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terça-feira, 20 de julho de 2010

OLÁ, OLÁ, SEJA BEM-VINDO AO NOVO SITE



Veja só que beleza: o blog ficou maior, com colunas mais largas e bem mais gostosas de ler. As mudanças não foram radicais, é verdade. O conteúdo antigo continua no mesmo lugar, os links, o campo de pesquisa, o sistema de armazenamento... vamos aos pouquinhos para ninguém se perder. Eu tive um professor baiano que falava com aquele sotaque gracioso que só os baianos têm: "Tudo que é gostoso tem que ser feito devagar". Então vamos aproveitar cada etapa do novo blog juntos.

Primeiro, o visual, sempre leve e objetivo. Depois virão as novas páginas, as outras áreas de interesse etc. Por enquanto, quero que todos se sintam em casa como já estavam acostumados. A única diferença é que, para chegar aqui, terão que digitar http://www.artefazparte.com/ na barrinha lá de cima e apertar "enter". Tudo bem, né?

Além do nome, temos também um novo conceito: mostrar como, onde e por que você e a arte se encontram. Leia a apresentação no canto superior direito que fica mais fácil. De qualquer maneira, já adianto: o conteúdo permanecerá do jeito como você gosta, não precisa se preocupar. A definição do conceito é só para eu não perder o foco.

Comece a curtir o novo site lendo meus comentários (abaixo) a respeito da Supertrunfo, banda que acabou de lançar seu primeiro CD no SESC São José dos Campos. Nada melhor do que estrear este site citando um talento recente que vingou.

SUPERESTREIA EM CD



Fiquei muito feliz ao ver o show de lançamento do CD Supertrunfo, da banda que leva o mesmo nome. Feliz e também aliviado, pois descobri que não se trata de mais uma dessas bandas que apontam e logo desaparecem, vitimadas pela falta de caráter do rock brasileiro. Não, Jorge Neri (vocais), Duda Becker (guitarra), Fell Vieira (baixo) e Thiago Sansão (bateria) são diferentes e vou tentar explicar por que em poucas linhas.

A começar pela qualidade técnica dos músicos, coisa rara nesses tempos de samplers repetitivos, playback e rostinhos bonitos se chacoalhando freneticamente de um lado para outro do palco. Pôxa, dava para ver na segurança de cada compasso que eles sabiam o que estavam fazendo. E faziam por pura paixão, porque acreditavam na própria música e não apenas nas promessas do produtor.

Depois, pela obra propriamente dita, as harmonias criativas e bem resolvidas, a cadência do show, as letras que mais parecem diferentes versões da mesma história, falando de curtir o presente a dois e deixar o resto para depois. Tudo muito redondinho, bonito de se ver e de se ouvir. Mas o melhor mesmo são os riffs de guitarra, as distorções e os refrãos decentemente gritados – que saudade! Afinal, rock brasileiro também é rock, diacho, tem muita banda por aí que se esqueceu disso. Quer saber mais? É maravilhoso assistir a shows como esse, em que os músicos se preocupam mais com o que sai dos amplificadores do que com figurinos e penteados. Dá mais credibilidade, sabe? Dá vontade de comprar o CD e prestigiar.

Isso é outra coisa que me deixou feliz: o Vale do Paraíba compareceu em massa ao SESC São José dos Campos, cidade de origem da banda e lugar onde eles já construíram certa fama. Pois bem, foram três edições do Unifest, além da abertura de shows do Rappa, Charlie Brown Jr. e Detonautas. E, enquanto muitos desses aí já caíram na rotina minimamente produtiva do sucesso, a Supertrunfo está começando com o pé direito.

Pena que o tempo era curto e só pudemos ouvir dois covers além das canções do disco. Foram: Dream on, do Aerosmith e Bohemian Rapshody, do Queen, ambos executados como se deve. Bom, nem preciso falar que tipo de som você pode esperar de uma banda com essas referências. Se bateu aquela curiosidade boa, acesse o site e o myspace dos caras.

