante, pois obriga o leitor a interagir com o livro para revelar a história. Isso acontece da seguinte maneira: as capas vêm costuradas e quem quiser ler precisa descosturá-las, para então descobrir que as páginas também estão seladas, sendo necessário rasgá-las com uma espátula. Entre elas, a única imagem que se vê é a de um muro, cujo significado se revelará mais tarde. A proposta é muito bacana e a recomendo a todos que tenham vontade de experimentar uma leitura diferente. (Se quiser visualizar melhor o processo que descrevi acima, clique aqui.)


A recente adaptação para o teatro de Bartleby, o escrivão, conto de Herman Melville publicado pela primeira vez em meados de 1850, fez com que eu pinçasse minha edição da prateleira e a folheasse na tentativa de reavivar antigas sensações. Como tenho hábito de sublinhar e escrever pelas páginas dos livros, era bem provável que algumas impressões provocadas pela leitura ainda estivessem por ali. Lembrava que, na época, descobri em Bartleby um sujeito estranho, deslocado da sociedade e vivendo uma história esquisita, meio atemporal, meio metafórica, meio difícil de definir. Havia algo filosófico ali. Algo moderno e crítico. Eu só não dispus prontamente de uma opinião clara sobre o assunto, sentindo apenas certo incômodo pelos modos pouco convencionais do personagem. Ao mesmo tempo, porém, não conseguia repeli-lo, quer dizer, não podia deixar de pensar em sua história e simplesmente ignorá-lo, mais ou menos como sucedeu com seu patrão.

Para quem não conhece o enredo (e provavelmente não entendeu nada do que leu até aqui), as coisas acontecem assim: o dono de um escritório de advocacia que lida com hipotecas e títulos de propriedade contrata Bartleby com objetivo de aumentar sua equipe de escriturários. O novo empregado é calado, de hábitos simples e, nos dois primeiros dias, realiza seu trabalho sem incomodar ninguém – muito próximo do que ainda hoje se entende por funcionário ideal. Até que ele se recusa a cumprir algumas tarefas, deixando todos atônitos. Sua justificativa é sempre a mesma: “Acho melhor não”. Acha melhor não fazer, acha melhor não ajudar, acha melhor não falar etc. E só. Bartleby se torna assim um estorvo. Passa o dia recluso em seu canto, atrás de um biombo, olhando através de uma janela que dá para a parede do prédio vizinho. Recusa-se até mesmo a explicar essa sua atitude esdrúxula. O patrão, no entanto, sente pena do coitado, uma vez que se trata de uma pessoa humilde, sem família, sem passado e visivelmente perturbada. Para usar suas próprias palavras: “Apesar de ofendido pelo seu comportamento e resolvido a demiti-lo quando chegasse ao meu escritório, sentia uma espécie de agouro invadindo o meu coração, que me impedia de cumprir o meu propósito, dizendo-me que só um canalha se atreveria a pronunciar uma palavra amarga contra o mais desamparado dos homens”. E assim Bartleby vai ficando por ali, assumindo cada vez menos funções até cair na mais completa apatia.

Quantos desses a gente não conheceu ao longo da vida? Quem já trabalhou em empresas grandes, onde o caso é mais comum, deve se lembrar de pelo menos um nome que estava sempre circulando por entre os diversos setores, sem função determinada, enquanto os outros se perguntavam por que ninguém o riscava do quadro de funcionários. A maioria deles sobrevive inclusive a períodos de crise, como o atual. Será que a chefia não enxerga tamanho ostracismo?

Pois Bartleby, apesar de tudo, caíra nas graças do patrão. Ele estava sempre por perto e não precisou de muito empenho para se tornar parte do escritório, como objetos de que não conseguimos nos desfazer, por maior que seja sua inutilidade – e a nossa vontade lógica. Talvez eles sejam responsáveis por manterem a estabilidade de nosso estado mental, proporcionando conforto, segurança e sensação de normalidade, garantindo que tudo continua do jeito que sempre foi. Uma espécie de porto seguro onde atracar, no geral, inconscientemente. Assim diz o patrão de Bartleby: “A sua disciplina, a sua temperança, o seu trabalho sistemático (exceto quando se perdia em devaneios atrás do biombo), a sua tranquilidade e a sua conduta inalterável em todas as circunstâncias, faziam dele uma valiosa aquisição. O principal é que ele sempre estava ali (...). Eu tinha uma confiança especial na sua honestidade. Sentia que meus documentos mais preciosos estavam absolutamente seguros nas suas mãos”.

Fazendo uma aproximação com a realidade de hoje, vejo que existem aqueles que vivem em constante competição consigo mesmos e com os outros, esforçando-se para alcançar algo maior, aprender coisas novas, mostrar serviço etc. Aqueles que encaram tudo como desafio e se propõem a vencer. Existem também, por outro lado, os que passam pela vida sem deixar que ela passe por eles, totalmente alienados em seus mundos particulares e satisfeitos com olhar eternamente para uma parede porque o simples fato de saber que ela está lá já é suficiente – a parede impede de enxergar além, porém a visão dela comprova que o mundo é real e concreto. Entre um tipo e outro, existem milhares de meios-termos nos quais a maioria de nós se enquadra. Como diz uma música do Pink Floyd – Comfortably Numb –, a apatia se torna confortável com o tempo, e a juventude passa levando nossos sonhos com ela.

Não é uma perspectiva muito feliz. O oposto completo tampouco. Por isso, ainda acredito no ponto-chave da filosofia oriental: o equilíbrio de forçar, ou seja, a harmonia.

Em um mundo em que a norma manda as pessoas serem sempre melhores do que as outras, levando vantagem em quantas ocasiões puderem para provar seu valor, começo a entender por que a leitura de Bartleby, o escrivão me incomodou tanto. Para explicar melhor, faço minhas as palavras de Herman Melville: “(...) havia algo em Bartleby que não apenas me desarmou, como também me comoveu e desconcertou, de maneira assombrosa. Pus-me a raciocinar com ele”.

*A crônica publicada no jornal foi reduzida por limitações técnicas. Aqui você encontra a versão integral, sem cortes.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

NÃO É VERDADE

Citar casos que envolvem o dia-a-dia de muitas pessoas é uma atitude que sempre tende a polemizar. Esta crônica tem um pouco disso – fala da novela “das oito”, momento sagrado da TV brasileira e também da vida de todas as classes sociais.
Antes de tudo, gostaria de deixar claro que minha intenção não é provocar o leitor gratuitamente. Usei o exemplo da novela, entre outros, justamente por causa da enorme influência que ela exerce sobre nós. Peço, portanto, que não o encare como nada pessoal, mas que perceba como o assunto está próximo, ainda que, muitas vezes, passe despercebido.
Decidi escrever esta crônica quando comecei a ouvir comentários absurdos sobre o país, a cultura e o povo indianos. Coisas como “lá tudo é lindo”, “as tradições não se perderam com o tempo” e “os indianos é que são felizes”. Sinceramente, fiquei preocupado com tamanha convicção. O ápice foi ver gente querendo passear lá achando que visitaria o paraíso.

Enfim, se você quiser pesquisar um pouco mais, sugiro que acesse o site www.youtube.com e faça uma busca utilizando palavras como “Índia”, “imagem” e “novela”, ou frases como “cenas que não aparecem na novela” e “imagens que a novela não mostra”. Existe também um documentário produzido pela BBC e disponibilizado em bancas de jornais pela editora Abril (2 DVDs) que pode ser outra boa fonte de informação.


Esta crônica não é, necessariamente, verdade. Nem tudo que está escrito é verdade. Nem sempre os livros, jornais e revistas estão 100% corretos. Sabe por quê? Não existe verdade única e absoluta, apenas versões pessoais. Apenas facetas da verdade. O mesmo vale para a TV. Ela mente o tempo todo. Escolhe bem as palavras, muda a ordem de alguns fatores e muitas vezes omite outros só para manter você ligadão nela. Também inventa mil e uma histórias e chama isso de ficção. Então, o que devemos fazer? Parar de ler e de assistir TV? Não, claro que não. Devemos buscar uma coisinha importante que falta na vida de muita gente: discernimento.

O tal discernimento nada mais é do que a capacidade de analisar e saber distinguir a realidade da ficção, assim como os interesses tendenciosos dos fatos. Infelizmente, discernimento ainda não é vendido em supermercados; é adquirido somente com a experiência e com a busca de conhecimento.

Parece bastante chato, mas não é não. Descobrir coisas novas é divertido, pergunte às crianças. Você também já foi uma delas. Sabe quando perdeu o interesse pelo novo? Quando colocou na cabeça que já sabia o suficiente para ser um “adulto maduro”, sem necessidade de aprender mais. Fecharam-se as portas da sabedoria e escancararam-se as da ignorância.

Lembra quando O código Da Vinci chegou às livrarias e logo se tornou best seller absoluto? Pois eu me lembro também da subsequente confusão com o Vaticano, que viu seus valores feridos pelo livro. Ora, o problema não foi o autor, Dan Brown, ter inventado conspirações, assassinatos e dito algumas coisas de maneira diferente de como elas costumam ser ditas, afinal, quantos já não fizeram isso antes? O motivo de tanto incômodo é que a mentira foi tão bem contada que muita gente acreditou, criticando a igreja, exigindo explicações, retaliações etc. Resultado: Dan Brown teve que explicar em praça pública que seu romance era apenas isso mesmo, um romance, uma ficção, uma história inventada – ninguém precisava se ofender. Acredite se quiser: é a uma situação absurda como esta que a falta de discernimento nos leva.

