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terça-feira, 15 de maio de 2012

"Não existe nenhuma forma de imaginário que não seja uma forma de experiência comum ou coletiva." Jean Duvignaud

Em outras palavras, ninguém é de ninguém. Ao menos no que diz respeito ao pensamento.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

BREVES NOTAS SOBRE A SP-ARTE


1) Definitivamente, o aspecto mercadológico da arte é o que menos me interessa.

2) O homem já foi à Lua, estamos quase transplantando cérebros, aviões não tripulados podem dizimar um país do outro lado do mundo... e a maior parte da arte contemporânea comercializada ainda é imagem ou objeto – para não dizer pintura e escultura.

3) Se os artistas não venderem, morrem de fome. Se venderem, sustentam as galerias, e às vezes continuam a morrer de fome. Se conhecerem as pessoas certas, matam os outros de inveja. É uma trama perigosa.

4) Para nossa infelicidade, grandes obras de arte estão – ou estarão em breve – trancadas na sala de estar de algum ricaço, que as comprou como investimento. 

5) Para comprar arte, é necessário beber Chandon.

6) Para consumir arte – ainda bem! – só é preciso ter boa vontade. E, no caso da feira, mais R$ 30,00 para o ingresso.

Mais informações: SP-ARTE
"Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas."

"A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem "ficções", isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer."

Jacques Rancière, em A partilha do sensível: estética e política

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O MUNDO MÁGICO DO CCBB


O comentário de Marcelo Mendonça, diretor do CCBB/RJ, a respeito do recorde mundial de público obtido pela exposição O MUNDO MÁGICO DE ESCHER serve de lição para muitos museus. Não é regra, claro. Mas ajuda a repensar diversas outras.

Os espaços interativos, a permissão para uso de máquina fotográfica e a entrada gratuita foram cruciais. "Na exposição, era comum ver jovens se fotografarem diante das obras e colocarem as imagens nas redes sociais. Tivemos uma divulgação espontânea sem precedentes em nossa história".

Revista BRAVO!, nº 177, maio de 2012. Reportagem de Bruno Moreschi.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

TEMPO AO TEMPO



A arte da panificação nos ensina muito sobre a vida. Sim, fazer pão, esse hábito tão antigo e banal, comum a tantos povos. Quem se acostumou a comprar o pão prontinho na padaria não tem ideia do caminho que ele percorreu até chegar ali. Mas não convém contar todo o seu ciclo de vida, desde os campos de trigo até a mesa. Quero me concentrar na experiência de produzi-lo na cozinha de casa. Misturar os ingredientes na ordem e quantidade certas, acrescentar o fermento e sovar a massa. Depois, deixá-la crescer. Sovar novamente, deixá-la crescer. E repetir o processo quantas vezes forem necessárias. Dizem que, quanto mais você malha, mais leve a massa fica. Não sei se é verdade. Posso afirmar que o padeiro, este sim, fica mais leve. Trata-se de uma espécie de meditação. Entre sovar e aguardar, dedicamos uma tarde inteira a um pão que será consumido em poucos minutos. Compensa? Suponho que sim. Afinal, fazemos isso há milhares de anos. Alguém já teria percebido se fosse desperdício de tempo.

A panificação requer paciência, cuidado, carinho e dedicação. Tudo isso modifica o sabor do produto. Fazer pão artesanalmente é, na verdade, fazê-lo e refazê-lo uma série de vezes até que esteja bom o suficiente para ser levado à mesa e servido aos amigos. A partilha do sensível.

O mesmo se aplica a diversas outras práticas, e é por isso que considero a panificação uma ótima referência. Escrever é uma delas. Um grande escritor declarou certa vez que escrever é reescrever. Concordo. A qualidade do texto vem daí. A fluência, a maciez, o sabor, a vontade de ler um pouquinho mais. Escrever e reescrever, sovar e deixar crescer, fazer ajustes, misturar bem para que a alquimia aconteça.


Comentei semanas atrás que estou escrevendo meu primeiro romance. Comecei em dezembro do ano passado, e, na verdade, ele já está todo escrito. Duas vezes escrito. Será uma história breve, que coloquei no papel e depois passei a limpo. Deu um trabalho imenso. Agora, esse segundo rascunho está descansando. Já faz um mês que não mexo nele. Tenho certeza de que, quando for sová-lo de novo, ele terá crescido e revelado todo o potencial que eu não podia ver quando o guardei na gaveta. Para mim, reescrever é essencial. Assim como a paciência entre os intervalos de descanso das provas, quando as ideias fermentam.

Em 1929, o pintor Cândido Portinari embarcou para Paris, onde passaria os dois anos seguintes a visitar museus e galerias. Ele usufruía do Prêmio de Viagem da Academia Nacional de Belas Artes, conquistado após muito trabalho. Os vencedores iam à Europa estudar – beber direto da fonte, como se diz, uma vez que os capítulos da história da arte costumavam começar ali. Portinari, entretanto, optou por não frequentar qualquer tipo de curso. Ele apenas consumia, com olhos vorazes, a obra dos grandes mestres do passado.