Deixo assim meus parabéns. Com o primeiro degrau alcançado com reconhecimento da crítica e do público, já dá para pensar no que está por vir. Fazendo uma gracinha ridícula para terminar, a estreia dessa foi realmente um supertrunfo. Há!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ALTA GRACIA



















Alta Gracia é uma antiga cidade da Província de Cordoba e também um patrimônio da humanidade. Localizada a mais ou menos 600 quilômetros a noroeste de Buenos Aires, Argentina, começou sua história em 1643 a partir de uma Estância Jesuítica – espécie de complexo agrário composto por igreja, fazenda, torre e lago artificial –, uma das seis que se desenvolveram e que se preservam até hoje na região.


Eu queria muito escrever alguns contos como Hemingway, pois ele pinça pequenos acontecimentos do dia-a-dia e faz daquilo histórias repletas de lirismo.

Vejo a solidão, a cultura dos povos, os espíritos do tempo e do lugar. Vejo a vida que acontece dentro e fora dos personagens. Mas, se me perguntam de que se trata o texto, só poderia responder: "Não sei".
Trata-se apenas de um teste.
Sempre um teste.
A etapa oficial é na verdade uma fachada para a gente se mexer.

MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA



A repressão durante a ditadura militar foi dura em todos os países da América do Sul. Agora, se já conhecemos pouco da história brasileira – os arquivos oficiais permanecem vergonhosamente fechados –, imagine as dos outros países.

Na cidade de Cordoba, a mais ou menos 600 quilômetros de Buenos Aires, encontrei esta antiga cadeia para presos políticos, onde muitos foram assumidamente assassinados ou simplesmente "desapareceram".

Ali funciona agora um memorial, nos moldes do nosso prédio do DOPS, no bairro da Luz, em São Paulo. As paredes externas exibem os nomes das vítimas da ditadura na Província de Cordoba. "Pessoas que entre 1969 e 1983 foram sequestradas, torturadas e executadas pelas forças repressivas do Estado", como diz o mural.

Tornar seus nomes públicos é uma maneira de mantê-los vivos na memória e dizer "Nunca Mais".


Para saber mais sobre a repressão no Brasil, acesse as Memórias Reveladas.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

OUTRA ORIGEM DO UNIVERSO



Big bang big boom, por Blu (dica de Estevam Leal)

Site do artista: Blublu.org


MAIS VÍDEOS DO MESMO ARTISTA:

Muto


Combo
De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.

Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista

e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.

Uma onda que guardasse
na paria cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,

e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas

mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.

Imitação das águas, de João Cabral de Melo Neto

O SUGESTIVO BALANÇO DAS ÁGUAS



A sensação imediata é de se perder naqueles mares em fúria que se debatem em movimentos frenéticos pelas paredes do salão. Só que não há água de verdade ali, nada se movimenta, há apenas uma sugestão, uma imitação. E o gostoso mesmo é se deixar perder na solidão das ondas, na profundidade do azul, nos grafismos quase orientais que a artista Sandra Cinto realizou especialmente para o piso térreo do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Seu trabalho manual é tão complexo quanto poético. São pinturas de grandes dimensões feitas com tinta acrílica, caneta permanente prata (também conhecida como "caneta spray"), telas de algodão, placas de MDF e muita sensibilidade. Têm a imitação como princípio e deixam claro que se trata de criações inspiradas nas águas. Mas... em que águas? As chuvas, os mares, os rios, a natureza; tudo está ali, imitado, recriado, traduzido em arte.



Em alguns momentos, as pinturas lembram grafitti, talvez pelo aspecto metálico da tinta, talvez porque o MDF se confunde com as paredes do lugar. Aliás, paredes que também estão pintadas de azul e, junto com a imagem das águas, envolvem o espectador num mergulho profundo. Mérito do cuidado que a artista teve não apenas com os objetos, mas também com a arquitetura ao redor.

Há volume, imensidão, movimento. Eles evocam o sublime, aquele receio primordial que impele e repele, que dá vontade de explorar porém exige cautela, tudo aos pouquinhos, como nas fábulas, nas aventuras infantis.

Para completar a mostra, há também uma instalação feita com barquinhos de papel, todos eles espalhados voluptuosamente pelo chão, modificando a dureza do piso, transformando-o numa superfície líquida e móvel. Ela deixa-nos a navegar, navegar e navegar pelo oceano da imaginação.

