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sexta-feira, 27 de maio de 2011

SOBRE ARTISTAS E MALUCOS

É verdade que muito se discute sobre o grau de maluquice dos artistas. Em parte, creio eu, porque a maioria de nós não pertence àquele mundo, e é muito difícil compreender um mundo do qual não se toma partido. Por outro lado, a maluquice serve muito bem ao preconceito, no sentido de que, sendo os artistas todos malucos, eles não merecem atenção.

Puro engano. Artista de verdade, seja ele fotógrafo, pintor, músico ou escritor, entre tantos outros, de maluco não tem nada. Bom, talvez tenha um pouquinho, mas em nível saudável e recomendado. Pois artista profissional precisa ser muito consciente de seu trabalho, mesmo que, às vezes, a gente não consiga compreendê-lo de imediato.

Recolhi o trecho abaixo de um texto muito bacana do filósofo francês Gilles Deleuze. Ao analisar a relação entre literatura e vida, ele destaca a "indiscernibilidade" como um dos principais sintomas do mundo contemporâneo, ou seja, a sensação de não pertencer a um lugar específico. Tudo é transitório, tudo está sempre se transformando a vida, em si, nada mais é do que um processo. O eterno devir.

Não há nada de maluco nisso, muito pelo contrário. Inclusive, se você permitir, a arte pode chegar até a curar suas neuroses:

"Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo (...). Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo."

Gilles Deleuze, em A literatura e a vida (ensaio reunido no livro Crítica e clínica)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

DE CABEÇA NA IDEIA

Margem Verde (2011), foto feita pela Galeria Experiência durante expedição Rio Pinheiros Vivo (clique na imagem para ampliá-la)

terça-feira, 24 de maio de 2011

ÁGUAS BARRENTAS

Durante as reuniões preparatórias da expedição Rio Pinheiros Vivo, me indicaram o documentário abaixo, que só consegui assistir há pouco. Foi uma pena não ter visto antes, porque ele poderia ter colaborado muito com a oficina literária que propusemos lá.

São vinte e cinco impressionantes minutos, que contam a história da cidade de São Paulo pelo ponto de vista dos rios. O mais surpreendente nisso tudo talvez seja descobrir que as enchentes são coisa antiga, já acontecem há quase um século. E que, apesar de serem produto da urbanização descontrolada, às vezes elas parecem ter sido muito bem planejadas por uma sucessão de administradores incompetentes.

Sugiro que você também assista a esse documentário, de preferência agora, para não correr o risco de deixar para depois e se arrepender, como aconteceu comigo. Vale a pena.



Aproveitando, fica aqui outro trabalho bacana do Coletivo Santa Madeira, que também fala dos rios de São Paulo:



Mais informações: As margens do progresso

terça-feira, 17 de maio de 2011

O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO*


Então, um dia, o rio secou. Simples assim, sem explicação. Num dia ele estava, no outro já se tinha ido. Sem explicação, o povo teve que se conformar. "É a vida", disseram. É a morte, sabe-se que um dia ela vem sem aviso ou explicação. Só resta se conformar. Só que, no caso do sumiço do rio, restou algo mais. Ficou no lugar o esqueleto. O esqueleto do rio.

Sabe-se lá quem descobriu. Quando perguntaram, ninguém sabia de nada. Depois, passado o primeiro susto, suspeitas à parte, todos reivindicavam o achado.

Restara o esqueleto, mas ele não se parecia muito com o corpo d'água que costumava sustentar. Eram traços diferentes, faltavam curvas; era uma verdade pouco maleável. O povo ficava olhando e perguntando se aquela coisa seca seria o esqueleto do mesmo rio que já não corria mais.

Pouco se conhecia daquele rio, pouco se prestava atenção. Era parte da paisagem. "Era só mais um rio, diacho. Tava ali e cabou-se". Um rio como qualquer outro. Por isso ficava difícil reconhecer o morto no esqueleto. Podia ser o esqueleto de qualquer outro rio. Só que, se os restos sobraram e o corpo já não restava mais, a lógica imperava. Não havia outra explicação, o rio secou. Só restava se conformar.

O povo se acumulou nas margens, transbordando de curiosidade e aflição. Não demorou muito, alguém mergulhou no rio seco, catou um teco do esqueleto, meteu no bolso e foi-se embora. Serviu de exemplo para a onda de gente que logo veio abaixo roubar o espólio do rio. Foi a maior corredeira. Em minutos, já não restava mais nada; nem morto, nem vestígio, nem suspeita. O rio se fora para nunca mais voltar.

Em casa, as relíquias ganharam lugar de destaque. Tinha quem se ajoelhasse diante delas e fizesse uma oração. "Santo rio, água benta, molhai por nós, pescadores. Que falta que faz. Me ajuda?"

O rio virou mito. O rio que foge sem parar, dia após dia, água após água. O rio fantasma que se ouve quando anoitece, nas noites sem luar. O rio das águas mágicas de imortalidade. O rio que correu para bem longe dali. De onde vem, para onde vai? Sabe-se lá... não tem explicação. "É a vida", dizem uns. É a morte, sabe-se que um dia ela vem assim mesmo, sem aviso ou explicação.

Um rio que, de repente, ganhou consciência e se foi para nunca mais voltar. Um rio do qual só restou a memória, a relíquia como prova de fé, a esperança da ressurreição. Um rio que voltará – um dia, quem sabe – para a nossa salvação.

***

*Esse conto foi escrito durante a oficina literária que tive o prazer de comandar ao lado de Marcelino Freire. Éramos um dos trinta grupos que o evento Rio Pinheiros Vivo reuniu em prol da recuperação do rio, totalizando mais de mil participantes e promovendo as mais diversas atividades, de caminhadas exploratórias a acrobacias aéreas.

A proposta de Marcelino era refletir – e escrever – a partir da seguinte situação: o rio Pinheiros secou. O que encontramos em seu leito? O que sobrou para contar a história?

Cada um dos participantes elegeu três temas e, após votação do grupo, escreveu sobre ele. Eu encontrei no fundo do rio o esqueleto do próprio rio, ideia inspirada no mapa que ilustra o conto. Se você olhar atentamente, verá que ele sobrepõe o traçado original do Pinheiros (azul e sinuoso), tal como era em 1930, e o atual (pontilhado e retilíneo), exatamente como o deixamos após a canalização. [clique no mapa para ampliá-lo]

Essa imagem foi produzida pela Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, promotora do evento, e nos ajuda a entender por que as intervenções do homem na natureza às vezes acarretam desastrosas intervenções da natureza no homem. As enchentes deste ano não me deixam mentir.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

AÇÃO E REDAÇÃO

Quantos já leram um texto que mudou sua vida? Aposto que muitos. A leitura tem esse poder – com sorte, acaba por se revelar uma experiência transformadora. O que nos leva à segunda questão: quantos já escreveram um texto que mudou a própria vida e também a vida dos outros? Ontem, um grupo de expedicionários se propôs a tentar: refletiram e escreveram sobre o rio Pinheiros, em São Paulo, numa oficina literária coordenada por mim e encabeçada pelo grande Marcelino Freire.

A oficina era um dos trinta grupos do evento Rio Pinheiros Vivo, organizado pela associação Águas Claras do Rio Pinheiros, que teve ainda visitas à usina Henry Borden, expedições fotográficas, caminhadas, bicicletadas e até acrobacias aéreas. Ao todo, foram aproximadamente mil pessoas se movimentando em prol da recuperação do rio.

As grandes mudanças começam assim mesmo, com um desejo que se manifesta na prática e, aos pouquinhos, vai conquistando o apreço de outros. Pode ser um texto, uma foto, um abraço, qualquer coisa.

Quem quiser conferir parte do que foi produzido ontem por esses pioneiros pode visitar o site da expedição. O material ainda está sendo processado, então vejam e retornem para ver de novo mais tarde. Haverá sempre algo novo querendo transformar você.

Confira também algumas fotos que fiz durante a expedição literária:

Rio à vista.

O grupo de expedicionários literatos.