Isso porque estamos falando de literatura, que pressupõe um público mais culto e que, no Brasil, toma goleada de outras fontes de informação mais massivas, como a TV, por exemplo. A propósito, gostaria de citar o caso da novela Caminho das Índias, que tem feito um baita sucesso e que, por outro lado, tem me incomodado bastante. Admito que se trata de uma ficção e que isso lhe dá o direito de inventar de tudo, mas ela mostra um país tão diferente da realidade que acaba por enganar todos que sofrem de falta de discernimento (e de conhecimento). Nesse sentido, sabendo da força que exerce perante a população, acho uma tremenda falta de responsabilidade da Globo transmitir uma novela dessas sem produzir em paralelo programas educativos que mostrem a Índia além da ficção. Quem se interessar e quiser fazer um contraponto, sugiro que veja o filme que foi o grande destaque do último Oscar: Quem quer ser um milionário?

Quer dizer que o filme é mais verdadeiro que a novela? Não, obviamente. Trata-se apenas de outra faceta da verdade e pode ajudar bastante a ampliar seu conhecimento sobre o assunto.

Já dizia Napoleão (acho que era ele): “A história é uma versão do passado na qual todos decidimos acreditar”. Parodiando o antigo imperador, digo eu: “Uma coisa só se torna verdade no momento em que todos decidimos acreditar nela”. Portanto, vamos procurar saber um pouco mais antes de sair por aí acreditando em tudo o que os outros dizem.

No quarto volume de O método, Edgar Morin escreve: “(...) insisto em observar que todo conhecimento filosófico, científico ou poético emerge da vida cultural comum. (...) O conhecimento cotidiano é uma mistura singular de percepções sensoriais e de construções ideoculturais, de racionalidades e de racionalizações, de intuições verdadeiras e falsas, de induções justificadas e errôneas, de silogismos e de paralogismos, de ideias recebidas e de ideias inventadas, de saberes profundos, de sabedorias ancestrais de fontes misteriosas e de superstições infundadas, de crenças inculcadas e de opiniões pessoais”.

Daí, concluo que pesquisar, refletir e debater são hábitos bastante saudáveis. Caso contrário, corremos o sério risco de acabar fiéis a um monte de bobagens. E de viver no mundo do faz-de-conta, onde tanto sábios quanto bobos são apenas personagens de uma entidade manipuladora muito mais poderosa: o contador de histórias.

quarta-feira, 25 de março de 2009

TC CMG?

Todo mundo estava escrevendo e discutindo sobre as novas regras ortográficas da língua portuguesa e eu, para variar, estava atrasado. Quando dei por mim, tudo já havia sido discutido e o resultado é fiquei de mãos abanando.Então olhei em volta e percebi que, por mais que se discutisse, as regras não iriam mudar. Foi assim que descobri que os revolucionários de verdade estavam em outro lugar.


Estive pesquisando para escrever sobre as novas regras ortográficas da língua portuguesa e descobri muitos números (8 países, 26 letras, 240 milhões de pessoas, 320 milhões de livros no Brasil), muitos tópicos a serem discutidos (diferenças entre o falado e o escrito, divergências culturais entre Portugal e Brasil, dificuldades editoriais, ineficácia em relação ao analfabetismo, descaracterização dos idiomas etc.) e, principalmente, que nos resta apenas aceitá-las.

O lado bom desse trabalho todo foi ter visitado lugares fascinantes, entrado em contato com outras culturas e aprendido novas linguagens, tais como, por exemplo, o internetês, um tipo de idioma paralelo usado na rede e requisito praticamente obrigatório em programas de batepapo e sites de relacionamento. Aliás, refiro-me ao novo internetês, porque a versão arcaica eu dominava bastante bem, diga-se de passagem, em minha época de Netscape, Cadê? e ICQ.

Pois saiba que, no mundo virtual, as meras abreviações caíram em desuso faz tempo – foram substituídas por emoticons, siglas e caracteres especiais que deixam o texto com cara de ideograma. A molecada adora, claro, principalmente porque a maior parte das mensagens só eles entendem. Se você é como eu e não tem orkut, não perca a oportunidade de xeretar junto com um usuário e ler algumas das mensagens postadas. Muita coisa nova acontece por ali, algumas bem interessantes e inovadoras. O mesmo vale para o MSN, principal programa de batepapo do momento, muito utilizado inclusive por empresas que buscam uma alternativa eficiente para os velhos ramais. Nele, a troca de mensagens acontece com tamanha velocidade que tanto as palavras quanto as frases precisam ser “enxugadas” para não perderem o ritmo, tornando-se quase ininteligíveis. É uma coisa muito maluca e vale a pena conhecer. Mas não se esqueça de botar o preconceito de lado, assim como o tradicionalismo. Afinal, o português é uma língua viva e isso não significa apenas que é usado, mas que sofre modificações constantes como qualquer organismo. Ou como uma a pintura que jamais recebe a última pincelada, ficando eternamente inacabado. Nesse sentido, podemos dizer que sua vanguarda está na internet.

Tudo bem que as mudanças, para fazerem sentido, precisam ter função. Quer dizer, se o objetivo é deixar tudo mais rápido, de que adianta escrever “naum” ao invés de “não”? Esquisita também é a variante EMO do internetês, chamada miguxês, uma espécie de dialeto que tenta parecer bonitinho e COMplicaH aInDa MaiX Ah LeiTuRaH. Existe quem ama e quem odeia. De minha parte, acho mais interessantes as palavras que obedecem somente à fonética, como, por exemplo, “kd” (cadê) e “aki” (aqui). Às vezes, elas fazem a gente se perguntar os motivos de escrever do jeito convencional.

Esta também é uma preocupação constante entre professores, já que seus alunos têm levado a linguagem da rede para a sala de aula. Mas como explicar a mudança das normas ortográficas da língua portuguesa para quem mal entende as antigas? Isto não se aplica somente às crianças, porque tem muito adulto por aí com dificuldade para escrever – recebo diariamente e-mails de diretores de grandes empresas que mal se fazem compreender, e estes não costumam pertencer à “geração internet”, que cresceu navegando. Em outras palavras, não adianta pôr a culpa na rede.

Mesmo porque, se a nova reforma ortográfica busca melhorar a interação do português escrito em diversos países, talvez a internet cumpra este papel sem formalidade ou burocracia. E sem longas demoras para aprovação, como aconteceu com o “recente” acordo, que foi idealizado em 1986, votado em 1990 e só agora entrou em vigor. Os tempos mudaram e continuam mudando, sem avisar, sem pedir permissão, e nossa maior dificuldade está em acompanhá-los. No futuro, talvez a língua usada por todos não seja o inglês, o espanhol ou o esperanto, mas uma mistura de tudo isso, com os dois pés na internet, livre de regras complicadas e das suas inúmeras exceções. Pode parecer blasfêmia, mas, se todos se entenderem, que mal há nisso? O objetivo da língua estará cumprido. Como disse um dos internautas que participaram do debate virtual promovido pela revista Bravo! a respeito das mudanças, “no primário minha professora brigava comigo porque escrevia errado, agora dou o troco nela!” E logo quem vai brigar com a gente é a nova geração. É ela que vai usar o português por mais tempo, que o reinventa a cada dia e talvez fosse ela que deveria decidir o que é valido ou não. Se você me disser que os jovens não têm maturidade para fazer uma escolha dessas, vou responder que tudo bem, até concordo, mas por que ninguém pede a opinião deles, pelo menos? Aliás, por que ninguém pede minha opinião também? Eu sugeriria que observássemos melhor o internetês para encontrar os caminhos da evolução de nossa língua. (e o pessoal da Academia de Letras achando que o trema é que era coisa do passado... rs!)

terça-feira, 24 de março de 2009

(O FIM DOS) TABEFES GRÁTIS!

Inicialmente, não gostei muito desta crônica. Acontece que a repercussão dela foi tão grande e tão positiva que me obriguei a relê-la com olhos de quem não tinha lido antes e, adivinhe só, também passei a gostar.
Trata-se de mais um texto que fala sobre comportamento social. Por incrível que pareça, este é o assunto que mais rende comentários dos leitores, o que me deixa muito feliz, claro. É muito valioso para um autor saber que suas idéias estão fazendo as pessoas refletirem e, melhor ainda, estão rendendo bons debates.
Acho que não existe maior recompensa para um cronista do que saber que a sociedade tem vontade de melhorar.



As pessoas andam muito mal-educadas. Onde já se viu?, xingar os outros no trânsito, estacionar em cima da faixa de pedestres, furar filas, ocupar o assento dos ônibus reservados aos velhinhos e fingir uma soneca quando um deles se aproxima só para não ter que levantar. Pior é achar que isso tudo é normal. É uma verdadeira falta de respeito, isso sim, e não me venha com cara feia! Se acordou de mau humor é problema seu, não queira descontar nos outros. Mesmo porque aqui vivem juntas tantas pessoas que, se for esquentar a cabeça com cada mal-educado que cruza meu caminho, fervo antes do meio-dia.

Um tempo atrás, empurraram minha namorada para entrar primeiro no metrô e garantir um banco vazio. A bolsa da coitada caiu, suas coisas se espalharam pelo chão e um espertinho aproveitou para afanar o fone de ouvido do celular. Ela chegou em casa arrasada e chorou, descrente dessa situação em que vivemos, de todo esse abuso. Agora, eu me pergunto: tudo isso para quê? Ficar sentado por dez, vinte minutos? Será que vale a pena ferir a moral alheia e se rebaixar tanto por tão pouco?

Não entendo o que se ganha agindo dessa maneira. Acho que o bem de todos e a felicidade geral da nação andam tão pobrezinhos que sair-se melhor que o outro em qualquer situação, por mais ínfima que seja, por pior que venham ser as conseqüências, é motivo de satisfação. Pôxa, gente, vamos ampliar esses horizontes, tentar construir alguma coisa juntos! De espertos o mundo está cheio, mas os inteligentes de verdade estão cada vez mais raros.

