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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não."
José Saramago

sábado, 2 de outubro de 2010

FELIZ ANIVERSÁRIO, MASP

Estive lendo a linha do tempo do MASP, que fizeram para comemorar os 63 anos do museu – sim, é hoje! –, e descobri a foto abaixo. Foi tirada em 1950, durante exposição de Le Corbusier, e achei tão singela que precisava compartilhar.

Fica aqui também minha homenagem a esse que, apesar das crises, continua a ser um dos museus mais importantes do país.

Também é um dos mais importantes para mim. Parabéns!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A DIFÍCIL TAREFA DE EXIBIR IDEIAS

Quero fazer uns breves comentários sobre a exposição de Joseph Beuys no Sesc Pompeia, tão breves quanto foi minha passagem por lá. Verdade que se trata da maior retrospectiva do artista já realizada no Brasil. São cerca de trezentas obras reunidas, entre cartazes, múltiplos e vídeos, além de uma sede simbólica da F.I.U. (Universidade Livre Internacional), responsável por ministrar cursos, palestras e debates a quem interessar. Ainda assim, é uma exposição meio chata de se ver.

Talvez porque Beuys tenha sido um artista conceitual, preocupado com questões políticas e filosóficas a respeito da sociedade, a qual ele queria transformar usando essencialmente arte. Foi inclusive afirmando que todos somos artistas – e, portanto, plenamente capazes de participar dessa revolução – que Beuys, por exemplo, mobilizou um grupo de pessoas para produzir azeite e vinho na Itália. O objetivo era incentivar a revalorização da agricultura local e as garrafas estão à mostra no Sesc, entre outras dessas criações chamadas “múltiplos”. Porém, é importante esclarecer que a obra não é a garrafa em si, mas o projeto e a ação que a geraram. O problema vivido pelo curador Antonio d’Avossa, que torna a restrospectiva um pouco sem graça, não poderia ser mais contemporâneo: como exibir esse tipo de arte?


A responsabilidade recai sobre os textos de parede e vídeos. Agora, cá entre nós, quem tem paciência para apreciar uma exposição assim? Os textos, sempre vítimas do dilema “tamanho x superficialidade”, são difíceis de ler. Primeiro, porque os outros visitantes cruzam o caminho e atrapalham. Depois, porque nossa atenção fica dividida entre tantas novidades que a leitura exige um esforço absurdo.

Os vídeos, por sua vez, demandam tempo e implicam frustração certa, porque pegá-los no começo é tão difícil quanto ganhar na loteria. A mostra em questão conta com vinte deles, divididos em quatro cubículos pouco convidativos, em exibição permanente. São importantes registros de performances e documentários sobre a vida do artista, alguns com até duas horas de duração. Se no cinema, com luz e som ideais, poltronas fofinhas e pipoca já seria uma maratona considerável, imagine ali, em pé, com pessoas circulando e comentando ao redor. Desisto antes mesmo de tentar.

Também está exposta a bonita coleção de cartazes do italiano Luigi Bonotto, que soma duzentas peças, boa parte delas assinada pelo próprio Beuys. Muito mais do que mera divulgação de atividades, os cartazes serviam como um canal de comunicação para as ideais revolucionárias do artista. Um registro histórico que pode até ser revelador, mas que não consegue se livrar do tedioso rótulo de “documentação”.



O mais bacana mesmo são as atividades programadas pela unidade simbólica da F.I.U., que oferece aulas, debates, minicursos, seminários e oficinas. Os professores entendem do assunto e qualquer um pode participar, tal como almejava Beuys.

Também merecem elogios o catálogo e o folder. O primeiro porque, além de ótimas imagens e textos, está sendo vendido por trinta reais – valor convidativo até mesmo para quem deseja apenas folheá-lo por curiosidade, sem grandes pretensões. O segundo, porque traz informações completas e fáceis de consultar. Tem trinta e duas páginas impressas com capricho, que explicam o propósito da mostra e esclarecem a filosofia do artista. Até quem nunca tinha ouvido falar dele vai ler, gostar e guardar na estante.

Se quiser um conselho de um apaixonado pela obra de Joseph Beuys e pelas iniciativas culturais do Sesc, dê uma passada rápida por lá, veja tudo à maneira de Baudelaire – ou seja, ‘flanando’, atentando-se somente ao que lhe instiga – e leve um folder para casa. Justamente por se tratar de uma produção conceitual, é muito mais interessante compreender as ideias do artista do que vivenciá-las por meio de uma experiência de corpo presente. Com isso feito, seu entendimento estará completo.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

PAGANINI FOR FACE



Esse cara interpreta a música de Paganini com expressões faciais. Divertidíssimo!

SE MAOMÉ NÃO VAI À MONTANHA

Com objetivo de atrair visitantes, o MASP colocou uma série de reproduções de suas obras-primas nas imediações. Trata-se de uma publicidade de guerrilha que chama atenção pela irreverência. Duvido que o número de visitas aumente só porque as pinturas foram às ruas, mas, de qualquer maneira, um ponto importante foi marcado: a mídia está falando bastante.

