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sábado, 30 de janeiro de 2010

AGRADECIMENTO A J. D. SALINGER


J. D. Salinger (1919-2010)

"Um livro que realmente me impressiona é aquele que, quando todo lido, faz você desejar que o autor que o escreveu fosse um grande amigo seu, e você pudesse telefonar para ele sempre que tivesse vontade."

Na terça-feira passada, dia 27 de janeiro, morreu J. D. Salinger, autor do maravilhoso romance O apanhador no campo de centeio. Morreu sem que eu lhe telefonasse para elogiar sua obra ou clamar por amizade. De qualquer maneira, ele provavelmente não me atenderia, pois, pelo que li nos jornais, vivia recluso em New Hampshire, nos Estados Unidos, sem dar entrevistas ou atender a telefonemas.

"'Você precisa ir para uma escola de meninos alguma vez. Experimentar isso alguma vez', eu disse. 'Elas são cheias de gente falsa, e tudo que você faz é estudar para aprender o bastante para ser esperto o bastante para poder comprar a droga de um Cadillac algum dia, e você precisa continuar fazendo de conta que se importa se o time de futebol perde, e tudo que você faz é falar sobre garotas e bebida e sexo o dia todo, e todo mundo fica reclamando junto nessas porcarias de panelinhas desprezíveis'."

Eu só gostaria de lhe dizer que, como muitos, me apaixonei por seu livro desde a primeira linha e fiquei sob sua influência durante muito tempo, se é que algum dia consegui me libertar. Isso porque constantemente me vêm à cabeça aquela personalidade rebelde do protagonista, sua inconformidade com o mundo e seu espírito leviano, porém extremamente crítico*. No final das contas, acho que fui um pouco como ele – ou gostaria de ter sido –, me recusando a obedecer às regras sociais e me rebelando sem causa evidente. Em outras palavras, fui um adolescente típico, daqueles de que Salinger soube captar a essência com maestria e transformar nessa obra-prima que fala, entre outras coisas, da juventude, dos sonhos e das barreiras que os outros nos impõem.



Imagino que seja esse um dos motivos principais de O apanhador no campo de centeio conquistar pessoas de todas as idades; desde jovens, porque se identificam, a adultos, porque sentem saudades. É um pouco do que também dizem de O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que permite leituras muito diferentes ao longo do tempo. A história permanece a mesma, mas nós, os leitores, mudamos drasticamente, o que nos faz pensar no correr da vida, nas atitudes que tomamos, nas alegrias, nas conquistas e nos arrependimentos.

Quando soube da morte de Salinger, confesso que fiquei triste por jamais ter tentado lhe agradecer. É algo que não fiz e que dificilmente faria, mas meu impulso adolescente permanece vivo e, de vez em quando, manifesta essa vontade de fazer coisas sem se preocupar com o que os outros vão pensar – que se danem eles, diria o protagonista do romance –, ou de ignorar as distâncias e dificuldades, tornando tudo possível, assim, de repente.

Em parte, devo isso a Salinger. E, uma vez que não poderei mais lhe telefonar, nem mesmo que ele quisesse atender, gostaria de deixar registrado aqui meu sentimento mais sincero a seu respeito: obrigado.

"De qualquer maneira, eu continuo imaginando essas criancinhas jogando algum tipo de jogo neste grande campo de centeio e tal. Milhares de criancinhas, e ninguém por perto – ninguém grande, quero dizer – exceto eu. E eu estou na beira de um precipício muito louco. O que preciso fazer, eu preciso pegar todo mundo que começa a se aproximar do precipício – quero dizer, se eles estão correndo e não veem aonde estão indo, eu tenho que aparecer de algum lugar e agarrá-los. É o que eu faria todo dia. Seria simplesmente o apanhador no campo de centeio e tal. Sei que é maluco, mas é a única coisa que gostaria de ser. Eu sei que é maluco."

*Para quem não leu, trata-se dos relatos de um jovem recém-expulso do colégio de meninos onde estudava e que viaja de volta para a casa dos pais tentando compreender as coisas que se passam ao seu redor.

Obs.: Todas os trechos acima foram retirados do original em inglês e traduzidos livremente por mim.


CURIOSIDADE
Clique e ouça o ótimo comentário sobre o livro de J. D. Salinger que Arnaldo Jabor transmitiu na Rádio CBN, dia 1 de fevereiro de 2010:

CBN - Arnaldo Jabor

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010



Foi na sexta-feira passada, mas não consegui escrever antes, o que é uma pena. Pois foi um grande show. Uma amiga que já tinha visto outros afirmou ter sido este o melhor. No meu caso, foi paixão a primeira vista. "Vista" literalmente, afinal, já ouvia Móveis Coloniais de Acaju há algum tempo e adorava sua mistura criativa de Los Hermanos, SKA e marchinhas de carnaval. E as letras divertidas. E as verdades disfarçadas de piada. Só faltava o show, e o show tem mais. Tem simpatia de sobra, improvisos, encenações e muita, mais MUITA animação.

O Auditório do Ibirapuera estava lotado, todos sentados comportadamente em seus lugares. Isso até as luzes se apagarem. Dois minutos depois, éramos um mar de alegria, uma multidão que pulava (e suava) ao pé do palco, bexigas coloridas que voavam e um coro bem treinado que acentuava os refrões.



O resultado foi divertidíssimo, claro, até quem não conhecia se empolgou e caiu na dança. Palmas para todos os nove músicos e equipe. Que banda grande, que grande banda! Criatividade, esforço físico. Fiquei impressionado.

A plateia também colaborou bastante, foi lindo, todos estavam ali com intenção de curtir o momento, sem confusão, atropelos ou falta de educação. Tinha gente de gravata, jovens com mochila... Só que o estresse da semana ficou de fora e sobrou o clima perfeito para acompanhar a banda. O som estava baixinho, é verdade, mas a gente cantou junto e resolveu o problema.

Resumindo, Móveis Coloniais de Acaju faz jus ao sucesso crescente: oferece ótimos discos para ouvir e apresentações maravilhosamente empolgantes para assistir. Adorei.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010


A alegria de viver (1905-6), de Henri Matisse

"Parafraseando Maurice Denis, A alegria de viver, em vez de ser uma pantomima arcádia com referências à mitologia antiga ou um agregado de nus na clareira de um bosque, é, acima de tudo, uma superfície plana coberta de cores dispostas em determinada ordem. Matisse nunca tinha deixado isso tão claro quanto no momento em que apresentou a todos essa obra-prima. (...) A existência de afastamentos da 'natureza', quanto a anatomia, perspectiva, escala e cor, tão variados e incoerentes, e derivados de fontes tão diversas é uma prova da coragem, da abertura a novas ideias e da criatividade de Matisse, e resultado de sua insistência sobre o direito do artista de tomar liberdades – com a natureza, com as convenções dos predecessores e mesmo com o ideal clássico da própria corrente estilística."
ALFRED BARR em "A arte de Matisse: do final de 1905 a 1907"

"Matisse, no longo prazo, deve mais a Cézanne do que a Gauguin e Van Gogh, mas foi o exemplo dado pelos dois últimos que o convenceu de que a arte não precisava ser uma transposição fiel da natureza. A natureza ainda era o estímulo, mas o objetivo principal agora era afirmar a intensidade da reação do artista a ela, da maneira mais direta possível."
CLEMENT GREENBERG, em "Henri Matisse"

domingo, 17 de janeiro de 2010

A ARTE, O LIXO E O HOMEM



Creio que toda boa arte começa com um problema. Algumas, no entanto, também terminam com um. É o caso das caixinhas de lixo de Justin Gignac. Elas surgiram de um desafio a respeito do design de embalagens. Se a embalagem fosse tão importante quanto o seu conteúdo, talvez possibilitasse a venda de um artigo que ninguém gostaria de comprar. Tipo o quê?, perguntou-se o artista. Tipo lixo, responderam as ruas sujas de Nova Iorque.

Justin então desenvolveu caixas de acrílico à prova de cheiros, recheou-as com lixo coletado manualmente pela cidade, numerou e passou a vendê-las. Foi um sucesso. Hoje, já são mais de 1.200 cubos espalhados pelo mundo, alguns com edição especial, tais como os coletados durante a inauguração do estádio dos Yankees, ou durante o reveillon de 2008 em Times Square.