Não pensem que o acontecido com minha namorada é caso isolado – comigo também acontece sempre. É gente que embolsa um ou dois centavos do troco, joga lixo na rua, pratica corrupção, não dá a devida atenção aos clientes, abusa da boa vontade oferecida, deixa serviço para outro fazer por puro desleixo ou preguiça, paga salários baixos, não devolve objetos emprestados, arma intrigas entre amigos, estaciona nas vagas reservadas aos deficientes, não está nem aí para ninguém e distribui gratuitamente tabefes nos valores morais alheios. Quem sai de casa de vez em quando sabe do que estou falando. Aliás, não precisa nem ir tão longe para sentir isso na pele. Quantos não são os vizinhos que deixam o som alto até tarde, desperdiçam água ou levam o cachorro para fazer cocô na sua grama? Não tenho sequer coragem de desafiar a atirar a primeira pedra quem jamais cometeu um desses pecados porque tenho certeza de que alguém me alvejaria só por sacanagem.

Ora, já não bastam as muitas horas de trabalho, os altos impostos a serem pagos e todo o sacrifício que fazemos para levar uma vida digna? Ter que aturar o egoísmo e a falta de “semancol” dos outros é um absurdo. Quem aí leu O ensaio sobre a cegueira, do José Saramago, em que as pessoas deixam de enxergar de uma hora para a outra e tudo vai por água abaixo? Quem assistiu à bela adaptação que o Fernando Meirelles fez para o cinema também consegue ter noção do drama. Entre as metáforas usadas está a das latrinas, que ninguém sabe direito onde ficam, não há água para limpá-las e as necessidades vão ficando pelo chão mesmo. Para piorar, as pessoas vêm pisando e espalhando aquilo por todo canto. Resultado: o mundo fede. É mais ou menos o mesmo que acontece hoje em dia. A gente finge que não vê, prefere deixar as coisas como estão e vai aceitando cada vez mais e mais abusos. Quando a cegueira passar – se é que vai acontecer um dia –, o que teremos pela frente? Muita merda para limpar.

O Luís Fernando Veríssimo já dizia que “não há nada de errado com o mundo, ele só é muito mal-freqüentado”. O Érico, por sua vez, que “a bondade não é uma virtude passiva”, é fácil ser mau, mil vezes mais fácil ser indiferente, temos que nos esforçar para sermos bons. Daí eu tiro a conclusão de que: a) Se não é possível mudar dessa para melhor, seria interessante, no mínimo, ajeitar as coisas por aqui e b) Se a bondade plena é difícil de alcançar, simplesmente não seu mau pode ser um começo. Não precisa distribuir tabefes nem tampouco sair a acariciar deus e o mundo, basta ser simpático. “Bom-dia” e “obrigado” não fazem mal a ninguém. Mamãe, para variar, estava certa. Então, tenham um bom dia e obrigado por lerem mais esta crônica. Até a próxima.

segunda-feira, 23 de março de 2009

CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UMA VIAGEM

Em setembro de 2008, pude realizar um sonho antigo: conhecer a Itália. A experiência rendeu as duas crônicas abaixo e, sinceramente, restou assunto para muitas outras mais. Este é o poder que as viagens exercem sobre nós – elas ajudam, antes de tudo, a ampliar nossos horizontes.
A respeito das confusões culturais geradas pela globalização, assisti ainda esta semana a um documentário em que um psicólogo da USP falava sobre como, no nível do chão, todas as grandes cidades são parecidas. Não me lembro o nome do sujeito, mas suas análises eram muito impressionantes. Por exemplo, dizia ele que em Paris, Roma ou São Paulo, as pessoas possuíam objetos, gostos e comportamentos muito semelhantes. Para nos sentirmos realmente nestas cidades, precisamos olhar para cima, ou seja, para os prédios antigos, para o relevo etc.

Percebi isto claramente quando estava na Itália. Um pouco destas sensações você pode conferir nestas duas crônicas.


Sempre que arrisco umas voltas por aí, meu objetivo é conhecer algo novo, sentir uma nova sensação, ver gente, absorver culturas, revisitar meus próprios valores e experimentar sabores, cheiros e cores, ainda que esse “novo” seja mais antigo que a própria humanidade. É novo para mim. Posso ter visto fotos, ouvido relatos e pesquisado muito, mas vivenciá-lo tende a mudar completamente a percepção do assunto.

É verdade que cada pessoa busca uma coisa diferente em suas viagens. Imagino que alguns queiram fugir do próprio mundo, ou visam status, compras, solidão e por aí em diante, enquanto outros não fazem a menor idéia dos reais motivos que movimentam seus pés.

Estive recentemente na Itália para conferir de perto a arte que por muito tempo só se apresentou a mim por meio de fotografias e livros. Mas não era só por isso que eu estava lá. Queria também conhecer um pouco desse povo que, dizem, tanto se parece com nós e que, ao mesmo tempo, não tem absolutamente nada a ver. Queria comer pizza. Ouvir uma língua diferente. Observar como eles se vestem, como dirigem seus automóveis por ruas medievais e como convivem com um passado proibido de morrer, agonizando em cada esquina com estátuas, ruínas e cartões postais.

Sem sombra de dúvida, o melhor resultado da viagem foi a diferença entre a expectativa e a realidade. Em relação à arte, tudo correu perfeitamente bem, embora não possa dizer o mesmo do resto. Ao caminhar por Roma, Florença e Veneza, encontrei tanta gente de tantos cantos do mundo que foi difícil me sentir na Itália. A mocinha ao lado falava alemão, as placas estavam em inglês, o guia no meu fone de ouvido explicava em espanhol e, de vez em quando, acontecia de eu ser atropelado por revoadas de japoneses.

Descobri que as cidades turísticas da Itália são uma completa confusão de culturas e que, por causa disso, não têm o espírito que eu esperava encontrar. O que menos vi por lá foram nativos. Grande parte dos restaurantes não serve comida legítima, do dia-a-dia, mas aquilo que o turista acredita ser típico do país. Cheguei ao ponto de questionar comerciantes em italiano e receber a resposta em espanhol. Acho que eles nem reconheciam suas palavras. Falavam “turistês”. Também aprendi a dizer “oferta” em seis línguas diferentes, tropeçando nas milhares de caixinhas que os padres espalham pelas igrejas.

Que crise de identidade! Nada era como eu imaginava, o que me fez achar graça justamente desta minha expectativa. Sentei num banco da Piazza di San Marco, olhei para a multidão ao redor e tentei descobrir o que eles faziam ali. Por que deixaram seu país e vieram se acotovelar num lugar tão distante? O que esperavam encontrar?

Comprovando que os novos ambientes têm o poder de mudar nossa percepção, comecei a questionar o que eu mesmo buscava ali. De certo modo, me senti passeando pelo Second Life, aquele programa que gera uma vida paralela na internet e onde todo tipo de etnia se encontra para conversar, pois Veneza parecia um tanto quanto virtual. Voltei para casa sem ter muita certeza de ter estado na Itália.

Ainda bem que não foi o tempo todo assim. Caminhando por ruas pouco movimentadas de algumas cidades menores como Arezzo, Verona e Assis, pude me sentir um pouco mais no país de meus devaneios. Mas agora, sentado em minha escrivaninha para reorganizar essas impressões, tento descobrir qual é a verdadeira Itália: a que encontrei ou a que esperava encontrar.

Questão difícil. No livro A arte de viajar, o filósofo Alain de Botton diz que “o mundo é complexo o bastante para que dois quadros realistas do mesmo lugar sejam muito diferentes, dependendo do estilo e do temperamento do pintor”. Em outras palavras, enxergamos apenas uma parte da paisagem à nossa frente – a parte que queremos enxergar. Nossa percepção funciona exatamente deste modo, como se estivéssemos observando um assunto para reproduzi-lo na tela, destacando um detalhe e deixando outros de lado.

Essa idéia consola bastante, pois me faz acreditar que vi a Itália que o momento e o meu “temperamento” permitiram. E, sinceramente, fico feliz por ter sido diferente da imagem que fazia dela. Isso dá um toque de realidade à situação.

São muitas itálias, muitas pessoas e muitas visões. Daí, tirei duas conclusões: 1) É muito válido tentar descobrir que motivos nos levam a sair por aí, mundo afora, explorando; 2) Depois, convém deixar esses motivos de lado e lançar-se ao lugar de cabeça aberta, sem preconceitos, absorvendo tudo como se jamais tivesse ouvido um só comentário a respeito. As coisas vão parecer mais verdadeiras, você vai enxergar além daquilo que espera encontrar e poderá curtir a experiência de se ver em um novo contexto.

Mário Quintana uma vez escreveu que lhe bastou ler dois romances para compreender que “o enredo é o pretexto, e o essencial a atmosfera”. Acho que o mesmo vale para a arte de viajar. Se você conhece ou não seus motivos, tudo bem, o importante é sentir o lugar. Afinal, nossa disposição mental dirá mais que o próprio destino.

MENOS SAMBA, MAIS TRABALHAR

Ainda tenho mais algumas considerações a respeito de minha recente viagem à Itália. A começar pelo fato de que éramos um grupo pequeno, formado por poucos brasileiros e venezuelanos e uma maioria espanhola (uns 70%), o que considerei muito positivo. Isso porque, como disse na crônica passada, a mudança de ambiente propicia novas percepções, e esse ambiente inclui também as pessoas ao nosso redor. Se fôssemos todos brasileiros, iríamos à Itália falar sobre os problemas daqui, em português, e ficaríamos comparando o país deles com o nosso. Não foi isso que aconteceu, ainda bem. Apesar das minhas dificuldades com a língua espanhola – e deles com o português –, dividimos experiências riquíssimas (não há nada que paciência, frases pausadas e BEM gesticuladas não resolvam).