Marcelino Freire em ação.

Assunto em pauta.





O texto e suas diversas leituras.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

LEITURAS MÚLTIPLAS

O bibliotecário (1566), de Giuseppe Arcimboldo

“Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.”

Michel Foucault, no prefácio de História da loucura

quinta-feira, 5 de maio de 2011

ANTES E DEPOIS


Ok, vou fazer só mais um comentário sobre o fechamento polêmico do Cine Belas Artes:
é um dos poucos casos em que eu prefiro a foto com a legenda "antes".

sábado, 30 de abril de 2011

O ANJO DO FUTURO

Angelus Novus (1920), de Paul Klee

"Minhas asas estão prontas para o voo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
   Saudação do anjo, de Gerhard Scholem

"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso."
   Walter Benjamin, 1940

O texto acima faz parte das chamadas teses Sobre o conceito da história, último escrito do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Considerado uma das suas maiores obras, foi publicado somente após a trágica morte do autor – Benjamin cometeu suicídio na cidade de Port Bou, na fronteira da França com a Espanha, enquanto tentava escapar das tropas nazistas.

O título da pintura de Paul Klee que inspirou essa reflexão fala de um anjo do futuro, embora o filósofo diga que seu rosto está voltado para o passado. "Uma catástrofe única", como ele diz. Curiosamente, o anjo de Klee está olhando diretamente para nós, espectadores. Essa relação entre os tempos idos e os vindouros sempre volta à tona. Sem dúvida, é um dilema do homem que provavelmente jamais será solucionado.

Recomendo a leitura dessas teses de Benjamin a todos que se interessam por história. Recomendo-as também a todos que, mesmo preferindo ignorar o passado, queiram compreender melhor o presente e até prever o futuro. Porque, para mim, tudo sempre pareceu ser uma coisa só. Pertencemos a um tempo vivo que, justamente por isso, está em constante mutação. Tudo é passado, presente e futuro consecutivamente. Qualquer solução que lhe dermos, valerá apenas para agora. E o agora é tudo que nos resta.

Ps.: A citação do também filósofo Gerhard Scholem consta no original.

domingo, 24 de abril de 2011

A condição humana (1935), de René Magritte

Tenho refletido muito sobre sonho e realidade, é o que me interessa no momento. Estou cada vez mais convicto de que ambos são a mesma coisa.

A realidade nada mais é do que um sonho. O sonho de um indivíduo em um momento determinado. Uma ilusão, um ideal.

O sonho, por sua vez, é também uma realidade. "Outra, nova, paralela, fictícia, interior", chame-o como quiser. Ainda assim, ele será real.

sábado, 23 de abril de 2011

"A previsão do tempo só vale para o momento em que é anunciada."
A frase surgiu pela manhã, enquanto eu olhava pela janela durante o banho e tentava descobrir se o dia seria quente ou frio. Quase ouvi a mulher do tempo dizer que faria frio, mas ela poderia voltar em quinze minutos e dizer o contrário. Nunca se sabe.
Escrevi a frase no vapor do box. Ela sumiu logo depois.

Vesti meu velho robe azul. Decidi que só escolheria a roupa depois do café.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

PARA CAMINHAR DE OLHOS FECHADOS*

Tenho ouvido muito esse disco [Chopin: The Nocturnes, de Nelson Freire]. Aliás, desde que o comprei, é praticamente tudo o que tenho ouvido. Ele acalma e ajuda a controlar os nervos – para explicar de maneira racional –, e depois da ansiedade que vivi nos últimos dois meses, em diversos momentos precisei dele para manter a cabeça no lugar. Mas não é só isso, claro. Sempre admirei os Noturnos de Chopin. Acho incrível como um músico e seu piano conseguem nos transportar pelo mundo dos sonhos, e então nos trazer de volta para a noite clara, imprimindo sensações de bailes agitados e também de solidão, desde a inércia contemplativa à ludicidade total. Ouvir os Noturnos é como caminhar livremente pela inconsciência, ou sonhar acordado num outro século, num outro continente, dentro da própria imaginação. Foram minhas melhores fugas da realidade, com certeza, e não há por que me envergonhar delas se acabo sempre por retornar mais forte, mais seguro de mim mesmo, pronto para enfrentar a sólida natureza do dia que vai se impor. Enfim, não basta um músico e um piano para provocar tudo isso, claro, assim como não é possível explicar racionalmente o que Chopin, pelas mãos de Nelson Freire, me possibilitou sentir. Só posso dizer que devo muito a ele. Séculos depois, continuamos todos a dever. Espero sinceramente que, de uma maneira ou de outra, ele também lhe possibilite uma experiência especialmente bela. Já que a explicação racional não basta, é melhor ligar o som, fechar os olhos e mergulhar por si mesmo nessa nova realidade.
Um forte abraço,

*Carta aberta ao amigo João A. Frayze-Pereira.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O HOMEM INVISÍVEL*

Quando criança, ele via homens de terno e gravata e sonhava com trabalhar assim um dia. Eles estavam nos anúncios dos jornais, no Castelo de Caras, nos programas de entrevistas da TV. Quem usava terno e gravata parecia importante, tinha status, era bem sucedido. "Homens de caráter", bradava seu pai, enquanto apontava para o telejornal, "resistindo ao calor da guerra!" Terno e gravata compunham o uniforme dos homens que mandavam no mundo. Mesmo criança, mesmo sem compreender o significado e as consequências do poder, era fácil identificar seus símbolos. Poder é o que o homem almeja desde cedo. Ele passará a vida tentando dominá-lo, tentando compreendê-lo, tentando obtê-lo de algum jeito. Passará a vida inteira tentando exercê-lo, mas na maioria dos casos acabará vítima dele. São poucos os que podem de verdade.

Agora, caminhando sob um sol escaldante, obrigado a visitar bairros e mais bairros diariamente, ele se lembra de suas fantasias infantis. Não se arrepende, porém. Não se entristece. Reagir ao mundo pressupõe uma ação primeira, ação e reação, só que o mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Quando passa, o mundo vê através dele. Não reconhece em sua carne o mesmo estofo de que é feito. O mundo está em todo lugar, enquanto ele tem certeza de que não pertence a nenhum. Por isso anda. Simplesmente anda por aí.

Sobe a calçada, dirige-se a mais uma casa, toca o interfone, fala com a parede. Levanta sutilmente a pasta de couro sintético preto que carrega sempre consigo. Ajusta a gravata sem perceber que o faz. Tenta ignorar o suor que teima em escorrer da testa pela lateral do rosto. Muito suor.
  – Sim?
  – Bom-dia, senhora. Se puder me conceder cinco segundos do seu dia, eu tenho aqui uns catálogos de produtos muito
  – Ah, não, não, obrigada. Agora não dá.
  Bip.

A invenção do interfone dificultou ainda mais seu trabalho. Prédios e outros tipos de condomínios fechados também. Ele agora precisa percorrer distâncias maiores para cumprir as metas de sempre. Nada é como antigamente, pensa. Nem mesmo terno e gravata. Os dele vêm com o logotipo da empresa estampado no bolso do peito. Um bolso falso, diga-se de passagem, que apenas finge ser o que não é.

O sol continua forte. O dia está tão claro que mal se permite admirar. Não se tem mais como adivinhar, não existe mais primavera, verão, outono e inverno; não existe mais época do ano fria ou quente, todas são frias e quentes ao mesmo tempo, todas as estações acontecem num único dia, consecutivamente. Tudo muda muito rápido, não se tem como adivinhar. Nada é como antigamente, pensa. O sol continua a bradar e o homem de terno e gravata e pasta de couro sintético preto continua a resistir ao calor da guerra. Outra casa, outra campainha, outra pessoa que não tem cinco segundos de vida para lhe emprestar. Cinco segundos podem transformar uma vida. Às vezes, é tudo de que alguém precisa para não perder as esperanças. Cinco segundos de atenção.