Mas em que momento essa produção ganhou status de arte? Eu diria que foi quando permitiram interpretações a respeito de ecologia, da relação do homem com a Terra e, mais importante, dos resquícios sórdidos da humanidade. Pois somos os únicos seres vivos que produzem lixo, especialmente inorgânico. O lixo é a pegada que deixamos para trás, o maior sinal da existência de civilização (e também da falta dela). As caixinhas de Justin Gignac nos fazer repensar um monte de coisa. E, inclusive, têm o poder de transformar lixo em arte.

Saiba mais sobre o projeto: http://www.nycgarbage.com/


No site acima, há links que levam a uma série de reportagens sobre seu trabalho. Gostaria de destacar a seguinte, exibida pela TV Globo em setembro do ano passado:



Se não conseguir assistir ao vídeo, clique aqui: GLOBO.COM


Minha caixinha chegou há alguns dias. Seu conteúdo foi coletado em 11 de dezembro de 2009, recebeu o número 912 e inclui: um elástico de dinheiro, um copo de papel do McDonald's, um saquinho de molho agridoce bem esquisito, uma pena de pombo e um cupom que não consigo identificar. Veja as fotos abaixo, que foram tiradas na medida em que eu abria o pacote:

domingo, 10 de janeiro de 2010

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE EDUARDO DE ALMEIDA


A música (1910), de Henri Matisse

Minha namorada acha surpreendente o fato de eu lembrar da música que tocava no rádio do carro quando passávamos por determinado lugar, ainda que isso tenha acontecido décadas atrás. Não é que eu me apegue muito aos detalhes da vida, ao menos não com essa minúcia toda. Raramente sei precisar a data de um acontecimento, os motivos de termos optado por isso não por aquilo etc. Não tenho a menor noção da idade em que realizei algumas coisas, mais ou menos como se meu passado tivesse ocorrido de uma vez só. O mesmo vale para a história do mundo. Nunca fui bom nas aulas do colégio e jamais pensei que me especializaria em história da arte quando crescido, pois os professores estavam mais preocupados com "quem faz o que e quando" do que com o significado real daquilo tudo. Napoleão foi derrotado em Waterloo no ano de 1815. Tudo bem, mas quem foi Napoleão? Que tipo de música ele gostava de ouvir? Como se relacionava com a família? Suas preferências gastronômicas tinham alguma coisa a ver com a carreira militar? É esse tipo de coisa que sempre me interessou – descobrir a essência de um personagem e seu papel no espetáculo da vida. Essa é a verdadeira História para mim, e não uma mera lista de acontecimentos a serem decorados segundo sua cronologia. Creio que a razão está no modo como minha memória foi configurada. Nunca lembro de nada muito concreto, mas o sentimento produzido em cada ocasião permanece claro, pulsante, como se tivesse sido vivido anteontem. Para mim, ele constitui a chave do tempo, que me permite avançar e retroceder conforme tenho vontade.

Existem músicas, por exemplo, que se encaixam perfeitamente no momento em que são ouvidas; criam uma combinação tão mágica e única quanto o alinhamento dos planetas. Fica impossível esquecê-las. De algum modo, elas elevam o tal momento a outro nível de percepção, a ponto de eu poder apreendê-lo e criar uma relação afetiva com ele. O instante então se fixa em minha memória, concretizando-se de maneira que quase posso tocá-lo. Você já sentiu algo semelhante?

Numa entrevista de 1942, o pintor francês Henri Matisse descreveu uma situação curiosa: "Quando me falam de um de meus quadros, mesmo antigo, me relembrando de alguns de seus elementos, sem conseguir situar a data da execução, vejo de maneira muito precisa o instante sentimental em que o fiz". Pois o sentimento do mundo é algo importantíssimo na concepção artística de Matisse, que sempre buscou pintar não a coisa em si, mas o efeito que ela provoca. Talvez seja por isso que me identifico tanto com ele. Para ambos, a exatidão da data e dos nomes não faz diferença. Percebo isso claramente ao rever fotografias de viagem. Não sei dizer com exatidão onde foi, nem há quanto tempo, mas as imagens reavivam os aromas, os sons e os sabores do lugar. Em outras palavras, não me importam muito os detalhes puramente racionais, mas sim seus significados mais intrínsecos, reunidos no que para mim constitui a essência do viver. Importa a sensação de pertencer ao mundo; de estar presente e ser parte dele. É o tempo vivo da memória, a persistência que Salvador Dali tentou representar. Acho dificílimo discorrer sobre um instante específico de maneira muito cartesiana, pois tudo se funde em uma lembrança essencial e nuclear; como uma música, por exemplo. A música certa no momento certo, a expressão adquirida e compartilhada; um passeio de carro, um jantar romântico, o cantarolar que põe a criança para ninar; ritmo, harmonia e melodia perfeitos. E a alquimia vira ouro. Como disse Matisse, "para meu sentimento, o espaço é um só desde o horizonte até o interior do aposento de meu ateliê, e o barco passando vive no mesmo espaço que os objetos familiares a meu redor, e a parede da janela não cria dois mundos diferentes. (...) Não preciso aproximar interior e exterior, os dois estão reunidos em minha sensação". Pois o mundo não está além de nossos sentidos. E, no final, tudo o que realmente importa é a nossa sensibilidade ao respirar, degustar, ouvir, tocar e assistir. Em outras palavras, quando todo o excesso sucumbir, restará apenas o belo para preencher nossas recordações. É somente este belo que iremos admirar.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DON'T WAIT TOO LONG



You can cry a million tears
You can wait a million years
If you think that time will change your ways
Don't wait too long

Tradução:
Você pode chorar um milhão de lágrimas
Você pode esperar um milhão de anos

Se acha que o tempo vai mudar seus caminhos

Não espere demais


Acho esta passagem magnífica, um tipo simples de poesia e reflexão que falta na maioria das músicas atuais. Quando Madeleine Peyroux coloca sua voz sobre a batida suingada do violão, acentua o tom intimista da canção e o resultado é maravilhoso, posso ouvi-la seguidamente sem cansar. Assim, resolvi fazer o mesmo que a colega Dulce Dedino: compartilhá-la via blog com quem ainda não a conhece. Senhoras e senhores, com muito orgulho, Madeleine Peyroux!




DON'T WAIT TOO LONG
(Madeleine Peyroux, Jesse Harris, Larry Klein)

You can cry a million tears
You can wait a million years
If you think that time will change your ways
Don't wait too long

When your morning turns to night
Who'll be loving you by candlelight
If you think that time will change your ways
Don't wait too long

Maybe I got a lot to learn
Time can slip away
Sometimes you got to lose it all
Before you find your way

Take a chance, play your part
Make romance, it might brake your heart
But if you think that time will change your ways
Don't wait too long

It may rain, it may shine
Love will age like fine red wine
But if you think that time will change your ways
Don't wait to long

Maybe you and I got a lot to learn
Don't waste another day
Maybe you got to lose it all
Before you find your way

Take a chance, play your part
Make romance, it might brake your heart
But if you think that time will change your ways
Don't wait too long
Don't wait
Hmm... Don't wait

Veja o clipe no YOUTUBE

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

HOLLYWOOD É ISSO AÍ

Veja as semelhanças entre o filme Pocahontas (Disney) e Avatar. Elas são, no mínimo, interessantes. Seria mera coincidência? Eu duvido...

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

BEM PERTO DE NÓS



Fui ver AVATAR ontem à noite e voltei para casa com milhares de pensamentos novos. Valorizo muito isso num filme e, assim, vim aqui recomendá-lo.

A história, apesar do ritmo e de algumas passagens tipicamente hollywoodianas – que, cá entre nós, já estão para lá de batidas –, é muito boa, palmas para o diretor e roteirista James Cameron. Em primeiro lugar, pela atualidade do tema. Em segundo, pela maneira bonita como este nos é apresentado.

Trata-se de uma espécie de Apocalypse Now futurista, quando a guerra se encontra com problemas socioambientais. Referências não faltam. As ideias de conexão daqueles seres alienígenas com a natureza, ambos constituídos pelo mesmo estofo, como diria Merleau-Ponty, se misturam com as do best-seller A profecia celestina, de James Redfield, e nos fazem questionar quem são os verdadeiros primitivos: eles ou nós.



Quanto ao visual, basta dizer que encanta de tão rico e bem constuído. As texturas, as cores e a reinvenção da natureza terrestre rendem imagens fantásticas e encantadoras.

A temática me pareceu bastante adulta. Cenas de violência correm soltas e fica evidente que os produtores tentaram disfarçar o excesso de sangue. Talvez a classificação indicativa de 12 anos deveria ser elevada um pouco – ou, quem sabe, eu esteja ficando velho? De qualquer maneira, acho que sempre caímos naquele dilema do "desenho animado ser coisa de criança".

