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terça-feira, 30 de novembro de 2010

O SILÊNCIO TEM A PALAVRA


Gambiarra (1982), de Amelia Toledo

"Amélia, querida, sem palavras... Fiquei sem palavras, porque as palavras já não faziam sentido. Sua obra é grandiosa demais. Enquanto física e amante da arte e dos minerais, da luz e da cor, chego a ficar sem palavras diante da perfeita interação entre os elementos, o que surpreende os olhos e a alma. É a exposição mais perfeita que já vi em mais de sessenta anos de vida. Descrever é difícil. Relatar o que senti mais difícil ainda. Então é só ver, sentir, impregnar-se. Só hoje, depois de tantas vindas aqui, consegui escrever alguma palavra neste caderno. Assim mesmo, a emoção é muito mais do que qualquer palavra. Senti uma sensação esquisita quando entrei na exposição. Por isso gostei muito. É um choque maravilhoso. Só consigo sentir. Não consigo escrever o que sinto. Uma vontade de chorar ao tocar as pedras, calo-me para permitir apenas o sentir. O jogo de luz e a sombra, as cores e as pedras são fundamentais à interação corpo-espírito. É uma experiência única. Transcendental. É como se o dia especial, a emoção fundamental, a própria essência viessem a brotar agora. Do nada. Mas mostrando tudo. Arrancando das entranhas o néctar. Provando que o ser humano é capaz de coisas belíssimas... Não tenho palavras. Só pura emoção. Obrigada. É uma exposição que atravessa o Ser. Não há palavras para traduzir. É o silêncio que tem a palavra. Sobre a artista: ela é cruel, muito cruel. E sobre a exposição: ela é pura, natural. Mas é de tirar o fôlego. Obrigado."

O trecho acima foi montado a partir de recados deixados no livro de ouro – aquele caderno de visitas, sabe? – da exposição Entre, a obra está aberta, de Amelia Toledo, que se realizou na Galeria do Sesi, em São Paulo, entre 1999 e 2000. Ele integra a interessante análise que o psicanalista João Augusto Frayze-Pereira fez da reação do público com a obra da artista e com os resultados dessa relação.*

Achei muito bonita a maneira como os visitantes expõem seus sentimentos e agradecem Amelia pela experiência proporcionada. O artigo de João reúne outros trechos ainda mais emocionantes, mas resolvi compartilhar esse por dois motivos: pela poética do título, que foi citado por um dos visitantes, e pelo fato de que, mesmo sem palavras, eles conseguiram dizer muito.

A obra estava aberta. Bastou isso para que todos se sentissem à vontade e revelassem a si mesmos com profunda sinceridade. Foi uma exposição que não visitei e que, depois de lidos os relatos reunidos por João Frayze, deixou uma triste sensação de perda.


Glu-glu (1968), de Amelia Toledo. Esta obra pode ser vista – e experimentada – na 29ª Bienal de São Paulo.

Mais informações sobre a artista:
www2.uol.com.br/ameliatoledo e www.ameliatoledo.com

*O artigo completo, chamado A poética dos livros de ouro: Amelia Toledo, generosidade e gratidão, integra o livro Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, de João Augusto Frayze-Pereira (Cotia: Ateliê Editorial, 2005).

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

MORTE E VIDA SEVERINA, O FILME



Ótima notícia para quem tem curiosidade de conhecer um clássico da literatura brasileira mas ainda vive o trauma causado pelo nosso sistema de ensino, que desestimula até os estudantes mais interessados.

A animação Morte e Vida Severina, inspirada no livro homônimo de João Cabral de Melo Neto, é um projeto da TV Escola/Fundação Joaquim Nabuco e tem produção da OZI Escola de Audiovisual de Brasília.

O filme é uma adaptação dos quadrinhos de Miguel Falcão e terá 50 minutos. A estreia está marcada para janeiro de 2011, na TV Escola. Por enquanto, temos que nos contentar com o trailer acima, mas já dá para perceber da riqueza da produção. Tomara que a ideia pegue e que logo venham outros.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

TRÊS PALÁCIOS PARA A ELITE BRASILEIRA


Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão

Estive em Campos do Jordão no fim de semana passado e resolvi visitar o Palácio Boa Vista, residência de inverno do governador do Estado de São Paulo. Fazia mais de quinze anos que não passava por ali, nem me lembrava de como era. Imagine minha surpresa ao encontrar, decorando os aposentos, um impressionante acervo de arte moderna brasileira.

A coleção foi adquirida a partir de 1969 e nela figuram artistas como Di Cavalcanti, Guignard, Rebolo, Volpi, Brecheret, Anita Malfatti e Walter Zanini, entre outros. São pinturas e esculturas relevantes, daquelas que todo colecionador disputaria a tapas num leilão, se tivesse cacife para bancá-las. O destaque fica para Tarsila do Amaral, que tem uma sala só para ela, com obras das suas mais diversas fases – inclusive do começo da carreira, que raramente temos oportunidade de ver.

