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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

fazer é o que me faz

escrever é o que me resume
cantar é o que me toca
cozinhar é o que me alimenta
inventar é o que me cria
pintar é o que me ilustra
dizer é o que me explica
amar é o que me expande

viver é o que me mata.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Um homem triste
sem dúvida
Um homem triste
na dúvida

Da tristeza que não se sabe,
que se conhece bem.

A dúvida de sentir
sem saber explicar
A tristeza de não saber

Será?

A tristeza de não saber
Saber-se triste
porque

...

Um homem que sabe,
sabe-se triste
só.
“Essa busca da identidade é um grande assunto para todos nós. Não é uma coisa literária, não é um assunto filosófico. Temos sempre de explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. Eu vejo que isso foi uma coisa que no início surgiu dramática em mim próprio. Tenho que saber quem sou, e eu era um cruzamento de tanta coisa, era um ser de fronteira, sou um filho de portugueses que nasceu em África e se converteu num africano. Vivo entre o mundo católico, o mundo dessas outras religiões que não têm nome, vivo entre o ocidente e o oriente, entre esse mundo de crenças e o cientista que também sou. Então, de repente, disse para mim: “O que é que eu sou?”. Parecia que eu tinha que saber, e é um drama não saber. Às vezes, o que disse a mim próprio e gostaria de dizer aos meus filhos e amigos é que não sofram, pois, ao contrário, quando souberem, aí sim vocês terão razão para sofrer. Porque essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso.”

Mia Couto em entrevista ao jornal Rascunho número 153 (janeiro de 201).

domingo, 6 de janeiro de 2013

A BUSCA DO SER INTEIRO



Chego em casa à noite, cansado ao extremo, e desabo no sofá. Termina mais um dia caótico, uma semana alucinante, um ano de trabalho intenso. Tudo está para começar outra vez, penso. Tento me conformar. Desabei no sofá sentindo-me moído, "em cacos", a ponto de desmontar. As almofadas confortam os pedaços num forte abraço. Como pode, um móvel banal assim, ser tão acolhedor? Meu corpo se percebe envolvido por inteiro, sinto o toque leve em cada ponta de sua superfície. Um corpo pesado e esparramado como se jamais fosse se recompor. Passam imagens rápidas em minha cabeça, uma profusão aleatória: mãos, massagem, o divã de Freud, um casaco de pele, uma colcha de retalhos costurados com linha grossa, um colchão recheado de bolinhas de isopor... então, tudo faz sentido.

Por causa de uma pesquisa sobre a artista Lygia Clark, acabei me aventurando numa série de conceitos psicanalíticos até então estranhos para mim. Essa é uma das características que mais me agradam no ato de pesquisar: o inesperado sempre pronto para surpreender. Pois bem, eu estava lendo Donald W. Winnicott com o propósito de entender alguns possíveis princípios da Estruturação do Self, obra que se encontra numa fronteira pouco discernível entre a prática artística e a terapêutica. Existem indícios de que Lygia apreciava as teorias winnicottianas, então alguma coisa ali poderia me ajudar a amarrar pontas soltas da investigação. Foi assim que me deparei com uma passagem sobre a integridade do ser.

Integridade é aquilo que nos mantém sãos. Talvez seja ela própria sinônimo de sanidade. Penso isso num sentido amplo, que não diz respeito somente à saúde mental, mas ao equilíbrio geral do universo. Integridade moral, física, psíquica, social etc. O ser humano em harmonia com o seu mundo interno e com a realidade compartilhada. Não é isso que buscamos, afinal? Sentir-nos plenos, completos, sem faltas, falhas ou frustrações, sem lacunas a preencher? Manter o conjunto estável para "o que der e vier", para encarar toda a crise que perturbe nosso equilíbrio emocional?