Cinco segundos são também suficientes para destruir uma vida. O vendedor sabe disso e continua sua caminhada rumo ao improvável. Outra casa, outra campainha. Dessa vez nem o atenderam, fingiram que não tinha ninguém. Mas o vendedor percebeu a silhueta espiando por detrás da cortina. Ele está acostumado com essas coisas. Consegue enxergar a aura da casa. Sabe dizer que tipo de pessoa mora ali, o tamanho da família, os costumes... São ossos do ofício, como se diz. Existem muitas maneiras de saber esse tipo de coisa. Também se diz, por exemplo, que o lixo de uma casa revela tudo que acontece em seu interior. Têm pessoas especializadas em leitura de lixo. Ele é a marca que o homem deixa no mundo, o rastro de sua existência. Só que não é de lixo que o vendedor entende. Ele entende da casa em si, pode revelar seu conteúdo apenas observando a fachada. É um dom muito útil.

O vendedor vê a silhueta, porém não insiste. Prefere que seja assim. O que não percebe é que, sob aquele sol escaldante, morrendo de sede, enclausurado no terno e com a gravata a lhe irritar definitivamente o gogó; vermelho, suado, penitente ainda que aceitando aquilo tudo com discreta indiferença, ele começa a desaparecer. Sua pele fica translúcida, sua sombra se projeta com menos intensidade no asfalto tremeluzente. O sol, aos pouquinhos, também começa a enxergar através dele. A cada passo, a cada campainha, a cada "não" recebido sem que nem mesmo consiga terminar sua apresentação, o homem fica ligeiramente mais invisível.

O suor faz a camisa grudar em sua barriga. É uma camisa sintética barata, toda branca, menos suscetível a amassados. É uma camisa que não absorve o suor. A firma dá essas camisas a todos os vendedores, mesmo sabendo que eles irão transpirar horrores. É uma camisa mais barata, que compõe o uniforme dos vendedores com pretensões de conquistar o mundo por meio de recordes de venda. Se eles não gostarem, que comprem as suas próprias; é o que dizem sem dizerem de verdade.

Debaixo do terno, a sensação é estranha. De vez em quando, o calor fica surpreendentemente frio, quase gelado. O vendedor não sabe o que causa aquilo, talvez seja o corte da roupa, talvez seja o tecido sintético sobre seu couro, talvez seja o suor em contato com alguma área ventilada. Só que é um frio que passa logo e deixa uma sensação esquisita, que nem frio na barriga. O vendedor considera a possibilidade de estar passando mal, de algum problema de saúde ter se manifestado de repente; tipo pressão baixa, pensa, ou talvez alguma coisa mais grave. Não pode ser ventilação, pois o ar está parado, definitivamente. Ao caminhar, o vendedor percebe que o ar se agarra em seus braços e pernas e o obriga a arrastá-lo pelas ruas. O calor frio sobe por dentro da roupa seca molhada e fica preso no colarinho. Não há sombra que alivie aquela sensação. Ainda que o sol atravesse sua pele quase sem tocá-la, o vendedor sente calor. Muito calor.

Ao longe, no fim da rua, talvez a quatro ou cinco quarteirões, ele avista um carrinho de sorvetes. Seus olhos sorriem de leve e ele se propõe um prêmio: depois de percorrer as casas dali, merecerá um sorvete. Um sorvete de limão, bem gelado. Um sorvete que contrarie tudo aquilo que o mundo está lhe propondo, um reconhecimento singelo para mais uma batalha ganha pela força do caráter. Assim, o sorvete afasta todos os outros pensamentos.

O sorveteiro, entretido com uma revista e tentando se proteger do sol debaixo da sombra miúda de uma árvore só percebe a aproximação do vendedor de terno e gravata quando este o cumprimenta com um "bom-dia". Agora dá para ver melhor, não é uma revista, é um desses tabloides de esporte. Há um jogador de futebol bastante suado na primeira capa, sob a manchete que sensacionaliza: "O novo rei?" O jogador está sorrindo, acabara de marcar um gol ou de vencer um jogo. Talvez tenha vencido o campeonato todo. Não importa, aconteceu em outro mundo. O vendedor sorri em resposta. O sorveteiro, por sua vez, levanta as sobrancelhas sem tirar os olhos da matéria.
  – Sim?
  – Tem de limão?
  – Claro.
  – Quero um, por favor.

O sorveteiro continua a ler por um ou dois segundos. Então, levanta a tampa do carrinho junto com o jornal, pega o picolé e recoloca a tampa no lugar, dá o picolé ao homem, pega o punhado de moedas que recebe em troca, chacoalha a mão como se verificasse o peso ou o barulho que fazem e as joga no bolso do avental sem perder o ponto da leitura. Ele sabe que o valor está correto sem ter que conferir as moedas. É um dom muito útil, pensa o vendedor. São os ossos do ofício.

O sorveteiro faz tudo isso sem notar que o vendedor de terno e gravata logo à sua frente está desaparecendo. Ele só tem olhos para o jornal.
  – Obrigado.
  – Nada.

Sentado no banco da praça, em um dos poucos em que ainda se pode sentar, o vendedor de terno e gravata e pasta de couro sintético preto observa as próprias mãos. Ele as levanta contra o sol, mas elas já não bastam para protegê-lo. Os raios atravessam suas palmas e o atingem no rosto como se as mãos não existissem mais. O vendedor não precisa conferir o resto do corpo para saber que o desaparecimento não é uma exclusividade de suas mãos. Ele inteiro deve estar daquele jeito. Não se entristece, porém. Não reage. O mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Não vai fazer diferença. O mundo vê através dele.

O vendedor de terno e gravata olha para o sorvete, que sua e pinga no chão entre seus pés. Nem se deu o prazer de prová-lo. Ele próprio sua a ponto de pingar. Não há nada que possa fazer. Não dá vontade de fazer nada. Então, ele fica parado, com os olhos fixos no sorvete que desaparece pouco a pouco em suas mãos. Nem mesmo percebe quando começa a chover.


*O homem invisível não é exatamente um conto, mas um capítulo do livro Ninguém, que estou escrevendo em parceria com Eduardo Usignolo e que ainda não tem data de publicação. Qualquer reprodução, mesmo parcial, sem o consentimento dos autores é proibida. Os direitos autorais são reservados. Quanto à foto que ilustra esta publicação, trata-se de Downtown, New York (1947), de Henri Cartier-Bresson.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O LAGO DOS CISNES, OP. 20

Não faz muito tempo, escrevi uma crítica do filme Cisne Negro e depois acabei por citá-lo novamente numa crônica do Correio Popular de Campinas. Ainda assim, aquela trilha não me saía da cabeça. Eu sabia que podia encontrá-la em algum dos meus CDs, porém foi só no último fim de semana que consegui procurá-la devidamente. Como não me permitem disponibilizar um arquivo de áudio aqui no blog, você precisa utilizar o vídeo abaixo para ouvi-la. É só clicar em 'play'.



Aproveitando a deixa, aqui vão algumas curiosidades a respeito:

O lago dos cisnes foi o primeiro dos três balés do russo Piotr Il’yich Tchaikovsky.

• Composto em 1876, é bem mais antigo do que os seguintes – A bela adormecida, de 1889, e O quebra-nozes, de 1892 –, além de ter sido criado em circunstâncias diferentes.

• Enquanto O lago dos cisnes foi feito por iniciativa própria, os outros dois foram encomendados para os Teatros Imperiais de São Petersburgo e aceitos apenas porque o compositor se encontrava em situação econômica difícil – digamos que o gênero não era muito respeitado na época.