Logo nas primeiras conversas, descobri que os espanhóis se parecem tanto com a gente quanto os italianos, que cada região de lá tem seu sotaque, que morar em um país de primeiro mundo tem suas vantagens – embora elas não sejam nem um décimo da maravilha que alguns imaginam, pois na Espanha também há crises e dificuldades de todo tipo –, que nossos futebolistas de exportação estão com o filme muito queimado porque só pensam em dinheiro e que o Lula, lá fora, vende a imagem de homem preocupado, que está salvando o país do terceiro mundismo – tá bem na foto, hein, presidente?

Mas o que me impressionou mesmo foi o esclarecimento dos espanhóis, assim como a boa educação dos mesmos. Se o Lula dá uma de herói, eles desconfiam, querem saber nossa opinião. Perguntam sobre trânsito, poluição, meio ambiente e sobre como estamos lidando com tudo isso. Não conseguem compreender como pode existir vida em uma cidade do porte de São Paulo, com seus 18 milhões de habitantes. Por que não fazemos como eles, que moram em pacatas cidades do interior, com mais qualidade de vida, a 200 km do trabalho, e vão e voltam todos os dias em confortáveis trens de alta velocidade? Porque no Brasil não tem isso não. Campinas? Como uma cidade que fica a uma hora da zona metropolitana pode ser tão grande? Xiii, meus amigos, vocês não viram nem a metade...

Os espanhóis do grupo entendiam de arte, tinham todo tipo de opinião sobre o assunto e ficavam me pedindo para revelar os segredos do contemporâneo. Se fossem simples assim, eu contava, juro.

Você é vegetariano? Como podem existir vegetarianos num país com tanto churrasco? Pois é, um dos problemas do Brasil é o excesso. O outro, a falta. Na Espanha, come-se muita carne, muito peixe, muito vinho. Me disseram que o pão de lá é uma delícia, tenho que provar. As frutas também. Qual é o prato típico daqui? Não sei, não tem. Aliás, tem muitos, porque cada região do Brasil é de um jeito. O país é grande, sabem?

Os espanhóis, assim como os italianos, comem dois pratos diferentes a cada refeição e desperdiçam à vontade, coisa que mamãe nunca me deixou fazer porque é feio, tanta fome que tem no mundo! Mas eles estão mesmo preocupados é com a saúde, dizem que deixar de lado 30% da comida pode salvar as artérias daqui uns anos. Será que não tem outro jeito de fazer isso? Eu comi muito na Itália, limpei o prato. Aliás, os dois.

Fiquei com vontade de conhecer o país deles. Já disse que para as touradas não vou de jeito nenhum, porque aquilo é judiação demais. Eles chamaram de tradição e quiseram saber dos nossos rodeios. Vou dizer o quê?

E para o Brasil, querem vir? Que nada! Nem manifestaram interesse. Perguntaram, perguntaram – desenhei até um mapa no guardanapo! –, mas eles preferiram ficar no papel mesmo. Achei tão estranho... Sempre pensei que todo mundo queria conhecer o Brasil. O Rio, pelo menos, terra do carnaval, das mulatas e das praias, mas que nada, como diria o Jorge Ben Jor. Senti que eles não eram de samba e tentei remediar: o Brasil tem muitos brasis. Tem o norte, o sul, o centro, o dentro e o fora. Tem muita coisa legal para ver, nem tudo é festa!

Não adiantou. Os mais evasivos disseram que é longe. Os econômicos, que é caro. E eu não quis fazer muita propaganda não. Olha que sou publicitário!, mas levantei as características do produto e achei bastante difícil de vender. Se não é o samba, qual é o mote? Infelizmente, o Brasil só tem um tipo de público.

Minha campanha foi por água abaixo antes mesmo de começar. Teve uma colega mais jovem que até perguntou do carnaval de Salvador, mas, quer saber?, às favas com isso. Fiquei com a sensação de não querer convidar os amigos porque sei que a casa está bagunçada. Vou fazer o quê, esconder a poeira embaixo do tapete? Por aqui ainda tem muita sujeira para limpar. E, para piorar, eles ficavam repetindo, tirando um barato: “Menos samba, mais trabalhar! Menos samba, mais trabalhar!” É mole?

domingo, 22 de março de 2009

UMA NOITE NA D.P.

Escrevi esta crônica em janeiro deste ano, mas acabei desistindo de publicá-la. Na ocasião, achei que o assunto não combinaria com o Caderno C, que é voltado à cultura, e não me arrependo de ter agido desta maneira – a história contada aqui também não é algo que me agrada relembrar. Pelo menos o blog me permite tratar de outros temas e desabafar de vez em quando.


Acabo de voltar da delegacia, onde infelizmente tive que passar a noite na companhia da estúpida burocracia do nosso sistema policial. Por volta das 21 horas de ontem, quando terminava de preparar o que deveria ter sido um jantar relaxante, recebi um telefonema inesperado. Naquele momento, só poderiam ser más notícias. Era um dos vizinhos da minha avó, falecida há poucos anos, dizendo que duas pessoas tinham arrombado a casa dela e que ainda estavam lá – se eu corresse, conseguira pegá-los com a mão na massa. Ele já tinha avisado a polícia, então larguei a comida como estava e corri para o lugar, chegando junto com a viatura.

Eram dois policiais. Expliquei como a casa é e levei um puxão de orelha por causa das placas de imobiliária no portão, belos chamarizes para a malandragem. Eles acenderam suas lanternas e, lá dentro, tudo estava calmo. O cadeado do portão tinha sido forçado, mas não cedera. Comecei a acreditar que o susto não passara daquele ponto.

Parecia cena de filme. Chovia. A rua estava deserta. Só que, se observássemos melhor, dava para ver que todas as janelas das outras casas tinham uma fresta aberta, por onde os vizinhos espiavam. Eu não tinha as chaves – é meu pai que toma conta delas e, na pressa, não consegui localizar nenhum dos dois –, de modo que ficamos procurando alternativas para verificar se houvera mesmo um arrombamento.

Foi nesse instante que ouvi um “Psiu!” me chamar. O vizinho de muro apareceu na janela e disse que os ladrões estavam fugindo pelos fundos. Um dos policiais correu imediatamente para a viela lateral enquanto o outro entrava na viatura para dar a volta no quarteirão. Fiquei lá, plantado no meio da rua, sem saber o que fazer. Não demorou um minuto para uns curiosos revelarem as caras.

O policial da viela voltou com um ladrão, o mais gordo ou mais chapado da dupla, não sei dizer. Enfim, foi o que não conseguiu correr. Ele tentou fugir carregando um botijão de gás e uma enceradeira velha.

Resumindo, fomos todos até a delegacia fazer o B.O., onde descobri que o pior da noite ainda estava por acontecer. A começar pela má vontade do investigador, que deu a entender que uma enceradeira não era motivo bom o bastante para interromper o último capítulo da novela. Depois, pelo delegado, que queria ter certeza de que a porta tinha sido arrombada e, na ausência das chaves – e dos responsáveis pela perícia –, sugeriu que eu pulasse o muro da casa.

Neguei-me, obviamente. Queria terminar aquilo logo, pegar as coisas que pertenceram à minha avó e voltar para casa. Não gostaria que alguém visse a comida fria na mesa e se preocupasse à toa. Sentei no banco e esperei, esperei e esperei mais um pouco. Os policiais que prenderam o ladrão, ao invés de voltarem às ruas, tiveram que me fazer companhia, pois também deveriam assinar a papelada. Eles me explicaram o processo. Primeiro, como o bandido não estava com o RG, coletaram suas impressões digitais e enviaram por fax ao instituto responsável pela identificação, onde nada é informatizado e um técnico fica com uma lupa comparando aquelas às originais, que nem Sherlock Holmes faria dois séculos atrás. Não fiquei surpreso, já tinha ouvido poucas e boas do sistema brasileiro. Enquanto isso, preenchi fichas, dei meu depoimento e esperei, com longos intervalos entre uma coisa e outra. A fome me deixou tonto, já que não comia nada desde o almoço.

Nesse meio-tempo, muitas outras vítimas se apresentaram devido a furtos, batidas de trânsito etc. e foram encorajadas pelo investigador a fazer o B.O. via internet, porque na delegacia demoraria muito. Não que ele estivesse ocupado, claro. Ao sentir o cheiro de má-vontade, muitos desistiam e iam embora, descrentes. Coisa triste de se ver.

Meu caso se resolveu às duas da manhã, quatro horas depois de ter chegado à delegacia, quando assinei o depoimento e pude enfim recuperar as coisas roubadas. O delegado me recusou uma cópia do documento. Achei um absurdo, mas não era hora de arrumar confusão, então simplesmente fui embora. O resultado das digitais ainda não tinha chegado. Os policiais militares foram muito gentis e prestativos até o último instante. É uma pena que, como confessaram depois, em breve estarão correndo atrás do mesmo ladrão novamente.

Não tenho intenção de ir muito a fundo neste assunto. Quem leu até aqui, deve ter percebido que as críticas transpareceriam até mesmo seu eu não quisesse. Se você já passou por situação semelhante, sabe melhor ainda do que estou falando. O que me consola, no final das contas, é a recompensa por agir sempre o mais honestamente possível, pois, num caso como este, em que fui obrigado a passar uma noite na D.P., pelo menos fiquei do lado de fora das grades.

sábado, 21 de março de 2009

O QUILO DA MASSA CINZENTA ESTÁ UM ABSURDO!

