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quinta-feira, 6 de maio de 2010


Concetto spaziale "attese" (década de 1960), de Lucio Fontana


Sobre a fragilidade da vida
Construímos e devastamos cidades
Unimos e derrubamos pontes
Amamos e blefamos continuamente

Baixamos decretos sobre o amor


Sobre a fragilidade da vida
Definimos e vencemos fronteiras
Reinventamos o corpo humano
Chegamos à essência indivisível
E continuamos a anos-luz da perfeição

O microcosmo,
A efêmera vitória


Sobre a fragilidade da vida
Abandonamos o mundo ao rés do chão
E com narizes empinados
Aspiramos ao infinito

A morada dos deuses


Mas é sob a fragilidade da vida
Que finalmente nos enterramos
E nas profundezas da insignificância
Alcançamos a eternidade

terça-feira, 4 de maio de 2010

"(...) que a cultura seja um estímulo à vida atual, e não um culto aos mortos."

Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar

segunda-feira, 3 de maio de 2010

DILEMA E REALIDADE



Quando você finalmente relaciona as imagens com o título e compreende a poesia de Heitor Dahlia, sobra aquela sensação gostosa de que o cinema pode ser mesmo uma grande arte. Pois estar à deriva é flutuar ao sabor das ondas, como um barco que já consumiu todo o combustível de que dispunha, e entre se desesperar e aceitar que é mesmo impossível controlar os entraves da vida, o melhor talvez seja simplesmente se deixar levar.

A história é contada a partir de Filipa, uma adolescente de catorze anos que se encontra entre os dilemas típicos da idade. Tudo ao seu redor está se transformando, suas ilusões infantis começam a dar lugar à fria racionalidade da vida adulta, as férias não têm mais sabor de sorvete, os irmãos mais novos parecem distantes e as pessoas mais velhas ainda se mostram inacessíveis.



A solidez das relações familiares desmorona à sua frente sem que ela possa fazer nada para mantê-la no lugar. Pode apenas observá-la e tentar manter a própria solidez. O ato de olhar guarda um grande poder, mais um dualismo que Filipa precisa enfrentar. Pois ver é descobrir, encontrar, vislumbrar; porém, ver também é destruir, desfazer o encanto, revelar o truque. No filme, temos esses dois olhares muito bem definidos. O primeiro mostrado pelas tomadas amplas, que exploram a maravilhosa geografia de Búzios (RJ), onde o terreno pedregoso separa a mata virgem das águas traiçoeiras do mar. O segundo está nas câmeras voyeristas, bisbilhoteiras, sempre escondidas atrás de uma cerca ou persiana. Elas espiam o que não deveria ser visto, profana o que até então permanecia sagrado.

Há ainda uma terceira câmera, bastante intimista, que se mantém próxima dos personagens e esquenta o filme, leva o espectador para dentro da crise familiar que se encena, fazendo com que ele participe com o coração e sinta mais intensamente o conflito.

O figurino muito bem escolhido por Alexandre Herchcovitch colabora com essa relação, situando-nos no tempo e no espaço do filme, enquanto a maravilhosa fotografia de Ricardo della Rosa acrescenta sentimento ao visual retro. O granulado sépia e azul desbotados sugere a presença da memória, como se estivéssemos regredindo e revivendo um momento então incompreensível. As contraluzes, o brilho do sol, a magia da lua, os reflexos e as transparências – tudo ofusca e preenche a tela de encanto.



Entre o dia e a noite, as férias de Filipa vão chegando ao fim, assim como sua inocência. O livro que seu pai escreve – e do qual pouco revela – traça um paralelo com a realidade, recontando a história que acaba de acontecer e acentuando ainda mais a divergência entre as verdades e mentiras do casal. Pode ser uma espécie de reflexão meditativa, só que também é necessariamente uma ficção, a ser reinventada segundo o ponto de vista de uma única pessoa: o autor.

É dentro do livro que Filipa encontra pela primeira vez os fatos de que a vida é frágil e suscetível a erros. É levantando a cabeça e olhando ao redor que descobre a possibilidade da morte. E é assim, encarando sua antagonista, que ela compreende as regras da existência.