Apesar da enorme cobrança por parte do governo e da crítica de arte do Brasil, o pintor voltou de lá com somente três pequenas naturezas-mortas. Trancou-se, então, em seu ateliê e pintou quarenta quadros ao longo de seis meses, muitos dos quais são considerados os seus melhores. Como se os números não bastassem, Portinari deu início à temática social e regionalista em nossas artes plásticas, retratando os retirantes, a miséria, a fome etc. Ao invés do nacionalismo ingênuo e sonhador dos primeiros modernistas, ele revelou aos brasileiros a verdadeira alma do país.


A partir de então, tornou-se um dos artistas mais importantes da nossa história. Obteve reconhecimento internacional, especialmente nos Estados Unidos – novo pólo modernista –, e produziu muito.

A enorme quantidade de encomendas não o impedia de passar três meses do ano em sua cidade Natal, a singela Brodósqui, nos quais visitava amigos, ajudava na reforma da igreja, ficava observando o tempo passar. Isso não quer dizer que ele não fazia nada – na verdade, Portinari aguardava suas ideias fermentarem. Garantia assim, nos meses seguintes, generosas fornadas de arte deliciosamente fresca. Pinturas de que só ele acertava o ponto, recheadas de talento, nas quais, ainda hoje, nós podemos nos esbaldar.

*As imagens de sanduíche que ilustram este texto são paródias criadas pela artista Brittany Powell. Elas se referem, na ordem, a obras de 1) Piet Mondrian, 2) Christo e Jeanne-Claude e 3) Jackson Pollock.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A ARTE DO DESAPEGO



Como se livrar da montanha de objetos que fomos acumulando ao longo da vida sem descartar, também, as lembranças atreladas a eles?

O americano Mac Premo propõe uma solução – não exatamente prática, cá entre nós, mas ainda assim uma solução, que cada pessoa pode executar à sua maneira: transformar o lixo em arte.

A ideia surgiu quando Mac teve que se transferir de um espaçoso estúdio em Nova York para um apartamento bem apertado. Na ocasião, ele selecionou cerca de 500 objetos, arranjou-os num contêiner e transformou isso tudo numa instalação aberta ao público. Quem quiser, pode conhecer um pouco da vida do artista por meio de sua tralha.

O contêiner está viajando por diversas cidades dos Estados Unidos. Quem não tiver a oportunidade de visitá-lo pessoalmente pode fazê-lo virtualmente. No site www.thedumpsterproject.com há uma fotografia de cada objeto, acompanhada de uma breve descrição.

A tranqueira que insistimos em guardar não serve apenas como ativadora de memória, ela também ajuda a afirmar nossa identidade. Sim, temos o péssimo hábito de dar aos objetos pessoais a função de dizer aos outros quem somos. Por isso é tão difícil se livrar deles, são como pedaços de nós. O museu de nós mesmos.

O que Mac mostra com seu projeto é que o desapego pode ser uma maneira de descobrir o que resta em nós depois que o excedente vai para o lixo. Se é que sobra alguma coisa.

Seja lá o que for, talvez esteja mais próximo da tão idealizada verdade.

O contêiner de Mac Premo em exibição no Brooklyn, Nova York
(clique nas imagens para ampliá-las)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Annette, 1961

"Não conheço ninguém que seja tanto quanto ele [Alberto Giacometti] sensível à magia dos rostos e dos gestos; observa-os com uma avidez apaixonada, como se fosse de outro reino. Mas, às vezes, enfastiado, tentou mineralizar seus semelhantes: via as multidões avançando sobre ele às cegas, rolando pelos bulevares como pedras de uma avalanche. Assim, de cada uma de suas obsessões ficava um trabalho, uma experiência, um modo de vivenciar o espaço."

"O que o incomoda é que esses esboços moventes, sempre a meio caminho entre o nada e o ser, sempre modificados, melhorados, destruídos e refeitos, passaram a existir por si mesmos e, de fato, empreenderam longe dele uma carreira social. Ele os esquecerá. A unidade maravilhosa dessa vida é sua intransigência na busca do absoluto."

"Giacometti nunca fala da eternidade, nunca pensa nela. Gostei do que ele me disse certo dia, a respeito das estátuas que acabara de destruir: "Eu estava satisfeito com elas mas eram feitas para durar só algumas horas"."