Quando escrevi esta crônica, jamais poderia imaginar que apenas alguns meses depois enfrentaríamos uma crise financeira de proporções mundiais. Agora, mais do que nunca, penso em aproveitar as alternativas culturais econômicas. Além disso, estipulei uma meta para mim mesmo: não compro CD que custe mais de 20 reais. Shows internacionais, destes caros, sem chance. Acho cada vez mais absurdo o preço que andam cobrando para me deixar amontoado num canto, longe do palco, ouvindo um som ruim. É boicote mesmo, e com orgulho! Tenho plena convicção de que, quando boa parte da população se juntar à minha causa, os preços começarão a cair. E aí sim será a hora da redenção.


Vem chegando o fim do mês e começam as preocupações com a magreza da conta bancária. Afinal, ainda tem tanta coisa boa para fazer! Tantos filmes para ver, livros para ler... Pois é sempre nesses dias críticos que percebo como cultura no Brasil é cara.

Não é novidade para ninguém que a média salarial por aqui é baixa, para não dizer desigual e injusta. Nem preciso dos números da renda per capita, salário mínimo, IR nem nada do tipo, basta subir na cadeira e gritar: “Quem ganha bem aí levanta a mão!”

Veja o índice de endividados. Um absurdo! É difícil exigir discernimento de pessoas assim. Voto consciente, contestação da mídia, debates, protestos e moral, nem se fala. Como exigir inteligência de um povo que não consegue pagar um mínimo de cultura?

É verdade que nos últimos tempos têm surgido diversas alternativas baratas para quem está interessado em adquirir massa cinzenta. Vira e mexe temos nas bancas de jornal boas coleções de arte, literatura, culinária e música, entre outras. Quem procura também encontra ingressos para shows interessantes a preços populares. Dou-me como exemplo: ainda este ano, assisti à cantora Céu, no Teatro Municipal de São Paulo, por apenas dez reais! Foi lindo. Quer programa melhor? Fui também à Pinacoteca do Estado várias vezes, aos sábados, de graça. Lá tem sempre novidades e, quem estiver disposto, leva de brinde passeios pelo Parque da Luz, Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, Estação Júlio Prestes e Estação Pinacoteca, tudo na faixa.

Quem gosta de teatro também consegue boas peças a preços acessíveis. As unidades do Sesc, por exemplo, têm excelente programação em ambos os sentidos, vale a pena pesquisar. Outras tantas trupes se enquadram nas categorias de baixo custo e não são nem um pouco difíceis de encontrar.

Fato é que toda cidade com um pouco de estrutura costuma oferecer entretenimento a seus habitantes, embora nem sempre seja divulgado, o que acaba resultando em tristes salas vazias. Pois todos temos obrigação de procurar saber. E de freqüentar, claro.

Em outros casos, antecedência é fundamental. A FLIP, Festa Literária de Parati, por exemplo, tem sido um grande sucesso e oferece palestras por apenas oito reais. Vem gente do mundo inteiro participar. Tudo bem que Parati não é das cidades mais acessíveis, mas, para você ter uma idéia, os ingressos deste ano se esgotaram em poucas horas.

Aproveitando a deixa, esqueça as livrarias convencionais! Livros no Brasil custam um absurdo. Até mesmo as edições de bolso são raras e caras. Minha dica para quem gosta de ler são os sebos. Sem falar nas bibliotecas, que hoje em dia estão até no metrô. E não vá pensando que o acervo é ruim. Não, não. Estive olhando as vitrines delas e só vi livros novos, alguns caríssimos, prontos para quem quiser pegar e ler.

Em contrapartida, noto que muito do que deveria ser popular está virando artigo de luxo. Revistas, por exemplo, principalmente se consideramos a intermitência da maioria. Ora, para que serve aquele monte de anúncio, se não é para bancar o custo da produção?

Cinema com pipoca também se tornou impraticável. Acabei virando rato de locadora. Não é a mesma coisa, mas não dá para pegar um cinema no fim de semana e depois não fazer mais nada durante o resto do mês. CD é outra coisa caríssima e, mesmo com a moda da pirataria, os preços dos originais continuam lá em cima. Só compro promoção.

Existem muitos outros absurdos que não consigo engolir. O MASP é um deles – está cambaleando há tempos e o ingresso ainda custa quinze reais. Provavelmente é o museu mais caro de São Paulo, quando deveria ser o mais freqüentado.

Enquanto isso, quem quiser assistir à OSESP, uma das melhores orquestras do mundo, numa das melhores e mais belas salas de concerto, vai às apresentações matinais, aos domingos, e paga apenas dois reais.

Acredito que, em qualquer canto do país, é possível fazer bons programas culturais sem gastar muito. Os interessados precisam apenas perguntar, pesquisar na internet, ler os guias publicados nos jornais etc.

Porém, isso não significa que cultura por aqui é barata. Se fosse, não estaria eu aqui, indicando alternativas. E, obviamente, nem sempre queremos ficar com as alternativas. Eu também tenho vontade de ver o Cirque du Soleil, as corridas de Fórmula 1 ou, no mínimo, pegar um cinema de vez em quando.

O pior é que o alto preço das programações culturais gera todo tipo de problema. Um que me incomoda bastante é o das tais carteirinhas de estudante, que muita gente tira por meios ilícitos, tentando contornar a exploração. Aí, as instituições aumentam os preços para cobrir o orçamento, caímos num círculo vicioso e, no final, quem se dá mal são os honestos, como sempre.

Enfim, resta assunto para muitas outras crônicas. Gostaria de finalizar insistindo: é válido procurar sempre as alternativas e aproveitar as maravilhas do mundo da cultura. Deixe a TV descansar e dê uma volta. Senão, a massa cinzenta, assim como os animais nas notas que pagam por ela, entra em extinção.

sexta-feira, 20 de março de 2009

DAS COISAS NASCEM COISAS

Esta é, sem dúvida, uma das minhas crônicas favoritas. Gosto de tudo nela. A começar pelo título, que tirei de um livro sobre design e ao qual pude dar outro significado ao longo do texto. Gosto também das lembranças que ela retoma; do ocorrido no sebo e do prazer que tive ao presentear os donos com a história publicada no jornal.
Sua repercussão foi bastante positiva. Vários leitores me escreveram em resposta e, inclusive, fui convidado para publicá-la na revista Linha Mestra, uma interessante fonte de cultura na internet. Quem quiser conhecê-la, pode partir deste link, que leva diretamente ao meu texto: http://www.alb.com.br/revistas/revista_11/ret_11.asp. Ou, ainda, acessá-la por meio do site da Associação de Leitura do Brasil: http://www.alb.com.br.


Muito mais do que um amontoado de volumes, minha biblioteca significa, para mim, uma reunião de memórias. Isso porque cada livro na prateleira tem uma história, que extravasa linhas, palavras e idéias para influenciar minha vida à sua maneira. Quase sempre me recordo de quando o comprei, dos motivos que me levaram a isso e da sensação que ele deixou. Cada pessoa coleciona seu passado de um jeito. Acho que o meu é esse. Quando olho para a biblioteca que toma conta do quarto, estou olhando para dentro de mim mesmo, onde cada livro representa uma experiência de vida.

Sou um assíduo freqüentador de sebos. Descobri-os na época da faculdade e desde então tenho comprado muita coisa neles. Não nego que os livros novos têm seus atrativos, como o cheiro gostoso de papel recém-saído da gráfica; mas os usados possuem um estilo todo especial, um tipo de “aura” própria que lhes foi sendo imbuída pelos antigos donos. Quem é apaixonado por leitura deve compreender. Gosto de pegá-los com cuidado, observar os sinais deixados em suas páginas e tentar descobrir a quem pertenceu. É emocionante ter em mãos um pedaço da história de alguém. Afinal, como ele veio parar aqui?

Algo bastante curioso aconteceu nesta semana. Perto de onde trabalho, existe uma porção de bons sebos, que costumo visitar na hora do almoço. Para meu deleite, um novo acabara de abrir as portas e, naquele mesmo instante, fui xeretar.

Já na vitrine vi um livro de arte, sobre o movimento impressionista, que estive namorando em outra loja vizinha, mas que não comprei porque custava caro demais. De qualquer modo, por curiosidade, perguntei o preço: 45 reais. Fiquei espantado. Era 25% do valor da tabela, por um livro que sequer tinha sido folheado! Uma grana que provavelmente me faria falta, nesta época de vacas magras, mas não podia deixar uma oportunidade como aquela passar e me propus a levá-lo. O ruim é que eu tinha no bolso apenas o troco do almoço. Assim, reservei o volume para o dia seguinte.

Acontece que passei por lá na mesma noite, quando caminhava para o ponto de ônibus, e me deparei com a loja aberta. Entrei e disse o que viera buscar. O vendedor ficou sem graça, pediu desculpas e explicou que errara o preço – o livro custava 145 reais, muito além das minhas possibilidades. Fui embora decepcionado.

Minha namorada, especialista em marketing, comentou que, uma vez dito o preço, o vendedor deveria mantê-lo. Também achei ser o correto. Porém, fiquei pensando que, se soubesse do erro dele, jamais conseguiria pagar mais barato e deixá-lo no prejuízo.

Pois ontem à noite, três dias depois, encontrei o sebo aberto novamente. O vendedor estava na porta e me chamou a atenção, estendeu o livro e disse: “Ainda está com a grana? É seu.” Tentei explicar que não queria prejudicá-lo, mas ele foi enfático: “Eu já havia dado minha palavra e não conseguiria dormir se não vendesse o livro para você. Faça bom proveito.” Fiquei sem saber o que falar. Agradeci, paguei os 45 reais e fui embora.

