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segunda-feira, 25 de julho de 2011

A PSICANÁLISE, A ARTE E A CRIAÇÃO DO MUNDO

Quantos mundos diferentes existem nessa realidade compartilhada em que vivemos? Infinitos. Um mundo para cada pessoa, mundos e mais mundos instáveis, em constante mutação. A cada dia, somos uma pessoa diferente, e nosso universo particular muda também. Nosso mundo é, na verdade, nossa singular concepção de mundo. Nossa vida nada mais é do que o fruto da nossa própria criação.

"O homem só compreende enquanto cria. O que ele pode chegar a conhecer de verdade não é a essência das coisas, mas somente a estrutura e o caráter peculiar de suas obras. Nenhum ser conhece (ou verdadeiramente penetra em) qualquer coisa, exceto aquilo que ele mesmo cria."

Gilberto Safra, em A face estética do self

quinta-feira, 21 de julho de 2011

ARTE INVISÍVEL CUSTA OS OLHOS DA CARA

É verdade que existem muitas coisas que não podemos ver. Mas... arte também?

MONA (Museum of Non-Visible Art) é o nome do novo Museu de Arte Invisível que o grupo Art-Praxis e o ator James Franco estão lançando. A proposta é que, ao invés de obras materiais, encontremos ali imaginação, ideias e proposições visuais pertencentes ao mundo invisível do pensamento.

A iniciativa, bastante esquisita, não escapa do tal mercado de arte – o que depõe contra o conceito tradicional de museu e acaba por transformá-la numa galeria como outra qualquer. Digo isso porque as obras do MONA podem ser compradas por quantias que variam de mil até dez mil dólares.

Funciona assim: o comprador investe dinheiro de verdade e, em troca, recebe uma descrição da peça adquirida. Por exemplo, a peça intitulada "Ar fresco" chega às mãos do dono da seguinte maneira:

"Uma peça única, somente esta se encontra disponível para venda. Comprar esse ar é como comprar um tanque de oxigênio. Não importa onde você está, sempre poderá inspirar o mais delicioso e limpo ar que a Terra pode produzir. Cada inspiração dá a você uma infinita paz e saúde. Esta peça de arte é algo para carregar sempre com você, caso seja sua. Porque, seja lá onde estiver, você pode se imaginar provando o mais lindo e saboroso ar das montanhas, do campo ou do litoral; o suprimento jamais se extingue."

E alguém põe dinheiro nisso? Claro. Sempre tem quem ponha. Como diz meu pai, para tudo no mundo há um comprador; produto e interessado só precisam se encontrar.

Um exemplo é Aimee Davidson, que pagou dez mil dólares pelo ar fresco descrito acima. Para ele, o MONA pode parecer um golpe, mas na verdade é um movimento artístico de mídias sociais. Seja lá o que for, custa caro. E os preços parecem chamar mais a atenção do público do que as obras em si.

Entre a arte invisível e a convencional (dessas que podemos ver), acho que vale pesar o custo x benefício delas, e deixar que o mercado de arte penda para a mais compensadora. Se é que isso pode ser medido assim, com valores financeiros.


Site do museu: MONA

Assista ao vídeo de divulgação:


Uma reportagem interessante sobre o MONA: Paste Magazine

O CURIOSISMO

Este vídeo de divulgação da nova mostra de longa duração que a Pinacoteca de São Paulo está preparando explica por que a mesma curiosidade que matou o gato também pode matar você. É muito bacana, dê uma espiada:

terça-feira, 19 de julho de 2011

Acredite: arte é o que torna a vida interessante e possível de ser vivida com humanidade.

sábado, 16 de julho de 2011

ARTE, NECESSIDADE VITAL

Mãos de Portinari executando a pintura Menino com carneiro (1953)

Tem um fato marcante na biografia de Cândido Portinari que, de tão banalizado, já não recebe o devido respeito. Esse fato é a própria morte do pintor. Ontem mesmo, saiu escrito na Folha de São Paulo, numa reportagem sobre a exposição recém-inaugurada no MAM, que Portinari "morreu intoxicado pelas tintas aos 58 anos, em 1962". E o texto continua como se tivesse explicado uma fração da raiz de nove, sem demonstrar emoção por algo tão cheio de significado - a informação aparece como uma curiosidade qualquer.

Pintar era a vida de Portinari; ainda que ela determinasse sua morte, deveria ser levada adiante. Porque a intoxicação não foi acidental - desde 1953, ele tinha plena consciência do mal que as tintas faziam ao seu organismo. Seu médico o havia proibido de usá-las, e ele tentou obedecer, testou lápis de cor, escreveu poesias, buscou outras linguagens. Morrer pela pintura - e por causa da pintura - foi sua escolha. A opção de viver sem ela jamais o convenceu.

Para esse paulista de Brodósqui que tanto contribuiu para a cultura nacional, a arte pictórica não era um vício impossível de largar. Era muito mais, uma necessidade física e intelectual; o tal "sentido da vida", como dizem por aí. Sua relação com as tintas contribui para o entendimento de toda a sua obra e ressignifica tudo que ele criou a partir delas. Uma dedicação sobre-humana que, para Portinari, valia a pena ser levada às últimas consequências.

No Ateliê de Portinari: 1920-45
Exposição no MAM/SP, com curadoria de Annateresa Fabris
Parque do Ibirapuera, portão 3 - s/nº
De 14 de julho a 11 de setembro de 2011
De terça-feira a domingo, das 10h às 18h

terça-feira, 12 de julho de 2011

"O mundo atual apresenta problemas e situações que levam o ser humano a adoecer em sua possibilidade de ser: ele vive hoje fragmentado, descentrado de si mesmo, impossibilitado de encontrar, na cultura, os elementos e o amparo necessários para conseguir a superação de suas dificuldades psíquicas."

Gilberto Safra, em A face estética do self

sábado, 9 de julho de 2011

EDITOR DA NOSSA HISTÓRIA


Não faz muito tempo, a Edusp e a Com-Arte lançaram um livro com o título de Paula Brito – Editor, Poeta e Artífice das Letras. Trata-se de uma coletânea de ensaios a respeito da produção desse que é considerado o primeiro editor do Brasil – ou, como o definiu Machado de Assis, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós". Uma publicação importante, já que a história da nossa literatura é tão conhecida quanto o final de um livro inacabado. Pois bem, eu lia uma reportagem a respeito e alguma coisa parecia desconexa ali, só não sabia dizer o quê. Caminhando distraidamente pela página, demorei a perceber que era a foto, estampada bem no centro, que me inquietava: o tal editor era negro.

Estamos falando de outro Brasil, acontecido praticamente duzentos anos atrás. Francisco de Paula Brito nasceu em 1809, num Rio de Janeiro escravocrata e precário, dependente de Portugal em quase todos os sentidos. Nossas primeiras tipografias tinham sido inauguradas apenas um ano antes, com a vinda da família real, e publicar qualquer coisa por aqui era difícil, perigoso e praticamente inútil, já que a maior parte da população não sabia ler.