Enfim, sejam adultos, crianças ou adolescentes, espero que todos apreciem o filme e saiam do cinema refletindo sobre a situação de nosso próprio planeta, deixando Pandora no universo das metáforas bem feitas e despertando para os problemas da vida real.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A BONDADE NÃO DEPENDE DA CLASSE SOCIAL


Sem título (1981), de Jean-Michel Basquiat

Na quarta-feira passada, quando voltava de ônibus para casa, testemunhei um incidente bastante desagradável. Era tarde da noite, véspera da véspera de Natal, e não havia muitos passageiros. Um deles, porém, se destacava – um homem de aparência simples, que trazia consigo uma mochila de mão e uma série de caixas de papelão desmontadas. Ele ficara nas proximidades da porta traseira para não atrapalhar o movimento no corredor. Havia também uma mulher, tão humilde quanto ele, com os braços pensos por causa das inúmeras sacolinhas de supermercado que carregava. Não os vi no primeiro instante, pois estava sentado mais à frente. Sei apenas que, passados dois ou três pontos após o ônibus ter partido, senti a velocidade diminuir. Alguém queria descer. Pois bem, o motorista encostou, a porta se abriu e todos ouvimos os passos na escada de metal. Partimos novamente em seguida. Então, o homem das caixas de papelão começou a gritar: “Espera aí, moço, ela ia subir, ela não queria descer não”. O motorista parou no meio da rua – tinha avançado uns vinte metros do ponto. O homem continuava a gritar, meio assustado, mas não conseguia se explicar.

Depois de algum tempo, compreendi o ocorrido: para abrir espaço ao passageiro que descia, a mulher das sacolas desceu primeiro. Tinha a intenção de retornar ao veículo, só que o motorista não entendeu, fechou a porta e acelerou. Não foi culpa sua, claro, jamais poderíamos imaginar uma situação dessas com tão pouca gente a bordo. Ainda bem que o homem das caixas de papelão percebeu e deu o alerta.

Abriu-se a porta novamente e ele colocou a cabeça para fora. Gesticulou para a mulher, mas ela estava tão injuriada que não queria voltar. Ficamos todos suspensos em sua indecisão e começamos a nos entreolhar.

Eis que o digníssimo senhor ao meu lado, muito bem aparentado, diga-se de passagem, começa a gritar: “Deixa ela aí, motorista. Vamos embora logo!” Era o exato oposto do homem das caixas de papelão, ou seja, sabia se expressar, embora fosse um belo mal educado. Fiquei pasmo. O que ele ganharia com aquele egoísmo? Incomodou-me profundamente. Todo mundo estava cansado. Era Natal, bolas, tínhamos isso em comum. O tal senhor tentou mais algumas vezes, sem sucesso. Balançou a cabeça de um lado para o outro, virou na direção da própria indignação e ficou ali, bufando. Dava para ver o ar que saía de seu nariz embaçando o vidro da janela.

Passados alguns segundos, a mulher resolveu voltar ao ônibus, meio ofendida, meio sem graça. Deixou-nos novamente poucos pontos depois. O homem das caixas ajudou e puxou a cordinha que dá o sinal.
Tive que suportar o repugnante Sir ao meu lado durante mais uns cinco ou dez minutos, até ele descer, finalmente, levando sua tensão estúpida consigo. No lugar, sentou-se o homem das caixas, todo maltrapilho, coitado. Foi o herói do dia e nem percebeu, preocupado que estava com suas caixas, que poderiam cair e bloquear os degraus. Mas elas ficaram quietinhas ali. O ônibus então parou mais uma vez. Eu desci e o homem seguiu viagem. É provável que ainda demorasse muito para chegar em casa.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O TAMANHO DO EGO

Este vídeo foi produzido pelo Museu Americano de História Natural (AMNH) e faz parte da exposição Visions of the Cosmos: from the Milky Ocean to an Envolving Universe. Ele nos faz repensar muita coisa.


The known universe
(o universo conhecido), por Museu Americano de História Natural (AMNH)


Obs.: Se preferir assisti-lo em High Definition, utilize o seguinte link e clique no botão HD: http://www.youtube.com/watch?v=17jymDn0W6U

Saiba mais sobre a exposição aqui: http://www.amnh.org/

domingo, 27 de dezembro de 2009


Surrounded Islands, de Christo e Jeanne-Claude (Projeto de Biscayne Bay, 1982)

"Seriam os planetas das civilizações mais adiantadas totalmente geometrizados, inteiramente reconstruídos por seus habitantes? Ou a marca de uma civilização realmente avançada seria o fato de ela não deixar marca alguma?"
Contato, de Carl Sagan


Surrounded Islands (1980-83), de Christo e Jeanne-Claude (Miami, Flórida)