Imitação da água é uma apologia a esse elemento ao mesmo tempo banal e místico, uma poesia transformada em traços e cor. Se você deixar, o trabalho de Sandra Cinto vai lhe carregar para um novo mundo.


IMITAÇÃO DA ÁGUA, de Sandra Cinto
Instituto Tomie Ohtake
De 6 de julho a 1 de agosto
Curadoria de Jacopo Crivelli Visconti

terça-feira, 13 de julho de 2010

A ORIGEM DO UNIVERSO, SEGUNDO CRUMB



(a morte de Harvey Pekar me fez lembrar disso aqui)

Robert Crumb virá para a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano e eu consegui comprar meu ingresso para vê-lo (sim, fui um dos muitos desesperados que comprou nos primeiros minutos, pois eles se esgotaram rapidamente).

Como ainda não tinha lido sua última obra, resolvi tirar o atraso antes do grande dia (trata-se do Gênesis, sim, esse mesmo, um dos livros que compõem o Velho Testamento). Até porque o artista veio para falar sobre a origem do universo e, creio, isso será impagável.



Crumb realizou uma extensa pesquisa entre as diversas versões da história e em seguida a ilustrou, respeitando aquilo que considerou mais fiel ao original.

Pois muito me surpreendeu tudo que o Gênesis tem de crumbiano. Os personagens para lá de peculiares, as reviravoltas no enredo, os costumes praticamente inexplicáveis e o cotidiano sofrido dos homens. Se ele não avisa, poderia achar que o texto também é seu.

O objetivo não era satirizar e, realmente, os desenhos são muito pertinentes à história, duvido que possam ofender alguém. Seja qual for sua crença, essa versão ilustrada do Gênesis é uma interessante maneira de ler um texto considerado sagrado há anos por grande parte da humanidade. Vale a experiência.

E que venha a FLIP!


HQ DE LUTO


Harvey Pekar, por Robert Crumb

Harvey Pekar morreu nessa segunda-feira. Era um dos mais cultuados quadrinistas americanos, autor da série autobiográfica American Splendor, tida por muitos como obra-prima – houve quem comparasse Pekar a Dostoiévski e Chekov. A série inspirou o filme O Anti-Heroi Americano, com Paul Giamatti no papel principal. Pekar também ficou conhecido por suas aparições impagáveis no programa de David Letterman. No Brasil foi publicado Bob e Harv, seu trabalho com o ídolo e amigo Robert Crumb. O site de notícias G1 e o Guardian, entre muitos outros, publicaram textos sobre sua morte.

Retirado de: Blog da Flip
"Somos, no mais das vezes, mais vítimas do nosso terror do que dos perigos reais, e sofremos mais com a ideia que fazemos das coisas do que com as próprias coisas. (...) Eis o meu conselho: não fiques infeliz antes da hora; os perigos cuja chegada iminente tu temes talvez não cheguem nunca."

Sêneca, em As relações humanas (século I)