O pai de Filipa então deixa de ser um herói infalível e se torna um homem como outro qualquer, sujeito às adversidades da convivência, e seus braços de aço já não conseguem mais afastar a filha das ameaças do entorno. A mãe deixa de ser a mulher mais bonita do mundo e perde o encanto para as rugas que lhe começam a tomar o rosto. Todos que foram adolescentes um dia passaram por isso, só que não está no roteiro de Dahlia a redescoberta do heroísmo e da beleza dos pais, coisa que só acontece muito mais tarde, quando amadurecemos de verdade. A Filipa da tela permanece jovem, sem entender muito bem o que se passa porque é apenas uma criança, embora seja obrigada a ajudar porque também é adulta. Assim, ela fica perdida entre os seus sentimentos e os dos outros, entre o amor ideal e as decepções reais, entre a idade adulta e os sonhos da infância.

Filipa flutua num mar revolto, encontra-se a uma profundidade em que não consegue mais tocar o chão e não sabe se está a centímetros ou a quilômetros dele. No decorrer da história, nós flutuamos com ela, compartilhamos suas dúvidas e nos emocionamos com seus sofrimentos. Mérito de Heitor Dahlia.

domingo, 2 de maio de 2010

O POP E O PAPA


Marilyn Monroe, de Andy Warhol

A gente se acotovelava para vê-lo, o lugar não parecia grande o bastante, os corredores estavam lotados e os seguranças a ponto de perder o controle. "Lá está! Lá está!", gritavam os mais afoitos quando reconheciam algum indício de toque divino. As mulheres suspiravam encantadas com a fama, querendo fazer parte daquilo tudo de uma maneira ou de outra, querendo um retrato seu em cores berrantes. "Ai-que-lindos", deuses aqui e acolá, o Olimpo hollywoodiano em todos os cantos, musos e musas do mundo flash. Olha o Marlon Brando!, olha o Jimmy Carter!, olha a Estátua da Liberdade! Pois é, eis que finalmente Mr. America vem nos visitar, o papa do pop, grande apropriador de ícones sócio-culturais e mobilizador de massas. Senhoras e senhores, please welcome, Mister Andy Warhol!

A Estação Pinacoteca, em São Paulo, estava lotada de analfabetos da arte em busca da tal "aura" que Walter Benjamin teorizou. Não compreendiam nada do que se pendurava à sua volta, apenas achavam bonito o que lhes fora ensinado como bonito e feio o que não lhes fora ensinado. Só que era pop estar ali. Nada como dar uma olhada nas Marilyn Monroe, todas coloridinhas, extravagantes, um show. As latas de sopa? Ficam ótimas quando estampadas em camisetas. Venham conferir! Garantam já as suas! E a lojinha estava ainda mais lotada do que o resto da exposição.

Não consegui assistir a filme algum, pois as salas de exibição estavam cheias de pessoas se socializando e prestando atenção em tudo, menos na tela. Deve ser chato, né? Preto e branco, sei lá, coisa velha. É melhor voltar para casa a tempo de pegar o Big Brother na TV.

Ah, bom seria se os artistas tivessem mesmo perdido a auréola, tal como quis Baudelaire quase duzentos anos atrás. Nada de divino, nada de devoção, apenas homens comuns como eu e você. Eu também queria um mundo sem tietagem. E o coitado do Benjamin ainda teve tempo de pensar, antes que os nazistas o levassem ao suicídio, que o futuro da arte estava no cinema, pois para ele a pintura era incompatível com as massas. Mas a verdade, meu caro Walter, é que a massa gosta mesmo é de uma massa, não está nem aí para a pintura ou a filmagem. A Monalisa que o diga, leva milhões ao Louvre todos os anos e, acanhada em sua redoma de vidro, mal deixa os olhos dos passantes a observarem diretamente. Tudo bem, para estes, o que importa é tirar uma foto escondido e dizer aos amigos que estiveram lá.