Para saber mais sobre os artistas: http://christojeanneclaude.net

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O INTERVALO MÁXIMO ENTRE OS TRENS É DE APENAS DOIS MINUTOS



O trem se aproxima da estação Jardim São Paulo. Para quem vem do centro em direção aos bairros mais afastados da zona norte, é a primeira subterrânea após uma série de estações suspensas. Faço este caminho cinco dias por semana, às vezes mais, voltando do escritório. Conheço-o de cor e é uma pena que não consiga salteá-lo, pois ele se torna desinteressante rapidamente. O trem tem dessas coisas, não me deixa sair dos trilhos. É mais tarde do que o costume, tudo está relativamente vazio. Exceto por um casal gay sentado logo à minha frente, ninguém divide o banco com outro passageiro. Estou no fim do último vagão, do lado esquerdo. Na minha diagonal direita, uma senhora lê com a cabeça abaixada. Ela usa um pequeno óculos apoiado na ponta do nariz, com armação dourada e corrente rodeando o pescoço. Um homem gordo, com a camisa aberta até o quarto botão, dorme sonoramente nas proximidades, todo esparramado, ocupando metade do assento adjacente ao seu. Ele parece derreter. Daqui onde estou, consigo ver um fio de saliva descer por seu queixo e também o vapor que sai de sua boca embaçando o vidro. Embaça, desembaça, embaça, desembaça, no ritmo da composição. Está quente, meio abafado. Consigo sentir as gotículas de suor se aglomerando em minhas têmporas. Dois jovens, lá longe, trocam olhares desde que embarquei. Além da idade e da visível timidez, a única coisa que parecem ter em comum são as mochilas, a dela de tecido roxo, a dele preta, de borracha. Muita gente usa mochila na cidade, eu mesmo tenho uma. Isso não significa que somos todos estudantes, um desavisado pode concluir errado; trata-se apenas de uma infeliz idiossincrasia do lugar. Se fôssemos realmente tão alfabetizados assim, o futuro de São Paulo seria bem mais promissor. Não sei que tanta coisa carregam por aí. Comigo há sempre um livro, às vezes uma revista, um bloco de notas, uma agenda, celular, carteira, lenço de papel para emergências, bilhetes de ônibus, óculos de sol e guarda-chuva, ou seja, nada particularmente interessante. Sobre os outros passageiros, não tenho nada a dizer. São gente comum, tão banais quanto o conteúdo da minha mochila. A revista que folheava se encontra agora largada ao lado, considerada lida. O calor incomoda, preciso respirar profundamente para não cochilar. Soltei os braços sobre o colo e estive observando a cidade passar pela janela, atividade privilegiada para quem normalmente pega metrôs lotados e só consegue ver as orelhas de uns, quando em pé, e as bundas e virilhas de outros, quando sentado. Assim, a paisagem me parece linda de qualquer maneira, não importa para onde a vista se abre. Não diria que sou apaixonado por esse lugar, acho que é mais como um vício do qual não consigo me livrar, por mais mal que ele me faça. O trem mergulhou no túnel e já consigo perceber as primeiras luzes da estação. A velocidade diminui. Quando estamos quase parados, noto na plataforma um casal que briga. Estão bem na direção do meu assento, teoricamente ocultos por uma dessas largas colunas de concreto armado. Só que posso vê-los claramente, é uma coisa que você precisa saber sobre São Paulo, tem sempre alguém lhe observando; nossa ideia de privacidade é bem diferente do que a de todo o resto do país. Quando estamos na varanda do apartamento, por exemplo, podemos ver uma família comendo pizza no prédio da frente, um velhinho cutucando o nariz enquanto assiste televisão e um casal se amassando silenciosamente para não acordar o bebê. Não há problema em presenciar tudo isso, não faz diferença, contanto que as partes envolvidas não se conheçam. O homem da plataforma está recostado na coluna, com a perna esquerda dobrada para trás e o pé direito tensionado para manter o equilíbrio do corpo. Meio impaciente, ouve os berros autocensurados da mulher, que tenta controlar seus impulsos do mesmo modo como controla o tom de voz. Não quer fazer escândalo, expor seus medos privados em lugares públicos. Eu lhe agradeço, de pensamento. Já presenciei casos em que o bom senso foi deixado de lado e, sinceramente, ninguém merece tal coisa, nem quem a protagoniza, nem quem figura. Ora, não são garotos, tampouco são velhos. Estão simplesmente naquela idade em que um deseja casar e o outro não, em que um pensa na carreira e o outro no amor, em que um gosta do amarelo e o outro do verde; a idade da discussão, uma das famosas crises do "x" anos que as revistas femininas gostam de enumerar. Mais para frente, se continuarem juntos, quando todas as alternativas particulares tiverem se esvaído, ambos perceberão que se contentaram com o vermelho e serão felizes porque proporcionaram satisfação ao par. Já tive dúvidas, quis saber se isso explicava o real sentido da vida. Agora, apenas assumo que não sei, não saberei e também não importa. Não existe um sentido único. Se alguns sonhos se realizam enquanto outros se transformam pelo caminho, a existência humana continua a ser um apanhado de decepções, somadas a alguns bons momentos isolados. São estes que realmente fazem a diferença. E daí se a conta fica negativa no final? Bom mesmo é aproveitar suas parcelas. Aqui, ninguém vive de totais. Bem-vindo à cidade das ilusões, dos contos de fadas, que faz acreditar que tudo depende de você, que você pode ser rei, que as oportunidades correm soltas pelas ruas e basta um pouco de esforço para conquistá-las. Então, de repente, o encanto se desfaz, caem as cortinas e vemos que o manipulador de bonecos não passa de um sujeito irônico. A cidade brinca com seus habitantes, somos como formigas num terrário. Não se trata de magia, mas de truques. São Paulo é linda como um cassino de Vegas, é verdade, suas lâmpadas brilham forte sob a noite nublada, seus semáforos parecem máquinas de pinball. Só que poucos ganham no final. Uns, mais abonados, que já nasceram em vantagem e só precisam se preocupar com mantê-la, e outros poucos sortudos, que tinham uma única moeda para tentar a sorte e conseguiram obtê-la. Infelizmente, a grande maioria não tem nem cinco centavos para apostar. O casal na plataforma é mais um entre outros milhões. Vejo-os agora e provavelmente jamais tornaremos a nos encontrar. Se acontecer, não nos reconheceremos, faz parte do código de conduta da cidade. Você é você, eu sou eu, os outros são os outros. Estes são estes e brigam. A mulher aponta com uma mistura de raiva e decepção, o homem deve ter feito algo errado, deve tê-la chateado por algum motivo tolo. Talvez não, pode ser que ela simplesmente queira fazer alguma coisa que ele não quer. A gente muitas vezes se desentende por banalidades, por não querer abrir mão de uns valores que, mais tarde, se revelarão infantis e ordinários. "Acho melhor não", como dizia Bartleby, olhando para o muro de tijolos. Ele abaixa a cabeça. É isso, né? Mais cobrança. O verde, o amarelo, o vermelho. A mulher se cala, desvia os olhos. O homem descola o pé da coluna e começa a gesticular. Não sei se está justificando alguma atitude ou se tenta fazer as pazes, não consigo ver a expressão de seu rosto com a nitidez necessária. Sei apenas que sua boca se move lentamente e parece triste. A mulher reage se agarrando à bolsa com as duas mãos, como se esta fosse consolá-la. Ela balança a cabeça. Não. Não o quê? O homem estende os braços em sua direção e os abre, põe o peito à disposição dela. A mulher recua um pouco, vira para o outro lado. Não quer, acredita que é mais correto agir assim. Bobagem. Ela deveria abraçar bem forte aquele que se propõe a amá-la. Não vale a pena trocar um amor pelo próprio ego. É sempre a estúpida mesquinhez que toma posse de nossa língua e amarga nosso beijo. A mesquinhez que tende a se tornar a única companheira na velhice. A dicotomia entre o amor e o egoísmo travestido de amor-próprio. O homem abaixa um pouco os braços, mas os mantém estendidos como sinal de última chance. A mulher o encara, olha de dentro dos olhos para dentro do espírito. Pergunta alguma coisa. Ele vacila e então balança a cabeça em resposta. Sim. Isso! Boa escolha. Alguém tinha que dizer sim. Percebo então o agito em meu assento e o considero um tanto quanto inapropriado, fico sem graça, acrescento certa vermelhidão àquela já proporcionada pelo calor. Olho ao redor e atesto que meus companheiros de viagem também estão todos observando a discussão na plataforma, participando dela tal como faziam os anjos do Wim Wenders. No final, o veredicto não fará diferença para eles. Bom, talvez faça. Os jovens de mochila têm os olhos arregalados, a senhora saiu do livro e provavelmente nem se lembra mais da história ainda aberta sobre suas coxas. Quem precisa de ficção quando a realidade se faz ver assim, nua e crua? Os outros passageiros também se reposicionaram para ver a briga. Sem perceberem, alguns se inclinaram na direção das janelas, enquanto outros se retorceram sobre os bancos. Só mesmo o homem gordo continuou dormindo, cansado que está; vejo que o fio de saliva já chegou ao seu pescoço. Como um clique de interruptor que afasta a escuridão, o alerta de fechamento das portas acende as luzes do cinema e recoloca todos de volta em seus lugares de origem, seus mundinhos particulares. Abaixam os olhos, disfarçam, procuram os celulares, confirmam as horas. São quinze para daqui a pouco, exatamente como supunham. A velha senhora fecha o livro e fica olhando na direção do vazio, procurando à toa uma recordação esquecida dentro de si. Os jovens de mochila já não trocam mais olhares; algum descerá na próxima estação e o outro seguirá consigo. Os gays se apertam com um abraço forte, embora cada um mantenha a cabeça virada numa direção diferente. O homem gordo engasga, ensaia um sobressalto, desiste, se aconchega no vidro e continua a dormir. O trem retoma o passo. Acelera vagarosamente e começa a deixar tudo para trás. A velocidade aumenta até borrar o cenário na janela. As grades passam cada vez mais rápido, as lâmpadas vão ficando mais difíceis de distinguir. As placas de sinalização se tornam abstratas. Pouco antes de voltar ao túnel, tenho um relance: outro casal está recostado numa coluna de concreto, na ponta da plataforma diretamente oposta à do primeiro casal. Não consigo discernir muita coisa, além de duas formas agarradas, mescladas na única e bonita posição do beijo. Essa composição que tantos artistas tentaram retratar, sem sucesso. Braços entrelaçados nas costas, olhos fechados. Tudo fica escuro. Volto-me para dentro do vagão, procuro meus companheiros de viagem. Aparentemente, ninguém reparou no casal de amantes se beijando ali fora. Se chegaram mesmo a vê-los, ninguém pareceu se importar.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