A dignidade do vendedor me fez lembrar de uma outra história que meu pai costuma contar, de quando se confundiu e colocou o dinheiro recebido por uma venda na sacola da cliente, junto com o produto comprado.

Era uma senhora muito humilde, que freqüentava a loja uma vez por mês e cujo sacrifício feito em cada compra ficava evidente. Ele só soube do erro quando, no mês seguinte, a cliente quis lhe devolver a quantia. Ela ainda se desculpou por não ter ido antes e explicou que não tinha sido possível. Meu pai tem certeza de que, entre as duas visitas, a senhorinha passou por dificuldades, mas não tocou no dinheiro que não lhe pertencia. É emocionante vê-lo contar. Em recompensa pela honestidade, ele se recusou a receber o valor, fazendo questão que ficasse com ela.

Essas e várias outras histórias muito me ensinaram. Histórias que ficaram enraizadas em meu caráter e que, aos pouquinhos, dão seus frutos, transformando meus modos de pensar e de agir.

Ontem, quando cheguei em casa com o livro na mão, pretendia registrar em suas primeiras páginas o ocorrido no sebo. Porém, logo me dei conta de que isso não seria necessário. Percebi que, ao olhar para ele em uma das prateleiras de minha biblioteca, vou sempre trazer à tona tudo o que aprendi antes mesmo de abri-lo.

Então transformei o registro numa crônica. Fiquei repassando o episódio e tentando colocar em palavras o que ele significou para mim. Nesse sentido, os livros da biblioteca servem para ajudar a manter vivas em minha memória algumas das pessoas que conheço por aí e também suas histórias. Acho incrível como apenas umas poucas sementinhas podem fazer brotarem grandes experiências de vida! Pois olho para meus livros, penso no vendedor do sebo, na cliente de meu pai e, num momento de profunda introspecção, fico perguntando a mim mesmo: “O que você tem plantado ultimamente?”

quinta-feira, 19 de março de 2009

O IDIOTA DA ARTE

Esta crônica causou certa polêmica e até mesmo eu, relendo-a, me sinto um pouco incomodado com seu tom agressivo. De qualquer modo, falo aqui de uma preocupação constante em minha vida – a busca por uma arte de idéias. A cena contemporânea muitas vezes se apresenta como o momento em que tudo vale. Acredito que devemos tomar cuidado com isso. Artistas sensíveis, inteligentes e persistentes são muito mais raros do que imaginamos. Não quero me voltar ao passado, longe disso! Quero apenas compreender melhor o presente e, quem sabe, adivinhar um pouco do futuro. Sem jamais esquecer de me emocionar.


Há anos vou com amigos de outras áreas a exposições de arte contemporânea e sempre nos deparamos com o mesmo drama: eles não entendem praticamente nada do que se passa com aquele monte de porcaria empilhada, este interminável filme fora de foco e essas caixas de madeira dispostas cartesianamente pelo chão, como resquícios de um fim de feira organizados por alguém com muita falta do que fazer. Pois não considero meus amigos uns insensíveis, que não compreendem as possibilidades do contemporâneo. Longe disso. Na verdade, sinto pena de que eles não encontrem hoje uma arte à altura de sua curiosidade.

Imagino que essa sensação de desconforto venha acontecendo há mais de um século. Desde os modernistas; talvez do cubismo em diante. Enfim, ainda hoje enfrentamos a problemática que as artes plásticas propuseram a si mesmas lá atrás e que ainda não conseguiram solucionar: o sentido da sua existência.

Ora essa, quando modernistas como Picasso, Matisse, Breton etc. se estapeavam querendo comprovar que era a sua visão de arte a mais apropriada, eles não buscavam apenas a imposição de um conceito – queriam estar na moda. Pois falem mal, mas falem de mim.

Não há dúvida de que seus experimentos, entre tantos outros, foram valiosíssimos. Naquele momento, a arte vivia uma crise tão complexa que se instituiu a novidade como parâmetro de qualidade. Bom mesmo era quem conseguia se reinventar a cada pincelada. Mas a grande questão que, no nosso caso, vem se impondo há anos e para a qual pouquíssimos têm arriscado uma resposta é: será que um século de invenções e reinvenções não bastou para a arte reencontrar seu lugar na vida das pessoas?

Nesse sentido, admiro muito o Ferreira Gullar, que dá a cara a tapa não apenas porque tem coragem, mas porque tem conteúdo para enfrentar quem fica em cima do muro. Segundo ele, “a instituição da novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma espécie de terrorismo que inibe o juízo crítico e garante a vigência impune de qualquer idéia idiota”.

Pois hoje vivemos a era da arte idiota, onde vale tudo. Que coisa! Estou cansado de experimentalismos meramente formais e acredito que já está na hora de usar toda essa pesquisa para a construção de algo útil.

É difícil generalizar, mas, depois que o artista largou a tela com vergonha de parecer ultrapassado, vemos por aí incontáveis projetos monumentais, caríssimos, que muitas vezes só chegam até nós por meio de fotos ou filmes e que não contêm uma só idéia que valha todo esse esforço. O belo de hoje, ao menos uma linha dele, é o grandioso, o espetacular, que atrai mídia e causa polêmica.

Ora, me poupem dessa arte estapafúrdia. De que adianta gastar milhões, atrair uma multidão de interessados e não dizer praticamente nada?

(estive também pensando nas obras pequenas, que tendem a ser amontoados de quinquilharias agrupadas desta ou daquela forma, com custo baixo, mas creio que, se hoje o grande é igual ao belo, pior ainda para o pequeno, que se torna o feio – este fica para uma próxima crônica)

Restam os comentários. “Grande, né?” “Legal.” “Como será que ele fez isso?” E ponto, traga a próxima obra, por favor.

Sem dúvida, o artista ganha fama. Muitos começam a estampar bugigangas, são chamados para programas de TV e tentam se manter na mídia o maior tempo possível com seus “escândalos”. Mas, cá entre nós, que diferença isso faz em nossas vidas?

Sou muito mais a Monalisa, que é pequenininha em sua redoma de vidro e movimenta o mundo em seu redor. Cinco séculos depois, ela ainda dá o que falar. Quer mais? Estou certo de que, se for com meus amigos ao Louvre, todos vão se emocionar, e ela mudará um pouco nossas vidas.

Pode me chamar de passadista, não me preocupo. A história da arte tem se encarregado, desde os primórdios, de decidir quem sobrevive e quem fica condenado ao esquecimento. Eu só queria viver mais uns cem anos para descobrir o que vai restar da arte de hoje. Se os artistas persistirem em não fazer muita diferença na vida de seu público, o movimento atual será conhecido como “nadismo”. Nada para cá, nada para lá, noves fora, nada.

Nas palavras do próprio Ferreira Gullar, “foi o próprio curso seguido pela sociedade e pela arte que gerou os problemas de agora. Resta saber se essa evidência é justificativa suficiente para que o artista persista em seguir um rumo que destrói os seus próprios valores”.

Quer saber? Se as bienais, feiras e exposições contemporâneas já não interessam a quase ninguém além dos iniciados e/ou investidores, pego meus amigos e vamos dar uma volta na rua. No meio do caminho tem sempre uma pedra, objet trouvé, para se admirar, discutir e, por que não?, se emocionar.

quarta-feira, 18 de março de 2009

ARQUITETE VOCÊ, ARQUITETO EU

Gosto particularmente desta crônica. Ela busca provocar alguma discussão sobre um assunto que raramente vem à tona: a arquitetura da cidade. Aproveitei o gancho da Lei Cidade Limpa para emendar idéias que o filósofo Alain de Botton colocou em minha cabeça. Aliás, tive uma fase em que devorei a maioria dos livros dele e, sinceramente, recomendo vários. Trata-se de um texto acessível, inteligente e prático. Em outras palavras, ótimo para quem busca uma filosofia típica do dia-a-dia.

Quer coisa mais banal que andar pelas ruas da sua cidade? Só que o importante não é apenas andar, mas aprender a observar, questionar, buscar perguntas e respostas. Tem tanta coisa espalhada por aí que foi feita sem pensar e que afeta drasticamente nossa vida! Proponho um exercício: dê uma volta no bairro e comece a prestar atenção no estilo das casas, nos ornamentos, nos jardins e nas calçadas. Comece a se perguntar por que são assim. Estou certo de que, com um olhar crítico, vai ficar cada vez mais fácil fazer suas próprias escolhas.


Sempre considerei as casas reflexos de seus habitantes. Olhe as pessoas à sua volta. Como é o lugar em que elas moram? É um sobrado, um apartamento ou uma construção térrea? Fica em condomínio fechado, bairro residencial, periferia ou região central? O que o jeito dessas pessoas lhe diz? Vamos, não é difícil imaginar seus móveis, a cor de suas paredes, os bibelôs da sala de estar e a claridade da cozinha. Há jardins nessa casa? Os muros são altos ou baixos? Existem grades nas janelas?

Para mim, pessoas simples e verdadeiras têm casas acolhedoras, enquanto as mal-educadas, mesquinhas e individualistas moram em lugares frios, intimidadores, que parecem vazios mesmo quando cheios de coisas, como os castelos das bruxas nos contos-de-fada.

Nos últimos tempos, venho tentando ampliar um pouco essa visão, de modo a abranger toda uma cidade. Será que existe diferença entre a arquitetura dos povos oprimidos, a dos decadentes, a dos tradicionalistas e a dos economicamente desenvolvidos? Ao analisarmos classes sociais equivalentes, a história mostra que sim, essa diferença existe, basta ver o que diferentes civilizações construíram em igual período de tempo, ainda que separadas por mares ou montanhas.