Toda história promissora começa mesmo com um drama. De origem humilde, descendente de escravos e autodidata, esse negro conseguiu um feito incrível para sua época e condição: levou uma vida dedicada às letras, tornou conhecida nossa produção literária de meados do século XIX e fez de A marmota um dos principais periódicos da primeira fase da imprensa nacional.

Apelidado de "artífice das letras", Francisco também era poeta, ainda que tenha se destacado não por conta de seus escritos, mas de seus escritores: Machado de Assis, Casimiro de Abreu, José de Alencar e Basílio da Gama, entre outros – nomes que, ao contrário do seu, vivem pipocando por aí.

Editar obras desse porte não é tarefa para qualquer um. Quando me dei conta do significado, a façanha me pareceu inacreditável. E mais inacreditável ainda é um herói do nosso povo ficar esquecido durante tanto tempo.

O Brasil é mesmo um país que não se cansa de me surpreender. Toda vez que a gente se desentende, ele saca um punhado de flores e me conquista de novo. Temos uma imensa desigualdade social, o maior leão do mundo se alimenta do nosso suor sem dar nada em troca, somos maltratados aqui dentro e lá fora, ninguém acredita muito em nosso potencial, nem a gente mesmo. Por aqui, rola uma corrupção tão escancarada que faz parecer errado agir certo, como se ética fosse coisa de ingênuo sonhador. Certo mesmo é agir errado, dizem, porque o mundo é dos espertos. Alguém contradiz?

Pois é, são absurdos que, de tão repetidos, já nem surpreendem mais. Logo vem alguém tentar me convencer de que o problema é cultural, mas cultura, para mim, é outra coisa. Cultura é coisa boa, enriquecedora, dessas que transformam bichos em seres humanos civilizados, solidários e justos. É a cultura que me faz manter intacta a esperança de que, um dia, quem sabe...

O Brasil tem jeito sim. O que me confirma isso são homens e mulheres como Francisco de Paula Brito, que acreditam num bem maior e lutam para concretizá-lo. Um filho do povo que, certa vez, escreveu: "a eternidade depende das obras úteis: se ele as fez, quaisquer que elas sejam, mas de que se aproveitem os presentes e os vindouros, esse homem vive na glória".

Para nossa sorte, conheço um monte de franciscos assim, compartilhando conosco o agora, trabalhando quase sempre no anonimato, mas fazendo acontecer, criando, melhorando, ensinando etc.; ou seja, produzindo essa nossa cultura que é uma obra sempre em processo de formação e transformação. Tal como acreditava o primeiro editor da nossa história, esses homens vivem na glória, ainda que o país demore para reconhecê-los. Ele próprio apareceu só agora para comprovar.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

LER COM OS OUVIDOS

"Temos de ler musicalmente, testando a precisão e o ritmo da frase, ouvindo o ruído quase inaudível de associações históricas que se prendem à margem das palavras modernas, prestando atenção nos padrões, nas repetições, nas ressonâncias, decidindo por que uma metáfora é boa e outra não, avaliando de que forma a colocação perfeita do verbo ou do adjetivo confere à frase um caráter matematicamente definitivo."
James Wood, em Como funciona a ficção

terça-feira, 5 de julho de 2011

VAI UM POUCO DE CULTURA AÍ?

A revista Continuum deste mês revela um dado impressionante: QUASE METADE DA POPULAÇÃO BRASILEIRA NÃO CONSOME CULTURA PORQUE NÃO QUER. Impressionante e alarmante, claro.

Quem frequenta o universo da cultura já parte do pressuposto que ele é essencial à vida, que todos precisam experimentar, que é um absurdo ficar de fora alimentando a ignorância, sabe como é... Uma atitude natural, ainda que precipitada, porque quem valoriza também gosta de compartilhar.

Então surgem ideias de mobilização, de incentivo, pulverizamos palavras de ordem na internet e acabamos correndo o risco de nos tornar chatos persistentes.

Antes de sairmos divulgando cultura por aí, convém perguntar a nós mesmos: por qual razão as outras pessoas teriam interesse nela? Quando isso ficar claro, será mais fácil entender a falta que a cultura faz.

Porque um pouco de cultura não faz mal a ninguém, mas um pouco de consciência também não.


Ps.: Para ler a reportagem da Continuum nº 31, intitulada Vou não, quero não, carregue-a diretamente na web (aqui) ou baixe o arquivo (aqui).

segunda-feira, 4 de julho de 2011

NOTA DA TRADUTORA

Estou lendo Como funciona a ficção, livro de crítica literária escrito pelo americano James Wood que propõe reflexões bastante interessantes sobre técnicas narrativas, construção de personagens, relação da fantasia com a realidade etc. Para melhorar, a edição brasileira chegou com algo a mais: Denise Bottmann, responsável por verter a obra para o português, criticou publicamente a escolha da editora Cosac Naify de utilizar trechos traduzidos anteriormente das obras citadas por Wood. Para ela, o mais correto seria traduzi-los novamente, de modo que fossem compatíveis com a análise do autor.

A crítica não invalida ou prejudica a edição brasileira, muito pelo contrário; discussões como essa são mais do que pertinentes quando o assunto é literatura. Melhor ainda quando vêm a público.

Quem gosta de escrever tem obrigação de ler o livro de Wood. Quem gosta de ler também vai adorar, porque passará a conhecer mais a fundo os detalhes dessa arte. Depois – ou antes, como preferirem – leiam também os argumentos da tradutora Denise Bottmann. Esse "capítulo extra" está disponível aqui: Como engripa a ficção.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

PARA PENSAR TUDO AO CONTRÁRIO

Consegui visitar a exposição O Mundo Mágico de Escher, finalmente! Eu tinha tentando uma vez, logo que ela chegou a São Paulo, mas o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) estava tão lotado que não dava nem para entrar. Agora entendi por quê: aquilo é superdivertido!

Como as gravuras do artista podem ser vistas em qualquer livro sem que o entendimento seja comprometido, os organizadores da mostra prepararam  instalações especiais para os visitantes experimentarem as ilusões na própria pele.

Tem o quarto de Escher, reproduzido tal como consta em seu autorretrato, e podemos segurar uma bola de metal para ver nossa imagem lá; tem portas que correm sobre trilhos e formam desenhos, tem escadas malucas e muitos jogos de espelhos. Resultado: todo mundo se diverte, até os menos interessados em arte.

O mais legal disso tudo: conseguimos perceber claramente que o maior mérito do artista não estava na sua técnica ou na habilidade com o lápis, que são indiscutíveis, mas na sua maneira de pensar. Sabe-se lá como, Escher conseguia desbloquear o cérebro das convenções e imaginar o mundo de ponta-cabeça, com a ponta vista por um ângulo e a cabeça por outro, com as águas correndo no sentido inverso e com escadas que começam e terminam no mesmo ponto. Obras de arte dignas de um verdadeiro mágico.