AMOR, SUBLIME AMOR


(sem título), de George F. Mobley

Chove, chuva. Chove sem parar. Ah, Jorge Ben Jor, o senhor sabe das coisas, já reivindicava há muito tempo essa moda de agora; a tal da chuva, não há quem a tire das manchetes. Se nos idos de FHC o problema era a falta, nos tempos de Lulalá é o excesso. Retrato perfeito do Brasil, terra do oito ou oitenta, do amor e do ódio, das tragicomédias em família. Eu queria dizer que, no final, é sempre o inocente que se ferra. Queria mesmo. Mas a verdade é que não há inocentes nessa história. Estamos em Manguetown e todo mundo está enfiado na lama de um jeito ou de outro, muitos até o pescoço. Bobeou, piscou, vai preso em nome da lei. Isso porque você também colabora com a enchente, seja de maneira ativa, jogando lixo nas ruas; seja simplesmente ficando sentado no sofá observando a chuva cair sem fazer nada para remediar o problema, sem cobrar melhorias no sistema de saneamento, sem perguntar para onde foi a verba que estava aqui. O gato comeu? Ah, é muito cômodo afundar a bunda no sofá enquanto os outros afundam nas águas barrentas da inundação. Nem tente se isentar!, desculpa esfarrapada não cola. Se qualquer garoa hoje em dia gera dilúvio, tem cara-pálida dizendo que isso não passa de tempestade em copo d'água. Não passa de falta de vergonha na cara, isso sim. Vá dizer para aquele povo que viu seus poucos bens saírem boiando pela janela da cozinha, que viu o vizinho ser desenterrado pelos bombeiros para ser reenterrado algumas horas mais tarde, que a enchente é culpa da natureza; aquele povo que só conhece tempestade em copo de requeijão. A-ham. Trouxa aqui, meu amigo, nem mesmo os do Harry Potter, pois não há magia que reverta este quadro absurdo com um toque de varinha. Se a vida fosse um conto de fadas, os lobos maus teriam superpovoado o bosque. E agora não precisamos nem esperar as águas de março chegarem, veja que beleza, pois é pau, é pedra, é o fim do caminho em qualquer época do ano. Superaquecimento global? Imagina, é mais conveniente acreditar que se trata de intriga da oposição, plano dos países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres. Me poupe... É o resto do toco, é o carro enguiçado, isso sim; são as previsões certeiras do nosso Tom Jobim. As orelhas de São Pedro que o digam, devem estar fervilhando de tão vermelhas, tanto que falam mal do seu trabalho. O coitado não deve estar entendendo nada, no mínimo já solicitou ao Ibope uma pesquisa de campo para verificar os motivos de sua água causar tamanho estrago. Será que o volume foi tão mais alto assim, que não estávamos preparados? Aposto que é apenas restituição pela secura dos Natais passados. Afinal, o que é certo assim o é, o próprio nome já diz, o Santo não ia calotear. Já os diabinhos daqui da Terra... Fato é que o ralo do Brasil está entupido de tanta sujeira, sujeira que atravanca nossos anais políticos, econômicos e sociais. Nossa piscina está cheia de ratos, como dizia o Cazuza. Pois no fatídico oito de dezembro paulistano, dia em que tudo foi definitivamente por água abaixo, comecei a ler a Crônica da estação das chuvas, do japonês Nagai Kafu. Foi de propósito mesmo, pura ironia. O livro fala de Tóquio no início do século XX, com sua movimentada vida noturna e seus problemas típicos de um povo perdido entre a tradição oriental e os novos valores ocidentais. A chuva está sempre ali, embora raramente possamos vê-la; o autor apenas a sugere, citando o ar úmido e pesado, a lama, o calçamento escorregadio, as barras dos quimonos levantadas... é bonito, meio poético, tem uma carga simbólica, sabe? Tem esse amor pela vida e pela cidade. Bem diferente do que ando vendo nos telejornais. Pois a arte costuma retratar a chuva como um fenômeno sublime da natureza, tão real e ao mesmo tempo tão fantástico que é lindo e também amedrontador. Ela nos faz lavar a alma, definitivamente. Pena que a situação brasileira esteja entrando num beco sem saída. E, como toda novela que se preza, desta também já conheço o final: vão esperar a estação das secas chegar e dizer que os problemas de enchente são águas passadas. Que triste... Talvez, nos últimos tempos, não esteja apenas chovendo. Talvez seja o céu chorando por nós.

sábado, 19 de dezembro de 2009

AMOR, FALSO AMOR



“É possível que você esteja se preocupando demais com várias coisas. Desse jeito, acabam parecendo reais até coisas que não o são. Em outras palavras, é a dicotomia entre a ilusão e os fatos. Quando uma coisa existe, ela naturalmente reflete sua sombra. Dependendo, porém, do movimento e das circunstâncias, o oposto pode acontecer e a sombra criar os fatos.”

No fatídico 8 de dezembro, dia em que a cidade de São Paulo submergiu graças ao enorme volume de chuvas e ao seu estúpido processo de ocupação – incluem-se aí governo e população –, comecei a ler a Crônica da estação das chuvas, do japonês Nagai Kafu (1879-1959). Foi por pura ironia mesmo. Tinha comprado o livro poucas semanas antes, na feira da FFLCH/USP, com os tradicionais 50% de desconto (quem me segue no Twitter ficou sabendo: @almeida_edu) e a ocasião pareceu excelente, pois, assim como muitos outros paulistanos, permaneci ilhado em casa, tentando me comunicar com o escritório via telefone e internet. Enquanto isso, passei os olhos pelo primeiro capítulo e não consegui mais parar de ler.

Kafu descreve a vida noturna de Tóquio no início do século XX, com seus bares, gueixas, táxis, bondes, policiais, cigarros, casas de chá – que funcionavam como os motéis de hoje, acredita? – e álcool, muito álcool. No entanto, poucas imoralidades aparecem de maneira explícita; a maioria é apenas sugerida, e o leitor assume a função de construir cada cena utilizando a própria imaginação. Assim, nem mesmo o sexo comprado fica vulgar, nem mesmo as bebedeiras.

Trata-se de um Japão meio decadente, é verdade, meio deprimente, que tenta preservar uns poucos valores do passado em meio ao avanço da cultura ocidental. Suas prostitutas, por exemplo, não são retratadas de maneira muito marginal; misturam-se às gueixas, às garçonetes e, no final, ninguém sabe realmente quem é o que.

Tudo bem que é uma realidade muito diferente da nossa, cronológica e culturalmente falando. Para saber o que este texto significou quando foi publicado em 1931, precisaríamos ser especialistas em história da literatura oriental. Não vem ao caso. O melhor mesmo é deixar as diferenças de lado e nos atermos às semelhanças, pois são elas que mantêm o romance atual. Os personagens masculinos, por exemplo, são vítimas de um machismo bem típico: traem suas esposas, mas se sentem ofendidos quando as amantes se relacionam com outros. Já viu isso em algum lugar? Para piorar, estas são geralmente prostitutas, então já dá para imaginar a confusão. Só que não importa, traição é traição e, às vezes, merece vingança. Sendo assim, para manter os clientes, as moças escondem uns dos outros, e vão exercendo sua profissão contando que eles não fiquem sabendo. Surreal.

Com objetivo de situar melhor o leitor, tudo no livro é muito detalhado. A moda, os costumes e, principalmente, o entorno – há o nome das ruas, do bairro, dos estabelecimentos, das famílias; há as cores, a sujeira, os cheiros, as árvores etc. O excesso às vezes confunde, talvez porque não tenhamos familiaridade com aqueles nomes estranhos, e fica difícil relembrar algumas passagens. Nesse sentido, a pequena espessura do livro ajuda. Talvez os leitores de lá se sintam mais à vontade.

Trata-se também de uma história de mistérios – quando menos se espera, algum se revela, ainda que sequer suspeitássemos dele. Uma das personagens, por exemplo, chama-se Kyoko, mas só depois de lermos um terço do livro é que o nome se mostra fictício, mudando de acordo com o grupo de pessoas em que se encontra.

As chuvas do título estão sempre presentes, embora nem sempre conseguimos vê-las. Ficam apenas resquícios, tais como o ar úmido e pesado, a lama, o calçamento escorregadio, as barras dos quimonos levantadas... Bem diferente do que vi no telejornal, onde as famílias paulistanas apareciam literalmente mergulhadas na imundície da enchente.

Um fato interessante: o romance “não acaba”, ou seja, seu final fica em aberto, misturando-se à vida real e nos deixando a sensação de termos lido apenas uma parte, de termos interagido por apenas um breve instante. Isso não é incomum na literatura japonesa daquela época, vide a obra de Yasunari Kawabata. Nas primeiras vezes, é meio estranho, mas depois se torna reconfortante saber que jamais os extinguiremos. Pois, na ficção e na vida real, sempre restará muita história para contar, e as coisas mais surpreendentes se revelam quando as águas baixam. Veremos isso ao vivo e a cores, pois a nossa estação das chuvas começa agora. Prepare as galochas.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009



Depois da aula, fora de bicicleta até um parquinho à beira do lago. De uma bolsa presa à bicicleta tirou o Manual do amador de rádio e Um ianque na corte do rei Artur. Depois de um instante de reflexão, decidiu-se pelo segundo. O herói de Mark Twain levara uma pancada na cabeça, acordando na Inglaterra arturiana. Talvez fosse tudo um sonho ou um delírio. Mas talvez fosse verdadeiro. Seria impossível retroceder no tempo? Com a cabeça enfiada nos joelhos, Ellie procurou uma de suas passagens favoritas; aquela em que o herói é, pela primeira vez, capturado por um homem de armadura, que o toma por doido que fugiu do hospício do lugar. Ao chegarem ao topo da colina, vêem uma cidade deles:
"Bridgeport?, perguntei...
"Camelot", disse ele.
Ela olhou para o lago azul, tentando visualizar uma cidade que poderia passar tanto pela Bridgeport do século XIX como pela Camelot do século VI, quando a mãe correu até ela.
"Procurei você por toda parte. Por que nunca está num lugar em que posso encontrá-la? Ah, Ellie", murmurou a mãe, "aconteceu uma coisa terrível."