A proposta tem ainda outro objetivo: o fotógrafo Ary Diesendruck vai registrar a reação do público e reunir as imagens num catálogo, que trará ainda textos do curador Teixeira Coelho e declarações dos proprietários dos imóveis em que as reproduções foram colocadas.

Acredito que a iniciativa merece elogios por mais uma razão: ela prova que a publicidade dos museus brasileiros pode ser mais criativa e, dessa maneira, instigar quem jamais pensaria em incluir um programa cultural como esse no fim de semana. Em outras palavras, é sempre bom ouvir as pessoas falando de nossos museus. Melhor ainda quando falam bem.

Mais informações: Estadão

Visite também o site do museu: MASP

segunda-feira, 27 de setembro de 2010



O novo livro do cartunista Laerte, intitulado "Muchacha", parece a reforma da Marginal do Tietê, que inauguraram há meses e ainda não está pronta, porque todo mundo fala do lançamento mas ainda não há nem sombra dele nas livrarias. Pelo que o autor disse agora há pouco no encontro promovido pela revista Bravo!, que aconteceu na loja FNAC de Pinheiros, o lançamento oficial será no próximo sábado. Confesso que fiquei meio decepcionado por não sair de lá com o livro e um autógrafo de brinde, mas a conversa mediada pelo jornalista Armando Antenore foi bem legal. Laerte falou do trabalho, do relacionamento com os colegas, do mercado de quadrinhos no Brasil e da sua nova mania de se vestir de mulher. Tudo bem "à lá Laerte", o que significa uma somatória de humor, non sense e filosofia de banheiro. Beeem divertido.

Saiba mais sobre o livro: Muchacha

SEGUNDA OBRA PICHADA


Segunda obra pichada na Bienal, de Kboco e Roberto Loeb (foto de Carlos Cecconello/Folhapress)

Parece que os ataques de pichadores se transformaram no principal atrativo da Bienal de São Paulo. No segundo dia da recente edição, já temos duas obras vandalizadas. A primeira foi a instalação de Nuno Ramos, que mantém três urubus presos numa jaula e que tem gerado muita polêmica junto aos "ambientalistas" de plantão. A segunda obra, de Kboco e Roberto Loeb, fica do lado de fora do pavilhão e amanheceu ontem com a palavra "invasor" escrita com spray.

Os organizadores assumiram a falta de cuidado em relação a esta última, embora estejam revistando todos os visitantes na entrada, além de os obrigarem a atravessar detectores de metal.

Não que eu entenda do assunto, mas a segurança me pareceu bastante eficiente, o que explica a longa fila que relatei ontem. Ainda assim, provavelmente surgirão outros problemas até o fim do evento, previsto para 12 de dezembro.


Leia mais: Folha Ilustrada

domingo, 26 de setembro de 2010

COMO UM GATO ESCALDADO FICOU FORA DA BIENAL

Hoje o dia amanheceu com chuva forte. Abri a janela e pensei: tempo perfeito para dar o pulo do gato. Isso significa que o mundo conspirava a favor da minha primeira ida à 29ª Bienal de São Paulo, porque a chuva afasta os atletas de fim de semana que normalmente tomam conta do Parque do Ibirapuera e disponibiliza vagas de estacionamento àqueles seres estranhos que, como eu, jamais derramaram uma só gotinha de suor por ali. Só que logo a chuva parou, depois voltou, depois parou de novo e me contaminou com a sua indecisão – fiquei em casa, sentado no sofá, refletindo se deveria arriscar. Escolha difícil, pois moro a pelo menos vinte e cinco quilômetros de lá e não estava a fim de desperdiçar valorosos minutos de paz dominical. Resolvi deixar a manhã em observação e tomar a iniciativa depois do almoço.

Estava friozinho também. Seria impossível o parque lotar. Resolvi ignorar toda a minha experiência adquirida em bienais passadas e assumir o risco.

Quando cheguei, sobravam vagas, foi ótimo. Só que o impossível se provou bastante plausível quando deparei com uma fila imensa, que tomava toda a lateral do pavilhão. Incrível! Centenas, talvez milhares de pessoas aguardando na chuva uma chance de respirar arte. Observei o fluxo, conferi o processo de revista e aprovação e cheguei à conclusão de que, para entrar, eu levaria ao menos uma hora de um gostoso chá de cadeira (sem cadeira e sem chá, para piorar; em outras palavras: uma hora, de pé, na chuva).