Vale lembrar que, além do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão, fazem parte do grupo o Palácio dos Bandeirantes (no bairro do Morumbi, em São Paulo) e o Palácio do Horto (no Horto Florestal, também em São Paulo). Pelo que descobri depois, a riqueza do acervo não é exclusividade daquele; os três possuem ótimos exemplares e costumam ainda receber exposições temporárias, montadas a partir de outras coleções.

As visitas são acompanhadas por educadores e, nos palácios de São Paulo, são gratuitas. Em Campos do Jordão, a entrada custou R$ 5,00. Para mim, foi um dinheiro bem gasto. Fiz um passeio diferente e, além de conhecer um prédio histórico do país, levei de brinde uma ótima exposição de arte.

Mais informações: www.acervo.sp.gov.br


Retrato de Mário de Andrade (1922), Autorretrato I (1924) e Operários (1933), de Tarsila do Amaral, são pinturas que constam no acervo do Palácio Boa Vista

(sem título), Campos do Jordão, novembro de 2010


(sem título), Estação da Luz, São Paulo, novembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010


The Lighthouse at Two Lights (1929), de Edward Hopper

"Dias inteiros de calmaria, noites de ardentia, dedos no leme e olhos no horizonte, descobri a alegria de transformar distâncias em tempo. Um tempo em que aprendi a entender as coisas do mar, a conversar com grandes ondas e não discutir com o mau tempo. A transformar o medo em respeito, o respeito em confiança. Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer."

Amyr Klink, em Cem dias entre céu e mar

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

SE ATRAEM OS OPOSTOS

[é uma letra de música. Leia cantando]

Separados pelo parto
Unidos por acaso
Em comum pelo tanto incomum

Seria só um caso
que jamais deixou de ser
Daria tudo errado
se houvesse por quê

Porque sim
Porque não
Por que não sei?

Por que eu
questionar
Por que você?

Por que sim?
Por que não?
Porque não sei

Por que eu?
Questionar


Tanto um quanto outro
Tanto faz quanto fez
Quanto vale se for pra valer?

Uma vez nada mais
que jamais deixou de ser
Tudo aquilo que se enxerga
e não tem nada a ver

[para J. L. A.]

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O LUGAR DO GRAFITE NA CIDADE E NA SOCIEDADE

"As pessoas que passam por nossas cidades não entendem o grafite porque acreditam que nada deve existir a não ser que dê lucro, o que torna essa própria opinião sem valor."

Foi com essa lógica ácida e simples que o grafiteiro inglês Banksy conquistou minha admiração. O primeiro contato com sua obra ocorreu recentemente, quando ele reinventou a vinheta de abertura do seriado Os Simpsons a convite da produtora e obteve repercussão bastante polêmica. Na ocasião, Banksy criticou o próprio programa, o sistema capitalista de que faz parte, a máquina industrial chinesa, o trabalho infantil e a atitude indiferente da sociedade que consome os produtos desse processo. Tudo isso em pouco mais de um minuto de desenho animado.

Acho muito difícil concordar totalmente com alguém que viola e depreda patrimônio alheio – público e particular – para exercer sua arte. Mas assumo que o trabalho de Banksy, apesar do meio em que atua, é no mínimo intrigante. Veja bem, a abertura de Os Simpsons foi uma exceção, quase toda a produção do artista está nas ruas. Então, fico me perguntando se é possível dissociar o grafite desse meio; quer dizer, será que ele se sustentaria se não estivesse ocupando ilegalmente os muros da cidade? A resposta mais provável é "não".

Banksy precisa dos muros, mesmo que essa dependência não seja recíproca. Ele precisa da ilegalidade, do atrevimento, pois é isso que dá significado às suas criações – para não dizer visibilidade. Grafite sem violação é alma sem corpo, que vaga por aí sem jamais ser percebida pelos passantes.

Por mais que às vezes eu me convença das reais necessidades dessa prática, do engajamento, da subversão dos valores, da crítica política e social, como poderia justificá-la? Como poderia argumentar a favor, estando do lado da lei? Não, defendê-la seria hipocrisia, seria abrir precedente para diversas outras práticas tão ou ainda mais danosas. Nosso papel nessa relação é ser contra. Aquela obra precisa dessa forma paradoxal de legitimação para sobreviver, precisa dela tanto quanto das paredes em que ganha corpo, precisa da madrugada, da adrenalina e da ousadia. Em outras palavras, o consentimento da comunidade destruiria o conceito da obra ou, no mínimo, a condenaria a se adequar ao universo da arte reconhecido oficialmente – título que, com certeza, o grafite não deseja.