• Quando estreou no ano seguinte, em 1877, “foi um tremendo fracasso, não devido à música, mas à interpretação da orquestra e dos bailarinos, assim como à cenografia e à coreografia. Em fevereiro de 1895, depois da morte do autor, voltou a ser encenado no Teatro Marinsky (…) e obteve sucesso enorme”. (RINCÓN, Eduardo. Piotr Il’yich Tchaikovsky: Royal Philharmonic Orchestra. São Paulo: Publifolha, 2005)

Mais informações você encontra no site do museu dedicado ao autor: Tschaikowsky Museum

E também aqui: Coleção Folha de Música Clássica

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ILUSÃO E DESILUSÃO



O mágico (L’illusionniste, 2010) não é uma animação 3D, não foi criada pela Disney/Pixar ou por qualquer outra gigante americana, não é uma refilmagem, não é a modernização de uma fábula clássica, seus personagens não são super-heróis, bichos falantes, robôs, extraterrestres ou comida, mas seres humanos como quaisquer outros; ainda assim, é uma animação digna de aplausos. Quantas dessas você viu na última década?

O roteiro e a produção, na verdade, são franceses. A França possui excelentes escolas de animação, pena que poucos filmes cheguem até nós. Mesmo O mágico, que tem roteiro do veterano Jacques Tati e direção de Sylvain Chomet, foi difícil de assistir. Ficou em cartaz apenas durante uma ou duas semanas naqueles mesmos cinemas alternativos de sempre, em São Paulo, e de repente retornou do esquecimento em uma sessão ‘cult’ promovida pelo Cinemark do Shopping D. Consegui assisti-lo numa segunda-feira, às duas horas da tarde, somente porque estava de férias. Inclusive, foi uma cena curiosa, pois nem mesmo os atendentes do cinema sabiam que ele estava em cartaz. Quando pedi o bilhete, me olharam com desconfiança e foram procurar no computador. Nem preciso dizer que a sala estava às moscas, né?

Voltando à questão principal, o enredo explora a decadência de algumas artes de entretenimento clássicas, que vão aos poucos sendo substituídas por outras mais em voga. Além daquela que dá nome ao filme, vemos a de palhaço, ventríloquo, trapezista etc., as quais desaparecem sem que ninguém perceba, condenadas a uma morte lenta e difícil de reverter. Tratando-se de uma animação 2D, considerando o discreto público que atraiu por aqui e comparando tudo isso à alta demanda de filmes 3D, acho que podemos considerá-la autorreferente – fora de moda, o estilo parece dar seu último suspiro e morrer junto dos próprios personagens que criou.

Não que eu acredite no fim dos desenhos 2D, especialmente dos bonitos como esse, feitos com aquarelas e traços caricatos nos moldes do ótimo As bicicletas de Belleville, também de Sylvain Chomet. Mesmo com as duas indicações ao Oscar que este último recebeu em 2004, além de diversas menções honrosas, o 2D dificilmente recuperará tão cedo o público que obteve anteriormente, nos tempos dos clássicos Disney. Ao menos não enquanto os espectadores continuarem empolgados com as novas possibilidades tecnológicas.

O mágico também é autorreferente quanto ao próprio Tati: além de o protagonista lembrar muito seu famoso personagem Monsier Hulot, uma breve cena do filme Meu tio aparece aqui numa citação discreta e saudosista.



No geral, podemos dizer que se trata de um filme adulto; triste, melancólico e reflexivo, acaba provocando meia dúzia de sorrisos constrangedores. Afinal, estamos falando de artistas rejeitados pelo público, lutando para não abandonarem as profissões pelas quais são apaixonadas.

Em resumo, o mágico protagonista parte da França atrás de novas plateias e acaba por descobrir uma garotinha que, em sua inocência, ainda acredita no ilusionismo. Mas o quadro logo se corrompe e as últimas esperanças se perdem.

“Mágicos não existem”, diz o bilhete que antecede o truque derradeiro. Então o mágico desaparece para nunca mais voltar. Uma inesperada atitude que abre nossos olhos para a realidade.

É mesmo um filme que fala muito, apesar de não ter diálogos explícitos – pois é, toda a comunicação se dá por murmúrios e expressões corporais. Vale muito a pena ver, especialmente quem nunca se deparou animações do gênero.

Talvez, por meio desta preciosa carta na manga, Chomet consiga lhe apresentar um mundo espetacularmente rico em mistérios e possibilidades, que às vezes é chamado de arte, às vezes de poesia e, às vezes, simplesmente de cinema – nomes que lhe cabem muito bem.


Site oficial: L'illusionniste

quarta-feira, 30 de março de 2011

COLEÇÃO NEMIROVSKY: PATRIMÔNIO NACIONAL

Em carta aberta à população brasileira, a Pinacoteca do Estado de São Paulo pede auxílio para continuar a gerir a importante Coleção Nemirovsky, permitindo que ela esteja sempre acessível a todos.

Quem quiser colaborar pode usar o link Pinacoteca de São Paulo e aderir ao abaixo assinado.


segunda-feira, 28 de março de 2011

"Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama."

John Fante, em Pergunte ao pó
Um bom texto é uma resposta sincera a uma boa provocação.

sexta-feira, 25 de março de 2011

ENCONTROS COM O PERSONAGEM

Quando assisti ao filme Cisne Negro, fiquei muito impressionado com a maneira pela qual a protagonista se perde em conflitos interiores para incorporar duas personagens essencialmente opostas, simbolizadas pelos tradicionais "bem" e "mal". Maneira esta que não apenas beira a insanidade, mas que a adentra e leva até uma grave neurose. Se você ainda não viu, não se preocupe, não pretendo estragar a experiência revelando detalhes da trama. Acontece que o filme me lembrou de casos anteriores, alguns reais e outros imaginados, em que pessoas se deixaram envolver perigosamente com o universo ficcional – pude constatar, assim, que isso é mais comum do que parece.

Minha namorada, por exemplo, quando conheceu os livros da série Crepúsculo, ficou tão alucinada que não conseguia pensar em outra coisa além de voltar logo para casa e continuar a leitura. Eu diria que até hoje ela continua meio afetadinha pela promessa de amor eterno do vampiro Edward.

Você mesmo deve ter vivido situação semelhante, ainda que não com tamanha intensidade. Pense no romance O código Da Vinci, que gerou uma curiosa crise com a Igreja Católica e seus devotos mais radicais. Na ocasião, discutiu-se o que nele seria verdade, o que seria perjúrio e o que seria excesso de ousadia do autor. Rolou até mesmo uma tentativa de proibição da leitura, disfarçada de conselho episcopal, como uma sombra do abominável Índex do Santo Ofício. Blasfêmia!, gritavam daqui; Liberdade de expressão!, bradavam dali. Muita gente tomou o romance como fato incontestável e levantou armas contra ou a favor. Outros tiraram os olhos do livro e passaram a encarar o dia-a-dia com desconfiança. Cheguei inclusive a presenciar uma discussão sobre o pecado de ler. Agora, o que a maioria jamais considerou é que O código Da Vinci é um romance, uma obra ficcional sem pretensões de promover uma revelação histórica. Uma narrativa inventada para entreter, ainda que baseada numa hipotética realidade passada.



Algumas dessas narrativas, ou mesmo personagens delas, exercem um fascínio tão grande sobre o público que chegam a afetar suas vidas profundamente, levando inclusive à morte. Um caso clássico é o de Os sofrimentos do jovem Werther. Escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado pela primeira vez em 1774, o romance se tornou símbolo do Sturm und Drang alemão, embora hoje pareça mais um melodrama um tanto quanto fora de moda. Na época, todavia, muitos jovens passaram a se vestir como o protagonista, enquanto outros, contagiados pela melancolia exacerbada, seguiram seu exemplo e deram cabo à própria vida.

Um século mais tarde, quando Arthur Conan Doyle decidiu se livrar de seu personagem mais famoso para conseguir escrever sobre novos assuntos, Londres viveu tempos de pesar e revolta: leitores indignados enviaram reclamações aos editores e saíram às ruas usando braçadeiras de luto. Oito anos depois, Doyle cedeu à pressão – e às generosas ofertas financeiras –, inventou uma lorota bastante discutível e fez reviver o detetive Sherlock Holmes, para alegria geral da nação leitora.