Também cheguei a outra conclusão: quem acha que os brasileiros não estão interessados em arte, ainda mais contemporânea, está surpreendentemente enganado. Em seu primeiro domingo, a 29ª Bienal não estava apenas concorrida – estava disputadíssima por reais aficionados. Acabei cedendo meu lugar a um deles. Gostaria muito de evitar essa concorrência e visitar a mostra durante a semana; mas, como as circunstâncias não permitem, resta-me aguardar o próximo sábado ou domingo chuvoso. Ficam registradas aqui minhas dicas e frustração. Tomara que a tal segunda chance venha logo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

OBRA DE ARGENTINO É RETIRADA DA BIENAL

A 29ª Bienal de São Paulo ainda nem foi aberta ao público e já criou algumas boas polêmicas. Adoro isso. Uma delas é a obra do argentino Roberto Jacoby, que comentei anteriormente. O Ministério Público Federal entendeu que ela faz apologia ao PT e orientou a sua retirada do evento, para evitar possíveis complicações político-eleitorais. Saiba os detalhes na matéria publicada originamente em G1, que reproduzo abaixo:


Obra com fotos de Serra e Dilma é coberta na Bienal de São Paulo
Assessoria de imprensa do evento informou que trabalho será retirado.
Obra do argentino Roberto Jacoby contém apologia à candidata do PT.
Do G1, em São Paulo



A obra “El alma nunca piensa sin imagen” (“A alma nunca pensa sem imagem”, em português), do artista argentino Roberto Jacoby, foi coberta na tarde desta quarta-feira (22) na 29º Bienal de São Paulo.

A assessoria de imprensa do evento, que só abre para o público neste sábado, informou que a obra será retirada do Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo por orientação do Ministério Público Federal.

O trabalho de Jacoby inclui um palanque com microfone, vídeos e stencils que fazem apologia à campanha da candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, retratada na obra em um grande mural com chapéu de cangaceira ao lado de um carrancudo José Serra.

Durante a montagem da obra, assistentes do artista usavam camisetas vermelhas com a frase "Brigada Argentina por Dilma".

Em um ofício enviado à Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo nesta terça-feira, os organizadores da Bienal afirmaram que, inicialmente, a obra de Jacoby "seria uma instalação que representaria, de forma fictícia, o momento das eleições presidenciais no Brasil, sem qualquer tendência política a partido ou mesmo a algum candidato". No mesmo texto, a entidade diz que ficou "surpresa" ao se deparar com "uma obra representando verdadeira campanha política" em favor de Dilma e pede orientações para "não ficar sujeita a qualquer penalidade decorrente de transgressão à legislação eleitoral".

'Cabos eleitorais'

O ofício enviado à PRE-SP menciona ainda uma reportagem publicada pelo jornal "Folha de S. Paulo" em 17 de setembro em que o artista afirmava sua preferência pela "continuidade do governo do PT" e dizia que sua obra na Bienal incluiria "25 cabos eleitorais argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata".

Em resposta à Bienal, a PRE-SP revelou que a exibição da peça pode caracterizar crime eleitoral com base no artigo 37 da lei 9504/97, que proíbe a "veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados" em bens cujo uso dependa do Poder Públicos — a exposição acontecerá no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, local que se enquadraria na classificação.

A opção de retirar a obra do espaço expositivo foi comunicada ao artista na própria terça-feira em carta assinada por Salo Kibrit, um dos diretores da Fundação Bienal de São Paulo, e enviada ao G1 pela assessoria de imprensa do evento nesta quarta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ADVOGADOS ANTIQUADOS ANTIQUADROS




Os desenhos de Gil Vicente escolhidos para participar da 29ª Bienal de São Paulo exibem, de maneira clara, o sentimento de grande parte dos brasileiros em relação aos nossos governantes e também em relação à política mundial como um todo. Os advogados da OAB, que não entendem nada de arte, mas que adoram uma polêmica, fizeram um pedido formal para a retirada das obras. Segundo eles, trata-se de uma apologia ao crime. Na última vez em que vi algo semelhante, eram tempos de ditadura militar. Não é o caso de hoje, ainda bem, só que tem gente que ainda pensa com aquela cabeça. Minhas perguntas:

1) Sobre entender as coisas ao pé-da-letra: depois de ver esses desenhos, você sairá matando políticos Brasil afora?
2) Sobre a novidade: mesmo antes de ver esses desenhos, você já não tinha pensado em algo semelhante?
3) Sobre a expressão "é melhor ouvir isso do que ser surdo": devemos dar atenção à OAB?

A Fundação Bienal decidiu que não. Portanto, os quadros permanecerão à mostra. Achei ótimo, até porque eles já tinham sido exibidos em outras quatro cidades. Pelo jeito, nossos advogados não têm o hábito de visitar exposições de arte. Então, querem dar chilique agora? Me poupem.





Leia mais:
Artista 'mata' Lula, FH e outros políticos na obra mais polêmica da Bienal de SP

RIO - Ninguém foi mais assediado na segunda-feira do que o pernambucano Gil Vicente, por enquanto a grande estrela da 29ª Bienal de São Paulo. Na última sexta-feira, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo fez uma nota de repúdio e ameaçou processar a Fundação Bienal por expor a série de desenhos em carvão "Inimigos", em que Vicente se autorretrata matando personalidades como o presidente Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a rainha da Inglaterra Elizabeth II e o papa Bento XVI. A Bienal já afirmou que não vai retirar a obra, exposta anteriormente em quatro outras cidades.