Como disse antes, é muito difícil estar totalmente de acordo com Banksy e seus semelhantes, mesmo que os argumentos utilizados por eles se baseiem na tradição amplamente aceita de que "a parede sempre foi o melhor lugar para exibir o trabalho [artístico]".

Aliás, o livro de onde tirei essa citação é uma fonte de pesquisa bastante irreverente. Chama-se Wall and Piece (Muro e Obra), uma analogia com War and Peace (Guerra e Paz). Escrito pelo próprio Banksy, ele apresenta um panorama de seus trabalhos e elucida a maneira como o autor entende a arte de rua. Se não nos convence a aceitá-la, ao menos dá a oportunidade de refletir sobre o assunto e imaginar, por exemplo, os motivos de o grupo Pixação SP ter sido convidado a participar da 29ª Bienal de São Paulo, mesmo após os ataques polêmicos ocorridos durante a edição anterior. O catálogo da nova mostra explica a decisão dos curadores afirmando que "nem tudo que é arte o campo institucional é capaz de abrigar ou de entender plenamente". Acho que o mesmo vale para nós, cidadãos-espectadores.

O fato de Banksy chegar à televisão e às livrarias, de o grupo Pixação SP estar na Bienal e de muitos outros grafiteiros serem aos poucos incluídos em galerias e museus de todo o mundo prova que a sociedade se interessa cada vez mais por esse tipo de arte, não somente por curiosidade, mas também para aprender a lidar com ela. No entanto, é bem difícil prever o futuro dessa relação. Pois já constatamos que o grafite conquistou um lugar de destaque na cidade; agora, resta saber com exatidão que lugar é esse, se deve continuar ilegal, se é célebre ou banalizado, atraente ou banido, cultuado ou apenas perseguido. Mesmo estando a apenas alguns passos de um muro grafitado, ainda vai levar um tempo para nos posicionarmos com segurança em relação a ele. Enquanto isso, as discussões estão abertas e são muito bem-vindas.


Ria agora, mas um dia nós estaremos no comando, de Banksy


Este artigo também foi publicado em Psicanalítica – Revista de Cultura e Arte

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

QUEM SOMOS NÓS

O filme abaixo me respondeu, de maneira clara e divertida, muitas daquelas perguntas existenciais que estamos sempre fazendo, do tipo "quem somos nós? qual é o nosso papel na vida? o que desejamos? quais são os nossos sonhos? para onde vamos?" Ele surgiu de estudos que a BOX1824* realizou nos últimos cinco anos.

Vale a pena prestar atenção num fato: a arte – leia "cinema, música, artes plásticas, literatura, etc." – não apenas entretém, não apenas emociona. Ela determina nossa cultura e, consequentemente, nos permite crescer como seres humanos. Seres mutantes, vivos e sempre em busca da verdadeira felicidade, seja ela qual for.

We All Want to Be Young
(Nós todos queremos ser jovens)

Roteiro e direção: Lena Maciel, Lucas Liedke e Rony Rodrigues.

*A BOX1824 é uma empresa de pesquisa especializada em tendências de comportamento e consumo. Site: www.box1824.com.br

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A VOZ DO JAZZ ÀS GARGALHADAS

Quem gosta de jazz vive falando dos diálogos e improvisos entre os instrumentos, da sintonia com o cotidiano, da verdadeira voz da música, etc. Quem não gosta se faz de desinteressado, considera aquilo tudo invencionice de gente aficcionada, parece tão chato de ouvir quanto de argumentar a respeito.

Nesta cena maravilhosa, o humorista americano Jerry Lewis mostra que o jazz e a vida têm muito em comum. Tudo bem, falo como fã do estilo. Se você também é, assista, vai ser divertido. Se você não é, assista também. Tenho certeza de que os nossos blá blá blás passarão a fazer muito mais sentido.


Jerry Lewis - O garoto dos recados (1961)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

MORTE E VIDA MONALISA

Hoje, estivemos falando da Monalisa. Pobre mulher, sempre vira assunto, seja na sala de aula, seja na mesa do bar. Falamos bem, falamos mal, falamos dela. Concluímos que está morta. É verdade, não lhe contaram? Morreu e agora se encontra em um esquife blindado, inacessível a todos os olhos, inclusive aos mais exigentes.

Ou melhor, acho que foi embalsamada. Pois tem gente que ainda passa por ela, insiste, acotovela-se para tirar uma foto às escondidas, sem chamar a atenção dos seguranças. Puro fetiche. A Monalisa, entendida como obra de arte, está morta. Virou informação.

Há algo de misterioso nessa tragédia, algo de muito suspeito: se a pintura – fisicamente falando – pereceu, a imagem continua viva. Não se chega a ela, é verdade, não se pode tocá-la ou experimentá-la tal como foi criada para ser. A Monalisa de hoje é um conceito, um ideal platônico que jamais será alcançado.