domingo, 11 de julho de 2010

A LINHA AMARELA


Composição com vermelho, preto, azul e amarelo (1928), de Piet Mondrian

Todo dia a mesma coisa, o celular despertando, a água fria, a água quente, o cheiro insípido de Nescafé, o pão borrachudo comprado na noite anterior, quando retornava do trabalho, sempre igual, sempre o mesmo esforço, sempre a mesma coisa, de modo que a própria palavra rotina perdia o sentido, perdia a função, tornava-se uma daquelas coisas tão óbvias que não precisam ser nomeadas. Chamar o dia a dia de rotineiro era o maior dos pleonasmos. E vinha o vento frio e úmido que anunciava o nascer do sol, o vento no rosto, os milhares de corpos ao redor seguindo juntos rumo a lugares diferentes, a voz do condutor nos alto-falantes indicando a próxima estação, pedindo que os passageiros não segurassem as portas, que iam atrasar a vida de todos os outros, que era um saco estar ali carregando aquele bando de ignorantes. O empurra-empurra, a evidente falta de banho, o mau hálito do jejum alheio, o toque ocasional em suas partes íntimas e a dúvida da intencionalidade. A saída, tão desejada e ao mesmo tempo tão distante, tão inalcançável. O olhar do relógio, impassível. A passividade religiosa que se adquire com o tempo discutindo com a vontade de empurrar todo mundo, gritar, mandar à merda. A passividade novamente, a dor nas pernas e nos braços, a bolsa apertada de encontro à barriga, a cabeça baixa, a bagagem do cavalo parado à frente obstruindo o corredor, o ligeiro afastar de pernas para garantir a posse do território, a freada brusca, a mistura de tudo aquilo organizado anteriormente. Eis que as portas se abrem e o dia recomeça pela terceira ou quarta vez, não me lembro, o fluxo de gente afasta os pensamentos acumulados anteriormente. A linha amarela, alerta de segurança na plataforma, a solução de todos os problemas de um jeito rápido e – talvez – indolor. A escada rolante, a dúvida da esquerda ou da direita, a luz natural, ar fresco, finalmente, a fuligem penetrante que tinge de preto as mucosas do nariz, o perfume dos automóveis, o desejo reprimido de ter um e se isolar na própria bolha, a bolha tão amassada e violada que já não se reconhece mais. O trotar nas calçadas feridas, o olhar do relógio, impassível, o cuidado para não pisar nos cocôs de cachorros e de mendigos, a pichação nova sobre a antiga, o mato alto, as flores judiadas, feias, tristes. O estômago ronca e transforma o café da manhã em uma lembrança longínqua, já faz tanto tempo, será que comi hoje? O alívio de chegar ao trabalho, o mesmo trabalho de sempre, a saleta encaixada em meio a outras quaisquer, o mesmo trabalho que será motivo de escárnio na hora do almoço, a insatisfação premeditada, o assunto fácil do reclamar por reclamar. O crachá, a foto feia, o elevador, a dúvida de cumprimentar o desconhecido. Oi? Tchau? Vá se foder, tá olhando o quê?, meus peitos? Quem dera alguém se interessasse por eles. O mesmo banco, a mesma praça, o mesmo computador, a mesma piada. A vontade de arrancar toda aquela roupa contaminada pelo sofrimento alheio, de tomar banho e esfregar, esfregar e esfregar até não sobrar nada além dos ossos brancos. Xixi, xixi, xixi... era isso que incomodava, que alterava o humor, que cruzava as pernas inadvertidamente. O banheiro vazio, sem janelas, a ventoinha evacuando o cheiro da noite anterior. O abandono. É incrível como quem mora mais longe é sempre a primeira a chegar, maldita cidade, precisava ser tão grande? Vamos repassar a lista de frases prontas: bom-dia, tem consulta marcada? Pois não, o doutor já vai atender. Aguarde um instante, sim? Não poderá comparecer? Claro, não se preocupe, podemos agendar para amanhã? Quanto tempo levaria para treinar um macaco? Bobagem, macacos são caros, precisam de vacina, licença, precisa castrar etc. Será que macacos mordem? Isso teria lá suas vantagens. O botão, a máquina de café barulhenta, a espera na frente da tela, o teclado com aquele monte de numerinhos, letrinhas e sinaizinhos, muitos nunca usados, dá para ver teclas sujas e outras não, teclas gastas e outras não. O telefone chama, foi dada a largada, o dia recomeça outra vez. Consultório do doutor Chapatim, isso mesmo, que nem no Chaves, não, deve ser número errado, de nada, que é isso, até logo. Idiota. Bom-dia, doutor. Agenda cheia, chega um nome, o primeiro da lista, senta, aguarda, levanta, entra, chega outro, entra, sai, entra, sai, entra mais um, demora, olha o relógio, olha para mim, olha o relógio, bufa, reclama baixinho, aperta qualquer coisa no celular, se mexe incomodado na poltrona, folheia uma revista com agressividade, sem prestar atenção, revista de fotos. Chega o nome seguinte e o anterior ainda está lá, o doutor deve estar comendo a paciente em cima do divã, rá rá rá, não duvido, aquela perua com cara de safada. Esconde o sorriso, esconde o sorriso! Pronto, acabou, entra o nome seguinte, fica esse, sai aquele, o relógio dispara sem sair do lugar, maravilha. A recepcionista da sala ao lado vem anunciar o almoço, claro, já vou indo, pode chamar o elevador. A mesma coisa todo dia, o mesmo papo furado, a novela do dia anterior, o capítulo de hoje que saiu na revista, o patrão explorador, a injustiça, os parentes distantes, o mexerico de um primo e sua amante, o relógio, a volta, o café, a barra de chocolate escondida na primeira gaveta, atrás dos bloquinhos de papel sobressalentes. O pecado da gula. O garrafão