- Parece que voltamos à ditadura. A OAB alegou que a obra incita o crime. Qual é o crime maior, criar essa ficção ou o roubo de dinheiro público dos nossos políticos? - questionou Gil Vicente.

O curador Agnaldo Farias criticou a ação como "tacanha e mesquinha":

- Dizer que a obra incentiva a violência é o mesmo que dizer que "Édipo rei" incentiva o incesto. Só chamará mais atenção para o artista, cujo trabalho tem muito mais qualidade do que essa polêmica.

Retirado de: O GLOBO

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PRÊMIOS E CRITÉRIOS DA CRÍTICA

Estive olhando uma apresentação digital da Associação Brasileira de Críticos de Arte – pois é, tem gente que faz coisas assim – e me surpreendi com alguns prêmios concedidos. Não porque mereceram ou desmereceram, nem quero entrar no mérito, até porque isso exigiria um estudo muito mais aprofundado e, de qualquer maneira, não mudaria o passado. O que me deixou surpreso de verdade foram as diferenças entre obras vencedoras, formalmente falando, em curtos espaços de tempo. Especialmente essas que reproduzo abaixo, que têm dois e um ano entre elas, respectivamente. Não parecem feitas em décadas ou mesmo séculos diferentes? Que maluquice...


Alberto da Veiga Guignard
Paisagem de Ouro Preto, 1960 – Óleo s/tela

Prêmio da Crítica, 1960


Rubem Valentim

Sem título, 1989 – Serigrafia colorida s/papel

Prêmio da Crítica 1962


Emiliano di Cavalcanti 

Mulher e Paisagem, 1931 – Óleo s/eucatex.
Prêmio da Crítica, 1971


Alfredo Volpi
Bandeirinhas, 1970 – Têmpera s/tela

Prêmio da Crítica, 1972

domingo, 19 de setembro de 2010

O FIM DE UMA ILUSÃO



A Bienal de Arte de São Paulo está de volta pela vigésima nona vez e com ela vem também uma série de dificuldades de recepção por parte do público, às quais eu gostaria de pôr um fim. Seria muita pretensão mudar o comportamento do milhão de visitantes esperados com apenas uma crônica, mas eu já ficaria satisfeito se conseguisse ajudar pelo menos meia dúzia a aproveitar ao máximo esse que é o principal evento de arte do país e, talvez, um dos "top 3" do mundo. A começar pela seguinte revelação: as obras que você gostaria de ver por lá, tipo Van Gogh e Monet, com paisagens bucólicas coloridas e belas flores repousando num jarro em cima da mesa não estarão presentes. Aliás, já tem mais de meio século que sequer vemos quadros tradicionais pendurados nas paredes, quem dirá pinturas daqueles gêneros. Não fique triste, dá para contemplar essas obras-primas em diversos outros museus da cidade, tais como o MASP e a Pinacoteca, sem contar as constantes retrospectivas que se organizam em galerias, institutos culturais etc. A questão é que a Bienal tem outro propósito: reunir produções relevantes que estão sendo desenvolvidas atualmente ao redor do mundo, em geral escolhidas segundo tema específico. Isso não significa que só há no pavilhão trabalhos com até dois anos de idade – alguns possivelmente são mais velhos do que você, mas foram produzidos a partir de conceitos artísticos vigentes ainda hoje e que, portanto, pertencem àquilo que chamamos de arte contemporânea. Que conceitos seriam esses? Bom, são muitos, porém posso afirmar que a ideia da "obra como janela", ou seja, aquelas tentativas de criar uma ilusão e transportar você a uma nova realidade, já não existe mais. Em outras palavras, ninguém verá pinturas contendo um universo isolado, capturado e emoldurado, tampouco tentará entrar nelas para chegar à realidade do artista. Agora, é a obra que vem até você, que salta da parede e tenta penetrar a sua realidade. Parece esquisito, só que, na verdade, é muito mais legal. É por isso que os trabalhos raramente ficam pendurados nas paredes – eles venceram o confinamento das molduras e querem interagir com o público. O que nos leva a outro conceito importante da arte contemporânea: você, espectador, foi promovido à coautor do artista. Eita. Isso significa que eu, mero curioso, posso interpretar as obras à minha maneira e criar as minhas verdades a respeito delas? Até certo ponto, sim. Quer dizer, você não precisa mais quebrar a cabeça para desvendar a intenção do artista. No contemporâneo, ele sugere uma ideia e você a completa com sua própria experiência de vida. Por exemplo, o desenho de uma suástica. Com certeza, ele estimulará sentimentos diferentes se o visitante for judeu ou não. Mas, se a suástica é a mesma para ambos, o que muda? O visitante, ora. Percebe a liberdade de apreensão? Porém, como eu disse antes, você pode interpretar a obra como bem entender até certo ponto. Porque a Bienal ficará muito mais interessante se você conhecer a história do artista. Aproveitando o exemplo da suástica, você concordaria que a obra se transforma completamente quando descobrimos que o seu criador não é judeu, ateu ou praticante de qualquer outra religião, mas neonazista, certo? Pode acontecer... Isso nos leva a outro preceito importantíssimo da arte contemporânea: devemos conhecer o contexto da obra, pois normalmente ele é revelador. Só que a Bienal é enorme, como farei para descobrir a particularidade de cada artista? Não dá. A melhor saída é fazer uma visita guiada, pois a equipe de educadores passou meses estudando a exposição e vai adorar explicá-la a você. Eles estão lá para isso, então não tenha vergonha de perguntar tudo, por mais óbvio que possa parecer. Porque arte deve ser simples e prazerosa, e não um tormento inacessível. As obras de hoje costumam ter apelos conceituais, ou seja, nem sempre são o que parecem ser à primeira vista. Para explicar melhor, vou citar o Parangolé, do brasileiro Hélio Oiticica. Trata-se de uma capa de tecido, que deve ser utilizada para dançar. É uma das obras mais importantes da nossa história da arte. Mas você a verá exposta e sabe o que vai parecer? Um retalho de pano, "que até meu sobrinho de dois anos faria igual". Porque a obra não é a capa em si, mas o uso dela, aqueles movimentos ritualísticos que, ao ritmo da música, provocam uma experiência maior, que mistura cor, som e emoção, que nem o Carnaval. Mas como você vai descobrir isso? Tem que perguntar aos educadores, porque não dá para colocar um grupo de pessoas dançando o tempo todo na Bienal, né? Imagina a disposição! Eu quis citar o Oiticica porque haverá algumas obras fundamentais dele por lá, porque elas foram criadas há décadas e porque ele nos ajuda a deixar a tentadora ilusão da arte antiga de lado e adentrar esse rico universo de possibilidades do presente. Além do mais, ele chamava o espectador de um jeito muito mais carinhoso: participador. Portanto, deixo aqui o convite: vamos visitar a 29ª Bienal de São Paulo sem preconceitos, porque muita gente trabalhou sério durante pelo menos dois anos para proporcionar essa experiência física e intelectual. É uma oportunidade única que, se você permitir, acabará com uma série de ilusões ingênuas e lhe apresentará uma nova e maravilhosa realidade artística: a realidade de agora.