Sua imagem, porém, virou ícone da arte. Não só da história, mas da arte como um todo. Basta ver seu sorrisinho irônico estampando um texto para saber do que se trata. Sim, falamos de arte e, como deu para perceber, é impossível ignorar a onipresente Momô.

Ela está em todas.

sábado, 6 de novembro de 2010


Arco inclinado (1981), de Richard Serra

"As tensões ainda existentes entre o público em geral e a arte, ostensivamente concebida com o total bem-estar público em mente, ficaram patentes na discussão do destino do Arco inclinado de Serra, encomendado em 1981 por um programa oficial para a Federal Plaza de Nova York. A escultura em aço – muito mais alta que um homem – cortava a praça, restringindo em muito a visão e o trânsito dos pedestres. Em 1985, o protesto dos que trabalhavam em edifícios das imediações tornou-se tão intenso que a Administração dos Serviços Gerais, o órgão governamental que havia encomendado a obra, anunciou que ela seria removida. Seguiu-se um processo jurídico, com Serra afirmando que sua remoção constituiria uma violação ao seu contrato e que uma proposta de deslocamento para um dos lados da praça era inútil, pois a obra havia sido concebida para ocupar sua posição original. Qualquer alteração nessa concepção destruiria a obra. Ela foi finalmente removida em 1989."

Retirado de Arte contemporânea: uma história concisa, de Michael Archer


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

VISÃO PARCIAL DO MUNDO

Somos escravos das cores e o preço da liberdade é alto demais. As cores dão sentido ao mundo, é verdade. Mas também é verdade que dão um sentido só: aquele que se vê com os próprios olhos e prevalece como verdade. Os outros sentidos, que podem ser ouvidos, tocados, cheirados, provados ou intuídos são menosprezados, não recebem a credibilidade e a atenção que merecem. É o que mostra o filme Vermelho como o céu, produção italiana que recebeu o Prêmio do Público da 30ª Mostra de Cinema de São Paulo (2006) e que foi exibido recentemente no programa Mostra Internacional de Cinema, da TV Cultura.

A história trata de um menino que perde a visão em um acidente e é enviado a uma escola para cegos. Sua sina é cruel: deve aprender a perceber o mundo por meio dos outros sentidos que lhe restam.

Em um de seus momentos mais sensíveis, o protagonista tenta explicar a experiência das cores a um colega, cego de nascença. "O azul? É como o vento que toca o rosto quando a gente anda de bicicleta. O marrom é rugoso como a casca de uma árvore. O vermelho é quente como o fogo, como o céu ao pôr-do-sol".

Assisti àquilo e tentei me colocar em seu lugar. Como eu explicaria as cores, como poderia traduzi-las em outros sentidos?

Percebi que, mesmo lidando com elas há décadas, mal consigo descrevê-las sem recorrer a referências visuais.

Talvez meus outros sentidos estejam cegos para o mundo. Talvez eu não saiba o que as cores são de verdade. Talvez eu saiba apenas o que elas parecem ser. Não há profundidade, não há sentimento. Minhas cores são superficiais. Minha apreensão das coisas é parcial.

O filme Vermelho como o céu me mostrou que sou cego e não sabia.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

CUBA POR KORDA



"Eu optara por uma vida frívola quando, por volta dos trinta anos, um acontecimento excepcional transformou minha vida: a Revolução. Foi então que tirei esta foto, de uma garotinha abraçada a um pedaço de madeira, em substituição à boneca que não tinha. Percebi que valia a pena dedicar um trabalho à revolução que propunha a supressão de tais desigualdades."

Alberto Korda

(trecho retirado do livro Cuba por Korda
, publicado pela editora Cosac Naify em 2004)

sábado, 23 de outubro de 2010

DECÁLOGO DO CONTISTA

Os dez mandamentos abaixo foram escritos pelo uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), um dos expoentes mais talentosos do modernismo latino-americano. Ele ficou conhecido por produzir narrativas breves porém muito intensas, que prendiam a atenção do leitor já nas primeiras linhas e continuavam a pulsar mesmo depois de terminada a leitura.

Quem gosta de escrever pode até discordar das proposições de Quiroga, mas deve conhecê-las e refletir sobre elas. Deve também ler os contos escritos por ele, em especial os reunidos no livro
Contos de amor, de loucura e de morte, que constam entre suas obras mais importantes.




1. Creia em um mestre – Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov – como em Deus.

2. Creia que sua arte é uma montanha inacessível. Não sonhe dominá-la. Quando isso for possível, você saberá.

3. Resista o quanto for possível à imitação, mas imite se a tentação for muito forte. Mais que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da personalidade exige paciência.