Uma situação bem mais recente é relatada por Stephen King no primeiro dos sete livros de A torre negra. A série demorou três décadas para ficar pronta. Nesse meio-tempo, em uma das longas pausas criativas do autor – em que os fãs chegaram a lastimar que ela jamais fosse concluída –, uma senhora de oitenta e dois anos lhe escreveu: tenho um ano de vida, catorze meses no máximo. O câncer tomou conta de mim. Antes de partir, queria saber o final da trama, prometo não contar a ninguém. Por favor.

De minha parte, só tenho a dizer que, após muita dedicação, terminei de ler todos os volumes da saga Harry Potter. É impossível não se afeiçoar àquele menino que cresceu junto com seus leitores-alvo, mesmo não sendo o meu caso – talvez algo semelhante tenha acontecido comigo durante o seriado televisivo Anos incríveis. Enfim, quando li a última linha do último livro, imediatamente pensei: que coisa sem graça será minha vida sem a bruxaria!

Não muito diferente do que nos casos supracitados, meu encontro com esse personagem se dera de maneira entusiasmante, o que costuma caracterizar uma boa fonte de entretenimento. Passadas algumas semanas, digo sem titubear que retomei a rotina em sã consciência e que agora tudo transcorre normalmente; embora, de vez em quando, eu pense em como seria bom fazer meu carro levitar para fugir de um congestionamento, ou mesmo deseje estuporar alguém que venha encher a paciência no trabalho. Ah, doce ficção!


Notas sobre as ilustrações:
1. Mão com esfera reflectora (1935), de M. C. Escher (autorretrato)
2. Répteis (1943), de M. C. Escher
3. Encontro (1944), de M. C. Escher

terça-feira, 22 de março de 2011

NÃO TEM COMO DESGOSTAR DO DRUMMOND

Comprei por esses dias A rosa do povo, quinto livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente em 1945 e republicado como tal há pouco tempo, numa coleção da editora Record. Até então, esses poemas só tinham aparecido em coletâneas. Comecei a folheá-lo sem compromisso, lendo trechinhos esparsos. Até que me dei com o título Anoitecer.

Após alguns versos sobre a noite louca da metrópole, movimentada, barulhenta e insone, o poeta diz:

"Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo."

É por essas e muitas outras que me parece impossível não gostar do Drummond. Quem mais, senão ele, seria capaz de criar imagens tão simbólicas como essa dos corvos, bicando o corpo que parou no tempo e que, justamente por isso, virou passado? Um corpo que se modifica a cada bicada, que é sempre uma entidade em formação e que, portanto, também é futuro. Um corpo sem dono, condenado ao degredo e abandonado pela eternidade. Uma imagem que dá medo, claro, mas que também nos coloca para pensar.

Homem de olhar profundo e de versos simples, porém marcantes: esse é o Drummond. Não há como não gostar dele, sempre digo isso. Digo também que, se alguém não gosta de poesia, é porque não conhece o Drummond.

Achei que seria justo fazer essa homenagem, assim como a toda essa maravilhosa arte que ele nos proporciona. Uma homenagem surgida do acaso, porém acolhida com muito carinho. Uma rosa para o povo, outra rosa ao poeta.


A rosa do povo reúne 55 poemas escritos em plena 2ª Guerra Mundial, entre 1943 e 1945, época em que Carlos Drummond de Andrade já tinha se acostumado com as novidades da enorme Rio de Janeiro, então capital do país, e abandonava aos poucos a inocência da sua pequena Itabira, no interior de Minas Gerais. Após o angustiante e ao mesmo tempo deslumbrante primeiro encontro, tão presente no livro anterior – Sentimento do mundo, de 1940 –, o poeta agregou à sua obra os pensamentos politizados daquela época tão conturbada.

segunda-feira, 21 de março de 2011

"Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não é real?"

J. K. Rowling, em Harry Potter e as Relíquias da Morte

quarta-feira, 16 de março de 2011

PRETO NO BRANCO



"Está tudo ali", diria Freud, "tão claro quanto a soma de 1 + 1". O diretor do balé dá a dica logo no início: ele quer reinterpretar o clássico Lago dos Cisnes e precisa de uma dançarina que incorpore o bem e o mal, que transite com facilidade entre esses dois pontos de vista tradicionalmente antônimos. "Todo mundo possui um lado bom e outro ruim, basta se esforçar para aflorá-los". Dizer é fácil, mas assumir a face oculta da personalidade pode causar transtornos que nem a psicanálise explica. A força do filme Cisne Negro se concentra justamente aí, nesse dilema já bastante explorado no cinema, mas que ainda tem potencial para render ótimos dramas. Basta fazer direitinho, com cuidado e sensibilidade, como conseguiu o diretor Darren Aronofsky.

Repare no cenário e no figurino: tudo é preto ou branco, não existem meios tons. Bem típico do nosso costume maniqueísta de encarar a vida, em que o bem e o mal não ocupam o mesmo lugar no espaço. Bobagem. Quando a personagem interpretada por Natalie Portman – a princesinha que é o cisne branco em pessoa – precisa ser também seu algoz, o conflito se coloca. E contamina todos ao redor.

Na plateia, a gente se confunde, não dá para saber o que é alucinação e o que é real. Enquanto a bailarina luta para arrancar a casca pálida que acoberta seu interior sombrio, as teorias psicanalíticas surgem como as melhores coadjuvantes – tem a questão do duplo, da sombra, dos desejos reprimidos e da sublimação. Tem também algo muito mais forte, que lembra o romance O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde: a perigosa mistura de vida e arte.

Para quem não leu, a história trata de um jovem muito vaidoso que, querendo ser – e permanecer – perfeito, amaldiçoa um retrato seu, fazendo-o envelhecer em seu lugar. Acontece que, com o passar do tempo, a visão da pintura corrompe sua sanidade, até que não se distingue mais quem é o verdadeiro Dorian.

Em Cisne Negro, as personagens assumem o papel da bailarina, invadem sua vida pessoal, deixam o palco para ganhar as ruas. Tudo que antes parecia claramente dividido se transforma. Vida e arte, assim como realidade de ficção, passam a ser uma coisa só.



Preste atenção nos detalhes, como o rosto do diretor do balé, que, indeciso entre as concorrentes para o papel principal, é focalizado exatamente na emenda de dois espelhos. E ainda nas sombras no fundo do palco, depois da maravilhosa transformação da bailarina no cisne negro, que permanecem com asas, embora os espectadores não vejam nada além da mera representação artística – o público vê a obra, mas ignora a alma. São detalhes como esses que acrescentam significado às cenas e, antes de tudo, mostram o cuidadoso trabalho de Aronofsky.

"Foi perfeito", diz a bailarina no final da dança. Ser perfeita, assim como Dorian Gray, era tudo que ela desejava. Aquilo que antes parecia fadado a competir eternamente se funde então em uma única entidade, uma mistura de bem e mal, branco e preto. Para que os dois cisnes ganhassem vida num espetáculo sublime, a bailarina agiu como o ambicioso Dorian e abriu mão de sua sanidade. Ao incorporar ambas as personagens, deixou de ser a si mesma; cedeu à pressão, seu conflito interior extravasou e acabou por destruí-la.

Um corpo consegue assumir formas diversas no palco, transformar-se a si próprio é imprescindível à boa atuação. Só que talvez a mente não seja forte o bastante para distinguir a verdade da mentira. O espelho se quebra e, nos cacos que restam, vemos apenas breves indicações da identidade que se perdera. Foi perfeito. Só que o perfeito, como sabemos, é impossível.


terça-feira, 8 de março de 2011

"Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são os nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los."

Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta

domingo, 6 de março de 2011

MENSAGEM NA GARRAFA


Farol e casas em Portland Head, Cape Elizabeth, Maine (1927), de Edward Hopper

"Força de atração do mar. Aspiração pelo mar. Pessoas aparentadas ao mar. Ligadas a ele. Dependentes do mar. Devem retornar a ele."
A dama do mar (1888), de Henrik Ibsen

Meus encontros com o mar, hoje em dia, são muito diferentes do que eram no passado, quando eu era criança e tudo o que desejava era brincar o máximo possível com meus primos entre as infinitas possibilidades da areia e o imprevisível estímulo das ondas. Agora, recorro ao mar com outros propósitos. Não quero permanecer na água até as pontas dos dedos enrugarem e o maxilar tiritar de frio contra a minha vontade. O mar cresceu comigo e, de parceiro de algazarra, tornou-se meu terapeuta particular. Procuro seu auxílio em tempos difíceis; vou ao seu encontro para desaguar sentimentos e ele me ouve com profunda sabedoria. Mesmo que seu humor varie, o mar está sempre disposto a me ajudar.