O pensador, de Auguste Rodin

Embora na maioria das vezes seja trágico, o preço da fama também tem seu lado cômico. Foi o Pensador de Rodin que me disse, sentado em sua pose clássica, com o cotovelo apoiado no joelho, a cabeça no punho e os olhos desbravando o além: "Todo mundo se aproxima, tenta me imitar, tira uma foto para o Orkut e vai embora rapidinho com medo de causar incômodo". Mal sabem que o que mais o incomoda é não darem a menor atenção às suas formas moldadas em argila (e não esculpidas), não tentarem compreender seus pensamentos e não perceberem que, ao imitá-lo, apoiam o cotovelo no joelho errado – veja bem, o cotovelo direito vai na perna esquerda, é por isso que seu tronco fica tão torcido. Que mico, hein?

Voltando ao pop de Mr. America, vou logo avisando que quase tudo ali era reprodução, o original não tem importância maior, é apenas uma matriz de impressora. Imagino que isso deverá desapontar muita gente, desculpe por destruir suas crenças. Só que era essa a ideia do homem, vou fazer o quê? Ele queria acabar com a aura criada pela obra de arte única – e ganhar muito dinheiro com sua fábrica de imagens –, embora ainda hoje seja incompreendido, basta ver o fuzuê da exposição. Então, o mínimo que devemos fazer é encará-lo da maneira correta. Pois, se hoje até o papa é pop, por que a Pop Art tem que ser sagrada? Não, a ideia é profanar, banalizar os ícones sócio-culturais, transformando-os em arte e depois destransformando, copiando, copiando e copiando. Se bater aquela vontade de chamar o Andy de "deus", cuidado: o que a arte de hoje menos precisa é ser considerada sagrada, e devemos evitar a todo custo transformar novamente o museu em templo. O divino não está ali, veja bem, ele está entre nós.

PERDA DA AURÉOLA


Marilyn Monroe, foto de Bert Stern

– O quê? Você por aqui, meu caro? Num lugar suspeito? Você, o bebedor de quintessências? O comedor de ambrosia? Na verdade, tenho de surpreender-me!
– Você conhece, caro amigo, meu pavor pelos cavalos e pelos carros. Ainda há pouco, quando atravessava a avenida, apressadíssimo, e saltitava na lama em meio a esse caos movediço em que a morte chega a galope por todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou da minha cabeça para a lama da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que deixar que me rompessem os ossos. E depois, pensei, há males que vêm para bem. Posso agora passear incógnito, praticar ações vis e me entregar à devassidão, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como vê!
– Você deveria ao menos mandar pôr um anúncio pela auréola, ou mandar reavê-la pelo delegado.
– Não, ora essa! Sinto-me bem aqui. Só você me reconheceu. A dignidade, aliás, me entedia. E também, me alegra pensar que algum poeta ruim há de juntá-la e vesti-la impudentemente. Fazer alguém feliz, que prazer! Principalmente um feliz que ainda vai me fazer rir! Pense em X ou em Z, puxa! Que engraçado vai ser!

Charles Baudelaire, em Pequenos poemas em prosa

sexta-feira, 30 de abril de 2010

MAR REVOLTO



Em meados de abril, o Cinesesc promove um festival que reprisa os trinta melhores filmes do ano anterior, segundo escolha da crítica e dos espectadores. Os preços variam de um a quatro reais, a programação agrada a todos os gostos e é uma pena que seja tão mal divulgado. Agora em 2010 mesmo, quando fiquei sabendo, ele já estava para lá da metade e só consegui ver dois filmes: Milk e À deriva. Achei ambos ótimos, mas este último mexeu mais comigo e, imagino, também mexerá com você de uma maneira ou de outra. Isso porque fala da adolescência, uma fase pela qual todos passamos e da qual é impossível sair ileso. Pois um dia você está em férias, divertindo-se com os amigos sem se preocupar com nada maior do que o sabor do próximo sorvete ou o nome da próxima paquera quando, de repente, suas crenças mais sólidas se desmancham no ar e você se vê flutuando em mar aberto entre os dilemas da vida.