Lygia Clark trabalhou, artisticamente, com essas ideias. Sua Estruturação do Self consistia em sessões "terapêuticas" com uma hora de duração cada, três vezes por semana, num processo ao longo de meses ou anos. Os "clientes", como ela chamava os amigos que se submetiam à experiência, eram atendidos individualmente. Eles se deitavam sobre uma almofada enorme, feita com bolinhas de isopor, na qual afundavam. A artista massageava seus corpos com as mãos e aplicava neles uma série de objetos ditos "relacionais", cujo objetivo era provocar sensações diversas e ativar, por meio do toque, partes inertes, fragmentadas. Ao tomar conhecimento de cada centímetro de si, o cliente sentia-se estruturado, completo, íntegro. A fragmentação, vivida como um desmembramento angustiante, recompunha-se na forma de "um só corpo e um só espírito". A unidade do ser.

Vejo isso tudo como uma proposta artística das mais belas e instigantes – por mais que Winnicott, entre outros psicanalistas, forneça conceitos teóricos, eu continuo a entender a Estruturação do Self como ato poético-estético. Isso de maneira alguma diminui sua relevância, pelo contrário; faz jus ao campo de conhecimento que a originou.

A pele é um elemento importante. Segundo Winnicott, o toque envolvente e sustentador, sentido na pele pelo bebê, permitirá a ele compreender os limites de seu corpo e também a existência do mundo externo. A pele é a fronteira entre o nosso interior e a realidade compartilhada, por isso o toque que a sensibiliza é estruturante. Como a mulher que, no Conto Azul de Marguerite Yourcenar, apalpa-se o tempo todo para se certificar de que existe, de que reconhece todos os pedaços do corpo como sendo seus.

Durante a entrevista que o artista e psiquiatra Lula Wanderley me concedeu no Rio de Janeiro, ele explicou que a pele possui também a função de membrana, ou seja, uma superfície que regula trocas entre o dentro e o fora. Lula foi amigo de Lygia Clark e, com o apoio dela, levou a Estruturação do Self para a instituição psiquiátrica, sistematizando-a como terapia propriamente dita, onde obteve resultados excelentes (apesar das dificuldades enfrentadas em meio a seus pares para incluir um pouco de arte entre os medicamentos receitados).

Enfim, o assunto é complexo para este curto espaço. O que resta, por ora, é saber que a expressão "sentir-se um caco", dita por alguém exausto física ou mentalmente, tem razão de ser. Não sei identificar sua origem, o que não me impede de, no caso, recomendar um bom sofá, desses em que a gente afunda por completo. Uma almofada macia que acolha e conforte. A solução parece óbvia, mas os motivos não são. Porque a proposta vai além do relaxamento. Ao tomarmos conhecimento de nossos corpos e de nossos limites, de todos os pedaços que nos compõem, adquirimos também a sensação de integridade física, moral e psíquica, entre tantas outras que permitirão enfrentar o novo dia, a nova semana, o novo ano. Desafios de uma vida inteira que sempre tentam nos fazer desmoronar.

*Os dois vídeos que compõem este post foram gravados pelo Itaú Cultural na ocasião da retrospectiva de Lygia Clark realizada ali no segundo semestre de 2012. Você pode assistir a diversos outros vídeos no canal de Youtube deles.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Vale-cultura, para mim, é escola decente. Havendo isso, não precisamos de nenhum "incentivo" paliativo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“Mesmo pais que em outros níveis tendem a ser satisfatórios, podem facilmente falhar na criação de seus filhos por não serem capazes de distinguir claramente entre os sonhos da criança e os fatos. Pode ocorrer de eles apresentarem uma ideia como se fosse um fato, ou reagir impulsivamente a uma ideia como se esta fosse um ato. Na verdade, é possível que eles temam mais as ideias que os atos. A maturidade implica, entre outras coisas, na capacidade de tolerar ideias.”

Donald W. Winnicott, Natureza Humana.

EXTRA–VAZAR

O tempo me escapa. Mais ou menos como se eu pusesse as mãos sob uma torneira e o tempo escorresse por ela. Escapa por entre os dedos, corre pelas frestas, não importa como eu tente contê-lo. Desajeitadamente. O tempo corre, escorre, escoa sem penetrar. Sem deixar vestígio.

Sinto-me ausente. Como se não pertencesse, como se não estivesse a par do aqui e agora. Inconsciente.