4. Tenha fé cega não na sua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que você deseja esse triunfo. Ame a sua arte como a sua mulher, dando-lhe seu coração.

5. Não comece a escrever sem saber aonde ir. Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas.

6. Se você quiser expressar com exatidão esse fato – "Um vento frio soprava do rio" –, não há, na linguagem humana, palavras mais precisas que essas. Seja dono de suas palavras, sem se preocupar com suas dissonâncias.

7. Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão as camadas de cor adicionadas a um substantivo fraco. Se você fizer o que for preciso, ele terá, por si só, um colorido incomparável. Mas você terá de ir buscar esse colorido.

8. Pegue seus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o final, sem deixar que nada o desvie do caminho traçado. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de resíduos. Tenha isso como verdade absoluta, mesmo que não seja.

9. Não escreva sob emoção. Deixe-a morrer e depois a evoque. Se você for capaz de revivê-la, terá chegado à metade do caminho.

10. Ao escrever, não pense em seus amigos, nem nas reações deles à sua história. Pense como se o seu relato só interessasse aos seus personagens, e você fosse um deles. Não se dá vida a um conto a não ser dessa maneira.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

34ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA

A mostra começa hoje. São cerca de 400 títulos sendo exibidos em mais de 20 espaços da cidade de São Paulo, além de exposições relacionadas ao tema, tais como a das fotos do diretor Win Wenders (MASP) e dos storyboards de Akira Kurosawa (Instituto Tomie Ohtake).

Quem quiser participar pode acessar a programação (imagens ou site abaixo) ou aproveitar a seleção de 68 filmes da Mostra Online, disponibilizados gratuitamente na internet para os primeiros 500 acessos.

De 22/10 a 28/10:


De 29/10 a 4/11:

Clique nas imagens para ampliá-las. (fonte: Guia da Folha)


34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
De 22 de outubro a 4 de novembro.
Site oficial: www.mostra.org

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

TEM HISTÓRIA PARA TODOS



O bate-papo de ontem com Laurentino Gomes, na FNAC de Pinheiros, foi bastante revelador. Por um lado, pela deliciosa aula de história brasileira, como jamais tinha experimentado antes. Por outro, pelo posicionamento editorial do autor que, muito bem definido, classifica seus livros 1808 e 1822 como “jornalísticos”, pois têm o objetivo de divulgar ao público geral o conhecimento produzido nas universidades. Em suas palavras: “Faço pela história do Brasil o que o Dr. Dráuzio Varella faz pela medicina e Marcelo Gleiser pela astrofísica”.

Destaco isso porque o primeiro deles, 1808, foi visto com desconfiança na ocasião de seu lançamento, há 3 anos. Os historiadores, por exemplo, tiveram receio da competição e da banalização de seu trabalho. Porém não demoraram a perceber que a proposta de Laurentino não diminuía a importância das pesquisas científicas e tampouco roubava seus créditos, apenas as tornava mais acessíveis: “A história que eu escrevi já estava contada. A novidade é a linguagem, que a leva a um público maior”.

Como explicou o autor, a produção acadêmica está cada vez mais técnica e especializada. Se o jornalista, com visão ampla e liberdade de linguagem, consegue traduzir aquele conhecimento aos não-iniciados, acaba gerando interesse em assuntos até então fadados às aulas do colégio ou às revistas científicas.

Os livros de Laurentino Gomes transformaram a história do Brasil num fenômeno. Conquistaram o aval dos especialistas e a simpatia do leitor comum, sendo até mesmo utilizados como referência nas escolas. Também venderam muito bem em Portugal, “porque os portugueses têm curiosidade de saber como a ex-colônia conta sua história”. Proporcionalmente ao número de habitantes, 1808 vendeu mais lá do que aqui.

Se existe segredo para o sucesso, Laurentino não pretende guardá-lo para si. Entre as muitas dicas que deu, explicou que um jornalista com pretensões semelhantes às suas precisa pesquisar muito, respeitar as fontes, não confundir ficção com não-ficção e trabalhar junto com um orientador acadêmico, que tem conhecimento apropriado para analisar, criticar e comentar fatos específicos. No meio do papo, Laurentino ri. “Meu orientador corrigiu erros que teriam destruído minha reputação”.

Saí de lá mais do que satisfeito. Além das informações sobre a produção do livro, também ganhei autógrafos em minhas edições de 1808 e 1822. Agora, resta aguardar o último volume daquilo que o autor chamou de “trilogia da história brasileira do século XIX”. O livro, que se chamará 1889, abrangerá o governo de Dom Pedro II até a proclamação da república – um período extenso e repleto de acontecimentos relevantes.

As pesquisas já foram iniciadas. Tomando a mim mesmo como exemplo, imagino que os fãs mal podem esperar o fim desse intervalo para curtir mais uma instigante aula de história.