 Jean-Paul Sartre, em A busca do absoluto


Leia sobre a exposição de Alberto Giacometti na Pinacoteca de São Paulo e conheça também a Fundação Alberto e Annette Giacometti, que zela pela obra do artista.

domingo, 15 de abril de 2012

CADERNO DE NOTAS NA ORIGINAIS REPROVADOS #7


Meu texto Caderno de Notas foi publicado na revista Originais Reprovados número 7, com projeto gráfico criado pela Faculdade de Editoração da ECA/USP. Queria agradecer ao pessoal de lá pela oportunidade. E parabenizá-los pelo trabalho, ficou muito bacana.

Como não dá para girar a tela do computador para ler, aqui vai uma reprodução:

Num velho caderno de notas que tinha ao colo, um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia sobre um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que escrevia sobre um banco de praça em que, sentado, um jovem escritor escrevia, num velho caderno de notas que tinha ao colo, sobre o quê escrevia um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia, ao colo, sobre um velho caderno de notas de um jovem escritor que, sentado num banco de praça, não mais escrevia notas em seu velho caderno.

Quem quiser saber mais sobre a revista ou baixar as edições gratuitamente pode acessar: Originais Reprovados

quinta-feira, 5 de abril de 2012

FANTASMAS



Estes vídeos me impressionaram bastante. São apenas três de um conjunto bem mais amplo, criados pelo projeto Abandoned Scotland (Escócia Abandonada), cujo intuito, pelo que pude entender, é chamar atenção para edifícios desocupados, alguns deles há décadas.

Foram as imagens capturadas que me impressionaram, assim como a montagem feita posteriormente. Em resumo: a equipe fotografa e filma os locais, depois produz um vídeo curto, com tom contemplativo acentuado pela música de fundo.

É fácil perceber que existe um olhar apurado ali. Tanto no conceito do projeto quanto nas cenas apresentadas. Em uma delas, por exemplo, há um daqueles cavaletes que pede "cuidado, piso molhado", montado no meio de uma enorme poça de inundação. Em outro vídeo, feito numa fábrica, a câmera se atenta à etiqueta colada numa caixa de arquivo, na qual está especificado "não destruir antes de 31 de dezembro de 2012". Quando são recuperadas, os editores inserem também filmes realizados no local quando ele ainda era utilizado.

Esses prédios são fantasmas. Não entidades paranormais, claro. Digo fantasmas no sentido de imagens quase invisíveis daquilo que foram no passado. Uma sombra, resquício de um tempo antigo que pode ser tocado no presente, pode ser penetrado, experimentado, fotografado. São museus de nós mesmos. Dessa civilização antiga que habita o presente e gera um verdadeiro nó temporal. Fantasmas que causam assombro.

Podemos ver o projeto pelos pontos de vista da sociologia e da urbanística, mas não é o meu caso. Eu só posso destacar a poética contida em cada um deles. Foi pensando nisso que selecionei estes três para o blog: um cemitério morto, um hospital desenganado e uma estação de trem que já não leva a lugar algum. Todos os outros podem ser vistos nos links: Abandoned Scotland no youtube




domingo, 1 de abril de 2012

RECOMENDADO PARA O FIM DE SEMANA. O FIM DA VIDA. O FIM DO POÇO.

Como é que eu vim parar nesta porra de hotel imundo? Boca quente, boca suja, bico fechado. Tem algo rolando ali. Me ajoelho para espiar o buraco da fechadura. Bate uma vontade de vomitar. Bate forte. Vejo a cena num plano fechado, é o máximo que o buraco permite. É também o máximo que consigo suportar. Um instantâneo da tragédia. De todo tipo de tragédia. "Tem puta. Cafetão. Leitinho quente. Tem sacanagem a cabo. Fita cacete. Tem velho com criança pequena. Que baba de dor. De medo. De tesão. Tem gente levando por fora. Por trás. Por onde. Porque." Não tem explicação. Não é um livro sociológico, não julga, não denuncia, não analisa de fora. Não está nem aí. Melhor fingir que não acontece. Tenho nada a ver com isso.

Troco de fechadura. Faço isso a cada capítulo. Um passo à frente no corredor decrépito do Hotel Trombose, cujo dono, Felipe Valério, está sendo procurado. O diabo fez alguma coisa boa, o que é muito suspeito. Precisa dar depoimento, dar a cara à tapa, ser escorraçado pela mídia. Não pode ficar escondido atrás de escrivaninha de escritório. Ah se ele aparece na minha frente! Corro para lhe apertar a mão até ficar roxa. É mesmo um belo livro, desgraçado.

Suas frases curtas e bem arquitetadas apresentam jogos de palavras, frases-defeito, manipulação inteligente de forma e conteúdo. Cada um apreende dali o que puder. O que puder carregar. Tem que ser rápido. Se bobear, vai em cana. A cada vez que relemos um capítulo – é um romance, um apanhado de contos ou um cortiço? –, vemos melhor, como se a cena fosse se revelando aos pouquinhos. Strip-tease literário. Tesão.