Prefiro-o em fins de semana frios, cinzentos, quando sei que estaremos a sós. O mar é mais bonito no verão, porém é mais poético no inverno. Ofereço-lhe então minhas angústias e, entre idas e vindas, ele me recompensa com a cura, ainda que esta seja tão efêmera quanto a forma de suas águas. Quero esquecer este instante, afastar os pensamentos sombrios, organizar a razão, as memórias e os sonhos. Ao navegar, impreciso, o mar me coloca em contato comigo mesmo. Seu balanço ininterrupto faz as obrigações e a pressão momentâneas perderem o sentido – percebo o passado, o presente e o futuro acontecerem consecutivamente, indiferentes à minha participação. Sentado na areia, com a brisa a revolver meus cabelos, sentindo o cheiro úmido de sal impregnar meu corpo, estabeleço uma ligação com a eternidade.

Um amigo certa vez me contou que o barulho das ondas, quando se caminha sozinho pela orla, reverbera em outro estado de consciência. Suas vibrações se assemelham às da meditação zen budista. Isso só fez sentido para mim anos depois, quanto pratiquei um pouco de ioga e pude verificar que sim, é verdade, o caminho do nirvana passa pelo mar. A paz interior se encontra debaixo de camadas e camadas de água, repousando como um tesouro há muito naufragado. Para chegar até ela, é necessário vestir um escafandro e mergulhar fundo no inconsciente; vencer as correntes, revelando assim os segredos da psique humana. Ao abrir a arca, veja só que surpresa, eu descubro a mim mesmo, essa revelação inconcebível do ser.

Muito me admira a insistência do mar, a perseverança que não o deixa desistir de subir à praia, de avançar os limites da natureza, de perturbar o equilíbrio universal. Milhões de anos comprovaram que a vitória é impossível, só que o mar não desistirá. A beleza incorruptível da sua tentativa supera em muito o lampejo de qualquer sucesso. O mar age em prol de um ideal que, como todo ideal verdadeiro, jamais será alcançado. Respeito, justiça, moral em primeiro lugar. Essa atitude revela a integridade de seu caráter. O mar não é volúvel como o ar; é mais concreto do que a rocha, que sempre acaba por ceder às suas investidas.

Atraco finalmente em terra firme. A sessão acabou, é hora de voltar para casa. Sacudo a calça, tento deixar a areia onde a encontrei, viro as costas e caminho. Mas o mar não me larga, não aceita rejeição. Ninguém o abandona depois de conhecê-lo. O mar caminhará comigo, mesmo sem sair do lugar.

As memórias persistem, as angústias vêm à tona, os medos saem da toca. Tudo volta ao normal. A vida acontece agora, numa realidade que não posso me dar ao luxo de ignorar. Nasci condenado a permanecer nesse plano de consciência e, conhecendo as rotas de fuga, acho que o melhor mesmo é enfrentá-lo.

Só que o mar transforma. Sou prova incontestável disso. Carrego-o comigo para onde vou e, mesmo assim, quando a lembrança não basta, quando a saudade aperta, corro ao seu encontro. Sei onde encontrá-lo. Sei o que estará fazendo, sei que posso incomodá-lo a qualquer hora sem incomodar de verdade. Impassível. Meu gigantesco exemplo. Eu respeito o mar. Acima de tudo, eu o respeito. Pelo que fui, pelo que sou e pelo que serei. O mar estará sempre lá. Ele é minha certeza de completude. Permanência. Sobrevida.

quinta-feira, 3 de março de 2011

OS LIVROS E AS COISAS EM 1947

Este documentário de 1947 explica como os livros eram feitos na época, considerando gráfica, sistemas de impressão, maquinário, etc. Mas ele também explica como os próprios documentários eram feitos. E como as pessoas daquele tempo se vestiam. E como se fazia a divisão do trabalho entre os sexos. E como a indústria confundia os homens com as máquinas. E muito mais.

Seja qual for o seu interesse – melhor ainda se for por mera curiosidade –, assista-o!


Ps.: Acabei de perceber uma coisa: repare na semelhança desse documentário com o filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin. Legal, né?

quarta-feira, 2 de março de 2011



A coletânea de tiras dos PIRATAS DO TIETÊ que eu estava lendo me fez pensar na atual situação do LAERTE. Você já teve ter ouvido alguma coisa sobre seu CROSS-DRESSING, essa mania de se vestir de mulher que ele chama de 'pesquisa comportamental' – ou qualquer coisa assim. Então, toda vez que aparece uma nota na mídia, falam da saia, do corte de cabelo, das unhas pintadas, etc., mas ninguém fala da obra, do grande artista que ele é e da importância de seus cartuns. Só que foi ele mesmo que provocou essa situação. Sei lá, não entendo. Prefiro continuar a ler meus Piratas e afogar a indignação numa garrafa de rum.

No programa Provocações, da TV Cultura, você vê o Laerte com seus próprios olhos e ouve com os próprios ouvidos: Provocações

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A CASA DAS PALMEIRAS

Palmeiras, como poderei te falar, te contar ou descrever,
És mundo disfarçado de casa, és casa podendo ser mundo.
Quem te vê de fora não entende, quem entra te conhece, nunca esquece,
Palmeiras, a cada dia nasce vida em teus barros, tintas, papéis e madeira,
És tu, Palmeiras, a casa dos meus sonhos, de uma noite que não quis ter fim,
És o início, o universo, o recomeço, tudo isso tu, Palmeiras, és para mim.

Não sei muito a respeito do autor do poema acima, entitulado Palmeiras, que foi escrito em 1993. Sei apenas que, na época, tratava-se de um rapaz, um dos clientes da Casa das Palmeiras, entidade carioca criada pela psiquiatra Dra. Nise da Silveira 37 anos antes.

A casa surgiu como continuidade de um trabalho importantíssimo que a doutora desenvolvia no Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, no distante bairro de Engenho de Dentro, e representou um marco na psiquiatria brasileira. Seu propósito é fazer ponte entre a reclusão hospitalar e a vida em sociedade, ajudando os pacientes a retomarem a rotina que tinham antes da internação. Tudo isso porque os casos de reinternação eram bastante grandes, normalmente ultrapassavam o número de novos internos nos hospitais psiquiátricos.

Na Casa das Palmeiras, os clientes frequentam ateliês de pintura e escultura, oficinas de teatro e de costura, entre outras atividades. Ninguém fica internado; eles apenas participam dos grupos e retornam para casa no fim do dia. Conforme descrito no poema acima, o lugar é mesmo o mundo disfarçado de casa, onde, por meio das terapias artísticas, a vida consciente renasce a cada dia. A vida feita em barro, tinta, papel e madeira. A vida feita em poesia.


Clique e saiba mais sobre a Casa das Palmeiras.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O QUE ACONTECE NA LÍBIA TAMBÉM PODERIA ACONTECER AQUI?

O general dá ordens aos pilotos da força aérea:

– César, bombardeie o bairro de Santana.
– Mas, senhor, eu moro ali, senhor.
– Tudo bem. Então, bombardeie Pinheiros. Você, Luis, você bombardeia Santana.
– Senhor, sim senhor.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

VICE-VERSO

Quando ouvi comentários sobre a série Verso, do brasileiro Vik Muniz, achei que se tratava apenas de mais um factoide inventado para chamar atenção da mídia. Ele tinha selecionado diversas pinturas e fotografias famosas, reproduzido o verso das mesmas com o maior realismo possível e as exibido numa galeria de Nova York. O que poderia haver de interessante naquilo? Na ocasião, achei que nada. Mas algo ficou em meu inconsciente, algo provocador, exigindo uma reflexão a respeito. Até que, na última quarta-feira, comprei o catálogo da mostra e dediquei algum tempo às ideias do artista. Descobri que meu pré-julgamento estava errado – como todo pré-julgamento costuma estar – e que a série tem seus méritos, alguns verdadeiramente relevantes.