Site oficial do autor: www.laurentinogomes.com.br

NUNO RAMOS FALA DA POLÊMICA ENVOLVENDO SUA OBRA NA BIENAL

[Recebi o e-mail abaixo e achei por bem publicá-lo aqui. Pois muita gente está criticando a obra Bandeira Branca, de Nuno Ramos, em exposição na 29ª Bienal de São Paulo, sem nem mesmo tê-la visto. Ou sem conhecimento técnico suficiente para criticar sua instalação. Ou baseado apenas em reportagens. O que faltava nisso tudo era a palavra do artista. Aqui vai ela. Espero que esclareça parte da polêmica e sirva de informação para críticas posteriores, de preferência, melhor embasadas.]

Amigos,
Escrevi este texto como resposta aos acontecimentos da Bienal. Saiu na Ilustríssima de ontem. Estou enviando para quem não leu.
Se acharem que vale a pena, eu agradeceria se pudessem encaminhar à lista de contatos de vocês.
Um abraço e obrigado,
Nuno Ramos



BANDEIRA BRANCA, AMOR
Em defesa da soberba e do arbítrio da arte


RESUMO
Alvo de protestos de pichadores, jornalistas e militantes da causa animal, o trabalho "Bandeira Branca", de Nuno Ramos, foi desmontado na 29ª Bienal de São Paulo, por determinação do Ibama, que o havia autorizado. O artista faz uma defesa da legalidade da obra e reflete sobre consensos e rupturas inerentes à atividade artística.

PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura, para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair, morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua direção.

ACUSAÇÕES
Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e danificou uma das esculturas de areia.

Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta, "a-li-men-ta-e-les!" – o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia. Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras para incêndio do corpo de bombeiros.

Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz, publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos são dela) cruel, "bad boy", sem compaixão e produtor de arte de má qualidade. Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada consciência da articulista.

A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.

TOM
Frequento uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe, que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.

Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos, no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido, injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é legítima, quero divergir completamente dela.

Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o óbvio:

1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde estão neste momento), quando foram "soltas" do meu trabalho;

2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público, como num zoológico;

3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo aprovado pelo mesmo Ibama;

4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;

5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo e fechando a mostra:

6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência estipuladas pelo plano de manejo;

7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;

8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo – mas sem recomendação de cassação. O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram ajustes –basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço). Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que, sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves, em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os animais, e um trabalho de arte;

9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura de São Paulo;

10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves – fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.


Bandeira Branca (2008), de Nuno Ramos, no CCBB de Brasília

EXPIAÇÃO
Por que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?

Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que "Bandeira Branca" não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em aves de rapina, assim como "Guernica" de Picasso não é apenas um trabalho sobre a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal em meu país para esses assuntos.

Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar "Guernica" de quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19, quando ameaçava retalhar a "Olympia", de Manet, em nome dos bons costumes.

O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de um sentido – o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.

VALORES
Arte não cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida. Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira – mas é a possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.

Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga, Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o trabalho de Beuys que inclui um coiote ("I Love America and America Loves Me") seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.

"Tropicália", de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior (curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos – uma oxigenação radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria regredir a épocas de triste memória.

Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir um pouco de coerência dessa posição – ou seja, vegetarianismo radical, já que a quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e, ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem calúnias.

BANDEIRA BRANCA
Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. "Bandeira Branca" (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília, e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para a 29ª Bienal.

O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções "Bandeira Branca" (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), "Boi da Cara Preta" (do folclore, por Dona Inah) e "Carcará" (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.

O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos de fada.

Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.

ANTIPENETRÁVEL
Mas o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a alguma coisa viva, que não precisa dele.

As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os urubus) e arquitetura.

As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas tranquilas.

Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que no entanto causava.

AUTOSSUFICIÊNCIA
Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos "Penetráveis" de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando para dentro, numa autossuficiência renitente.

Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis, acho que as "Elipses", de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas paredes das instituições, ou "O Ciclo Creamaster", de Matthew Barney, com suas infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu trabalho acompanha de certa forma essa direção.

A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez, do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes, direita, esquerda etc.

Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando.

DESFAÇATEZ
Pois isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação.

Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.

No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas que duram até hoje, "What you see is what you see" ("O que você está vendo é o que você está vendo"), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as instituições e para o público.

Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil, de dizer exatamente o contrário: "O que você está vendo NÃO é o que você está vendo". Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, "Bandeira branca, amor".