Vamos subindo os andares do Hotel Trombose e o calão vai baixando. Fica ao rés do chão, como um capacho. Limpamos nele nosso falso moralismo. É uma fuga tão intensa da realidade que, quando nos damos conta, já entramos de cabeça em outra muito pior, de onde o difícil é sair ileso.

O livro trata de sacanagem, violência, asco; da tragédia de sobreviver. Uma excursão ao inferno, que nem fica tão longe assim, tem busão a cada dez minutos e sai sempre lotado. Talentoso do caralho! Se tudo o que Felipe Valério põe em palavras choca, é só porque não estamos acostumados, porque nossa vidinha, por acaso, não está encalhada naquele deserto inconsolável. Porque o sol brilha para nós enquanto deixa os outros mundos mofarem. Quem se importa?

Caminhar pelo Hotel Trombose. Espiar a desgraça alheia pelo buraco da fechadura com a curiosidade de um visitante de zoológico. É uma experiência marcante. Os sons, os cheiros, o submundo pegajoso. Nem sabonete importado dá conta. Ele se embrenha no corpo, contamina, vira parte de nós.

Tem momentos em que, de tanta imagem sobreposta, de tanta certeza deslocada, a narrativa fica quase abstrata. Porque não decodificamos aquela linguagem. É gutural. Incompreensível. Uma realidade sem sentido.

O sobe-desce do elevador, as goteiras marcando o compasso, os corredores como veias, o cada um por si, o coração na garganta, tudo entupido de desgraça, de falta de noção, de distorção de caráter. Humanidade em excesso. O sangue pronto para vazar. O sangue não corre, fica parado, botando medo. Quem corre é o leitor. Para onde? Não tem remédio. É a vida. Doença social grave: trombose. Puta livro.

Vai encarar?


Leia. Ok? E assista ao curta abaixo, de Manu Sobral e Felipe Valério, que foi inspirado no livro e exibido pela primeira vez na ocasião do lançamento.

domingo, 25 de março de 2012

AS MARCAS

Eu estava junto com quatro ou cinco psicóticos, aguardando o médico chegar. Alguns iam e vinham como pessoas absolutamente sadias. Me passou pela cabeça que, se um desavisado cismasse, poderia me internar. Como eu provaria que não sou louco? Pensamento tolo, do qual me envergonho agora, mas que na ocasião pareceu plausível. Até porque não há internação no Espaço Aberto ao Tempo (EAT) – instituição carioca responsável pelo tratamento psiquiátrico de aproximadamente quatrocentas pessoas –, todos vêm para realizar as atividades programadas, comer, tomar remédios, etc., e vão embora ao fim do dia. Eu tinha combinado de conversar com o psiquiatra responsável, que colaboraria com minha pesquisa. Ele chegaria logo.

O problema era esse: Lula Wanderley estava atrasado. E eu estava perturbado, esse era outro problema. Sentado no meio do mato que cresce à porta da instituição, com um cachorro vira-lata averiguando minha procedência enquanto um louco berrava para o além, consultei o relógio. Mal passava das onze e o dia já tinha me chocado de diversas maneiras.

Naquela manhã, eu acordara numa confortável cama de hotel entre Ipanema e Copacabana. Após tomar um café substancioso, caminhei até a estação de metrô e peguei o trem em direção à Central do Brasil. Foi ali que o mundo começou a se transformar. O Rio dos turistas e famosos ficava para trás; seus restaurantes conceituados, as praias badaladas, as roupas de marca. Fiz baldeação para a Supervia, que leva ao subúrbio. Parecia que alguém varrera toda a sujeira da plataforma para dentro do vagão, o que eu sabia não ser verdade, pois o piso lá fora continuava repleto de latinhas, papéis e embalagens plásticas.

Desembarquei no bairro Engenho de Dentro e subi alguns quarteirões em direção ao IMAS Nise da Silveira, onde fui recepcionado por um guarda. Ele me indicou o caminho para o Museu de Imagens do Inconsciente, que contém obras de arte criadas por doentes mentais. Tive que atravessar o hospital inteiro. Coisa mais triste. Tudo abandonado, caindo aos pedaços; portas empenadas, grades enferrujadas, azulejos quebrados, pintura mofada. Marcas do descaso do governo, talvez de má administração também. Vi doentes nas janelas me seguindo com olhos melancólicos e percebi que curar-se, naquele lugar, era o mesmo que sobreviver.

Visitei o museu, cujas obras são impressionantes pela técnica, a fluência da imagem, o poder de sugestão e a biografia de seus criadores. Tão impressionante que a doutora Nise, sua fundadora, foi acusada de levar trabalhos de artistas "de verdade" ao acervo na calada da noite. Pena que hoje ele seja tão subutilizado. Quem se interessa por aquelas marcas de tinta sobre tela?