Relatividade (1953), M. C. Escher

O mundo mágico de Escher é um ótimo programa para o feriadão de Corpus Christi. Mais informações: CCBB/SP.


Belvedere (1958), M. C. Escher

Site oficial de M. C. Escher: www.mcescher.com

sábado, 18 de junho de 2011

QUANDO A PINTURA REVELA O PINTOR

Autorretrato (1971), de Francis Bacon

Li todos os contos do livro Gran Cabaret Demenzial nos dois ou três dias que sucederam o lançamento. Depois o emprestei à minha namorada, mesmo sabendo que ela o acharia constrangedor. Foi o que aconteceu: suas expectativas puritanas acabaram violentadas pelo linguajar sujo da autora, a amiga Veronica Stigger. Quando nós três nos reencontramos, minha namorada, meio sem jeito, comentou que jamais imaginaria aquilo. Como uma pessoa tão elegante pode escrever tanto palavrão? Veronica riu. Para ela, obra e autor jamais deveriam ser confundidos. Essa é uma tendência que, inclusive, ela parece querer derrubar, pois suas histórias são desconstruções muito bem arquitetadas da ideia de "literatura de entretenimento". Elas incomodam o leitor, deixando-o realmente constrangido. Agora, por mais que Veronica não as queira ver confundidas com sua pessoa, Gran Cabaret Demenzial ainda é resultado de sua pesquisa artística, mesmo que isso não signifique – e nem poderia significar – que livro e autora são uma coisa só. Senão daria medo de chegar perto dela.

Quanto do autor está contido na obra? Essa pergunta alimenta discussões ao redor do mundo e jamais terá uma resposta definitiva. Trata-se de uma daquelas questões primordiais que aceitam diversos resultados, questões do tipo "o que é arte?" e "somos todos um pouco artistas?". Como diz o crítico Frederico Morais, "as questões da arte serão as questões de sempre", e as respostas, sejam elas quais forem, estarão ao mesmo tempo certas e erradas, pois não existe verdade absoluta quando se fala de recepção estética e produção artística. No entanto, existem argumentos que nos levam a acreditar mais em um ponto de vista do que em outro. Isso depende da maneira como cada pessoa aborda o assunto, dos conceitos utilizados e do embate interior entre razão e sensibilidade.

Um belo exemplo disso se encontra no relato O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrito pelo neurologista Oliver Sacks e publicado em livro homônimo. Ele examina a vida de um músico excelente, professor de universidade, que teve um problema nas regiões do cérebro responsáveis pela visão. Só que, ao invés da cegueira comum, a doença fazia com que o doutor P., como o autor se refere a ele, desenvolvesse uma espécie de cegueira cognitiva, que impedia a compreensão daquilo que era visto, ao ponto de ele afagar hidrantes na rua pensando que fossem crianças e de não ser capaz de distinguir o sapato do próprio pé.

Numa visita à casa do paciente, Oliver Sacks descobriu algo curioso: além de cantar e lecionar, o doutor P. também pintava. Seus quadros, na sala de estar, estavam dispostos em ordem cronológica. Um exame minucioso revelou que as obras iniciais eram naturalistas e realistas; depois, foram se tornando mais abstratas, mais geométricas, até se resumirem a caóticas manchas de tinta.

A esposa do doutor P. entendia aquilo como prova do talento do marido, que renunciara à figuração da juventude e avançara para a arte não-representativa. Para o médico, entretanto, não se tratava de um avanço do artista, mas da sua doença: "Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte".

Achei o caso do doutor P. interessantíssimo, pois se tratava de um exemplo claro em que a pintura revelava algo de que nem mesmo o artista tinha consciência. Isso não significa que todo pintor abstrato sofre de agnosia visual, seria um absurdo afirmar coisa assim, basta ver a intensa pesquisa intelectual que impulsionou o modernismo. Só que os quadros do doutor P. poderiam ter sido interpretados dessa maneira pela História da Arte, como a própria esposa o fazia, se não fosse o diagnóstico de Oliver Sacks. É uma questão de ponto de vista que somente se esclarece quando se conhece mais profundamente o autor.

Então, as boas e velhas perguntas retornam: quanto do artista está contido na obra? O que é arte? Somos todos um pouco artistas? Um escritor pode publicar palavrões sem que eles lhe pertençam? O que há por trás das vontades artísticas?

Para alimentar debates desse tipo, Frederico Morais reuniu 801 definições de arte no livro Arte é o que eu e você chamamos arte. Talvez algumas delas nos ajudem a decifrar aqueles mistérios, assim como a suscitar outros. Aos pouquinhos, porém, reflexões sobre a prática artística acabarão por revelar algum muito mais inesperado: nós mesmos.

Ps.: Eu adorei os relatos de Oliver Sacks assim que os conheci. Não apenas por seu talento literário, capaz de levar o conhecimento científico a todo tipo de curioso, inclusive aos mais leigos no assunto – esse neurologista de Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, conquistou meu apreço pela sensibilidade com que cuida de cada caso e pela preocupação com tratar o doente e não apenas a doença. Não à toa, o doutor Oliver Sacks assumiu também o posto recém-criado de artista naquela mesma universidade. Seja pela literatura ou pela medicina, ele deixa claro seu objetivo: promover uma ciência mais emotiva.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

"É difícil aceitar, para a arte de hoje, dogmas e diktats ou apegar-se a uma única definição, para, com ela, abranger toda a diversidade da criação plástica. O artista, hoje, é um ser anfíbio, deslizante entre ismos, escolas e tendências. A arte atual é ambígua, híbrida, plural."
Frederico Morais, em Arte é o que eu e você chamamos arte

sábado, 11 de junho de 2011

CIDADE INTERIOR


Desde muito antes do grande imperador Kublai Kahn, as cidades nos fascinam. Elas exercem poder sobre os homens e estão muito além de simples amontoados de pedras; as cidades possuem alma. Elas contêm o espírito de seus fundadores e a força dos que morreram para mantê-las.

Todos estão intimamente ligados às suas cidades de origem. Acontece de ser um sentimento escondido, uma chama congelada num coração frio; mas as amarras não podem ser negadas. Marco Pólo, embora visitasse as maravilhas do mundo, nunca deixou de retornar ao seu imperador, ao seu reino. Ele sofreu tentações, claro; só que tinha orgulho da sua terra e soube vencer o amor à primeira vista que encanta os estrangeiros. Explicou esse sentimento dizendo que os outros lugares são como espelhos em negativo: o viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.

Enquanto o turista deseja conhecer o todo de uma cidade, o povo percebe que o máximo a lhe ser concedido é uma imagem bela, que reflete aquilo que ele deseja ver. São ilusões. Ninguém além do próprio povo conhece o espírito da sua cidade. Por mais que você se lance ao mundo na tentativa de explorá-lo, só conseguirá encontrar uma versão pessoal dele.