Entre eles, por exemplo, está o de revelar que a parte de trás dos quadros se transforma de um jeito diferente da frente. As marcas do tempo ficam mais perceptíveis ali. Na medida em que viajam para exibições mundo afora, as pinturas ganham adesivos, anotações e arranhões – espécie de carimbos de passaporte. Dá para desvendar todo o seu trajeto por meio deles.



As fotografias, por sua vez, até o advento da era digital, receberam notas no verso sempre que foram publicadas por algum veículo de comunicação, que vão desde uma simples data até a própria legenda ou manchete que as acompanhou. Visitamos, assim, os bastidores do espetáculo, como diz o crítico Luc Sante no texto de apresentação do catálogo.

Outros dois pontos importantes para compreender a proposta de Vik Muniz são:

1) A questão do fac-símile. Pois o que estava em exibição em Nova York não eram os versos originais das obras, mas reproduções deles, que poderiam ser consideradas quase tão enganosas quanto uma falsificação deliberada da frente, não fosse o aviso do artista. Ainda que a cópia tenha sido realizada com uma minúcia inimaginável, sabemos que, ao virarmos as peças, não encontraríamos nenhuma pintura ou fotografia do outro lado.

2) Posicionar a série no conjunto de trabalhos do artista. Porque a escolha dos versos foi criteriosa – como ele mesmo diz na entrevista concedida a Eva Respini –, tanto as pinturas quanto as fotografias deveriam despertar a imagem original na mente dos espectadores pela simples menção do título. Vik Muniz continua, dessa maneira, a trabalhar com ícones da História da Arte e com a ambiguidade, duas das suas marcas que podem ser vistas em obras anteriores feitas com chocolate, pigmentos coloridos e lixo.

Por fim, acredito ainda que o maior dos méritos do artista é mostrar que os versos daquelas obras nos ajudam a compreender melhor a imagem da frente e seu lugar na história. Com essa série de reproduções inusitadas, Vik Muniz nos revela um segredo que antes pertencia somente aos curadores, às equipes de montagem de exposições e aos restauradores dos museus. O verso é a face oculta que, em diálogo com a imagem original, acaba por complementá-la, preenchendo uma lacuna que eu jamais me dera conta de que existia. Com perspicácia, técnica e muita curiosidade, Vik Muniz nos permite fazer novas leituras daquilo que já está tão presente em nossas memórias visuais.

Saiba mais sobre o artista: Vik Muniz e Artsy.net

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

"O processo criativo é um diálogo permanente entre o caos e o cosmos: um fluxo entre o abismo, o indiferenciado, o sem-forma, o que ainda não se junta e o borbulhar das palavras, das ideias, dos conceitos, das perguntas. Primeiro, é preciso expandir, andar, ouvir, respirar, para, depois, contrair, concentrar, sentar, respirar."

Carlos Antonio Alves Pontes, Abel Menezes Filho e André Monteiro da Costa, em O processo criativo e a tessitura de projetos acadêmicos de pesquisa. (Interface, v. 9, n. 17)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

OS SIGNIFICADOS DAS COISAS


Na companhia de objetos, de Flávia Junqueira

Que coisas? Sei lá, qualquer coisa. Mas como vou explicar o significado de uma coisa que não sei qual é? Ela pode significar uma coisa para mim e outra para você. Esse é o ponto, percebe? Não. Pois é.

Estive pensando nos significados que damos para as coisas ao nosso redor, desde um objeto banal ao acontecimento mais místico. Porque essas coisas não significam nada por si próprias, somos nós que inventamos encargos para elas.

Tive essa revelação pouco extraordinária lendo uma biografia da Dra. Nise da Silveira – possivelmente a psiquiatra mais importante que o Brasil já produziu e de quem a vida é tão interessante quanto a obra. É um livro que o autor preferiu chamar de "conjunto de biografemas" – coisa que, no final das contas, dá praticamente no mesmo, exceto que deixa a história mais repetitiva. O jornalista Bernardo Carneiro Horta complicou a narrativa para agradar à doutora, de quem era amigo e que considerava o formato biográfico tradicional uma maneira pouco justa de se definir um sujeito.

Enfim, minha revelação se deu porque a Dra. Nise tinha na parede de sua biblioteca um brasão criado por ela mesma, constituído de uma peneira no centro e dois abanadores dispostos um de cada lado. Esquisitíssimo, eu sei. Só que, para ela, aquilo lembrava o doce de laranja preparado por sua tia, que era peneirado sete vezes em fogo brando, controlado com abanadas meticulosas. Ficava delicioso, e o sabor provinha da minúcia e da paixão da cozinheira. Nise empregava essa fórmula em suas pesquisas e o tal brasão ficava pendurado lá para lembrá-la de como agir. Quem nunca teve um amuleto assim?

Como historiador da arte, eu vivo decifrando esquisitices dos outros, principalmente do passado mais distante, também mais difícil de entender. Artistas têm uma grave propensão à esquisitice, o que não deixa de ser divertido e, em alguns casos, engrandecedor.

Lembro sempre de um presente que Marcel Duchamp enviou dos Estados Unidos à França no aniversário de casamento de sua irmã. Na verdade, ele enviou as instruções para que a irmã o realizasse: ela deveria pendurar um livro de geometria do lado de fora da casa e deixar que o vento fosse virando as páginas, escolhendo os problemas que o tempo se encarregaria de destruir. Acho lindo, simbolicamente falando, embora quem passasse na rua possivelmente concluiria que o casal tinha uns parafusos a menos.

Nós todos temos uma percepção específica do que acontece ao nosso redor. Vivemos em um mundo particular. Não tem jeito, cada um pensa à sua maneira, com sua própria bagagem cultural, suas conexões e seu grau de abstração pessoal. Por mais que eu explique a beleza da proposta de Duchamp, muita gente jamais vai compreendê-la como eu a compreendo.

Não faz muito tempo, li um artigo na revista Vida Simples em que a autora resolveu se desfazer de cinquenta dos seus pertences como tentativa de averiguar a relação que estabelecera com eles. Mas não bastava sumir com cinquenta CDs, por exemplo. Tinham que ser coisas diferentes. Foi assim que ela percebeu a imensa carga emocional contida em cada uma delas.

Nós emprestamos significados às coisas e, de alguma maneira, são também as coisas ao nosso redor que dão significado à vida. Juntando aquela reprodução do Abaporu emoldurada na sala de estar, esta caneta tinteiro e uma pilha de livros, dá para ter ideia de quem eu sou, caso um dia desperte sem me lembrar de nada.

Isso é coisa antiga, não tem nada a ver com sociedade de consumo. Os faraós do antigo Egito, por exemplo, eram sepultados com diversos "tesouros", hoje dignos de suspeita. Eram objetos pessoais, às vezes ordinários, mas que podiam fazer falta no outro mundo. Quem visita o Museu do Cairo observa aquele monte de potinhos, colares e besouros dourados sem saber ao certo o que significavam para seus donos originais.

Pensei nesse monte de coisas a partir de um diálogo comigo mesmo. Uma conversa estranha entre a metade que acredita no desapego material e a outra que não consegue viver longe de objetos imbuídos em memória e valor afetivo. Uma conversa em busca de um equilíbrio ideal, que seria perfeitamente representado por uma balança em miniatura. Assim como fez a Dra. Nise da Silveira, essa balança seria o meu brasão, ficaria ótima em cima da escrivaninha. Uma coisa para me lembrar do significado de outras coisas. Gostei. Não parece má ideia comprar uma dessas, né? Tenho certeza de que não.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O QUINTAL DO VIZINHO

Dois cachorros e um coelho brincavam juntos no quintal do vizinho. Eu os observava pela janela da lavanderia. Moro num prédio alto, no décimo terceiro andar de um prédio bem alto, isolado no topo de uma ladeira. Pelas janelas, consigo observar muita coisa que acontece no bairro. Isso não significa que eu fico espiando. É mais ou menos como uma TV ligada – a gente passa por ela e sempre acaba assistindo um pouquinho.