Quer saber mais sobre os Parangolés? O vídeo abaixo mostra uma experimentação da obra na Praça da República, Belém/PA.


29ª BIENAL DE SÃO PAULO
Parque do Ibirapuera - Portã​o 3
Pavilhão Ciccillo Matarazzo (Pavilhão da Bienal)

De 2ª a 4ª feira das 9 às 19h
5ª e 6ª feira das 9 às 22h
Sábado e domingo das 9 às 19h
(entrada admitida até uma hora antes do fechamento)

De 25 de setembro a 12 de dezembro
Entrada gratuita
Mais informações: http://www.29bienal.org.br/

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

POLÍTICA E, TALVEZ, ARTE



A 29ª Bienal de Arte de São Paulo está chegando – estreia dia 25 de setembro – e já se fala muito dela, basta abrir qualquer jornal ou revista especializada. O tema escolhido está diretamente relacionado com arte e política e, neste estranho ano eleitoral, parece bastante pertinente. Na verdade, espera-se que as discussões não o tomem ao pé da letra, mas que entendam "política" como uma manifestação social e expressiva, de significação mais ampla. Só que o argentino Roberto Jacoby deixará toda a poesia de lado e fará uma instalação inspirada na paixão que sente pelo PT. Ao que tudo indica, esta será precursora de alguns escândalos.

"Ao longo dos dois meses e meio da megaexposição internacional de arte, Jacoby terá cerca de 25 'cabos eleitorais' argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata à Presidência da República", diz a Folha de São Paulo.

Segundo o autor da obra, "tudo é artístico" e a presença de Dilma Rousseff na Bienal é inevitável.

Será possível dissociar sua instalação de uma simples propaganda política?

Não que eu concorde com Jacoby ou aprecie a proposta, mas acho que existe sim uma possibilidade de entendê-la como arte e não como propaganda, e a resposta está num fato simples: ela acontece "no museu", quer dizer, dentro da instituição artística.

Essa solução é antiga. Em 1917, por exemplo, Marcelo Duchamp levou um mictório para dentro da galeria e aquela mudança de ambiente, somada à atitude do artista, o transformou em arte. Se voltarmos um pouco mais no tempo, chegaremos aos famosos Salões, que ditavam o que era arte de verdade e o que poderia ser descartado. Como faziam isso? Selecionando as pinturas que seriam expostas em suas paredes, ou seja, lá dentro, condecoradas e institucionalizadas.

Ao que parece, o PT não tem nenhum envolvimento direto com Jacoby; a manifestação acontece de pura e espontânea vontade, fruto de um fanatismo pra lá de esquisito. Mais esquisitas ainda foram suas declarações à Folha, ao admitir que gosta de Lula, porém não conhece Dilma muito bem: "O que conheço é o que está na internet. Sei que é economista, muito capaz, estudiosa e se transformou em especialista em energia elétrica num país tão grande como o Brasil. De Serra, não sei muito".