Contato, de Carl Sagan

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009


L.H.O.O.Q. (1919), de Marcel Duchamp

"Quando nos dispomos a fazer a apreciação de uma obra, seja ela qual for, independentemente da leitura que dela fizermos, é preciso, a cada encontro, olhá-la e ouvi-la pacientemente, esperando que ela nos fale. Para isso, temos de abandonar qualquer pretensão a um sentido preestabelecido ou a uma compreensão imediata. Essa postura disponível do espectador é a exigida pela própria singularidade das obras, porque é uma característica intrínseca a toda obra apresentar uma coesão, uma unidade estrutural tão poderosa que ela remeta mais a si mesma e sua história do que a qualquer outra situação no mundo."

"É preciso respeitar uma obra em seu ser específico, (...) tratá-la como um corpo autorreferenciado, (...) uma organização sensível com duplo aspecto: o de mostrar-se a si mesma, como corpo, como espaço-tempo próprio, em sua imanência, e de suscitar, ao mesmo tempo, um sentido transcendente, um mundo, ou seja, um conjunto mais ou menos vasto de possibilidades de existência e tonalidades afetivas, abstratas ou concretas."

João A. Frayze-Pereira, em A psicanálise implicada

domingo, 13 de dezembro de 2009

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO - PALOMA


Muriel Barbery

“Se tem uma coisa que detesto é quando as pessoas transformam em credos sua impotência ou sua alienação.”

Sabe, depois de apresentar a concierge Renée, senti uma necessidade imensa de escrever também sobre Paloma, a outra personagem central do romance A elegância do ouriço, da filósofa francesa Muriel Barbery. Trata-se de uma menina de apenas doze anos, filha de um dos oito proprietários do rico edifício da Rue de Grenelle, onde Renée trabalha. Mais inteligente do que as crianças de sua idade e mais consciente das suas obrigações com o mundo do que a maioria dos adultos, Paloma está em crise. Planeja colocar fogo no apartamento e se matar em seguida ingerindo calmantes roubados da mãe, não por pura rebeldia, mas com o bonito intuito de trazer sua família alienada de volta à realidade. “Sem apartamento e sem filha, talvez eles pensem em todos os africanos mortos, não?” Ela deseja que o pai covarde, a mãe hipocondríaca e a irmã pseudointelectual redescubram a vida e o sentimento humano que deveria movê-la.

“Aparentemente, de vez em quando os adultos têm tempo de sentar e contemplar o desastre que é a vida deles. (...) ‘Que fim levaram nossos sonhos de juventude?’, perguntam com ar desiludido e satisfeito.”

A crítica de Paloma é ácida e irônica. Tanto na escola quanto em casa, ela se esforça para parecer mais idiota do que é. Suas preocupações são profundas e inquietantes, dizem respeito à natureza humana e a seus conflitos mais essenciais, tais como a morte, o sentido da existência, a arte, o conhecimento, o belo, o trabalho e o prazer. Não quer morrer à toa, tanto que se propõe a escrever em dois cadernos o que chama de “Pensamentos profundos” e “Diário do movimento do mundo”. Como os adultos tendem biologicamente ao absurdo, Paloma quer produzir o máximo de reflexões que puder, de modo que sua mente se conforte com a situação. No entanto, isso não basta. Ela quer também registrar um diário “dedicado ao movimento das pessoas, dos corpos, e até, se realmente não houver nada para dizer, das coisas, e a descobrir aí algo que seja estético o suficiente para dar um valor à vida”. Pois, fora o amor, a amizade e a beleza da arte, Paloma não vê muitas outras coisas capazes de alimentar a alma humana. Os diários têm o propósito de preencher os seus vazios interiores antes do suicídio; são movimento para o corpo e ideia para o espírito.

Os escritos são maravilhosos. Não apenas pelos assuntos abordados, mas porque na maioria das vezes Muriel acerta o ponto e a argumentação de Paloma parece realmente a de uma criança. Assim, ela trata de fundamentos filosóficos com simplicidade, utilizando metáforas corriqueiras, tal como os debates com a professora na sala de aula e a reprovação dos colegas. Ela analisa os animais do prédio de acordo com o comportamento de seus donos, esconde-se para fugir do barulho provocativo da irmã, tem medo da própria avó, pois descobre que as pessoas más não se tornam boas com a idade. Compara literatura e televisão. Observa Renée atentamente, até que se tornam amigas. Elas têm muito em comum; assim como a concierge, Paloma finge ser o que não é: uma criança débil, passiva e banal. Troca de opinião a todo instante, uma vez que está em processo de descoberta do mundo, e não tem medo disso. Ainda bem. Paloma aproveita seu tempo construindo, refletindo, preocupada com a irracionalidade dos outros e com a impossibilidade de promover grandes mudanças. Não quer desperdiçar seus últimos instantes, pois a vida já é curta o suficiente mesmo quando não planejamos morrer precocemente.

“O tempo de uma vida é irrisório. (...) Se tememos o amanhã, é porque não sabemos construir o presente e, quando não sabemos construir o presente, contamos que amanhã saberemos e nos ferramos, porque o amanhã acaba sempre por se tornar hoje, não é mesmo?”

sábado, 12 de dezembro de 2009

UM PASSADO EM COMUM. UM FUTURO, TALVEZ


Guernica (1937), de Pablo Picasso

É reconfortante saber que tudo à nossa volta não passa da continuação de algo muito maior. É bonito também, somos parte de um processo. Diferentes dos outros animais, jamais começamos do zero; somos agraciados com a herança dos antepassados logo que nascemos. Nossa função, ao longo da vida, é contribuir com a história, continuar a escrevê-la. Há quem proponha novos capítulos, quem acrescente tragédias e comédias; há quem prefira atuar como figurante para assistir ao desenrolar do espetáculo à distância; há quem sequer aparece nele. Ainda assim, cada um tem seu papel. E, seja ele qual for, está em constante diálogo com o passado, pois é nele que encontramos sentido para todo o resto. Somo o que somos apenas porque alguém já foi alguém um dia. E tudo o que virá, virá por nossa causa. Essa é a beleza da vida. É também o peso de nossa responsabilidade.


Assista a esta interessantíssima viagem 3D pela Guernica, criada pela artista nova-iorquina Lena Gieseke:


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

MÁRIO BORTOLOTTO



Na madrugada de sábado, o dramaturgo foi baleado ao reagir a um assalto em São Paulo. Ontem à noite, o Espaço Parlapatões promoveu um ato público em homenagem a ele, quando foram lidos poemas e trechos de peças de sua autoria. O amigo Marcelo Rubens Paiva escreveu uma mensagem de boa sorte aqui: http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva. Bortolotto passou por duas cirurgias e reage bem. Ironicamente, ele mantém desde 2004 o blog http://atirenodramaturgo.zip.net/. Abaixo, uma lista de espetáculos que produziu, incluindo Nossa vida não vale um Chevrolet, que recebeu o Prêmio Shell de Teatro em 2008:

• Transas Mil
• Brasilians Boys
• A Meia Noite um Solo de Sax na Minha Cabeça
• Feliz Natal Charles Bukowski
• Será que a Gente Influencia o Caetano
• A Louca Balada de Lou Reed
• Singapura Slings
• Leila Baby
• Fica Frio
• Fuck You Baby
• Para Alguns a Noite É Azul
• O Cara que Dançou Comigo
• Nossa Vida Não Vale um Chevrolet
• Cocooning
• Uma Fábula Podre
• Felizes para Sempre
• Vamos Sair da Chuva quando a Bomba Cair
• Medusa de Ray Ban
• Postcards de Atacama
• Getsêmani
• Deve Ser do Caralho o Carnaval em Bonifácio
• Brutal
• Gravidade Zero
• Tempo de Trégua
• A Frente Fria que Traz a Chuva
• O que Restou do Sagrado
• O Natimorto
• Nossa vida não vale um Chevrolet

sábado, 5 de dezembro de 2009

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO - RENÉE



“Podemos ser tão semelhantes e viver em universos tão distantes? É possível que partilhemos o mesmo frenesi, nós que não somos do mesmo solo nem do mesmo sangue e da mesma ambição?”