Chegara a hora de conhecer as salas de terapia e os ateliês do EAT. Depois de quarenta minutos de espera, Lula Wanderley subiu a rampa de acesso do instituto acompanhado de um paciente. Vinham conversando. O clima do lugar mudou por completo, esse é o poder da sua presença; os rostos ficaram mais coloridos, vieram sorrisos, pude respirar de novo.

O doutor, também artista, me conduziu pelos ateliês de pintura, escultura, música e bijuteria, entre outros. Os pacientes me recebiam com alegria, queriam saber quem eu era, o que fazia, tudo. Mostraram suas criações com orgulho de quem as produz com amor e esperança. Me ofereceram o próprio almoço.

A mais tagarela das mulheres foi explicando tudo a seu modo, e mostrou, na parede, uma placa de madeira com dizeres bonitos sobre criação, magia e vida. "Fui eu que escrevi", afirmou. "Escrevi há dezesseis anos".

Ainda hoje o arrepio me percorre o corpo só de lembrar. Dezesseis anos, talvez mais, frequentando aquele lugar?

Também conheci um homem que, com plena satisfação, mostrava aos colegas um crachá de cozinheiro. Tinha sido contratado para exercer a profissão no cais. Faria centenas de refeições por dia. Lula me revelou que, quando chegou ali, o homem sequer podia se mover. Catatônico. Após o tratamento com a Estruturação do Self, proposição terapêutica da artista Lygia Clark, ele voltava ao trabalho.

Caminhamos mais um pouco pelas instalações, depois pelos jardins do hospital. Conversamos sobre a situação de pobreza em que aquela ideia tão rica se encontra. Ela agoniza, na verdade. Difícil dizer quanto tempo ainda sobreviverá. E pensar que foi exatamente naquele lugar, mais de meio século antes, que a reforma psiquiátrica brasileira se tornara referência mundial.

À noite, no hotel, tentei compilar as anotações feitas durante o dia, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. As impressões em meu caderno não faziam sentido. Fiquei pensando na realidade das pessoas que conheci, em como são ignoradas por governo, família e sociedade, em como se agarram ao pouco que têm e produzem arte encantadora. Para onde retornam todas as noites? Que tipo de mundo insano lhes aguarda do lado de fora do hospital? O que significa, para eles, deixar o ateliê de criação e adentrar um quadro de desolação?

Eu sabia, logo que o despertador soara, que a excursão seria marcante. Só não imaginava que essas marcas não me deixariam mais.

Links intessantes:

Museu de Imagens do Inconsciente

Reportagem sobre a exposição que visitei (com vídeo ótimo)

Enquanto preparava este post, encontrei por acaso o trailer abaixo. Não assisti ao documentário de Rodrigo Séllos e Rená Tardin, mas já fiquei contente por ele existir. Clique para conhecer, com imagens, um pouco mais sobre o EAT.

terça-feira, 13 de março de 2012

UM PASSO QUE É UM SALTO


"Hoje se pode viver de tocar só o que se quer. Nem é preciso fazer outros estilos. O tamanho de Tulipa Ruiz e Criolo, por exemplo, é o tamanho que almejo. Tocar no Brasil inteiro sem precisar fazer programa tosco de TV, sem precisar se ídolo popular. No entanto, fora Tulipa e Criolo, não há muitos outros artistas assim. O formato da grande estrela parece ter acabado. No lugar disso, há outro tipo de artista, aquele que pode viver só do que gosta, sem precisar tocar no shopping ou em festas. Essa geração ainda não está grande para viver de trabalhos autorais exclusivos, mas está grande o suficiente para que os artistas transitem por bons projetos."

Romulo Fróes em entrevista para a revista Continuum n. 35 (fevereiro e março de 2012)


Romulo fala acompanhado pelos três integrantes do projeto Passo Torto, que está sendo recebido pela crítica como um passo a mais na história do samba e, como os músicos dão a entender, de toda a MPB, uma vez que ela tem sua origem naquele. São eles: Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos.

Cada um dos músicos possui diversos projetos paralelos, contribuem com bandas, acompanham amigos em turnês e, por meio dessa multiplicidade toda, vão compondo a nova música brasileira.

É uma tendência? Parece que sim. Eu sou a favor. Principalmente quando vejo bandas mais antigas insistindo em fazer mais do mesmo que fizeram nas últimas décadas simplesmente porque têm fãs. Sem criatividade, sem renovação, sem fôlego.

Acredito muito em quem salta de galho em galho, ou seja, que experimenta, produz trabalhos diferentes, pesquisa, troca conhecimento, vive numa jam session permanente. Em tempos de multiculturalismo, de informação acessível e rápida, acredito que esse seja o caminho. Vamos acompanhar para ver onde dá.

Que tal começar ouvindo o primeiro - e talvez único - disco do Passo Torto? Está disponível gratuitamente no site oficial da banda: Passo Torto. Basta registrar seu e-mail e baixar.