As cidades, como dizia Marco Pólo, não contam o seu passado, elas o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras; cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Nada do que se viveu pode ser revivido, exceto quando percebemos as cicatrizes e buscamos as recordações. E não há nada mais interior do que as nossas próprias recordações.

19 de janeiro de 2005.
[Inspirado no livro As cidades invisíveis (1972), de Italo Calvino.]

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Não quero uma vida com raros momentos de prazer, muito pelo contrário; busco a cada momento uma vida de prazeres raros.

terça-feira, 7 de junho de 2011

CULTURA É A REGRA, ARTE É A EXCEÇÃO


Je Vous Salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard

O vídeo acima foi exibido na 29ª Bienal de São Paulo, que teve como tema as aproximações entre arte e política. Não apenas essa política administrativa, organizada em governos, que estamos acostumados a criticar sem entender direito. Falávamos de todo o sistema criado pela vida em comunidade, que, de certo modo, é espontâneo e natural do ser humano. Um sistema que, diga-se de passagem, também estamos acostumados a criticar sem refletir ou procurar entendê-lo mais profundamente.

Arte e cultura ocupam um belo espaço aí. Godard, ao contrário da maioria, é um artista e intelectual que não critica sem conhecer muito bem o assunto. Je Vous Salue, Sarajevo é uma reflexão sobre a cultura europeia, nacionalismos e a guerra da Bósnia, a partir de uma foto dos fotógrafos Ron Haviv e Luc Delahaye.

Aqui estão suas palavras, transcritas e traduzidas:

"De certa forma, o medo é o filho de Deus, redimido na noite de sexta-feira. Ele não é belo, é zombado, amaldiçoado e renegado por todos. Mas não entenda mal, ele cuida de toda agonia mortal, ele intercede pela humanidade.

Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.

Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem."

terça-feira, 31 de maio de 2011

A PALAVRA A SERVIÇO DE UM RIO


Era manhã de domingo, mal passava das oito horas, íamos nos reunir no terraço de um prédio – aproximadamente quinze expedicionários às margens do rio. A previsão do tempo era pouco encorajadora: frio e chuva forte, com possibilidade de vendaval. Chegamos todos encapotados, preparados para apelar ao plano B caso fosse necessário. Estávamos armados até os dentes, como se diz por aí, embora eu nunca tenha visto um dente armado para entender o verdadeiro significado dessa expressão. Em resumo, portávamos cadernos, canetas e laptops, entre outros apetrechos do tipo, pois aquela seria uma missão especial: uma oficina literária com objetivo de salvar o rio Pinheiros da degradação e do descaso.

A oficina era apenas um dos trinta grupos que a Associação Águas Claras do Rio Pinheiros conseguiu reunir em prol da recuperação deste que é um dos principais afluentes do Tietê e um dos mais importantes canais com potencial hidroviário do país, hoje em lastimável estado de conservação. Ao todo, éramos em torno de mil pessoas, participando das mais variadas atividades, tais como caminhadas, pedaladas, expedições fotográficas por terra e pelo topo dos prédios ao redor, caçada fonográfica a canais subterrâneos – isso mesmo, com microfones! –, incursões na mata em busca de nascentes, visitas guiadas a represas, a hidrelétricas e também a estações de tratamento de esgoto. Teve até acrobacia aérea sobre o rio, realizada por um comandante da aeronáutica, com direito a piruetas e rastro de fumaça branca. O princípio de tudo, no entanto, era o mesmo: reconciliar os cidadãos e o Pinheiros, chamando a atenção para um problema que, na maior parte do tempo, permanece confortavelmente ignorado. Pois se acredita que o contato com o rio e o reconhecimento de sua importância gera valorização, e quem valoriza cuida.

Entre as aventuras propostas, a nossa era, de longe, a mais imaginativa. Sob coordenação do escritor Marcelino Freire e minha monitoria, o grupo aderiu à causa, empunhou as palavras e comprovou que a manifestação literária pode obter um resultado tão revolucionário quanto o de uma luta armada.

A ideia era bastante simples: deveríamos pensar no que encontraríamos no lugar do rio Pinheiros se, de repente, num dia qualquer, ele secasse. A partir desse estímulo, cada participante desenvolveu seu texto com total liberdade de forma e conteúdo. Havia uma base conceitual, claro: queríamos retomar a posse do rio, transformá-lo em território comunitário e assumir a responsabilidade por sua conservação. Como? Incentivando a consciência das pessoas a respeito do mesmo, ou seja, mostrando que ele está vivo e que faz parte da cidade. Foi assim que brotaram contos maravilhosos, crônicas e até uma letra de música.

Para nossa sorte, a previsão dos meteorologistas falhou e o domingo permaneceu ensolarado durante toda a manhã, permitindo que observássemos a rotina do Pinheiros e encontrássemos nela a inspiração adequada. Foi uma missão bem sucedida, e parte do resultado dela pode ser conferida no site da associação, basta procurar por "Expedição Rio Pinheiros Vivo". Além do mais, posso afirmar que foi uma experiência bastante divertida.

Isso porque realizamos um encontro entre desconhecidos que, em comum, tinham basicamente a vontade de escrever e de transformar o mundo ao redor, nem que fosse só um pouquinho. Parece ingenuidade, afinal, éramos quinze pessoas refletindo sobre a relação de pelo menos outras vinte milhões com um rio do qual ninguém sabe nada, nem onde nasce, nem para onde corre, nem qual é a profundidade. Só que as grandes mudanças começam assim mesmo, com uma ideia ou uma vontade que, colocada em prática, começa a contagiar. Pode ser um poema, uma música, uma fotografia ou até mesmo um sorriso. Toda manifestação vale, pois as maiores revoluções partem sempre das menores atitudes.

No caso de nossa breve expedição literária, estou certo de que algumas palavras ficaram marcadas, como uma sutil nota de rodapé que provoca o leitor-cidadão da seguinte maneira: o rio Pinheiros existe mesmo, vimos ele lá do alto do prédio, uma longa linha de história já começada. Como vamos escrever o restante, antes que ele seque de verdade?


Ps.: A foto que ilustra esse texto foi tirada na represa Billings durante uma das expedições do evento Rio Pinheiros Vivo, só não sei o nome do autor. Se por acaso alguém souber, deixe um comentário que eu atualizo o post.

Ps. 2: Leia o conto que eu escrevi durante essa experiência com Marcelino Freire: O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO

sexta-feira, 27 de maio de 2011

SOBRE ARTISTAS E MALUCOS

É verdade que muito se discute sobre o grau de maluquice dos artistas. Em parte, creio eu, porque a maioria de nós não pertence àquele mundo, e é muito difícil compreender um mundo do qual não se toma partido. Por outro lado, a maluquice serve muito bem ao preconceito, no sentido de que, sendo os artistas todos malucos, eles não merecem atenção.