O episódio dos cães, por exemplo, descobri por acaso, enquanto abria as janelas para deixar o sopro do novo dia entrar. Eu tomava café na caneca, ergui a primeira das três janelas basculantes da lavanderia e vi os bichos correndo como loucos pelo quintal do vizinho, numa animação surpreendente para aquela hora da manhã. Não tive como ignorá-los. Me recostei no batente e ali fiquei.

Eram dois cães da mesma raça, de focinhos curtos e longos pêlos brancos, com manchas pretas espalhadas por todo o corpo. Já vi desses por aí, passeando com seus donos, mas não sei dizer o nome da raça, não entendo nada de cachorros. Acho a maioria bonitinha, brinco um pouco com eles e sempre me surpreendo com a devoção que oferecem em troca de um cafuné. Bom, estou falando desses cães menores, mais brincalhões, com os quais tenho coragem de me arriscar. Talvez alguns dos grandes também sejam carinhosos, mas acredito que o risco cresce proporcionalmente à raça e, nesse caso, prefiro manter distância. Talvez eu esteja errado, talvez os maiores sejam até mais carinhosos do que os pequenos, talvez seja o carinho – e não o risco de levar uma mordida – que cresça na proporção do porte. Nunca vou saber ao certo, é difícil saber quem é quem. Como disse antes, não entendo nada de cachorros.

Os do vizinho não são muito grandes e nem muito pequenos. Ficariam enormes em meu apartamento, por exemplo; porém, no quintal que observo pela janela da lavanderia, eles têm espaço de sobra. Deve ser um dos últimos terrenos assim na cidade, que agora se espreme entre prédios e trânsito. Um terreno que logo vai se transformar em estacionamento, mas que, por enquanto, sobrevive com árvores, horta, galinheiro e, inclusive, um singelo laguinho. Para você ter ideia do tamanho dele, tem um velho abacateiro bem no centro, que cobre boa parte da casa e que dificulta bastante minha observação. Abacateiros crescem muito, acredite.

Eu tomava café na caneca e via os cachorros perseguindo um coelho branco por entre os galhos da árvore. De repente, eles corriam para outro canto e eu conseguia vê-los melhor. O pega-pega parecia divertido, em especial por causa da esperteza do coelho. Um coelho branco que depois me fez lembrar do personagem de Lewis Carroll, que levou Alice até o País das Maravilhas. Naquele instante, no entanto, eu só conseguia pensar em qual seria a próxima guinada do bicho, que dava um baile nos atrapalhados cães. Ele era mais rápido e se aproveitava disso para enganar os perseguidores. Vira e mexe, os cães perdiam o rastro, ficavam correndo em círculos até o coelho se mostrar de novo e recomeçar o jogo. O coelho dava voltas no lago, mudava de direção bruscamente e fazia com que os cachorros esbarrassem um no outro, pisassem na água, dessem com a cara num arbusto. Quando se cansava, simplesmente enfiava seu corpinho miúdo num canto em que os focinhos dos outros não o alcançavam.

Não sei dizer quanto tempo aquela alegria durou. Os bichos pareciam se divertir e eu fiquei a admirá-los. Era mesmo uma empolgação fascinante. O café esfriou na caneca e eu nem percebi.

Os cães eram feitos de bobo diante de meus olhos e, como se soubessem observados, foram ficando mais irritados. Quer dizer, eu acho que ficavam mais irritados, pois naquela distância não dava para ter certeza de nada e eles não latiam, rosnavam ou faziam qualquer uma dessas coisas que os cães fazem quando querem demonstrar indignação. Estavam entretidos de verdade.

O coelho, descansado, voltava à correria. Disparava como uma bala e trazia os dois no encalço. Teve uma vez que ele até ousou correr na direção dos companheiros. Foi magnífico. Os dois últimos, surpreendidos com a atitude do danado, tropeçaram e rolaram pelo chão de terra. A torcida vibrou. Devem ter ficado com o pêlo sujo, comprido como é; mais uma vez, não consegui ver direito por causa da distância.

Então, o coelho confiou demais em si mesmo. Ou confiou demais na amizade dos outros. Ou talvez eu é que tenha sido inocente demais para enxergar alguma amizade ali. Enfim, fato é que o coelho se atrapalhou numa curva e um dos cães, que tinha ficado para trás em manobra anterior, o abocanhou de jeito no pescoço. Apertei a caneca instintivamente, quase a ponto de quebrá-la. Não sei se foi obra de minha imaginação, mas vi o pêlo branquinho do coelho sendo tingido de cima a baixo pelo tom rubro da morte. O outro cão se aproximou num pulo, o coelho se debateu um pouco e finalmente suas orelhas relaxaram.

Eu estava em pé, com todos os músculos do corpo retraídos, com uma caneca de café frio na mão, de frente para a janela basculante da lavanderia. Percebia a brisa fresca da manhã me gelar a alma. Olhos fixos no quintal do vizinho, mente voando distante, corpo abandonado naquela situação inerte.

Os cães carregaram o coelho para debaixo do abacateiro, escondendo-o de possíveis curiosos.

O galinheiro tinha tela. Foi a segunda coisa que notei. Tinha tela de arame. Protegidas, as galinhas não davam qualquer atenção ao que acontecia na vizinhança. Elas estavam tão suscetíveis à violência, tão disponíveis ao perigo que rondava sua morada, mas não parecia sequer preocupadas. Eram apenas galinhas. Estúpidas galinhas ciscando no galinheiro.

Deveria haver também uma coelheira. Uma coelheira com tela. O que teria acontecido? Um coelho decidira se aventurar fora dela ou os cães a tinham invadido à força? Não dava para ver mais nada, só imaginar. Os cães já tinham sumido de vista, as águas do laguinho nem se mexiam mais. O quintal ficou em silêncio e pude ouvir a cidade despertar para mais um dia inocente de trabalho. Um dia como qualquer outro, rotineiro e indiferente.

Ainda fiquei um tempo com os olhos fixos no quintal do vizinho, não sei dizer quanto. Os sons da cidade ecoavam distantes em minha cabeça. Os raios de sol iam ganhando força e o verde das plantas ficava mais verde. O concreto reluzia, me chamando de volta à realidade.

O vento frio gelava meu rosto. O silêncio desaparecia. O galo cantou. Havia um galo no galinheiro do vizinho, que cantava sempre num horário diferente, não era parâmetro para nada. Tinha me esquecido dele. O galo cantou, eu pisquei algumas vezes e mexi a cabeça na direção da caneca, que apertava contra o corpo. Fechei a janela por causa do frio. Estiquei o braço, girei o trinco com cuidado, devagar. Olhei ao redor, para as coisas da lavanderia, e fui passar mais um pouco de café.


*A pintura que ilustra este conto chama-se Carta Branca (1965), de René Magritte.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

GRANDES MUSEUS REUNIDOS ONDE VOCÊ ESTIVER



Sempre me surpreendo com as invenções da Google. Não tem jeito, eles ficam criando essas coisas espetaculares que, em pouco tempo, se tornam essenciais.

Não bastasse o Street View, que nos permite caminhar digitalmente por ruas do mundo inteiro utilizando o Google Maps, agora apareceu o Google Art Project, que traz os grandes museus para dentro de nossas casas e ainda mata aquela curiosidade gostosa proporcionada pela arte. Porque não dá para visitar pessoalmente todos eles, muito menos com a frequência com que gostaríamos. Então, fazemos a visita pelo computador.

Não adianta ficar fazendo propaganda aqui. Clique logo no link abaixo, faça um bom passeio cultural e torça para que essa tecnologia chegue o mais rápido possível aos museus brasileiros.