O filme nos coloca para pensar, coisa rara nesta época de efeitos especiais mirabolantes que não se sustentam por mais de uma temporada. A produção é brasileira, com roteiro e direção de Heitor Dahlia, o mesmo de Nina (2004) e O cheiro do ralo (2006). A trama se baseia na crise familiar vivida por Filipa, uma adolescente de catorze anos permeada por dúvidas, que oscila entre a inocência e a responsabilidade, os sonhos e a sensualidade, a infância e a tal maturidade.

Não acredito que crescer seja equivalente a "conhecer a realidade", como se esta fosse única e imutável. Quer dizer, criança também vive a realidade – a dela, composta das ilusões que sua percepção produz. No entanto, crescer implica conhecer os processos da vida adulta, na qual todos convivem e que são obrigados a compartilhar. Esta pode ser bastante decepcionante, diga-se de passagem, especialmente se não estamos preparados para enfrentá-la ou, melhor ainda, compreendê-la. É o que acontece com a Filipa do filme, ao descobrir por acaso que seu pai não é mais o herói com quem sempre contou, homem justo e infalível, irrepreensível. Ela cresceu e aqueles braços já não são fortes o suficiente para afastá-la dos perigos do mundo. Sua mãe tampouco permanece a rainha do lar, a mulher mais bonita do universo, sábia e carinhosa na medida certa, com o colo sempre pronto a confortar. Tem agora o rosto tomado por rugas, as pernas doem, as decisões hesitam. O lar já não é a fortaleza que costumava ser, há refúgios mais tentadores lá fora. Tudo é suscetível ao erro e isso é provavelmente o mais difícil de aceitar, o fator humano que destrói a perfeição da fantasia infantil. Os três porquinhos, a bela adormecida, o gênio da lâmpada – todos tiram as máscaras e se revelam atores de um espetáculo que infelizmente tem hora marcada para terminar.

Nesse momento, o que fazemos? Estamos no mar, flutuando ao sabor das ondas, sem saber para onde seguir. Nossos pés não alcançam o chão, que pode estar a centímetros ou a quilômetros de profundidade. Podemos então nos desesperar ou simplesmente aceitar que é mesmo impossível controlar as marés da vida. E que, ao invés de nos debater e afogar, o melhor talvez seja nos deixar levar.

No Cinesesc, quando finalmente relacionei as imagens com o título e compreendi a poesia de Heitor Dahlia, sobrou aquela sensação gostosa de que o cinema pode ser sim uma grande arte. As luzes se acenderam e revelaram uma série de pessoas que passaram por crises semelhantes às minhas e que também sobreviveram, amadureceram e tornaram a ver os pais como heróis – não infalíveis, mas super corajosos. Saí de lá com a sensação de que as tormentas fazem parte da vida e, principalmente, de que não há nada melhor do que encontrar um porto seguro onde atracar.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

APERITIVO

A produção de um longa metragem envolve muito mais cortes do que se imagina. A primeira montagem de Estômago (2008), de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade, tinha 138 minutos. Para dar mais ritmo à história, reduziu-se isso para 112.

Mas o que aconteceu com os 26 minutos restantes?

Alguns se transformaram no curta Ervas, que você vê abaixo. Outros são encontrados nos extras do DVD ou circulando pela internet, basta realizar uma busca rápida. Bom divertimento!



Ervas (2008), de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade

quarta-feira, 21 de abril de 2010

TEATRO CINEMATOGRÁFICO

Como se sabe, devido ao processo de produção, as cenas de um filme não são captadas na mesma ordem em que serão exibidas. Tive então uma ideia: escrever uma peça de teatro que seguisse essa maneira de filmar do cinema, com as cenas sendo representadas de modo a aproveitarem melhor o tempo, os atores, o figurino, os acessórios, o jogo de luzes e a arrumação do palco. Sem qualquer cronologia, linearidade ou edição posterior, como ficaria tal espetáculo?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

OS OLHOS DOS POBRES



Acho incrível como alguns artistas permanecem atuais mesmo após muitos séculos, com suas obras falando continuamente conosco. Charles Baudelaire (1821-1867) é um destes, e é justamente por isso que seus poemas, contos e críticas são ainda tão estudados. Selecionei um deles como exemplo, no qual Baudelaire fala das mudanças ocorridas em Paris durante a modernização idealizada pelo prefeito Barão Haussmann (1808-1891) – a antiga e sinuosa cidade medieval dava lugar à modernidade, representada pelas novas e largas avenidas, os novos cafés e os novos boulevares. Com ela, transformava-se também a percepção das pessoas, originando problemas típicos dos novos tempos. Aliás, problemas atuais, porém não tão novos assim.