de água arrota num canto, a indigestão. Nomes e mais nomes. A porta abre e fecha continuamente, o mesmo discurso de sempre, tudo nas fichas, as mesmas reclamações, as mesmas prescrições, as mesmas despedidas. A sociedade doente. O último nome do dia desmarca, o doutor sai assoviando, a macaca fica até as seis para atender o telefone, caso toque. Tique toque, tique toque, tique. Toc toc toc, o salto no assoalho, o prédio vazio, o eco da noite, o abandono. O caminho de volta ao metrô, o reencontro com os desconhecidos, a evidente falta de banho, o aperto, o constrangimento, a vontade de soltar o corpo, de se pendurar nas barras de ferro grudentas de suor. O condutor do turno da noite, a estática sombria nas caixas de som, as mesmas frases previamente ensaiadas, um errinho que passa despercebido. As propagandas na plataforma, alguma coisa sobre queda de cabelo, outro cartaz sobre remédios, sempre alguma propaganda de remédio. A sociedade hipocondríaca, a cabeça pesada, muito computador, as pernas cansadas, mãos abusadas no hemisfério sul. Foda-se. A estação chega e a multidão dispersa, o contraste com a rua deserta. O letreiro luminoso, falta um pedaço do neon, a padaria, o olhar incomodado do atendente ao pedido de uma só unidade. A tragédia grita na tv. As moedas que se foram após duas semanas de ajudinhas, a nota que restou, a indignação silenciosa do homem no caixa. O maior problema do mundo. Antes fosse de cinquenta, maldito. O barulho acolhedor das chaves chacoalhando na bolsa, o anúncio de que algo se acaba para outro algo recomeçar, o girar da maçaneta, a resposta rápida do interruptor, a luz amarela pendurada num fio no meio da sala, o salto largado num canto, o piso frio, o alívio nos pés, o baixar relaxante da atenção. O ilusionismo da tv. O movimento inebriante, as pálpebras trepidando, a dispersão. A respiração quente e profunda, os murmúrios distantes, o afago do sofá. O frio nas pernas, o calor gostoso no pescoço. Todo dia a mesma coisa, o celular despertando, a água fria, a água quente, o cheiro insípido de Nescafé, o pão borrachudo comprado na noite anterior, quando retornava do trabalho, sempre igual, sempre o mesmo esforço, sempre a mesma coisa, de modo que a própria palavra rotina perde o sentido, perde a função, torna-se uma daquelas coisas tão óbvias que não precisam ser nomeadas. Chamar o dia a dia de rotineiro é o maior dos pleonasmos. E vem o vento frio e úmido que anuncia o nascer do sol, o vento no rosto, os milhares de corpos ao redor seguindo juntos rumo a lugares diferentes, a voz do condutor nos alto-falantes indicando a próxima estação, pedindo que os passageiros não segurem as portas, que vão atrasar a vida de todos os outros, que é um saco estar ali carregando aquele bando de ignorantes. O empurra-empurra, a evidente falta de banho, o mau hálito do jejum alheio, o toque ocasional em suas partes íntimas e a dúvida da intencionalidade. A saída, tão desejada e ao mesmo tempo tão distante, tão inalcançável. O olhar do relógio, impassível. A passividade religiosa que se adquire com o tempo discutindo com a vontade de empurrar todo mundo, gritar, mandar à merda. A passividade novamente, a dor nas pernas e nos braços, a bolsa apertada de encontro à barriga, a cabeça baixa, a bagagem do cavalo parado à frente obstruindo o corredor, o ligeiro afastar de pernas para garantir a posse do território, a freada brusca, a mistura de tudo aquilo organizado anteriormente. Eis que as portas se abrem e o dia recomeça pela terceira ou quarta vez, não me lembro, o fluxo de gente afasta os pensamentos acumulados anteriormente. A linha amarela, a novidade da vez, a violação das leis da previsibilidade. Aquilo por que tanto se esperou, a facilidade que se inaugura depois de atrasos e mais atrasos, como se o governo não se importasse com as angústias da população. A sociedade doente. Tudo bem, tudo se perdoa, tudo se esquece rapidamente quando se adentra a nova estação, as esteiras que andam pelas pessoas, o cheiro de obra recente, a poeira virgem, os funcionários orgulhosos, tudo bonito, tudo novinho, tudo de vidro e silencioso. A enganadora sensação de que agora vale a pena, de que o dinheiro gasto diariamente foi usado para alguma coisa. A linha amarela transformada numa parede de proteção, paredes de vidro, portas de vidro, a artificialidade da vida. Proteger quem e do quê? Os passageiros deles mesmos? Os passageiros de suas vontades suicidas? O trem sem condutor, os vagões interligados, o menor ruído, o balançado intimista, o banco macio. A voz mecânica e educada, a gravação sem erros passa despercebida. O sorriso humilde. A partida em direção a um mundo novo, um mundo que será assunto no almoço e que será motivo de sorrisos internos até o fim da semana, talvez ainda no começo da semana seguinte, até ser vagarosamente incorporado ao dia a dia pleonástico da rotina. Até que a linha amarela avance sem ser percebida e atinja de surpresa um elemento numérico dessa vida passageira, engolindo-o no buraco negro que sinaliza. A linha amarela, nem tênue e nem imaginária, a faixa larga e clarividente, o alerta na plataforma, a separação entre aquilo que a vida é e o que poderia ter sido. O que a vida poderia deixar de ser. A linha que amarela com o tempo e adquire o mesmo tom lúgubre de todas as outras, o tom frio do concreto, o tom doentio da sociedade. Não é difícil cruzá-la. Difícil é saber de que lado se está.