Acho que todo mundo tem um pouco de Renée, co-protagonista do romance A elegância do ouriço, de Muriel Barbery. Trata-se da concierge (espécie de zeladora) de um pequeno edifício de alto padrão em Paris, que, diferentemente do que se imagina de seus semelhantes, é inteligente, educada e intelectual. Só que Renée não quer decepcionar seus preconceituosos contratantes e, por conta disso, se faz de ignorante na presença deles, fingindo ser a concierge que eles esperam ter.

“Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado”.

Nascida em um lugarejo do interior da França, fruto de uma família embrutecida pelo isolamento e pela falta de estudo, Renée se desviou do rumo que o destino lhe reservava; mudou-se para Paris, passou a frequentar bibliotecas, a se interessar por cultura e, mais do que isso, a apurar sua visão crítica. Com o passar dos anos, tornou-se sócia fiel do bom gosto (principalmente estético), autodidata e praticante da filosofia por puro prazer – ideal ainda longe de acontecer a todos. Às escondidas, Renée lê Husserl, divaga sobre o belo, saltita entre referências pop e clássicas, assiste aos mestres do cinema oriental, exalta a gramática, visita museus e se deixa emocionar tanto por Mozart quanto por Eminem. Admira a pintura acadêmica, em especial a da escola holandesa. Deu a seu gato o nome de Leon por causa de Tolstoi, seu escritor favorito entre os expoentes da literatura russa. Valoriza a alta gastronomia e, se compra “comida de pobre”, é só para disfarçar, seu gato gordo que o diga. Em outras palavras, Renée é uma personagem fantástica, cheia de mistérios e reflexões inusitadas, dona de seus pensamentos, consciente de que não pode mudar o mundo, embora possa aproveitar o melhor dele quando ninguém está olhando, basta que aprofunde seu conhecimento. Ela dispensa o clichê da intelectual marxista revolucionária: seu único propósito é ser feliz (de preferência, sem ser perturbada pelo desprezo alheio).

Quando digo que todos nós temos um pouco de Renée, não é porque somos inteligentes e críticos do gosto, muito pelo contrário – é porque estamos sempre tentando ser aquilo que os outros esperam de nós. A concierge deve ter QI limitado, vestir-se mal e falar errado?, então é assim que Renée agirá frente aos ricaços esnobes de seu condomínio. No entanto, ela é muito mais do que isso: possui a elegância do ouriço: é crivada de espinhos por fora, mas por dentro é solitária, falsamente indolente e requintada, tal como a autora a define.

A crítica recai justamente sobre essa estranha atitude de tentarmos apreender aquilo que está preconcebido para nós. Ora, quem nunca sentiu vergonha de exibir suas vontades? De dizer suas preferências, principalmente quando elas vão contra a ordem corrente? Ou, pior ainda, discuti-las com os outros? Mas... por quê? Talvez porque nosso lugar na sociedade seja o mesmo de um ator no “espetáculo da vida”, como dizem. Tentamos desempenhar um papel que nem sempre está de acordo com o que somos fora do palco. Quem você quer ser quando crescer? O mocinho, a perversa, o chefe mal-humorado, o boa-praça, a mãe dedicada, o adolescente rebelde, a esposa submissa? Às vezes, é difícil quebrar paradigmas e ser político sem ser corrupto, ser negro sem ser menosprezado, ser pobre sem ser ignorante; o meio faz suas exigências. Duras exigências. Se bater de frente é missão para raros, há determinados que ao menos tentam contornar a situação. É o que Renée faz, criando um alter ego de defesa, uma espécie de anti-herói que também presta socorro. Uma fuga. Afinal, o que as pessoas ao redor poderiam pensar? “Danem-se eles”, dá vontade de responder. De certo modo, esta é a atitude de Renée. Só que ninguém ouve sua refutação. Ao invés de mandar todo mundo às favas e assumir publicamente seu “eu interior”, Renée os ignora e vive a felicidade à triste luz da solidão. Para ela, as outras pessoas podem continuar com suas concepções pré-fabricadas, mesquinhas e estúpidas, contanto que lhe deixem em paz durante as horas de folga. É uma conclusão pouco otimista, mas que vai mudando ao longo da história. Vale a pena ler.

Com sua proposta ao mesmo tempo filosófica e divertida, o livro de Muriel Barbery detém muitas qualidades, com destaque para esta que nos induz a pensar sobre a maneira como agimos em sociedade. “É preciso que alguma coisa acabe, é preciso que alguma coisa comece”, escreve ela em determinado momento. Pois, do começo ao fim, trata-se de uma leitura elucidativa.

domingo, 29 de novembro de 2009

JOSÉ ANTONIO DA SILVA, “DITO” PRIMITIVO


Sem título, 1971

“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou.” J. A. Silva

É bobagem dizer que José Antonio da Silva (1909-1996) fez carreira como artista bruto, primitivo ou mesmo naïve. Ele apenas começou assim, espontaneamente, em São José do Rio Preto, 1946 – ex-lavrador e atual empregado de hotel, tinha 37 anos quando resolvera contrariar a família, comprar tintas, uns metros de flanela e enviar o resultado de suas experiências pictóricas ao Salão da Casa de Cultura da cidade, que seria inaugurado na ocasião. Para sua sorte, o crítico Paulo Mendes de Almeida havia sido convidado a compor o júri e o descobriu em meio às muitas telas de “um academismo rançoso” ali inscritas. Mantendo a tradição da história da arte, o bruto precisa ser revelado por alguém do circuito oficial; precisa ser escavado do limbo, do submundo da cultura, e lançado às bestas ferozes do mercado. Se isso acontece com o artista ainda vivo, sua barbárie falece invariavelmente, mais ou menos como acontece com os indígenas “não-civilizados” que de repente se veem visitados por uma tribo de brancos. Em outras palavras, o artista primitivo só permanece primitivo de verdade até ser trazido à civilização. Depois disso, passa a agir de acordo com o mercado e a pertencer, de uma maneira ou de outra, à história da arte.

Podemos dizer então que o primitivismo de José Antonio da Silva durou apenas esses poucos dias entre a realização de suas primeiras pinturas sobre flanela e a descoberta delas por Paulo Mendes de Almeida. Naquela circunstância, a comissão organizadora do salão anulou o veredicto do júri e concedeu a Silva somente o quarto lugar, desprezando a originalidade de sua obra. Dali para frente, ele jamais seria ingênuo novamente; viria para São Paulo, passaria a ter plena consciência das atitudes que tomava e, se aparentemente suas pinturas permaneciam primitivas, era porque ele assim as desejava. O público queria um artista bruto? Silva magistralmente lhe concedia.



Sem título, 1980


Natureza-morta com magnólias (1941), de Henri Matisse

Isso não desmerece sua arte. É apenas um fator irreversível e ao qual todos os artistas espontâneos estão sujeitos. Mas as pinturas de José Antonio tinham outras qualidades que permaneceram, além de muitas mais que foram sendo adquiridas com o tempo. Elas eram essencialmente críticas. Seus retratos da vida no campo, por exemplo, mostram árvores remanescentes de queimadas, pretas por fora, carne por dentro, violentadas, esquartejadas e abandonadas ao léu. Parece que, para o artista, homem e mundo são feitos do mesmo estofo, tal como escreveu Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Suas pinturas detêm um incrível poder de síntese, principalmente as flores de folhas verdes, miolos coloridos e perspectiva reinventada ou simplesmente ignorada. Silva também parece ouvir as orientações de Matisse, que buscava pintar apenas o que era essencial à pintura; esquematizar sem pôr nem tirar, realizar uma pintura exata, fiel às ideias e aos sentimentos do pintor.



Sem título, 1968

Há também na obra de Silva um simbolismo incutido, talvez até mesmo inconsciente. Seu horizonte, por exemplo, é sempre alto, quase não deixa ver o céu, privilegiando a terra e a forte relação que o artista tinha com ela. As lavouras, os trilhos do trem e as procissões, por sua vez, são infinitos, traçam curvas pela tela e se perdem em algum ponto longínquo, como se o mundo fosse tão grande que não se pudesse medir – um mundo que vai para além do que os olhos de José Antonio podiam ver.