Há também a influência de fatores externos que não podem ser desconsiderados, como o clima, o material de construção disponível e as técnicas desenvolvidas até então. Tudo isso determinou a arquitetura dos antigos e, em conseqüência, influenciou a atual. Pois eu pergunto: se o passado está contido nas paredes que levantamos, qual é o poder que a arquitetura exerce sobre nós? Prestando atenção em nossa cidade, o que ela nos diz hoje?

O crítico John Ruskin propôs que busquemos duas coisas em nossos prédios: que eles nos abriguem e que falem conosco, ou seja, que ajam como portadores daquilo que queremos dizer.

Alain de Botton, filósofo contemporâneo, retoma esse pensamento no ótimo livro A arquitetura da felicidade. Segundo ele, “A noção de que as construções falam nos ajuda a colocar no centro das nossas charadas arquitetônicas a questão dos valores segundo os quais queremos viver – e não meramente como queremos que as coisas pareçam”.

Isso me leva a crer que estamos numa dialética constante com as paredes ao nosso redor. Somos tanto filhos delas quando elas provêem de nós.

* * *

Como muitos devem saber, na cidade de São Paulo está em vigor a Lei Cidade Limpa, que regulamenta a exploração de espaços publicitários e que até hoje tem gerado bastante polêmica. Não quero discutir aqui o modo como essa lei chegou até os cidadãos, mas, tendo em vista que as eleições estão próximas e que os boatos sobre sua possível descontinuação já estão circulando, gostaria de dizer o que ela tem significado para mim.

Como publicitário, sou até hoje questionado sobre as conseqüências da nova lei. Sempre respondi que a acho ótima e, ao contrário do que muitos pensam, nem um pouco ameaçadora à maioria dos profissionais da área, pois as adversidades permitem à publicidade se renovar. Os anúncios estavam crescendo descontroladamente, quase que envelopando a cidade. São Paulo estava oculta. Feia. Suja. Digo mais: acreditar que, quanto maior a exposição, mais o produto vende, é uma imensurável ingenuidade. Na briga entre a lei e a propaganda, continuo apostando que só a criatividade sobreviverá.

Na época da votação do projeto, quando ninguém sabia ao certo a viabilidade de tamanha mudança, conversei com um colega arquiteto. Ele expressou sua aprovação afirmando que, retirados os outdoors, placas e fachadas exageradas, os paulistanos descobririam como a cidade é linda e, ao mesmo tempo, como está malcuidada.

Vejo que suas palavras se concretizaram. A lei revelou a beleza eclética de um centro obrigado a se desenvolver de um dia para o outro, a ambição dos novos arranha-céus comerciais e a incoerência – para não dizer mal-gosto – do falso “estilo neoclássico”, que teima em dar às caras sempre que se pensa em subir uma construção séria, imponente, refinada.

A cidade de São Paulo talvez seja o reflexo da diversidade de seus habitantes. Imagino que o mesmo deve acontecer com todas as outras cidades do país: elas são um pouco do que suas pessoas são. Assim, é nossa a responsabilidade por esses lares, por seu crescimento e desenvolvimento, e precisamos ter consciência disso. Cada atitude que tomamos de nossa parte afeta o todo; do mesmo modo que o todo nos influencia as vidas com seus cheiros, barulhos, rotinas e, por que não?, fachadas, pontes, praças etc. Quem se sente em casa quando caminha pela cidade a que pertence? Como é essa casa? Fria ou aconchegante? Organizada ou bagunçada? Limpa ou suja? O que queremos para ela? Não é difícil imaginar. Acredito que basta olhar para dentro de nós mesmos. Um pouco do que está à nossa volta vem daí. E alguns cantos da cidade, por menores que sejam, definem perfeitamente quem realmente somos. Talvez estes sejam apenas tópicos a serem considerados na bonita ação de construir. “Apenas”, mas essenciais.

terça-feira, 17 de março de 2009

CULTURA DOCUMENTADA, CULTURA COMENTADA

Lembro-me que, quando esta crônica foi publicada em junho de 2008, eu vivia uma euforia por documentários. Notei que aí estava um mercado emergente e fiquei feliz ao perceber que os brasileiros de um modo geral buscavam algo além do cinema hollywoodiano.
Hoje, vejo muita coisa bacana sendo comercializada em bancas de jornal, a preços mais ou menos populares. Se você quer uma dica, procure os filmes da BBC que a Editora Abril tem levado a público.

Além deles, gostaria de aproveitar para indicar alguns outros títulos:

>> Santiago – o cineasta João Moreira Salles fala sobre seu mordomo

>> Quem somos nós? – física quântica acessível a todos

>> Sob a névoa da guerra – depoimento de um ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos, mostra como o fim do mundo quase aconteceu algumas vezes

Existe um outro, muito raro, chamado A revolução não será televisionada, feito por uma equipe de TV irlandesa, se não me engano, na ocasião em que o presidente Hugo Chávez foi deposto por golpe militar e logo em seguida recolocado no governo pelo povo. Ele traz um ponto de vista muito diferente da ocasião e pode ajudar a entender o que acontece hoje na Venezuela. É difícil de achar, até porque foi proibido no país durante a ditadura militar e acho que se espalhou somente por meios pouco lícitos, com gente duplicando VHS. Ainda assim, se conseguir encontrar, recomendo!

“À noite, do morro / descem vozes que criam o terror / (terror urbano, cinqüenta por cento de cinema, / e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral). / Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, / o quartel pegou fogo, eles não voltaram. / Alguns, chumbados, morreram. / O morro ficou mais encantado.”

Acho praticamente impossível ler essa primeira estrofe de Morro da Babilônia e não associá-la à violência social e política que aflige a população do Rio de Janeiro. Mas o poema – assim como os problemas que ele expõe – não é de hoje: faz parte do livro Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado pela primeira vez em 1940, e diz respeito a nós, às nossas vidas e às atitudes que definem nosso meio.

Pois esse livro prova que a arte há tempos não apenas representa, mas também denuncia, propõe debates e, muitas vezes, encontra soluções. Infelizmente, no Brasil do século XXI, a poesia se tornou uma “coisa de elite”, cultura para poucos iniciados (ou interessados), e duvido que 10% da população conheça os versos citados acima.

Isso acontece também com muitas outras vertentes da arte: plástica, dança, teatro etc. Cada uma sofre à sua maneira com o distanciamento da sociedade – distanciamento que sempre existiu, sendo apenas maior ou menor de acordo com a época.

Esse movimento de vai e vem não cessa. Como revelou o 13º Festival É Tudo Verdade, que aconteceu em março e abril deste ano em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, Brasília e Recife, um outro braço da tal cultura de elite está se popularizando no país: o cinema documental.

Sempre tido como “o lado chato do cinema”, o gênero atingiu seu auge por aqui com o filme Tropa de elite, uma “ficção documental” assistida por alguns milhões e um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional – na verdade, trata-se de uma ficção baseada em relatos reais de ex-soldados do BOPE, tida muitas vezes como documentário, talvez, pelo tom de denúncia que tanto se aproxima do nosso dia-a-dia.

Pois o festival deste ano foi o maior da América Latina. Exibiu cerca de 130 filmes (entre os quais 18 tupiniquins inéditos) e pagou o prêmio de valor mais alto já concedido a produções brasileiras: 100 mil reais.

O mais importante, em minha opinião, não são os números, mas o que eles representam: a crescente popularização de um gênero até então fadado a duros preconceitos.

A chegada dos documentários a outras camadas da sociedade brasileira tem seus motivos. Acredito que o aprimoramento da linguagem está, aos poucos, mostrando que é possível unir informação e entretenimento em uma única película. Afinal, ninguém agüenta horas de um blá, blá, blá tedioso se não estiver extremamente interessado nele, enquanto cultura documentada com talento e criatividade é sempre bem-vinda.

Por exemplo: outro filme a que assisti recentemente e que me sinto na obrigação de recomendar é Uma verdade inconveniente, no qual o político americano Al Gore trata de complexos estudos científicos acerca do aquecimento da Terra em 96 minutos bastante didáticos. Depois dos dois Oscar recebidos e dos elogios da crítica, Al Gore me faz acreditar que o cinema documental finalmente está deixando de ser pouco atraente para conquistar públicos cada vez maiores.

Esse é o poder da popularização, e ele não tem nada a ver com abrir mão da qualidade ou da profundidade das produções. Tropa de elite e Uma verdade inconveniente foram vistos por muita gente e, com certeza, renderam muitas boas reflexões. A importância deles tem várias facetas. A primeira, a desmistificação do gênero. A segunda, a relevância dos temas tratados. A terceira, a característica de atestado: ambos desenvolvem assuntos que qualquer pessoa com o mínimo de informação sabe que existem e que estão em pauta; porém, depois de vistos, não há mais desculpas para continuar ignorando os problemas do mundo atual, estejam eles nos morros cariocas, estejam nos gases atmosféricos. Esses filmes são arte e denunciam, debatem e dão soluções – eles nos mostram todas as razões para começarmos a agir.

O de Al Gore, por exemplo, me fez buscar mais informações no livro A vingança de Gaia, de James Lovelock, que desenvolve uma importante tese a respeito do futuro do planeta e, conseqüentemente, do nosso também. No prefácio, o cientista Crispin Tickell escreve: “Somos perigosamente ignorantes de nossa própria ignorância”. Quando vejo o crescente envolvimento da sociedade brasileira com os documentários, fico feliz que esta frase talvez esteja, aos poucos, perdendo seu sentido.