Puro engano. Artista de verdade, seja ele fotógrafo, pintor, músico ou escritor, entre tantos outros, de maluco não tem nada. Bom, talvez tenha um pouquinho, mas em nível saudável e recomendado. Pois artista profissional precisa ser muito consciente de seu trabalho, mesmo que, às vezes, a gente não consiga compreendê-lo de imediato.

Recolhi o trecho abaixo de um texto muito bacana do filósofo francês Gilles Deleuze. Ao analisar a relação entre literatura e vida, ele destaca a "indiscernibilidade" como um dos principais sintomas do mundo contemporâneo, ou seja, a sensação de não pertencer a um lugar específico. Tudo é transitório, tudo está sempre se transformando a vida, em si, nada mais é do que um processo. O eterno devir.

Não há nada de maluco nisso, muito pelo contrário. Inclusive, se você permitir, a arte pode chegar até a curar suas neuroses:

"Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo (...). Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo."

Gilles Deleuze, em A literatura e a vida (ensaio reunido no livro Crítica e clínica)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

DE CABEÇA NA IDEIA

Margem Verde (2011), foto feita pela Galeria Experiência durante expedição Rio Pinheiros Vivo (clique na imagem para ampliá-la)

terça-feira, 24 de maio de 2011

ÁGUAS BARRENTAS

Durante as reuniões preparatórias da expedição Rio Pinheiros Vivo, me indicaram o documentário abaixo, que só consegui assistir há pouco. Foi uma pena não ter visto antes, porque ele poderia ter colaborado muito com a oficina literária que propusemos lá.

São vinte e cinco impressionantes minutos, que contam a história da cidade de São Paulo pelo ponto de vista dos rios. O mais surpreendente nisso tudo talvez seja descobrir que as enchentes são coisa antiga, já acontecem há quase um século. E que, apesar de serem produto da urbanização descontrolada, às vezes elas parecem ter sido muito bem planejadas por uma sucessão de administradores incompetentes.

Sugiro que você também assista a esse documentário, de preferência agora, para não correr o risco de deixar para depois e se arrepender, como aconteceu comigo. Vale a pena.



Aproveitando, fica aqui outro trabalho bacana do Coletivo Santa Madeira, que também fala dos rios de São Paulo:



Mais informações: As margens do progresso

terça-feira, 17 de maio de 2011

O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO*


Então, um dia, o rio secou. Simples assim, sem explicação. Num dia ele estava, no outro já se tinha ido. Sem explicação, o povo teve que se conformar. "É a vida", disseram. É a morte, sabe-se que um dia ela vem sem aviso ou explicação. Só resta se conformar. Só que, no caso do sumiço do rio, restou algo mais. Ficou no lugar o esqueleto. O esqueleto do rio.

Sabe-se lá quem descobriu. Quando perguntaram, ninguém sabia de nada. Depois, passado o primeiro susto, suspeitas à parte, todos reivindicavam o achado.

Restara o esqueleto, mas ele não se parecia muito com o corpo d'água que costumava sustentar. Eram traços diferentes, faltavam curvas; era uma verdade pouco maleável. O povo ficava olhando e perguntando se aquela coisa seca seria o esqueleto do mesmo rio que já não corria mais.

Pouco se conhecia daquele rio, pouco se prestava atenção. Era parte da paisagem. "Era só mais um rio, diacho. Tava ali e cabou-se". Um rio como qualquer outro. Por isso ficava difícil reconhecer o morto no esqueleto. Podia ser o esqueleto de qualquer outro rio. Só que, se os restos sobraram e o corpo já não restava mais, a lógica imperava. Não havia outra explicação, o rio secou. Só restava se conformar.

O povo se acumulou nas margens, transbordando de curiosidade e aflição. Não demorou muito, alguém mergulhou no rio seco, catou um teco do esqueleto, meteu no bolso e foi-se embora. Serviu de exemplo para a onda de gente que logo veio abaixo roubar o espólio do rio. Foi a maior corredeira. Em minutos, já não restava mais nada; nem morto, nem vestígio, nem suspeita. O rio se fora para nunca mais voltar.

Em casa, as relíquias ganharam lugar de destaque. Tinha quem se ajoelhasse diante delas e fizesse uma oração. "Santo rio, água benta, molhai por nós, pescadores. Que falta que faz. Me ajuda?"

O rio virou mito. O rio que foge sem parar, dia após dia, água após água. O rio fantasma que se ouve quando anoitece, nas noites sem luar. O rio das águas mágicas de imortalidade. O rio que correu para bem longe dali. De onde vem, para onde vai? Sabe-se lá... não tem explicação. "É a vida", dizem uns. É a morte, sabe-se que um dia ela vem assim mesmo, sem aviso ou explicação.

Um rio que, de repente, ganhou consciência e se foi para nunca mais voltar. Um rio do qual só restou a memória, a relíquia como prova de fé, a esperança da ressurreição. Um rio que voltará – um dia, quem sabe – para a nossa salvação.

***

*Esse conto foi escrito durante a oficina literária que tive o prazer de comandar ao lado de Marcelino Freire. Éramos um dos trinta grupos que o evento Rio Pinheiros Vivo reuniu em prol da recuperação do rio, totalizando mais de mil participantes e promovendo as mais diversas atividades, de caminhadas exploratórias a acrobacias aéreas.

A proposta de Marcelino era refletir – e escrever – a partir da seguinte situação: o rio Pinheiros secou. O que encontramos em seu leito? O que sobrou para contar a história?

Cada um dos participantes elegeu três temas e, após votação do grupo, escreveu sobre ele. Eu encontrei no fundo do rio o esqueleto do próprio rio, ideia inspirada no mapa que ilustra o conto. Se você olhar atentamente, verá que ele sobrepõe o traçado original do Pinheiros (azul e sinuoso), tal como era em 1930, e o atual (pontilhado e retilíneo), exatamente como o deixamos após a canalização. [clique no mapa para ampliá-lo]

Essa imagem foi produzida pela Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, promotora do evento, e nos ajuda a entender por que as intervenções do homem na natureza às vezes acarretam desastrosas intervenções da natureza no homem. As enchentes deste ano não me deixam mentir.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

AÇÃO E REDAÇÃO

Quantos já leram um texto que mudou sua vida? Aposto que muitos. A leitura tem esse poder – com sorte, acaba por se revelar uma experiência transformadora. O que nos leva à segunda questão: quantos já escreveram um texto que mudou a própria vida e também a vida dos outros? Ontem, um grupo de expedicionários se propôs a tentar: refletiram e escreveram sobre o rio Pinheiros, em São Paulo, numa oficina literária coordenada por mim e encabeçada pelo grande Marcelino Freire.

A oficina era um dos trinta grupos do evento Rio Pinheiros Vivo, organizado pela associação Águas Claras do Rio Pinheiros, que teve ainda visitas à usina Henry Borden, expedições fotográficas, caminhadas, bicicletadas e até acrobacias aéreas. Ao todo, foram aproximadamente mil pessoas se movimentando em prol da recuperação do rio.