Fiquei curioso para ver a instalação. E ansioso pelos debates subsequentes. Porque, nessa proposta de unir arte e política num mesmo espaço – público, diga-se de passagem –, o mínimo que se espera é discussão. A arte está aí para isso. A reação dos visitantes também.


Leia a matéria completa da Folha.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tem como olhar essa foto e não pensar em milhares de coisas?



Suíte Bahia (sem data), de Mario Cravo Neto (1947–2009)
Prêmio Mário Pedrosa, 2004

ARTE DE VERDADE, NUA E CRUA



A mostra Umbraculum, do belga Jan Fabre, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, não combina com estômagos fracos. São dezenove trabalhos, entre instalações, desenhos e vídeos, que quase sempre fazem referência à morte. Basta um primeiro olhar para sentir o clima: um crânio verde fixado à parede de maneira semelhante a um troféu de caça, mantos sacerdotais flutuantes e bichos pendurados em ganchos que pendem do teto. Só que é o segundo olhar que gera mais repulsa, amplificando aquele sentimento anterior. Isso acontece quando lemos as plaquinhas informativas e descobrimos que o crânio, por exemplo, é verde por conta das cascas de besouro que o envolvem; os mantos são constituídos de ossos humanos finamente cortados e costurados uns aos outros; e os bichos são – ou foram – reais, agora empalhados. Essa mudança na percepção do visitante é, na minha opinião, o mais curioso da mostra.

A opção do artista por materiais “de verdade” transforma completamente a apreensão do conteúdo. Os desenhos de papagaio, por exemplo, adquirem um novo significado quando descobrimos que foram coloridos com esperma. Na parede oposta, há outros, feitos com sangue. Além disso, o visitante ainda encontrará carne apodrecendo, um autorretrato coberto com pregos dourados e motosserras espalhados pelas salas do instituto. Esse aspecto grotesto, macabro, muitas vezes se sobrepõe ao simbolismo dos materiais, tais como a metamorfose do besouro e a transcendência da meditação e do trabalho, que a curadora Beatriz Bustos destaca no texto de apresentação. Mas, vencido o impacto inicial, é possível perceber ali algo além de nossos próprios preconceitos.



A tarefa não é fácil. Pois o artista se aproveita do choque para trazer à tona assuntos que normalmente evitamos no dia-a-dia, ou que preferimos mascarar com mitos, crenças e sentimentos enganosos. Como isso acontece contra a nossa vontade, nos sentimos agredidos, moralmente violados. Parte do mérito de Jan Fabre vem daí.

As obras exibidas abarcam cerca de trinta anos de uma carreira internacional consistente, que só agora recebe a primeira individual no país. Trata-se de uma boa oportunidade para conhecer o trabalho do artista e, de quebra, fazer um teste de resistência a enjoo. Ainda bem que os cérebros utilizados em uma das obras são de resina. Porque, se fossem de verdade, eu também teria colocado algumas entranhas à mostra. Eca!


UMBRACULUM para São Paulo.
Um lugar na sombra para pensar e trabalhar.

De 13 de agosto a 10 de outubro.
www.institutotomieohtake.org.br

terça-feira, 14 de setembro de 2010

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CRÍTICA DE ARTE

Dias 16 e 17 de setembro haverá seminário da Associação Brasileira de Críticos de Arte em São Paulo. Os assuntos são interessantes, confira a programação:


Clique na imagem para ampliá-la.

Mais informações: ABCA

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A ARTE DA PAQUERA

O problema do espectador da arte é que ele espera demais dela, então ela se acanha, não se mostra totalmente. Bom mesmo é caminhar pela exposição com certa indiferença e, quanto uma obra despertar o interesse, travar com ela o diálogo típico das conquistas amorosas. Um olhar daqui, uma descoberta dali, um deslumbramento comedido. Quando perceberem, ambos estarão completamente envolvidos. E a magia estará feita.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

HISTÓRIAS QUE VIERAM PARA FICAR

Um livro-reportagem sobre rodoviárias não parece exatamente interessante. Só que, no caso de O livro amarelo do terminal, o preconceito acaba na primeira página. Até porque não se trata de um livro comum – o projeto gráfico, desenvolvido por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio, da editora Cosac Naify, se destaca pela irreverência: impresso em papéis tão peculiares quanto aqueles dos bilhetes de viagem, fininhos, ele apresenta design sofisticado e intervenções ao longo do texto que propõem uma nova experiência de leitura. Tampouco falamos de uma rodoviária qualquer, mas do Terminal Tietê, o segundo maior do mundo, que se conecta a milhares de cidades do Brasil e da América do Sul. Para completar, não foi escrito por alguém que telefonou e fez uma entrevista de trinta minutos com o assessor de imprensa, mas pela então estudante de jornalismo Vanessa Barbara, que passou meses visitando o local, conhecendo pessoas, infiltrando-se no espaço físico e espiritual, observando, vivenciando e anotando tudo num bloquinho cor-de-rosa. O resultado é um apanhado interessantíssimo de “causos”, selecionados de algo muito maior, que se confunde com a própria cidade de São Paulo e seus habitantes. Quando a gente se dá conta, já se foi meio livro e ainda não deu vontade de largar.