Baixe o PDF da revista e leia a entrevista completa: Continuum


sexta-feira, 9 de março de 2012

MÉTODO CALCULADO DE PRODUÇÃO DE ACASO

O acaso comparece por si mesmo, mas é necessária uma disposição prévia - pré-disposição - que permita a percepção dele.

Acaso provocado.
Acaso ≠ improvável/imprevisível.

Não é produzido: dedica atenção a tudo o que se concentra fora da expectativa provável.

O acaso proclama a natureza como produtora de sentido quando, na verdade, essa é uma condição humana.

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O texto acima foi escrito num lampejo, publicado aqui sem nenhuma pretensão e, por acaso, acabou possibilitando um ótimo encontro de ideias. Adorei. Adoro quando as coisas simplesmente dão certo. Mesmo sem planejar. Por acaso, é assim que vou levando a vida.

quinta-feira, 8 de março de 2012

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Minha homenagem às mulheres tem inspiração na obra do pintor Amedeo Modigliani, que retratava suas musas com o pescoço alongado. Muito curioso. Por quê? Sabe-se que o pintor apreciava a arte egípcia, na qual as deusas tinham a cabeça alta para simbolizar sabedoria suprema e visão superior. Portanto, podemos dizer que suas mulheres eram endeusadas. Com razão. Modigliani sabia das coisas. Só vim aqui para concordar com ele. Parabéns a vocês.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

SR. PAMUK, EU LI TODOS OS SEUS LIVROS. EU O CONHEÇO MUITO BEM.

O mês da vindima (1959), de René Magritte

"Nunca me senti embaraçado quando meus leitores pensavam que as aventuras de meus heróis também haviam ocorrido comigo, porque eu sabia que isso não era verdade. Ademais, eu tinha o suporte de três séculos de teoria do romance e da ficção, que podia usar para me proteger dessas afirmações. E estava bem ciente de que a teoria do romance existia para defender e manter essa independência da imaginação em relação à realidade. No entanto, quando uma leitora inteligente me disse que sentira, nos detalhes do romance, a experiência da vida real que 'os tornavam meus', eu me senti embaraçado como alguém que confessou suas coisas íntimas a respeito da própria alma, como alguém cujas confissões escritas foram lidas por outra pessoa."

Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

COMO É QUE CHAMA O NOME DISSO?

Foi uma coincidência muito bacana. Estávamos conversando sobre literatura e uma amiga disse que tinha vontade de ler o romance Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, do brasileiro Marçal Aquino, simplesmente porque gostava do título. Eu também. Desde que me deparei com ele na prateleira da livraria, fiquei tentado a levá-lo para casa. É um título com tamanho poder de persuasão que me seduziu de imediato.

Como é que chama o nome disso?, quis saber o filhinho de Arnaldo Antunes. Uma questão tão pertinente que acabou virando título de um dos livros do pai. Tudo tem um nome. Acho incrível essa necessidade de batizar para identificar. Não que seja um problema, claro que não. É apenas curioso.

Algumas vezes, os nomes são pivôs de polêmicas. O artista francês Marcel Duchamp foi mestre em criar títulos assim, que chegaram a gerar mais discussão do que as próprias obras. Por exemplo: nos primórdios do modernismo, ele pintou uma figura robótica multifacetada e a chamou de Nu descendo uma escada. Os organizadores do Salão onde ela seria exibida, em Paris, ficaram horrorizados: o nu era um gênero clássico da arte pictórica. Consideravam aceitável aquela aparência caleidoscópica, que mal permitia uma apreensão lógica da figura – até porque o cubismo já ditara a moda e não convinha se manifestar contra. Pregar um retorno à tradição era batalha perdida. Mas a pintura de Duchamp estava mais para sacrilégio. Porque o nu se reclinava sobre o divã, deixava os raios de sol o acariciarem na relva, purificava-se nas fontes de água cristalina – mas jamais se sujeitaria a algo tão profano quando descer uma escada.

Parece frescura, mas fazia parte das reviravoltas da época. Propuseram então ao jovem artista que "apenas" mudasse o nome da obra. Atiçaram o demônio. Contrariado, ele pôs o quadro debaixo do braço e saiu do Salão dizendo poucas e boas. Em breve, seu Nu descendo uma escada seria aclamado no Armory Show de Nova York. E a arte moderna invadiria de uma vez por todas a América. Sim, Duchamp sabia dar nome aos bois. Começava também a identificar os melhores pastos para criá-los.

Os títulos das pinturas modernistas foram a última coisa que se rendeu ao abstracionismo. Chegávamos ao cúmulo de ver borrões coloridos chamados flores na janela – ou qualquer coisa do tipo – apenas para serem aceitos como arte legítima – e não como produto de insanidade. Dilema que também ficou no passado, para nossa sorte. Pois Kandinsky e Mondrian, entre outros, passaram a batizar seus experimentos, por exemplo, como Composição com branco, amarelo e vermelho ou Improvisação XI. Abstratos em todos os sentidos. Finalmente, tinham vencido a barreira da figuração, que dominara o pensamento ocidental durante milênios.