quinta-feira, 8 de julho de 2010


Narciso (2006), de Vik Muniz

"– Vou buscar mais água – disse Nick. Voltou à cozinha, encheu o jarro com a água fria da fonte que estava no balde. Na volta à sala passou por um espelho na parede e deu uma olhada. O rosto pareceu-lhe esquisito. Sorriu, e o rosto no espelho sorriu também. Piscou para o rosto no espelho e continuou seu caminho. Não era o rosto dele, mas não tinha importância."

Ernest Hemingway, em Uma ideia contra o vento


Narciso (1594-1596), de Caravaggio

quarta-feira, 7 de julho de 2010

DUAS SENHORAS NO PÓS-COPA



– O Maradona disse que ia ficar pelado.
– Não foi dessa vez.
– Já pensou aquele homem pelado?
– Que desgosto!

(da série " Conversas de rua")

terça-feira, 6 de julho de 2010

POR QUE NÃO?


Alvo com quatro faces (1955), de Jasper Johns

Dois meses atrás, comecei a praticar arco e flecha. Você, igualmente a todos para quem dei a notícia, deve ter pensado: "Arco e flecha? Por quê?", ao que já adianto uma réplica: por que não? É uma atividade antiquíssima, já serviu à caça, à guerra e agora é esporte olímpico. Exercita o lado físico e mental do atleta – para atirar, é preciso ter em mente apenas o alvo, e para isso deve-se deixar todo o resto muito bem preparado, incluindo musculatura, técnica, confiança, concentração etc., mais ou menos como uma estratégia de marketing promissora. Por isso eu digo, se você tiver capacidade de abstração, por menor que seja, e conseguir enxergar nas coisas outros sentidos que não os mais óbvios, abandone os livros de autoajuda e vá praticar arco e flecha. Dá para retirar dali toda uma filosofia, à lá Sun Tzu.

Por exemplo: arco e flecha tem tudo a ver com eleições políticas, quando temos apenas uma tentativa para acertar o alvo e não podemos desperdiçá-la, assim como não podemos dar nosso voto a um governante qualquer e depois querer voltar atrás. Do mesmo jeito que para disparar um bom tiro o arqueiro precisa se preparar, conhecer-se interna e externamente, ser consciente de seu lugar no espaço, preparar o corpo e a mente, buscar a perfeição ou, melhor dizendo, a otimização de todos os elementos envolvidos, o eleitor, por sua vez, deve ter em mente as necessidades da nação – e não unicamente as suas –, deve conhecer a fundo os candidatos e os planos de governo, deve se concentrar e acreditar no poder de seu voto. Se a maioria se dedicar de verdade, tenho certeza de que acertará em cheio.