Vanessa escreve com humor, ironia e clareza. Soube encontrar a alma da rodoviária naqueles que trabalham ali ou que apenas transitam, que aguardam ansiosamente parentes e amigos, que suam a camisa para comprar uma passagem e celebrar o Natal com a família a mais de três mil quilômetros da capital. Depois, ela cruza isso tudo com trechos de música, literatura e propaganda, enriquecendo a sensação apreendida durante a exploração.

São relatos de amor, luta e persistência, vividos por um povo que não conhecemos a fundo, mas do qual fazemos parte. Em outras palavras, a história do Terminal Rodoviário do Tietê é também a nossa história.

Os capítulos centrais, impressos em folha de papel carbono, são frutos da pesquisa que a autora realizou com mais de sesssenta reportagens da época da implementação, além de documentos, entrevistas e muita cultura popular. Atravessam a ditadura militar, resgatam nomes icônicos como Paulo Maluf e Romeu Tuma, dá vontade de rir e de chorar, tudo ao mesmo tempo. É impressionante por diversos motivos: pelos valores astronômicos gastos na construção e reforma, pelo jogo político, pela desordem, pelos conflitos de interesses, pelos debates arquitetônicos, pelas promessas mentirosas, pelo povo ficar sempre em segundo plano. Impressionante também por ter dado certo no final, coisa que nem Nostradamus previa e nem Freud explicaria. Típico de Brasil.

Desde que o livro foi escrito, em 2003, até a publicação, em 2008, muita coisa mudou. Novos capítulos surgiram e outros terminaram, não dá para saber com certeza ou atualizar tantos dados. Assim, o jornalismo-literário adquire aquela onipresença da ficção pura, coisa que não o anula, claro, apenas fornece novos valores. O capítulo seis, por exemplo, torna-se um conto perfeito, sem tirar nem pôr. Difícil dizer o que tem de reportagem. Tudo e nada ao mesmo tempo. Delícia de ler.

Vanessa Barbara provou que, com perspicácia e boa redação, até mesmo um assunto pouco atrativo como a história de uma rodoviária pode se transformar num livro muito bacana, que informa e diverte inclusive os leitores pegos de surpresa, como eu. A obra carrega adjetivos que muitos romancistas vêm procurando, normalmente em vão: inteligência, simplicidade e relevância. Os prêmios recebidos em 2008 e 2009, com destaque para o Jabuti, foram mais do que merecidos. Esse livro amarelo não tem como não agradar.


Trechos (ou aperitivos):

“A rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas. ‘O caça-níqueis está aqui há dois anos’, informou a funcionária, mostrando uma lista que enumerava o esquecimento de espingardas (duas), motocicletas (duas), um banco de kombi, uma máquina de serrar azulejos, camas, muletas, motores de moto, pneus, dentaduras e uma mão mecânica. ‘Às vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram’, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos.” (p. 11)

“– Moça, onde é que eu faço inscrição para ir pro Iraque?
– … Desculpe?
– Pro Iraque. Eu quero ir pra guerra, buscar o meu filho.
– Ahn… senhora, nós não oferecemos esse tipo de serviço.
E a mulher foi embora, bastante brava com a incompetência das atendentes. Ora, que disparate. Como, não sabe responder a pergunta? I-N-F-O-R-M-A-Ç-Õ-E-S – é o que está escrito na placa.” (p. 37)

“Escreveu todas as instruções mais uma vez. Agora, em minúcias. ‘Ir até a rampa tal, comprar um bilhete de integração, entrar no metrô com destino a…’ Ele saiu com o papelzinho estendido na palma da mão, como se fosse uma bússola. No final do dia, antes de voltar para casa, ainda passou no balcão, agradeceu pelas informações e comprou um pão de queijo para Rosângela.” (p. 45)

“Certo dia, ele sentiu cheiro de fumaça e viu uma luz forte vinda de dentro de um dos armários Malex. Chamou um segurança e eles passaram algum tempo pensando, tentaram imaginar o que havia ali, concluíram que era muito suspeito e decidiram abrir o armário. Lá dentro, havia nada menos que uma vela acesa. ‘U-m-a-v-e-l-a-a-ce-sa! Pode?’
– Daí o segurança foi lá e fez ‘fuuuu’: apagou a vela. Então veio a mulher dona da vela e fez o maior fuzuê.” (p. 93)


Sobre o projeto gráfico e a reação da autora ao vê-lo (muito legal): Originalidade e ousadia em O livro amarelo do Terminal


Este texto também foi publicado em: Revista Psicanalítica

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

"ELE VIA O MUNDO DO JEITO QUE UM SANTO SEM CABEÇA O VERIA"

Como um esquizofrênico percebe o mundo? É algo que me pergunto desde que comecei a pesquisar a relação entre arte e espectador, segundo aspectos psicológicos, onde o assunto vive dando as caras. Porque o mundo é sempre o mesmo. Se parece diferente para mim ou para você, é porque nós somos diferentes, temos vidas diferentes, conhecemos pessoas diferentes e temos interesses diferentes. Os esquizofrênicos também têm suas peculiaridades, porém não tantas quanto se supõe – são pessoas como eu e você, que, no entanto, não separam muito bem o consciente do inconsciente, como se vivessem no mundo dos sonhos. Pelo menos é assim que Freud explica. Quando descobri que esse era o mote do romance Afluentes do rio silencioso, fiquei curiosíssimo. O que estaria me esperando ali?