Dar nome à cria não é tarefa fácil. Os textos desta coluna, muitas vezes, ficam dias aguardando o título adequado. Precisa ser curto, interessante, instigar a leitura sem resolver o assunto numa só tacada, etc. Ser conciso é um problema amplo demais – sim, um verdadeiro paradoxo.

E vai além: tenho um romance em processo de confecção, por assim dizer, cujo primeiro risco já foi concluído e, agora, espera acabamento. Ele recebeu dois títulos por enquanto. Um foi descartado logo, o outro permanece sob avaliação. Parece que serve, este remanescente; entretanto, preciso criar muitos mais para comprová-lo.

Em uma das visitas que fez ao suíço Alberto Giacometti, o crítico James Lord descobriu uma escultura maravilhosa largada com displicência sob a escada, no canto do ateliê, e quis saber como o artista podia fazer aquilo com tamanha obra-prima. "Se for boa mesmo, se tiver essa força expressiva que você diz, ela aparecerá por si própria", respondeu Giacometti. Suponho que o mesmo vale para o título do livro. Se for bom o bastante, sobreviverá. Caso contrário, da mesma maneira como alguns casais grávidos trocam o nome planejado assim que a criança nasce – só porque bateram os olhos na Maria e ela tinha cara de Beatriz –, eu também escreverei um novo título quando a gestação da narrativa estiver concluída. Quem sabe?

Sobre o romance de Marçal Aquino, que iniciou essa divagação toda, confesso que demorei anos até o comprar e ler. Sou facilmente seduzido, só que custo a ceder, não tem jeito. Tais como o título estampado na capa, as páginas subsequentes são poéticas, intrigantes e escritas com muito talento. O nome, no entanto, surgiu de uma passagem breve – meio esdrúxula até –, que nem tem essa relevância toda. Só que ela combina perfeitamente com a história, sugere sentimentos ao invés de explicitá-los, instiga, contém um lirismo tão marcante quanto a sensibilidade do autor ao tratar desse assunto inexplicável chamado amor. Vou repetir porque vale a pena: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Um título único, que cumpre o papel com louvor. Uma beleza rara. Faz jus ao romance, justifica a paixão à primeira lida que acometeu a mim e à minha amiga. Dá vontade de ler. Ou seja, é bom como todo título deveria ser. Não à toa, ocupa lugar de destaque. No caso, mais do que merecido.

Imagens, na ordem:
1. Nu descendo uma escada (1912), de Marcel Duchamp
2. Improvisação XI (1910), de Wassily Kandinsky
3. Composição com branco, amarelo e vermelho (1936), de Piet Mondrian

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012


"A descoberta do inconsciente não é necessariamente uma boa notícia. Como disse o próprio Freud, ela é uma das três grandes humilhações sofridas pela humanidade, as outras sendo a descoberta de Copérnico de que o mundo não é o centro do universo e a afirmativa de Darwin segundo a qual seres humanos e primatas têm antecedentes em comum."

Ilha Deserta – Livros, de Moacyr Scliar

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

“Sou mais feliz que 97,6% da humanidade, nas contas do professor Schianberg. Faço parte de uma ínfima minoria, integrada por monges trapistas, alguns matemáticos, noviças abobadas e uns poucos artistas, gente conservada na calda da mansidão à custa de poesia ou barbitúricos. Um clube de dementes de categorias variadas, malucos de diversos calibres. Gente esquisita, que vive alheia nas frestas da realidade. Só assim conseguem entregar-se por inteiro àquilo que consagraram como objeto de culto e devoção. Para viver num estado de excitação constante, confinados num território particular, incandescente, vedado aos demais. Uma reserva de sonho contra tudo que não é doce, sutil ou sereno. É o mais próximo da felicidade que podemos experimentar, sustenta Schianberg.
Não sei que nome você daria a isso.
Bem, não importa muito, chame do que quiser.
Eu chamo de amor.”

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino

domingo, 5 de fevereiro de 2012

MELHOR QUE A ENCOMENDA


O livro é melhor que o filme, o filme é melhor que a peça, a peça é melhor que o livro. Como é? Sim, sempre que ouço esses comentários, ouso perguntar por quê. Quero entender o que faz uma pessoa esculhambar e a outra elogiar. Muitas vezes, ambos citam os mesmo motivos, positiva e negativamente. É incrível. Por isso, o gosto se discute sim, foi o que Daniel Piza me ensinou. Todo mundo pode – e deve – criticar. Mas exige-se algum conhecimento para o comentário ser produtivo. "Porque sim" e "porque não" não são respostas, como já esclarecia o personagem de Marcelo Tas às crianças do Castelo Rá-Tim-Bum. Tudo tem explicação. Achismo é bom, mas argumentação é melhor ainda. Quem "gosta porque gosta", na verdade, não conhece a si próprio, enquanto quem "gosta e ponto final" nem merece entrar na conversa. Em matéria de gosto, a discussão não acaba nunca.