Casal de namorados na Bastilha (1957), de Willy Ronis

Ah! Você quer saber por que a odeio. Será, sem dúvida, menos fácil para você entender do que, para mim, explicar; pois você é, me parece, o mais belo exemplo de impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto. Tínhamos deveras prometido um ao outro que todos os nossos pensamentos seriam comuns e que nossas duas almas seriam de ora em diante uma só – um sonho que nada tem de original, afinal, se não o fato de, sonhado por todos os homens, não ter sido realizado por nenhum.

À noite, um pouco cansada, você quis sentar-se frente a um café novo, que formava a esquina com uma avenida nova, ainda apinhada de cascalhos e já exibindo gloriosamente seus esplendores inacabados. O café reluzia. Até o gás ostentava ali todo o ardor de um começo e iluminava com toda força as paredes ofuscantes de brancura, a superfície deslumbrante dos espelhos, o ouro das molduras e cornijas, os pajens de faces roliças puxados por cães de coleira, as senhoras rindo para o falcão empoleirados em seus pinhos, as ninfas e deusas carregando na cabeça frutas, caças e patés, as Hebes e os Ganimedes estendendo os braços para oferecer a pequena ânfora de licores ou obelisco bicolor dos sorvetes variados; toda a história e toda a mitologia a serviço da glutonaria.

Bem em frente de nós, na calçada, quedava-se um bom homem de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, com uma das mãos segurando um menino e levando, no outro braço, uma criaturinha frágil demais para andar. Ele fazia as vezes de babá e trouxera os filhos para tomar o ar da noite. Todos em andrajos. Os três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o café novo com admmiração igual, porém distintamente matizada pela idade.

Os olhos do pai diziam: "Que bonito! Que bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio encerrar-se nessas paredes". Os olhos do menino: "Que bonito! Que bonito! Só que é uma casa onde só entra gente que não é como a gente". Quanto aos olhos do menorzinho, estavam fascinados demais para expressar algo além de uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cantadores que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Quanto a mim, naquela noite, a canção estava certa. Eu me sentia não só comovido com aquela família de olhos, como envergonhado com nossos copos e jarras, maiores que a nossa sede. Voltei meu olhar para o seu, amor querido, para nele ler meu pensamento; mergulhava nos seus olhos tão lindos e estranhamente doces, seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, e então você disse: "Não suporto essa gente, esses olhos arregalados! Você não poderia pedir ao dono do café que os afastasse daqui?"

Tão difícil é se entender, meu anjo querido, e tão incomunicável é o pensamento, mesmo entre quem se ama!

Charles Baudelaire, em Pequenos poemas em prosa

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ARTE CONCEITUAL





"Desde a origem dos salões de arte a tarefa da crítica e do curador foi arbitrar o gosto, papel de que muitos ainda não abdicaram. No entanto, para a Arte Conceitual, aproximar-se da obra não significa acercar dos olhos sua materialidade sensível, à maneira do connaisseur, mas principalmente compreender de modo crítico os meandros das redes que compõem o sistema da arte, operando uma observação apurada de seus mecanismos num contexto muito mais amplo que é o próprio mundo social em sua dinâmica histórica e política."
Cristina Freire, em Arte Conceitual (2006)

Em um texto muito claro, o crítico Tadeu Chiarelli comenta a importância das três obras acima (fotos) para a história da arte brasileira. De quebra, você ainda entende por que o público fica tão perdido quando visita exposições contemporâneas. Clique e leia.

terça-feira, 13 de abril de 2010

DR. SARKOZY


Cena clássica do filme Dr. Estranho (1964), de Stanley Kubrick (nome original_e muito mais legal_: Dr. Strangelove or: How I learned to stop worring and love the bomb)

Ontem, o presidente francês Nicolas Sarkozy disse que a França não irá abrir mão das armas nucleares, pois isso poderia enfraquecer a segurança do país. Segundo ele, o mundo ainda não é um lugar suficientemente seguro para que tal atitude seja tomada.