A história se resume às perambulações de um garoto, conhecido como Lowboy (um tipo de cômoda baixa, título original do livro), que foge do hospital psiquiátrico em que trata sua esquizofrenia paranóica e se embrenha nos túneis do metrô nova-iorquino. Ele quer salvar o mundo do aquecimento global. Para encontrá-lo, a mãe e o policial responsável pelo caso devem reconstituir seu percurso – uma frágil linha de raciocínio que, tal como o metrô, se cruza com uma infinidade de outras.

É muito bacana a maneira como o autor – o norteamericano John Wray – retrata o fluxo de pensamentos do garoto, intercalando-os com capítulos racionais e dedutivos protagonizados pelo detetive. Esses contrapontos nos permitem sentir melhor as diferenças psicológicas existentes entre eles. Em diversos momentos, fiquei me perguntando: "Será que é assim mesmo? Será que é assim que um esquizofrênico pensa? Que vê o mundo?" E tudo que Lowboy inventa, as pessoas imaginárias com quem conversa, os planos conspiratórios de que se sente vítima, tudo é confuso, chega a nos tirar o fôlego e embaralhar a realidade. Verdade ou mentira? Fato ou ficção? Como um escritor são pode descrever o processo cognitivo de um esquizofrênico?

Os capítulos sobre Lowboy são difíceis de entender. Não se sabe ao certo o que está acontecendo, não se tem noção precisa do tempo e não é possível deduzir o próximo passo. Por quê? Porque nossa tendência de racionalizar encontra ali uma barreira. Ora, se nem sempre há sentido lógico em nossas escolhas, imagine nas de um doente mental. Evidencia-se um ponto em comum: somos todos movidos pela emoção.

Isoladamente, as falas do garoto são desconexas, mas, no contexto de seus pensamentos, elas fazem sentido – um sentido que, na maioria das vezes, só ele compreende, mas que é suficiente para decidir e agir.

Durante o romance, outras questões cruciais vão surgindo: os esquizofrênicos conseguem mentir? Por que teriam essa necessidade? Qual é a diferença entre mentira e ficção? Existe imaginação pura? Como sabemos que estamos de acordo com a normalidade? Qual seria o parâmetro? As ideias não viriam de momentos de delírio? Nossos desejos não influenciam nossos pensamentos?

Além do fluxo de informação, que deixa a história com aspecto desordenado, há outros recursos que o autor utiliza para obter a sensação de desconforto mental, tal como perguntas sem pontos de interrogação, vírgulas fora de lugar e falas, pensamentos e narração misturados, sem indicação ou destaque. Deve ter dado um trabalhão para a tradutora, Vanessa Barbara.

Vamos a cada página nos enfiando no lodo contagiante da esquizofrenia, acostumando com a falta de exatidão, com o pouco ou nenhum controle sobre a sequência de fatos. Lemos, imaginamos, percebemos tudo que acontece à nossa volta e, de repente, tudo faz sentido e pode ser experimentado, por mais estranho que seja. Não existe certo ou errado, apenas a verdade entendida à nossa maneira. Todo o poder a que um leitor poderia almejar.


Trechos:

"Lentamente, seus pensamentos também se encaixaram. Mesmo a mente estreita e claustrofóbica de Lowboy sentiu afeição pelo túnel. Afinal, era sua cabeça que o fazia de refém, não o túnel nem os passageiros do trem. Sou um prisioneiro do meu próprio crânio, pensou. Refém do meu sistema límbico. Não há saída além do meu nariz." (p. 9)

"Conforme ela se aproximava, o túnel contraía-se como uma boca e Lowboy começou a ficar preocupado. Havia gente no caminho, mas ele as ignorou. Eu fiz um bom trabalho Rafa, ele gritou. Os grafites me disseram. Vá mais devagar, srta. Covington. O mundo pode parar de acabar. Mas então ele correu direto para o Caveira e o Esqueleto." (p. 293)


Afluentes do rio silencioso, de John Wray
Companhia das Letras, 2010, 304 páginas
Página oficial: Cia das Letras

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

DILEMAS DA TELA EM BRANCO

"O conteúdo da tela vazia aumentou à medida que o modernismo avançou. Imagine um museu dessas forças, um corredor do tempo com telas vazias penduradas – de 1850, 1880, 1910, 1950, 1970. Cada uma contém, antes que se passe o pincel nela, presunções implícitas na arte de sua época."

Brian O'Doherty, em O olho e o espectador (do livro No interior do cubo branco)