Nuno Ramos


Sobre a retirada dos urubus: Ibama determina retirada dos urubus da Bienal de SP

Entrevista com o artista

domingo, 17 de outubro de 2010

A RAIVA DO FILÓSOFO


O arremessador de flores, de Banksy

Quando algum imbecil fechar seu caminho no trânsito, pense em Sêneca. Quando lhe deixarem horas esperando em pé na fila do banco, pense em Sêneca. Quando lhe enviarem um cartão de crédito não solicitado ou aumentarem as tarifas telefônicas, pense em Sêneca também, para variar. Não que o velho filósofo tenha sido bom motorista, cidadão ou consumidor, mas porque já na Roma antiga ele percebeu que a raiva não leva a lugar algum, exceto à cova, e normalmente mais cedo do que gostaríamos.

Falar é fácil, difícil é se controlar na hora H. Mas compreender esse sentimento segundo o ponto de vista de Sêneca nos ajuda a lidar com ele e, consequentemente, com as situações desagradáveis que a vida impõe.

Isso porque grande parte dos acontecimentos estaria sob o controle da deusa Fortuna, administradora do destino dos homens, e desafiar o poder divino estava fora de cogitação. Não restava nada a fazer, exceto se consolar com a ideia de que, se não podemos mudá-los, temos ao menos a liberdade de determinar a maneira como reagimos a eles. Afinal, "tudo depende do conceito que temos das coisas", ou seja, da maneira como as enfrentamos.

Por que deixamos os problemas do dia a dia nos irritar? De acordo com Sêneca, porque criamos muita expectativa a respeito deles. Depois, quando a realidade dá as caras e carrega nossos desejos para o ralo, não sabemos responder filosoficamente à frustração decorrente.

Quer dizer, o trânsito nos irrita porque, cada vez que tiramos o carro da garagem, acreditamos, ainda que inconscientemente, que ninguém cometerá barbeiragens pelo caminho. O aumento das tarifas nos tira do sério porque estávamos seguros de que nenhuma empresa teria a ousadia de planejar a exploração de nossos bolsos enquanto aguardávamos pacientemente a conta chegar; enquanto a fila do banco nos deixa com vontade de xingar todos em voz alta porque, em nossa vã ingenuidade, ninguém teria pensado em levar a cabo seus afazeres financeiros exatamente no mesmo instante que nós, por mais que seja hora do almoço do dia trinta.

A filosofia, no entanto, está aí para nos ensinar a sermos felizes, mesmo que isso signifique encarar a vida com um pouquinho de pessimismo. Se assumirmos que o mundo não é perfeito e não deixarmos as expectativas nos iludirem, as situações que fogem ao nosso controle serão aceitas mais facilmente.

É um exercício que vale a pena experimentar. Pela manhã, antes de sair de casa, pense em tudo que pode dar errado: o trânsito, a xícara de café derramada na calça, as reuniões intermináveis, o almoço engolido em cinco minutos, o telefone que não para de tocar, o salto alto quebrado, o banco lotado, o chefe mal humorado e a necessidade súbita de fazer hora extra durante a novela ou o campeonato brasileiro. Pense também que não há nada que você possa fazer para impedir esses desastres. Assim, tudo o que sobrar será lucro.

Parece uma maneira por demais melancólica de encarar a vida, lembra até aquela hiena dos desenhos animados que vivia resmungando "Oh, vida. Oh, azar". Só que o segredo é não exagerar, afinal, trata-se de um exercício filosófico cujo objetivo é mostrar que não temos controle sobre tudo e que, portanto, ninguém precisa sofrer com isso. Talvez o termo exato nem seja "pessimista", apenas "racional" ou mesmo "realista".

Sêneca também dizia que sofrer por antecipação nos faz perder o presente por medo do futuro. "Somos, no mais das vezes, mais vítimas do nosso terror do que dos perigos reais, e sofremos mais com a ideia que fazemos das coisas do que com as próprias coisas". Ele ainda nos aconselha a não sermos infelizes antes da hora, porque os perigos que tememos talvez nunca cheguem.

Era um homem que sabia das coisas. Escreveu mais de vinte livros inspirado no que acontecia ao seu redor, o que nos permite supor que a vida não era fácil naquela época. Em 49 d.C., só para citar um exemplo, o filósofo recebeu a ingrata tarefa de educar um menino rebelde, metido a dono do mundo, que mais tarde se tornaria o temível imperador Nero e o condenaria ao suicídio induzido.

Portanto, quando alguma coisa tirar você do sério, pense em tudo que Sêneca aprendeu e que ainda hoje nos serve de lição. E, quando alguém quiser lhe consolar dizendo que "vai ficar tudo bem", não se iluda. Considere apenas que, se não ficar tudo mal, já será um ótimo resultado.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A CRÍTICA DA CRÍTICA



Os Simpsons são famosos pela crítica social que fazem por meio de sátiras e exageros, transformando assuntos sérios em piadas. Muitos outros seriados fazem o mesmo e também têm audiência relevante tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo, vide South Park e Family Guy. Aliás, criticar a sociedade norte-americana rende tanto assunto que Os Simpsons, por exemplo, já estão no ar há mais de vinte anos. Todo mundo adora, inclusive os próprios criticados, que fazem questão de ser o assunto da vez. E, até onde podemos constatar, o resultado dessa crítica é nulo - salvo as risadas.