As grandes mudanças começam assim mesmo, com um desejo que se manifesta na prática e, aos pouquinhos, vai conquistando o apreço de outros. Pode ser um texto, uma foto, um abraço, qualquer coisa.

Quem quiser conferir parte do que foi produzido ontem por esses pioneiros pode visitar o site da expedição. O material ainda está sendo processado, então vejam e retornem para ver de novo mais tarde. Haverá sempre algo novo querendo transformar você.

Confira também algumas fotos que fiz durante a expedição literária:

Rio à vista.

O grupo de expedicionários literatos.

Marcelino Freire em ação.

Assunto em pauta.





O texto e suas diversas leituras.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

LEITURAS MÚLTIPLAS

O bibliotecário (1566), de Giuseppe Arcimboldo

“Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.”

Michel Foucault, no prefácio de História da loucura

quinta-feira, 5 de maio de 2011

ANTES E DEPOIS


Ok, vou fazer só mais um comentário sobre o fechamento polêmico do Cine Belas Artes:
é um dos poucos casos em que eu prefiro a foto com a legenda "antes".

sábado, 30 de abril de 2011

O ANJO DO FUTURO

Angelus Novus (1920), de Paul Klee

"Minhas asas estão prontas para o voo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
   Saudação do anjo, de Gerhard Scholem

"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso."
   Walter Benjamin, 1940

O texto acima faz parte das chamadas teses Sobre o conceito da história, último escrito do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Considerado uma das suas maiores obras, foi publicado somente após a trágica morte do autor – Benjamin cometeu suicídio na cidade de Port Bou, na fronteira da França com a Espanha, enquanto tentava escapar das tropas nazistas.

O título da pintura de Paul Klee que inspirou essa reflexão fala de um anjo do futuro, embora o filósofo diga que seu rosto está voltado para o passado. "Uma catástrofe única", como ele diz. Curiosamente, o anjo de Klee está olhando diretamente para nós, espectadores. Essa relação entre os tempos idos e os vindouros sempre volta à tona. Sem dúvida, é um dilema do homem que provavelmente jamais será solucionado.

Recomendo a leitura dessas teses de Benjamin a todos que se interessam por história. Recomendo-as também a todos que, mesmo preferindo ignorar o passado, queiram compreender melhor o presente e até prever o futuro. Porque, para mim, tudo sempre pareceu ser uma coisa só. Pertencemos a um tempo vivo que, justamente por isso, está em constante mutação. Tudo é passado, presente e futuro consecutivamente. Qualquer solução que lhe dermos, valerá apenas para agora. E o agora é tudo que nos resta.

Ps.: A citação do também filósofo Gerhard Scholem consta no original.

domingo, 24 de abril de 2011

A condição humana (1935), de René Magritte

Tenho refletido muito sobre sonho e realidade, é o que me interessa no momento. Estou cada vez mais convicto de que ambos são a mesma coisa.

A realidade nada mais é do que um sonho. O sonho de um indivíduo em um momento determinado. Uma ilusão, um ideal.

O sonho, por sua vez, é também uma realidade. "Outra, nova, paralela, fictícia, interior", chame-o como quiser. Ainda assim, ele será real.

sábado, 23 de abril de 2011

"A previsão do tempo só vale para o momento em que é anunciada."
A frase surgiu pela manhã, enquanto eu olhava pela janela durante o banho e tentava descobrir se o dia seria quente ou frio. Quase ouvi a mulher do tempo dizer que faria frio, mas ela poderia voltar em quinze minutos e dizer o contrário. Nunca se sabe.
Escrevi a frase no vapor do box. Ela sumiu logo depois.

Vesti meu velho robe azul. Decidi que só escolheria a roupa depois do café.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

PARA CAMINHAR DE OLHOS FECHADOS*

Tenho ouvido muito esse disco [Chopin: The Nocturnes, de Nelson Freire]. Aliás, desde que o comprei, é praticamente tudo o que tenho ouvido. Ele acalma e ajuda a controlar os nervos – para explicar de maneira racional –, e depois da ansiedade que vivi nos últimos dois meses, em diversos momentos precisei dele para manter a cabeça no lugar. Mas não é só isso, claro. Sempre admirei os Noturnos de Chopin. Acho incrível como um músico e seu piano conseguem nos transportar pelo mundo dos sonhos, e então nos trazer de volta para a noite clara, imprimindo sensações de bailes agitados e também de solidão, desde a inércia contemplativa à ludicidade total. Ouvir os Noturnos é como caminhar livremente pela inconsciência, ou sonhar acordado num outro século, num outro continente, dentro da própria imaginação. Foram minhas melhores fugas da realidade, com certeza, e não há por que me envergonhar delas se acabo sempre por retornar mais forte, mais seguro de mim mesmo, pronto para enfrentar a sólida natureza do dia que vai se impor. Enfim, não basta um músico e um piano para provocar tudo isso, claro, assim como não é possível explicar racionalmente o que Chopin, pelas mãos de Nelson Freire, me possibilitou sentir. Só posso dizer que devo muito a ele. Séculos depois, continuamos todos a dever. Espero sinceramente que, de uma maneira ou de outra, ele também lhe possibilite uma experiência especialmente bela. Já que a explicação racional não basta, é melhor ligar o som, fechar os olhos e mergulhar por si mesmo nessa nova realidade.
Um forte abraço,

*Carta aberta ao amigo João A. Frayze-Pereira.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O HOMEM INVISÍVEL*

Quando criança, ele via homens de terno e gravata e sonhava com trabalhar assim um dia. Eles estavam nos anúncios dos jornais, no Castelo de Caras, nos programas de entrevistas da TV. Quem usava terno e gravata parecia importante, tinha status, era bem sucedido. "Homens de caráter", bradava seu pai, enquanto apontava para o telejornal, "resistindo ao calor da guerra!" Terno e gravata compunham o uniforme dos homens que mandavam no mundo. Mesmo criança, mesmo sem compreender o significado e as consequências do poder, era fácil identificar seus símbolos. Poder é o que o homem almeja desde cedo. Ele passará a vida tentando dominá-lo, tentando compreendê-lo, tentando obtê-lo de algum jeito. Passará a vida inteira tentando exercê-lo, mas na maioria dos casos acabará vítima dele. São poucos os que podem de verdade.

Agora, caminhando sob um sol escaldante, obrigado a visitar bairros e mais bairros diariamente, ele se lembra de suas fantasias infantis. Não se arrepende, porém. Não se entristece. Reagir ao mundo pressupõe uma ação primeira, ação e reação, só que o mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Quando passa, o mundo vê através dele. Não reconhece em sua carne o mesmo estofo de que é feito. O mundo está em todo lugar, enquanto ele tem certeza de que não pertence a nenhum. Por isso anda. Simplesmente anda por aí.