Desejo sinceramente que a cultura se popularize sem se vulgarizar. Afinal, não é a cultura de elite que deve cair, mas é o conhecimento e a atitude crítica da sociedade que deve ascender. De baixo para cima. Isso sim é cultura popular!

segunda-feira, 16 de março de 2009

EVOLUÇÃO SELETIVA COM BORBOLETAS

Trata-se de um projeto artístico de minha autoria iniciado no final de 2008 e que já conta com 11 telas de 50cm x 50cm, pintadas com tinta acrílica e pastel seco. Abaixo estão reproduções das mesmas e um texto que explica melhor minhas idéias.


Borboleta do Ódio



Borboleta do Lixo



Borboleta do Ar



Borboleta do Amor



Borboleta da Terra


Borboleta da Morte

Borboleta da Mata

Borboleta da Inocência

Borboleta da Ignorância

Borboleta da Água

Borboleta do Estresse

A idéia do projeto surgiu da minha necessidade de rever o conceito de futuro atualmente aceito, considerando não apenas os problemas ambientais que tendem a complicar nossa vida, mas também a relação que temos e ainda teremos com eles. Afinal, superaquecimento da Terra, excesso de lixo, escassez de água potável, poluição do ar, superpopulação, extinção de espécimes animais e vegetais, entre outros, são temas já bastante discutidos, seja na arte, seja na ciência, seja nas colunas sociais. O que falta sempre é apenas um detalhe: como os humanos conviverão com tudo isso? Se é que vão sobreviver às ameaças de seu principal predador – ele mesmo. A Evolução Seletiva surgiu daí, dessas questões provavelmente impossíveis de serem respondidas e que, no entanto, rendem reflexões bastante pertinentes.
A metáfora quase o deixa de ser – aproveitei de um exemplo normalmente usado para ensinar as teorias darwinistas aos alunos do ensino básico – das mariposas londrinas na época da Revolução Industrial – para tentar compreender melhor a evolução humana nos dias de hoje.
Conta-se que, na Inglaterra, até princípios do século XVIII, existiam dois tipos básicos de mariposas, as claras e as escuras. Como o céu era claro, azul e limpo, estas últimas se destacavam, chamando mais atenção dos predadores e, por isso, seu número era reduzido quando comparado ao das mariposas claras.
Com o advento das máquinas, altas cargas de fuligem passaram a ser lançadas diariamente ao ar. Londres começou a ficar mais escura, algo entre marrom e cinza, invertendo o quadro, destacando as mariposas claras e ocultando as demais. Assim, aquelas é que passaram a ser mais “predadas” e, consequentemente, a ficar mais escassas. Segundo o Darwin das escolas, é dessa maneira que a evolução faz suas escolhas. Eu comprei a idéia. Acredito que a natureza busca sempre um equilíbrio e, para isso, a balança pende ora para um lado, ora para outro, definindo quem sobreviverá e quem será levado à extinção.
Somos parte dessa natureza e nossa situação atual também. Continuamos a viver segundo as regras da seleção natural que, para mim, têm muito mais de sagrado do que qualquer outra concepção de mundo.
O meio ambiente está mudando drasticamente, mais veloz ainda do que na Londres de dois séculos atrás. E em proporções muito maiores. Algumas espécies vão continuar a existir; outras serão vítimas de seus predadores até desaparecerem por completo. Os humanos possivelmente sobreviverão – temos a incrível capacidade de nos adaptar às condições mais desfavoráveis e, muitas vezes, até de gostar delas. No entanto, fico perguntando a mim mesmo como será a vida no futuro.
Talvez obtenhamos algumas respostas observando a realidade atual, no cenário que se monta ao nosso redor, quando o estresse mata mais do que doenças outrora famosas. A gordura idem. Nicotina, intolerância, estupidez, arrogância, desafeto, indiferença, depressão... Os elementos naturais estão sobressaindo na paisagem e ficando ainda mais vulneráveis. Outros, criações humanas como o ódio e o lixo, se misturam à poluição, à fumaça, à luxúria, ao caos das ruas, à violência, à falta de valores, de moral e de ética e se camuflam, dificultando o trabalho de quem tenta exterminá-los. Chego a acreditar que, pouco a pouco, tudo de ruim que surge no mundo vai sendo incorporado e passa a fazer parte de nossa natureza.
No final, é mais fácil violentar a água, a justiça, a honestidade, a inocência etc. São regras de sobrevivência ditadas não pelo instinto, que é puro, irracional, mas pelo racional deturpado e egoísta do homem. Elas definem a nova cadeia alimentar – um banquete em que devoramos o planeta para depois sermos servidos como prato principal. Como disse antes, o homem é seu único predador e, por isso mesmo, sua maior ameaça.

TIPOS DE HOMEM
Assim como as mariposas eram divididas em escuras e claras, talvez o homem também possua subcategorias. Posso arriscar algumas: racionais, egoístas, estúpidos, indiferentes, medrosos, ativistas, modernistas, naturais e artificiais, entre tantas outras. Se todas modificam mas poucas melhoram o mundo, também serão poucas as que sobreviverão. Não acredito em uma mudança repentina – reverter um quadro é muito mais difícil do que alimentá-lo. Sendo assim, considero minhas borboletas como sendo apenas a primeira etapa. Mas toda etapa é necessária para que haja a seguinte e, por isso, todas são essenciais. Antes de mudar o mundo, tempos que mudar a nós mesmos.

“Dentro de nós, Basil, temos o céu e o inferno.”
Oscar Wilde em “O retrato de Dorian Gray”

POR QUE BORBOLETAS (E NÃO MARIPOSAS)?
Porque elas se assemelham quanto ao ciclo de vida – lagarta, casulo, asas –, o que facilita a associação com as teorias de Darwin e, ao mesmo tempo, têm um significado completamente diferente. Borboletas transmitem outras sensações, outros ideais; temos mais afinidade com elas e menos medo, menos repulsa. Gosto também da metáfora de transformação e acho que ela pode ser usada para nosso momento no mundo sem receio de cair num clichê.
Escolhi as borboletas porque mariposas são místicas, noturnas, espirituais e eu buscava a claridade do dia, a racionalidade e objetividade, o discurso direto. Acho que as borboletas simplesmente se adequam melhor à proposta – sem contar a satisfação que sinto quando me perguntam “Que borboleta é essa? É tão bonita!” e eu digo “É a borboleta da morte” ou “É a borboleta da ignorância”. As pessoas ficam chocadas, ofendidas, sem-graça; reagem de mil e uma maneiras. Os nomes das telas vão contra o que elas esperam encontrar e isso é muito bom, é papel da arte questionar, quebrar paradigmas, mostrar o outro lado.

CORES
Borboletas oferecem uma gama de tons muito maior do que mariposas e, nesse sentido, me sinto mais livre para escolher os que melhor se aproximam do que quero comunicar.
A idéia era criar um fundo basicamente igual para todas – uma atmosfera cinza e marrom, tão suja e repugnante quanto o pôr-do-sol na cidade de São Paulo, que vem sempre acompanhado de uma espessa camada de poluição. Em seguida, eu escolheria uma cor que representasse o tema da borboleta e deixaria que o conjunto dissesse se ela se destacaria na paisagem ou não, sem usar contornos para propor alguma interação com o meio. As que aparecem mais – que são mais facilmente identificadas – tendem a sofrer mais com ações predatórias e se extinguir. Outras devem se misturar ao ambiente e sobreviver. De qualquer modo, assim como aconteceu em Londres, todas possivelmente continuarão a existir – resta saber apenas de que modo a balança irá se estabilizar. Afinal, um lado pesará mais do que o outro e algumas borboletas vão se multiplicar bastante, enquanto outras ficarão mais raras, sendo provável que um dia ainda lutemos por elas. No bom e no mau sentido.

FORMAS
Acho que não há necessidade alguma de dizer que as formas desenvolvidas estão diretamente relacionadas com os temas das borboletas, mas gostaria de deixar claro que as aproximações com o real são propositalmente superficiais. Isso significa que eu não queria copiá-las da natureza, de fotos nem de nada do tipo. Não queria imitá-las. As borboletas que voam por aí são muito diferentes da imagem que fazemos delas. Duvida? Pegue uma folha de papel e desenhe uma agora mesmo. É essa borboleta que eu queria pintar – a estilizada, imaginada, que permite toda falta de convenção.

NOMES
Os nomes das borboletas são importantes, assim como o nome do projeto. Eles acrescentam significado às pinturas e, no final, dão sentido a elas. É por isso que escrevi nas laterais das telas. A idéia precisa ser clara, inteligente e inteligível.

A BORBOLETA IDEAL
Ainda está nos planos e não sei por quanto tempo ficará assim. É meu modo de trabalhar, deixo as idéias amadurecendo até que elas explodam e se materializem.
Ainda não sei como representar o ideal, se ele é uma reunião de partes das borboletas que já existem ou o exato oposto delas, algo como o vácuo que elas deixam. O ideal tem forma? Cor? Ele pode pertencer a todos ou será sempre pessoal? Seria possível representá-lo além do meu próprio ideal? Creio que não. As obras de um artista acabam sempre sendo uma parte dele, seus personagens são sempre excertos do seu caráter, suas imagens também, por mais que ele negue. É a sua autoria, sua marca, idéias que surgiram em sua cabeça e que são fruto de suas vivências, que são colocadas para fora por obra de sua intenção. É por isso que não consigo me desvincular do meu ideal e tampouco me conciliar com ele. Vou deixar o tempo defini-lo melhor. Por enquanto, prefiro imaginar que a borboleta está em seu casulo, transformando-se sem me deixar admirá-la.
Talvez, no fim das contas, o ideal faça mais sentido se jamais for concretizado.