No vídeo acima, vemos uma cena inusitada. Banksy, artista de rua bastante conhecido por desenvolver obras de apelo social, foi convidado para reinventar a abertura clássica de Os Simpsons. A polêmica foi tamanha que a Fox tentou abafar o caso (eles não devem ter achado a menor graça). Adivinhe o que aconteceu: o mesmo que sempre acontece quando uma empresa desse porte, preferencialmente americana, tenta abafar um caso: mais gente ficou sabendo.

O minuto e meio que Banksy criou deve ter gerado muito mais reflexão do que toda a década de exibição do seriado. Por quê? Provavelmente porque ele fez uma crítica consistente daqueles que eram famosos por criticar os outros. E utilizando o próprio programa.

Também acredito que haja um motivo ainda mais forte: Banksy mostrou que, por trás da piada, sempre existe um assunto sério - sabe aquele ditado segundo o qual toda piada tem um fundo de verdade? No caso, trata-se de um assunto do qual costumamos rir, ignorar e esquecer, colocado em evidência onde menos se esperava. Dá mesmo o que falar.

Parabéns a Os Simpson por permitir uma manifestação tão bacana.

Saiba mais sobre o artista: Banksy

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

DESLUMBRAR

Sou provavelmente o único brasileiro que não leu Comer, Rezar, Amar, livro que ficou meses na lista de mais vendidos e, se bobear, ainda está por lá. Desse modo, minha opinião sobre o recente filme deve divergir bastante da sua, que ansiava por ver no cinema aquelas páginas devoradas em tão poucos dias, tudo para conferir se a Julia Roberts ficou bem no papel de Liz Gilbert, reviver as passagens mais emocionantes e ver com os próprios olhos as paisagens magníficas antes traduzidas em letrinhas. Eu, em compensação, não esperava absolutamente nada, seria apenas mais uma comédia romântica recheada dos clichês habituais. Só que o filme me surpreendeu, saí do cinema entusiasmado.

Talvez porque ele tenha tocado num ponto-fraco: adoro viajar. Sou daqueles que assiste aos documentários do National Geographic sem dar a menor bola para o locutor, completamente hipnotizado pelos cantos exóticos do planeta e doido para tomar o próximo avião para lá.

Portanto, confesso não ter me atentado muito aos blá, blá, blás dos atores, exceto por um ou outro aforismo sobre aproveitar a vida, respeitar a si mesmo e colocar um ponto final no passado. Imagino que esse diálogo com o espectador funcione melhor no livro, quando sobra mais tempo para assimilar as ideias. Cinema é outra coisa, fortemente visual, linguagem diferente, profundidade de reflexões idem. Ainda mais quando falamos de blockbusters. Tudo fica mais rápido. É por isso que você vai sair da sala dizendo: “Mas no livro assim, no livro assado”. Tudo bem, reinventaram mesmo. Só não deixe a angústia afetar a apreciação dessa outra obra.

Deu para perceber que o roteirista tentou respeitar ao máximo a história original, porque alguns momentos ficam bem cansativos. São aqueles em que nada especial acontece, sabe?, estão ali só para ganhar tempo. Mas, no final, ficamos com a sensação de termos visto um filme bonito, com alto teor emotivo, relatado num sedutor tom de confissão.

As paisagens podem ter sido escolhidas com toda a parcialidade do mundo – já estive em Roma e Nápoles, sei que não são exatamente daquele jeito –, mas tudo bem, estamos no cinema para sermos enganados. Ficção é isso aí.

O que importa é que a Julia Roberts cumpre bem o papel, a fotografia é espetacular justamente pelo deslumbramento que provoca e o enredo ficou redondinho, não tem o que tirar nem por. Como o roteirista Lusa Silvestre vive dizendo, os caras sabem fazer direitinho.

Se for seu tipo de filme, assista, porque vai agradar com certeza. Se não for, acompanhe algum entusiasta do gênero e tente assisti-lo com olhos menos criteriosos. Talvez ele também encontre um ponto-fraco seu. E, se depois de tudo isso sua opinião ainda divergir da minha – ou não –, deixe um comentário aqui embaixo. Nesse meio-tempo, vou correr para ler o original de Elizabeth Gilbert e riscar essa falta grave da listinha.

Ps.: Agora, cá entre nós, o Javier Bardem interpretando um brasileiro com aquele sotaque semidisfarçado é bizarro. Talvez sejamos os únicos do mundo a notar, mas podíamos ter passado sem essa. Tanto ator bom sobrando nas bandas de cá, foram escolher um fajuto!