Agora eu pergunto: quando o mundo será considerado seguro, se os amedrontados continuam empunhando armas, tremendo da cabeça aos pés, com o dedo no gatilho?

Com medo de atentados, todos acabam se tornando potencialmente terroristas.

Leia a matéria completa: G1

sábado, 10 de abril de 2010

SOBRA INOCÊNCIA NO JARDIM DAS DELÍCIAS



É muito gostoso reviver a juventude e perceber que ela não deixou de existir simplesmente porque a gente cresceu. Quem me diz isso é Tiê, com sua voz doce e sonhadora, ao som de um violão dedilhado com carinho.

Há muita ingenuidade em seu jardim, daquela ingenuidade gostosa de quem descobre o mundo com brilho no olhar. Há doçura, daquela que transforma a vida numa acolhedora delícia. Há intimidade sincera, como se abríssemos seu diário e lêssemos ali: "Amor, por que eu te chamo assim?, se com certeza você nem lembra de mim."

É por isso que tudo soa como um devaneio, e é também por isso que continuamos a entender as canções mesmo quando elas vagueiam entre o português, o francês e o inglês. Afinal, nem tudo são palavras. A maior parte é puro sentimento.

Ouço ali a minha própria infância. Coisas banais, como o circo de "Chá verde", as fantasias de "A bailarina e o astronauta", a escola de "Se enamora" e a mamãe de "Passarinho", que viu a filha bater asas e voar, cantando alegremente, para nossa felicidade.

Sweet Jardim é lindo, são sonhos bons cultivados com amor. Se pudesse, me mudaria definitivamente para lá, e viveria feliz para sempre, experimentando todos os dias a inocência e o sabor da infância. Que saudade!


Site oficial: sweetjardim.wordpress.com




Sweet jardim
(música e letra tiê, voz tiê, viola caipira, cajon e banjo: plinio profeta. participação especial: toquinho – violões)

Plantei no jardim um sonho bom. Mostrei meus espinhos pra você. Faz que desamarra o peso das botas e fica feliz. Abre o guardachuva que hoje o sol desistiu de sair. Esse perfume de alecrim trouxe de volta um sonho bom. Posso até olhar pela janela e recitar une petit chanson. Cantei pra você meus velhos tons. Perdi seu ouvido pro jornal. Eu trago a dança que me inspirou o café sem açucar e tal. Analise o fundo da xícara, a esperança é igual. E eu confesso, só me resta a vida interia. Só me resta a vida em mi maior e lá.


Dois
(música tiê, letra tiê e thiago pethit, violão de aço, rhodes e voz: tiê, violão, guitarra e rhodes: plinio profeta)



Como dois estranhos, cada um na sua estrada, nos deparamos, numa esquina, num lugar comum. E aí? Quais são seus planos? Eu até que tenho vários. Se me acompanhar, no caminho eu possso te contar. E mesmo assim, eu queria te perguntar, se você tem ai contigo alguma coisa pra me dar, se tem espaço de sobra no seu coração. Quer levar minha bagagem ou não?

E pelo visto, vou te inserir na minha paisagem e você vai me ensinar as suas verdades e se pensar, a gente já queria tudo isso desde o inicio. De dia, vou me mostrar de longe. De noite, você verá de perto. O certo e o incerto, a gente vai saber. E mesmo assim, queria te contar, que eu tenho aqui comigo alguma coisa pra te dar. Tem espaço de sobra no meu coração. Eu vou levar sua bagagem e o que mais estiver à mão.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

DUCHAMP E JUNG EM DEBATE


Etant donnés (1946-66), de Marcel Duchamp

Um artigo meu, chamado RELAÇÕES SIMBÓLICAS ENTRE ARTISTA E ESPECTADOR: UMA CONVERSA ENTRE MARCEL DUCHAMP E CARL G. JUNG, foi publicado recentemente na 11ª edição da revista Pesquisa em Debate, pertencente à Universidade São Marcos.