Sobe a calçada, dirige-se a mais uma casa, toca o interfone, fala com a parede. Levanta sutilmente a pasta de couro sintético preto que carrega sempre consigo. Ajusta a gravata sem perceber que o faz. Tenta ignorar o suor que teima em escorrer da testa pela lateral do rosto. Muito suor.
  – Sim?
  – Bom-dia, senhora. Se puder me conceder cinco segundos do seu dia, eu tenho aqui uns catálogos de produtos muito
  – Ah, não, não, obrigada. Agora não dá.
  Bip.

A invenção do interfone dificultou ainda mais seu trabalho. Prédios e outros tipos de condomínios fechados também. Ele agora precisa percorrer distâncias maiores para cumprir as metas de sempre. Nada é como antigamente, pensa. Nem mesmo terno e gravata. Os dele vêm com o logotipo da empresa estampado no bolso do peito. Um bolso falso, diga-se de passagem, que apenas finge ser o que não é.

O sol continua forte. O dia está tão claro que mal se permite admirar. Não se tem mais como adivinhar, não existe mais primavera, verão, outono e inverno; não existe mais época do ano fria ou quente, todas são frias e quentes ao mesmo tempo, todas as estações acontecem num único dia, consecutivamente. Tudo muda muito rápido, não se tem como adivinhar. Nada é como antigamente, pensa. O sol continua a bradar e o homem de terno e gravata e pasta de couro sintético preto continua a resistir ao calor da guerra. Outra casa, outra campainha, outra pessoa que não tem cinco segundos de vida para lhe emprestar. Cinco segundos podem transformar uma vida. Às vezes, é tudo de que alguém precisa para não perder as esperanças. Cinco segundos de atenção.

Cinco segundos são também suficientes para destruir uma vida. O vendedor sabe disso e continua sua caminhada rumo ao improvável. Outra casa, outra campainha. Dessa vez nem o atenderam, fingiram que não tinha ninguém. Mas o vendedor percebeu a silhueta espiando por detrás da cortina. Ele está acostumado com essas coisas. Consegue enxergar a aura da casa. Sabe dizer que tipo de pessoa mora ali, o tamanho da família, os costumes... São ossos do ofício, como se diz. Existem muitas maneiras de saber esse tipo de coisa. Também se diz, por exemplo, que o lixo de uma casa revela tudo que acontece em seu interior. Têm pessoas especializadas em leitura de lixo. Ele é a marca que o homem deixa no mundo, o rastro de sua existência. Só que não é de lixo que o vendedor entende. Ele entende da casa em si, pode revelar seu conteúdo apenas observando a fachada. É um dom muito útil.

O vendedor vê a silhueta, porém não insiste. Prefere que seja assim. O que não percebe é que, sob aquele sol escaldante, morrendo de sede, enclausurado no terno e com a gravata a lhe irritar definitivamente o gogó; vermelho, suado, penitente ainda que aceitando aquilo tudo com discreta indiferença, ele começa a desaparecer. Sua pele fica translúcida, sua sombra se projeta com menos intensidade no asfalto tremeluzente. O sol, aos pouquinhos, também começa a enxergar através dele. A cada passo, a cada campainha, a cada "não" recebido sem que nem mesmo consiga terminar sua apresentação, o homem fica ligeiramente mais invisível.

O suor faz a camisa grudar em sua barriga. É uma camisa sintética barata, toda branca, menos suscetível a amassados. É uma camisa que não absorve o suor. A firma dá essas camisas a todos os vendedores, mesmo sabendo que eles irão transpirar horrores. É uma camisa mais barata, que compõe o uniforme dos vendedores com pretensões de conquistar o mundo por meio de recordes de venda. Se eles não gostarem, que comprem as suas próprias; é o que dizem sem dizerem de verdade.

Debaixo do terno, a sensação é estranha. De vez em quando, o calor fica surpreendentemente frio, quase gelado. O vendedor não sabe o que causa aquilo, talvez seja o corte da roupa, talvez seja o tecido sintético sobre seu couro, talvez seja o suor em contato com alguma área ventilada. Só que é um frio que passa logo e deixa uma sensação esquisita, que nem frio na barriga. O vendedor considera a possibilidade de estar passando mal, de algum problema de saúde ter se manifestado de repente; tipo pressão baixa, pensa, ou talvez alguma coisa mais grave. Não pode ser ventilação, pois o ar está parado, definitivamente. Ao caminhar, o vendedor percebe que o ar se agarra em seus braços e pernas e o obriga a arrastá-lo pelas ruas. O calor frio sobe por dentro da roupa seca molhada e fica preso no colarinho. Não há sombra que alivie aquela sensação. Ainda que o sol atravesse sua pele quase sem tocá-la, o vendedor sente calor. Muito calor.

Ao longe, no fim da rua, talvez a quatro ou cinco quarteirões, ele avista um carrinho de sorvetes. Seus olhos sorriem de leve e ele se propõe um prêmio: depois de percorrer as casas dali, merecerá um sorvete. Um sorvete de limão, bem gelado. Um sorvete que contrarie tudo aquilo que o mundo está lhe propondo, um reconhecimento singelo para mais uma batalha ganha pela força do caráter. Assim, o sorvete afasta todos os outros pensamentos.

O sorveteiro, entretido com uma revista e tentando se proteger do sol debaixo da sombra miúda de uma árvore só percebe a aproximação do vendedor de terno e gravata quando este o cumprimenta com um "bom-dia". Agora dá para ver melhor, não é uma revista, é um desses tabloides de esporte. Há um jogador de futebol bastante suado na primeira capa, sob a manchete que sensacionaliza: "O novo rei?" O jogador está sorrindo, acabara de marcar um gol ou de vencer um jogo. Talvez tenha vencido o campeonato todo. Não importa, aconteceu em outro mundo. O vendedor sorri em resposta. O sorveteiro, por sua vez, levanta as sobrancelhas sem tirar os olhos da matéria.
  – Sim?
  – Tem de limão?
  – Claro.
  – Quero um, por favor.

O sorveteiro continua a ler por um ou dois segundos. Então, levanta a tampa do carrinho junto com o jornal, pega o picolé e recoloca a tampa no lugar, dá o picolé ao homem, pega o punhado de moedas que recebe em troca, chacoalha a mão como se verificasse o peso ou o barulho que fazem e as joga no bolso do avental sem perder o ponto da leitura. Ele sabe que o valor está correto sem ter que conferir as moedas. É um dom muito útil, pensa o vendedor. São os ossos do ofício.

O sorveteiro faz tudo isso sem notar que o vendedor de terno e gravata logo à sua frente está desaparecendo. Ele só tem olhos para o jornal.
  – Obrigado.
  – Nada.