Mas, por que treinar arco e flecha no país do futebol? Bom, já joguei bastante bola na vida, especialmente na época do colégio, e sempre fui um grande perna de pau. Não adianta, não nasci para a coisa e nunca a levei tão a sério quanto meus colegas. Para mim, futebol era apenas distração e risada. Só que o esporte é um cânone brasileiro, parece a única alternativa sensata por aqui e o resultado disso é o amadorismo que o país demonstra nas olimpíadas, com as pouquíssimas medalhas que conquista. Quero só ver em 2016, quando sediaremos o evento. E não adianta querer compensar, dizendo que somos os únicos a ganhar cinco Copas do Mundo; pois, se é verdade que ganhamos cinco, também é verdade que perdemos catorze.

Pode até existir um pouco de preconceito, mas acho que não se praticam outros esportes por aqui porque nem se pensa neles, ou porque deles se conhece muito pouco. Além do mais, futebol combina perfeitamente com a nossa realidade socioeconômica, já que basta uma latinha de refrigerante amassada para a turma toda se divertir, enquanto outras modalidades costumam exigir algum investimento. De vez em quando aparece um Guga, uma Daiane dos Santos ou uma Maurren Maggi para abrir os olhos da população, mas o fogo nunca dura muito tempo. É claro que não existe apoio do governo, só que, se a gente não tem nem escola e hospital decentes, quem dirá lei de incentivo a esportes pitorescos. Imagine aulas de arco e flecha no ensino fundamental. Parece piada...

Aí está um exercício interessante: imagine-se praticando algum outro esporte que não seja futebol ou levantamento de garfo. Não poderia ser legal? Então, por que não pesquisar um pouquinho e tentar? Uma das experiências mais ricas que a vida de publicitário me proporciona é a de lidar com o inusitado. Recentemente, me vi em uma sala de reunião com seis marmanjos das mais diversas estirpes, discutindo as diretrizes de uma concorrência da qual a agência resolveu participar. Tratava-se do contrato com uma multinacional que fabrica potes plásticos, desses de cozinha, que se acumulam caoticamente nos armários. Em poucos minutos, tínhamos montado e desmontado uma série deles e me vi refletindo sobre durabilidade, resistência, elasticidade, tecnologia, praticidade, design e reciclagem de um troço que nunca fez a menor diferença em minha vida. Se me perguntassem naquela manhã, quando ainda não sabia da reunião, o que eu entendia de potes plásticos, provavelmente teria dito que nada. Porém, duas horas depois, fui colocado à prova e passei. Por quê? Porque não tive receio de encarar um assunto novo quando precisei.

O mesmo aconteceu com o arco e flecha. Certa vez, li relatos sobre os arqueiros ingleses da Idade Média e pensei: deve ser legal praticar isso aí. Fui atrás, comecei e gostei. Hoje em dia, já consigo acertar uma maçã a dez metros de distância (não exatamente na primeira tentativa). Alguém se voluntaria a colocar uma na cabeça e me ajudar?

Pensar e agir é uma sequência de atitudes inteligente e muito mais produtiva do que apenas agir ou, ainda, pensar depois de agir. Considere-a nas próximas eleições e também durante o resto de sua vida. Pois viver é uma arte complexa, que exige técnica, inspiração e muita reflexão. Como diz o crítico Luiz Camillo Osorio, a arte não veio para explicar ou para confirmar nada, mas para nos fazer pensar e falar. As coisas mais improváveis vão se transformar nas mais simples se você se abrir às novidades.

Esta crônica mesmo é um exemplo. Se tivessem lhe pedido para relacionar, num texto curto, assuntos tão díspares quanto arco e flecha, eleições, potes plásticos e crítica de arte, qual seria a sua resposta? "Deixa comigo" ou "impossível"? Em minha opinião, a melhor resposta é sempre a réplica com tom de autodesafio: por que não?

segunda-feira, 5 de julho de 2010

PORTO SEGURO



Polinésia, o céu (1946) e Polinésia, o mar (1946), de Henri Matisse

"A aplitude do céu, a arquitetura móvel das nuvens, as colorações mutantes do mar, o cintilar dos faróis, são um prisma maravilhosamente próprio para divertir os olhos sem jamais enfastiá-los."