Trata-se de um trabalho científico, fruto das pesquisas que venho realizando nos últimos anos, mas isso não impede que os curiosos de plantão deem uma olhada. Se quiser arriscar, utilize o seguinte link:

REVISTA PESQUISA EM DEBATE Nº 11


Resumo
Marcel Duchamp afirmou que o artista não tem plena consciência do que realiza no momento da criação, que suas obras são finalizadas apenas quando o público as interpreta e que uma série de elementos subjetivos definem a diferença entre o que se quis realizar e o que foi de fato realizado. A proposta deste artigo é verificar a validade dessas informações, analisando o modo como a mente criativa do artista e a mente interpretativa do espectador se encontram na obra de arte. Em outras palavras, aqui é feita uma tentativa de compreender melhor a relação entre artista, obra e público, tal como proposto por Duchamp em 1957, por um ponto-de-vista psicológico. Para isso, foram utilizadas teorias da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung que tratam principalmente de símbolos, inconsciente e intelecto, mostrando que toda criação humana está sempre sujeita às leis da psique. Portanto, a partir de correlações bibliográficas entre Jung e Duchamp, descobrimos que este tinha razão: através da obra, imagens inconscientes são compartilhadas, e artista e público se encontram no plano simbólico.

Palavras-chave: Arte. Autoria. Duchamp. Jung. Psicologia analítica. Teoria da arte.

terça-feira, 6 de abril de 2010



"Se me permite, Majestade, há mais indícios a examinar", disse o Coelho Branco, muito afobado, dando um pulo para a frente: "Este documento acaba de ser apreendido".
"O que há nele?", indagou a Rainha.
"Ainda não o abri", respondeu o Coelho Branco, "mas parece ser uma carta, escrita pelo prisioneiro para... para alguém."
"Disso não há dúvida", disse o Rei, "a menos que tivesse sido escrita para ninguém, o que não é comum, como sabe."
"A quem está endereçada?", inquiriu um dos jurados.
"Simplesmente não está endereçada", disse o Coelho Branco; "de fato, não há nada escrito do lado de fora." Desdobrou o papel enquanto falava, e acrescentou: "Afinal de contas, não é uma carta. É um conjunto de versos."
"Estão escritos com a letra do prisioneiro?", perguntou outro dos jurados.
"Não, não estão", diss o Coelho Branco, "e isso é o que têm de mais esquisito." (Todo o júri parecia pasmo.)
"Ele deve ter imitado a letra de outra pessoa", disse o Rei. (Todo o júri se iluminou de novo.)
"Por favor, Majestade", apelou o Valete, "não escrevi isso e não podem provar que escrevi: não há nenhuma assinatura no fim."
"Se você não assinou isso", disse o Rei, "as coisas só pioram. podia ter má intenção, ou teria assinado, como um homem de bem."
A isto se seguiram aplausos gerais: era a primeira coisa realmente sagaz que o Rei dissera aquele dia.
"Isso prova a culpa dele", disse a Rainha.

Trecho de Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

sábado, 3 de abril de 2010

BASTARDOS INGLÓRIOS



É fácil reconhecer a relevância de um fato histórico, basta verificar por quanto tempo se fala dele. A começar pela Guerra de Tróia, narrada por Homero na Ilíada, que aconteceu mais de mil anos antes de Cristo e ainda hoje é estudada no mundo todo. Depois, tivemos os Césares gregos, a ascensão e a queda do Império Romano, as Cruzadas, a Revolução Francesa, a Revolução Russa, a Crise de 1929 etc., só para citar alguns. Mas, sem dúvida alguma, o acontecimento mais comentado da história da humanidade é a Segunda Guerra Mundial. Filmes sobre ela ainda são produzidos aos montes, por exemplo, mesmo passadas mais de cinco décadas do término do conflito, e todos os números relacionados são assombrosos. Pois fica a pergunta: como reconhecer a relevância dessas obras?