Sem título, 1969

Mas nem só o campo foi objeto de suas pesquisas pictóricas. Quando a crítica o acusou de imitar Van Gogh e o deixou de fora da IV Bienal de São Paulo, apareceu imediatamente enforcada em uma pintura. Quando não compreenderam suas ações ou não as valorizaram como ele gostaria, Silva também se vingava artisticamente; na negação do prêmio principal em São José do Rio Preto, por exemplo, o povo foi vendado e os jurados transformados em jumentos. Neste caso, a pintura cumpriu um papel místico, semelhante ao dos bonecos de vodu. Quando incendiaram a floresta, Silva pintou “A burice dos homens” (1987).

Sua personalidade forte não o impediu de conhecer os grandes mestres. Teve contato a obra de modernistas, inclusive europeus. Chegou a dizer que só existiam três grandes artistas no mundo: Van Gogh, Picasso e ele mesmo. Ou melhor: ele, em primeiro lugar, seguido por Van Gogh e Picasso. Seu primitivismo era um rótulo, utilizado apenas quando lhe interessava. Por trás da simplicidade que suas pinturas apresentam à primeira vista, encontra-se uma complexidade louvável, seja na escolha do tema, seja na relação deste com o artista, seja no discurso que produzem. Algumas de suas soluções estéticas são também interessantes, fruto de um olhar apurado em contraste com uma técnica medíocre. Sendo assim, podemos afirmar que José Antonio da Silva extravasou a ligação estrita que tinha com as tradições do campo e passou a pertencer também à tradição da pintura, bastou ser revelado pela crítica. Ele hoje ocupa um lugar na história; um lugar que escolheu e batalhou para conquistar. Justamente por conta disso, é muito difícil considerá-lo primitivo, mesmo esteticamente falando, tendo em vista que suas atitudes foram propositadas, voltadas ao circuito oficial, conscientes e, muitas vezes, assistidas. Como escreveu Paulo Pasta, artista plástico e curador da exposição realizada recentemente na Galeria Estação (SP), “Silva apoiou-se muito nessa noção de pintor primitivo, não só nos primeiros anos de sua carreira. Inteligente, aceitou-se como o artista que o meio queria ver”. Assim, podemos chamá-lo de pintor, músico e escritor espontâneo, muitas vezes esperto e outras tantas ingênuo, cheio de vontades e exageros, brasileiro típico da roça, embora mudado para a metrópole; explorador crítico tanto do universo ao seu redor quanto de seu universo interior. Um artista de fato, dito e assumido primitivo apenas porque o título lhe convinha.

domingo, 22 de novembro de 2009

AMAR NÃO É...


Amar não é... (pág. 24), de Rodrigo de Faria e Silva (texto) e Julianna Prosdocimi (ilustrações)


Se você não foi ao lançamento do livro, aqui vai um trechinho para dar vontade.

Atrás da aparente simplicidade dos textos e das imagens, estão escondidas verdadeiras reflexões sobre o amor (ou falta dele). São experiências vividas na pele e também no coração, que, de algum modo, nos levam a pensar onde acaba a ficção e começa a difícil realidade de amar.

São também apontamentos obtidos no particular e compartilhados com quem se mostrar interessado. Depois de lidos, resta a cada casal escolher o próximo passo a seguir.

Não são verdades e tampouco são mentiras. É apenas a vida, como ela é e como pode vir a ser.

sábado, 14 de novembro de 2009

LANÇAMENTO: AMAR NÃO É...



Rodrigo de Faria e Silva, autor de Zé Ferino e Da loucura dos homens, entre outros, lança na próxima segunda-feira o livro Amar não é... em parceria com a ilustradora Juliana Prosdocimi.

Clique na imagem acima para mais detalhes e apareça!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

PUXE UMA CADEIRA, SIM?


A cadeira de Van Gogh (1888), de Vincent Van Gogh

Eu estava com uma amiga no Parque da Luz, em São Paulo, caminhando por entre as esculturas e jogando conversa fora. Não entendi, ela me disse. Não entendeu o quê? O que o artista quis dizer. E isso importa? Ela fechou a cara, deve ter me achado um grande mal educado, todo metido a saber de arte e ignorando a ignorância alheia. Quem eu penso que sou, hein? Vixe, deixa pra lá, esqueça. Vamos entrar na Pinacoteca e dar uma olhada na exposição do Matisse? Ok. Minha amiga botou os olhos na primeira tela e exclamou: é linda! E o que Matisse quis dizer?, perguntei. Sei lá. Ah, vai falar que agora não importa?! Enfim, era para refletir sobre o que acabávamos de viver, mas a verdade é que quem quase acabou de viver ali mesmo fui eu – a amiga ficou P. da vida com o comentário. Difícil, né? Às vezes, é mais fácil entender de arte do que entender de gente.

Aí eu pego um livro do Merleau-Ponty e as palavras me saltam à cara; ele me diz que só existe arte através da gente. O que eu faço, Mer? Vá entender de gente!

Fui me consultar com Matisse. O cara é mesmo danado de bom, até minha mãe aprova essa amizade. Ah, se ela soubesse o quanto o coitado foi mal dito na juventude, quando se meteu a sonhar com uma arte que acalmasse a mente bem no instante em que todo mundo queria ver o museu pegar fogo e a revolução tomar conta das galerias. O taxaram de bundão. E agora o bundão estava aí, com uma individual vinda diretamente do resto do mundo, com obras que custam os dois olhos da cara e sendo visitado por milhares. Tem pior: caindo na graça da mulherada.

Um tempo atrás, num papo com Duchamp, descobri que nenhum artista tem plena consciência do que cria. E que o bonito da arte é isso mesmo, interpretá-la à sua maneira, mergulhar com profundidade e desvendar segredos que muitas vezes nem estão nela, mas em você mesmo. Se o artista conseguiu ou não dizer o que queria, isso é problema dele, a gente não precisa se deixar influenciar. Pôxa, é com isso que Matisse sonhava: com pinturas que levassem a outros mundos. Para que complicar se podemos simplificar? Faça simples, faça de um modo que agrade ao coração e não intimide um pensamento ou dois. Ele não pintava para assustar, mas para atrair as pessoas, puxar uma conversa mais longa e menos superficial. Oi, você vem sempre aqui?, etc.

Quando comecei a me cansar daquele blá, blá, blá – história de artista é mais fantasiosa do que as de pescador –, veio Paul Klee com as cadeiras do Feuerbach. Sei lá de onde ele as tirou, mas a verdade é que minhas pernas estavam mesmo doendo. Aquela amiga do começo da crônica já reclamava há duas salas e umas tantas telas. Tinha medo de jogar a toalha bem em cima de uma obra-prima e a dois passos da lojinha! Klee explicou: não deixem o cansaço perturbar o espírito. O artista demora um tempão para criar as obras. Faz parte por parte, junta conceito e desenho, problema com solução, como se estivesse construindo uma casa. Tá achando que é fácil fazer simples? Que nada, dá o maior trabalhão, queima um neurônio atrás do outro. Aí vocês vêm visitá-lo, passam os olhos pela tela e querem esgotá-la assim, de relance? Vocês têm sorte é de ele não esfregar seus narizes nela! Portanto, acomodem as nádegas e valorizem um pouco nosso trabalho, ok? Arte não é publicidade, não tenta vender uma ideia quando vocês menos esperam. Tem que pedir com carinho, sugerir um relacionamento. É muito fácil andar pelo museu como quem passeia no parque e sair dizendo que não entenderam nada. Se vocês têm o moral de dizer que pinto igual criança, aposto que são adultos inteligentes o bastante para me compreenderem. E não precisam ficar sem graça, vou aceitar o comentário como elogio. Só me façam um favor, não se esqueçam mais disso: para entender um quadro, é necessário uma cadeira. Com essa correria diária atrás de sabe-se lá o quê, só é fácil dizer aonde não vamos chegar: a um conhecimento mais profundo das coisas. Então puxem uma cadeira. Vamos prosear.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

SARTRE, O ÚLTIMO TURISTA



Hoje, às 18h30, será lançado o livro A Rainha Albemarle ou o último turista, de Jean-Paul Sartre. O volume recolhe os diários da temporada do autor na Itália.

No evento, haverá uma conferência e uma leitura desses diários por Renato Janine Ribeiro e Augustin de Tugny, com imagens e sons preparadas por Juliano Gouveia dos Santos e Julio de Paula.

Clique na imagem acima para mais informações.


Local: Teatro Eva Hertz (Livraria Cultura do Conjunto Nacional), às 18h30.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

PEÇONHAS


Saturno (1821-1823), de Goya

Você mete a faca
entre os dentes
e tira da língua
o sangue dos outros.

Bífida
entre a vida e a morte
desconhece o amor.