Charles Baudelaire, em Pequenos poemas em prosa

domingo, 4 de julho de 2010

FOTOCONSTRUÇÃO

É possível ver muita coisa numa fotografia. As cores, as formas, um sonho idílico, uma ilusão, uma definição de verdade. Há quem veja grandes volumes verdes onde outros veem montanhas. Há quem veja paz onde outros veem céu. Há quem se lembre de algo triste diante de uma abstração colorida. Trata-se de um processo de construção e descontrução pessoal.

As fotos abaixo revelam uma conversa formal com o construtivismo e destacam a necessidade que o homem tem de geometrizar o mundo. Pura construção matemática. Pura fotografia.






sábado, 3 de julho de 2010

FOTOABSTRAÇÃO

É possível fotografar o abstrato? Ou, melhor dizendo, fotografar de maneira abstrata? Pois, se a origem das fotos é sempre o mundo figurativo, lógico e racional, como pode resultar em algo diferente?

Talvez seja o trabalho do olho do fotógrafo, talvez seja o processo de fixação da imagem no suporte. Seja como for, as fotografias abaixo são minhas tentativas de compreender essa ideia. Trata-se de um projeto quase inconsciente, que ganha forma na medida em que reúno obras antes desconexas.





quinta-feira, 1 de julho de 2010

FLUIDEZ



As palavras foram sumindo aos pouquinhos, sem que ele percebesse. Eram aquelas menos comuns, da literatura clássica e dos pseudo-intelectuais chatos de hoje em dia. Depois, foram as dos jornais, da língua escrita, da norma culta, do novo acordo. A estas seguiram as faladas, as gírias, as expressões, os palavrões, as mágicas "bom-dia" e "obrigado". É óbvio que ele percebeu antes – era escritor, poeta e tradutor, precisava delas tanto quanto elas precisavam dele, só que não houve jeito de reverter o quadro. Dia após dia, seus textos ficavam mais repetitivos, mais confusos, cansativos. Pareciam histórias mal contadas, repletas de "e daí", "e daí" e "daí". E então os leitores também começaram a perceber, que coisa, logo eles que não davam a mínima para suas construções elaboradas, sua preocupação com a fluidez, seus pontos de vista polêmicos, sua vontade de ser percebido e de aparecer, de receber elogios, ter seu trabalho reconhecido. Um simples "parabéns" bastaria, seria motivo para acreditar que não escrevia apenas para si. Que nada, nem isso, nem uma única palavra. Elas simplesmente sumiam sem deixar rastro; quando menos se esperava não estavam mais ali, evaporavam-se da mente criadora para o silêncio dos não-lidos. Nem o dicionário ajudava – é verdade que as palavras continuavam espalhadas pelas páginas segundo a mesma lógica alfabética de sempre, só que já não significavam nada, eram apenas consoantes e vogais dançando polca. Juntavam-se, separavam-se, davam as mãos, subiam e desciam no ritmo marcante das linhas, pontos e espaços. Havia algo a ser feito? Alguma esperança? Tentou loucamente colocar a angústia no papel, mas os termos que a traduziam já não existiam. Seria possível descrevê-la sem escrever? Rabiscar sem dizer? Desenhos mímicos tentaram em vão. Eram abstratos demais, puro sentimento. Dali para frente, não haveria exatidão em nada. Descobriu-se inútil sem alguém que o decodificasse, que o fizesse sentir quem era de verdade. Fundiu-se à matriz existencial da natureza, transformou-se quase que da mesma maneira como suas ideias antes se transformavam em histórias. A ficção se misturou à realidade. Não sabia mais quem era, onde estava, de onde veio, como seria e como foi. Perdeu as palavras que melhor o definiam, que só poderiam ter saído de sua boca. Amassou a folha de papel em branco. Sua história não teria fim. Ou melhor: fim teria, porém ninguém jamais o conheceria. Caput.