A resposta provavelmente é o tempo que dará, assim como aconteceu com o poema de Homero. Parafraseando Marcel Duchamp, no final, é sempre a história que decide quem sobreviverá e quem desaparecerá do universo artístico. Isso não significa, é claro, que não possamos influenciar o veredicto, mantendo em pauta algumas produções realmente interessantes. É o caso do longa Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.



Famoso por reunir diálogos inteligentes e violência banalizada, o diretor norte-americano tratou da Segunda Guerra Mundial de maneira, no mínimo, irreverente. Seu mérito fica por assumir o lado ficcional do cinema e recontar o evento de acordo com sua própria imaginação, inventando uma equipe de nove soldados americanos de origem judia que aterroriza as tropas alemãs e que, no final, mata Hitler e sua turma com rajadas de metralhadora, fogo e dinamite.



No filme de Tarantino, a guerra acaba um ano antes da data oficial, em 1944, durante a estreia de um filme-propaganda nazista num teatro parisiense que ninguém pensou em vigiar ou, melhor ainda, revistar. Todas as principais figuras do partido se reúnem inocentemente na plateia e acabam mortos de uma só vez graças à traição de um soldado alemão e à vingança atrasada de uma garota judia, naquilo que poderia ser considerado um grave erro de enredo justamente se o diretor não tivesse deixado muito claro sua falta de compromisso com a história.



Mantendo a tradição dos filmes anteriores – vide Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Kill Bill –, os diálogos continuam afiadíssimos, já começando pelo primeiro deles, em que o antagonista compara o povo alemão à águia e o judeu ao rato, demonstrando assim por que o Holocausto não precisou de justificativa para ser aceito. Segundo ele, o desprezo pelo próximo mora dentro de nós e pode dar às caras a qualquer instante; ninguém se importará com as consequências disso, contanto que não seja envolvido e, ainda que provem a faltam de lógica, ninguém falará contra.



As "marmeladas" pop de Tarantino também marcam presença, assim como os clichês muito bem aplicados. Como exemplo, podemos citar a superioridade norte-americana, que Hollywood adora afirmar sempre que pode. No caso de Bastardos Inglórios, temos de um lado o herói alemão que venceu trezentos soldados inimigos sozinho e, de outro, o grupo de elite americano que assassina Hitler junto com trezentos e quarenta e nove companheiros. Este último número poderia ser qualquer um, mas... por que menor do que o primeiro? São os toques de gênio do diretor que vão surgindo ao longo do filme. A vingança judaica agradece.



Na cena final, quando o personagem de Brad Pitt diz com ironia: "Acho que esta é minha obra-prima", na verdade é a voz do próprio Tarantino falando de seu filme. Mais uma vez, ele mistura realidade e ficção, colocando-se dentro e fora da tela, posicionando-se como artista e crítico ao mesmo tempo. Eu discordo, não diria que Bastardos Inglórios é a sua obra-prima, mas trata-se sem dúvida de um ótimo filme. Não sei se sobreviverá ao crivo do tempo, se continuará sendo assistido pela posteridade; entretanto, neste instante, eu recomendo a todos.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

ANDES




















Pequeno em meio a tanta grandeza, tu te encantas, não há como conter a emoção, ela te invade por todos os poros, a cada inspiração, a cada olhar, a cada sopro de vento ou canto de pássaro. É o deserto para os pobres de alma, o paraíso para os de rica sensibilidade.

É ver o infinito começar seu caminho ilógico a partir dos teus pés.

Beleza imensurável. Se puderes ser parte dela – basta imaginar que tudo se realiza –, se deixares a natureza carregar teus pensamentos e te mostrar a pureza mais pura que já existiu, a pureza da vida primitiva, dos instintos, tu voarás livremente, crescerás com ela, voltarás para casa muito diferente do que sempre fostes; terás experimentado o sublime, ele te transformará e dele jamais te esquecerás.

Não esperes a montanha vir até ti.