Sentado no banco da praça, em um dos poucos em que ainda se pode sentar, o vendedor de terno e gravata e pasta de couro sintético preto observa as próprias mãos. Ele as levanta contra o sol, mas elas já não bastam para protegê-lo. Os raios atravessam suas palmas e o atingem no rosto como se as mãos não existissem mais. O vendedor não precisa conferir o resto do corpo para saber que o desaparecimento não é uma exclusividade de suas mãos. Ele inteiro deve estar daquele jeito. Não se entristece, porém. Não reage. O mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Não vai fazer diferença. O mundo vê através dele.

O vendedor de terno e gravata olha para o sorvete, que sua e pinga no chão entre seus pés. Nem se deu o prazer de prová-lo. Ele próprio sua a ponto de pingar. Não há nada que possa fazer. Não dá vontade de fazer nada. Então, ele fica parado, com os olhos fixos no sorvete que desaparece pouco a pouco em suas mãos. Nem mesmo percebe quando começa a chover.


*O homem invisível não é exatamente um conto, mas um capítulo do livro Ninguém, que estou escrevendo em parceria com Eduardo Usignolo e que ainda não tem data de publicação. Qualquer reprodução, mesmo parcial, sem o consentimento dos autores é proibida. Os direitos autorais são reservados. Quanto à foto que ilustra esta publicação, trata-se de Downtown, New York (1947), de Henri Cartier-Bresson.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O LAGO DOS CISNES, OP. 20

Não faz muito tempo, escrevi uma crítica do filme Cisne Negro e depois acabei por citá-lo novamente numa crônica do Correio Popular de Campinas. Ainda assim, aquela trilha não me saía da cabeça. Eu sabia que podia encontrá-la em algum dos meus CDs, porém foi só no último fim de semana que consegui procurá-la devidamente. Como não me permitem disponibilizar um arquivo de áudio aqui no blog, você precisa utilizar o vídeo abaixo para ouvi-la. É só clicar em 'play'.



Aproveitando a deixa, aqui vão algumas curiosidades a respeito:

O lago dos cisnes foi o primeiro dos três balés do russo Piotr Il’yich Tchaikovsky.

• Composto em 1876, é bem mais antigo do que os seguintes – A bela adormecida, de 1889, e O quebra-nozes, de 1892 –, além de ter sido criado em circunstâncias diferentes.

• Enquanto O lago dos cisnes foi feito por iniciativa própria, os outros dois foram encomendados para os Teatros Imperiais de São Petersburgo e aceitos apenas porque o compositor se encontrava em situação econômica difícil – digamos que o gênero não era muito respeitado na época.

• Quando estreou no ano seguinte, em 1877, “foi um tremendo fracasso, não devido à música, mas à interpretação da orquestra e dos bailarinos, assim como à cenografia e à coreografia. Em fevereiro de 1895, depois da morte do autor, voltou a ser encenado no Teatro Marinsky (…) e obteve sucesso enorme”. (RINCÓN, Eduardo. Piotr Il’yich Tchaikovsky: Royal Philharmonic Orchestra. São Paulo: Publifolha, 2005)

Mais informações você encontra no site do museu dedicado ao autor: Tschaikowsky Museum

E também aqui: Coleção Folha de Música Clássica

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ILUSÃO E DESILUSÃO



O mágico (L’illusionniste, 2010) não é uma animação 3D, não foi criada pela Disney/Pixar ou por qualquer outra gigante americana, não é uma refilmagem, não é a modernização de uma fábula clássica, seus personagens não são super-heróis, bichos falantes, robôs, extraterrestres ou comida, mas seres humanos como quaisquer outros; ainda assim, é uma animação digna de aplausos. Quantas dessas você viu na última década?

O roteiro e a produção, na verdade, são franceses. A França possui excelentes escolas de animação, pena que poucos filmes cheguem até nós. Mesmo O mágico, que tem roteiro do veterano Jacques Tati e direção de Sylvain Chomet, foi difícil de assistir. Ficou em cartaz apenas durante uma ou duas semanas naqueles mesmos cinemas alternativos de sempre, em São Paulo, e de repente retornou do esquecimento em uma sessão ‘cult’ promovida pelo Cinemark do Shopping D. Consegui assisti-lo numa segunda-feira, às duas horas da tarde, somente porque estava de férias. Inclusive, foi uma cena curiosa, pois nem mesmo os atendentes do cinema sabiam que ele estava em cartaz. Quando pedi o bilhete, me olharam com desconfiança e foram procurar no computador. Nem preciso dizer que a sala estava às moscas, né?

Voltando à questão principal, o enredo explora a decadência de algumas artes de entretenimento clássicas, que vão aos poucos sendo substituídas por outras mais em voga. Além daquela que dá nome ao filme, vemos a de palhaço, ventríloquo, trapezista etc., as quais desaparecem sem que ninguém perceba, condenadas a uma morte lenta e difícil de reverter. Tratando-se de uma animação 2D, considerando o discreto público que atraiu por aqui e comparando tudo isso à alta demanda de filmes 3D, acho que podemos considerá-la autorreferente – fora de moda, o estilo parece dar seu último suspiro e morrer junto dos próprios personagens que criou.

Não que eu acredite no fim dos desenhos 2D, especialmente dos bonitos como esse, feitos com aquarelas e traços caricatos nos moldes do ótimo As bicicletas de Belleville, também de Sylvain Chomet. Mesmo com as duas indicações ao Oscar que este último recebeu em 2004, além de diversas menções honrosas, o 2D dificilmente recuperará tão cedo o público que obteve anteriormente, nos tempos dos clássicos Disney. Ao menos não enquanto os espectadores continuarem empolgados com as novas possibilidades tecnológicas.

O mágico também é autorreferente quanto ao próprio Tati: além de o protagonista lembrar muito seu famoso personagem Monsier Hulot, uma breve cena do filme Meu tio aparece aqui numa citação discreta e saudosista.



No geral, podemos dizer que se trata de um filme adulto; triste, melancólico e reflexivo, acaba provocando meia dúzia de sorrisos constrangedores. Afinal, estamos falando de artistas rejeitados pelo público, lutando para não abandonarem as profissões pelas quais são apaixonadas.

Em resumo, o mágico protagonista parte da França atrás de novas plateias e acaba por descobrir uma garotinha que, em sua inocência, ainda acredita no ilusionismo. Mas o quadro logo se corrompe e as últimas esperanças se perdem.

“Mágicos não existem”, diz o bilhete que antecede o truque derradeiro. Então o mágico desaparece para nunca mais voltar. Uma inesperada atitude que abre nossos olhos para a realidade.

É mesmo um filme que fala muito, apesar de não ter diálogos explícitos – pois é, toda a comunicação se dá por murmúrios e expressões corporais. Vale muito a pena ver, especialmente quem nunca se deparou animações do gênero.

Talvez, por meio desta preciosa carta na manga, Chomet consiga lhe apresentar um mundo espetacularmente rico em mistérios e possibilidades, que às vezes é chamado de arte, às vezes de poesia e, às vezes, simplesmente de cinema – nomes que lhe cabem muito bem.


Site oficial: L'illusionniste