Agradar a todos é uma tarefa impossível. Muitos leitores já deixaram esta crônica no primeiro parágrafo. Faz parte. O importante é perceber que sempre é possível aprender com o que nos propomos a experimentar, gostando ou não. "A peça é melhor do que o filme". Por quê? Talvez porque a dinâmica dos atores, ao vivo, acrescenta significado ao texto, ou porque o ambiente do teatro acolhe melhor a proposta. "Mas o livro... é melhor ainda!" Por quê? Pode ser que, na adaptação, o roteirista foi obrigado a cortar passagens complexas ou subjetivas demais. Ou porque o espectador imaginava um personagem assim e o diretor o fez assado. Ou simplesmente porque essa pessoa prefere degustar a história no conforto do seu sofá a engoli-la de uma só vez, no cinema, sentada perto de um grupo de aborrescentes que não para de falar. E sem direito a pausa para xixi.

Adaptar obras de uma linguagem para outra, sejam quais forem, é sempre um trabalho arriscado. Exige cuidado para selecionar o material, entender como ele se comporta no novo formato, excluir cenas ou inventar diálogos para complementar.

No meio do ano, deve estrear um filme nacional chamado E aí, comeu? Um filme de grande circulação, feito com celebridades e boa produção. Foi adaptado de uma peça bastante popular, escrita pelo veterano Marcelo Rubens Paiva. Já deu para perceber o tamanho da encrenca, né? Imagine lidar com a expectativa desse público!

Conversei sobre isso com o roteirista responsável pelo projeto, Lusa Silvestre, que tem no currículo o premiado Estômago. Para o roteiro original render na telona, ele teve que criar novos pontos na trama, aproveitando que o cinema permite saltar entre os cenários com rapidez e, de certo modo, até exige esse vai e vem para evitar a monotonia. Lusa também precisou cortar passagens que o público do teatro aceita numa boa, mas que deixaria constrangido quem busca entretenimento durante a semana, na sessão da tarde. Estamos falando de um blockbuster, então essas escolhas são feitas com critérios bem definidos.

Vale lembrar que a adaptação é sempre uma leitura particular da obra em questão. O filme V de Vingança, por exemplo, foi feito a partir da história em quadrinhos de Alan Moore. Pois este não apenas detestou o filme como saiu falando mal na imprensa. Tudo bem, ele tem o direito. Admito que o filme não alcança a profundidade psicológica da HQ, mas transmite a ideia e é muito mais deslumbrante. Cada linguagem tem seus prós e contras.

O clássico Jules e Jim, de François Truffaut, é também adaptação do romance modernista de Henri-Pierre Roché. O filme começa mais ou menos na página 50 do livro. Por quê? Opção do diretor. Para ele, aquele pedaço renderia um bom filme. Não precisava contar a história toda, ficaria cansativo. Chamamos isso de recorte – a tal leitura particular que privilegia determinado aspecto da obra, podendo agradar o espectador ou não. Isso não significa, por si só, que a escolha está certa ou errada, ou que foi bem ou mal feita. Trata-se de uma adaptação, e toda obra assim lida também com a expectativa de quem conhece a original.

Se você gosta do assunto e quer pesquisar mais a respeito, eu indico o filme A liberdade é azul, do polonês Kieslowski. Nele, a personagem vivida pela atriz Juliette Binoche perde o marido num acidente de carro. Compositor renomado, ele escrevia uma sinfonia para a comemoração do aniversário da Revolução Francesa. Faltava apenas um pouquinho para terminar e o cara bateu as botas. A esposa, junto com o assistente, tentará finalizar a composição em seu lugar. Resta a ela superar os seguintes conflitos: como se modifica a criação alheia? Até que ponto ela lhe pertence? É possível adaptar sem interferir ou desrespeitar a original?

É um filme lindo, sensitivo e delicado. Porém, se ele não agradar, nem pense em me culpar. Pergunte-se o motivo. Como disse antes, o gosto se discute sim, e tudo deve ser questionado se o propósito é aprender. Melhor do que gostar de uma obra é ter disposição para experimentá-la.

A crítica está aí para ajudar, mostrando outros pontos de vista – apesar de muita gente achar que criticar é sinônimo de falar mal, inclusive profissionais da área. Esse tipo de crítica sim é perda de tempo.

Seja como for, assista ao filme que sugeri. Depois, me diga se gostou ou não. E por que, claro.


(imagens, na ordem: ANT73, ANT 64, ANT54 e ANT13, todas de 1960, por Yves Klein)