Passou, eu não vi. Foi pelo ralo, foi pelos ares. A ansiedade do início desembocou num desencontro. Sozinho. Na fossa. Suspiro. O último. Quando me dei conta, já tinha ido. Tinha acontecido. Pelas minhas costas, um golpe de vento, um arrepio, um piscar de olhos. A corrente levou. Onde eu estava?

Onde eu estava com a cabeça?
Lá se foi, uma vez mais, como sempre.
Ser sem estar, estar sem ser, não sei dizer.
Sinto. Muito.
É mesmo uma coisa sem sentido.
Por enquanto.

Agora e sempre. Aqui e afora.

O que aconteceria se eu fechasse a torneira? Se voltasse pelo cano, se explorasse a rede oculta nas paredes? Sumir também. Estar contido. Contente. Existe um submundo que percorre o edifício todo, a cidade inteira em conexão. Tudo corre, escorre, escoa.

Sem ver ou ser visto.

Desenhar um mapa no papel. Em branco. Fazendo. Criando. Existindo.

E eu incomodado com as gotas de água que me tocam sem molhar. A água que não me pertence. Que passa à toa. Que trans–borda.

Para além da fronteira do bem e do mal.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O CORPO DA LITERATURA

Aqui vão dois recortes de um texto ótimo que li no jornal Rascunho deste mês. A autora fala sobre as transformações proporcionadas pela escrita e pela leitura, experiências reservadas aos apaixonados por livros. Se você se empolgar, leia o texto completo aqui (edição 152).

“Só é escritor quem foi antes (e continua a ser) um apaixonado leitor, porque nos parágrafos que compõem a obra não há originalidade nem genialidade milagrosa, mas antes memória de tudo aquilo que se leu, e que, misturados às experiências e percepções do mundo também retidas na mesma memória, se remontam em uma obra nova, mesmo que se no momento do devaneio criativo essa memória não seja consciente. Mas de todo modo, a memória estará no corpo e a escrita, dizia Gonçalo Tavares, é uma atividade física. Não há dons inatos, nenhuma sorte genética ou espiritual. Há o narrador de Benjamin, o homem que viveu e se espantou com o mundo e que volta para contar suas histórias.”

“Não são só os olhos, doentes ou não, que se movem acompanhando as linhas de um livro. Move-se a vida toda e a que ainda virá. Porque depois de um grande romance, depois de ler Cem anos de solidão, por exemplo, já não será aquele que seria sem tê-lo lido. E essa descoberta é libertadora. Em potência temos tantas vidas quanto os volumes de uma biblioteca. Quanto mais se lê, mais é possível enredar e reorganizar todas as vidas (a que foi, a que está sendo e a que virá). E quando se estiver em outra vigília, diante do mundo, prático ou não, também ele será outro. E o mesmo mundo será vários, mesmo que a área em que circula não passe de dois ou três quarteirões. Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá.”

Vanessa Carneiro Rodrigues
Memória e Movimento
Jornal Rascunho nº 152
(dezembro de 2012)

sábado, 8 de dezembro de 2012

O INFINITO EM CADA UM

"Escrevi um livro" é uma afirmação mentirosa. A gente publica livros, pois eles jamais terminam de ser escritos. As publicações são fases do texto. Digo isso porque, até algumas semanas atrás, eu achei que tinha escrito um. Um romance. Fresquinho, ainda sem previsão de lançamento, mas estava "finalizado", por assim dizer. Só que, então, comecei a ler Como viver junto, de Roland Barthes. Ele fala desse meu livro, parece até uma crítica direta. Ou uma devolutiva criativa. Eu não quero ser pretensioso e me comparar ao grande filósofo, não me entenda mal, por favor. É mais como se ele me desse conselhos, como se tivesse escrito especialmente para mim. Rolou uma sintonia: eu compartilho das suas afetações. Por consequência, vou reabrir meu livro "terminado" e recomeçá-lo (pela quarta vez). E assim ele não termina nunca. Pois "escrever é reescrever", disse certo autor um dia desses. Não me lembro quem foi nem onde li, mas não consigo esquecer a frase, tão bem escrita, tão pulsante, tão infinita.

"Na sociedade contemporânea, está em jogo a afirmação da transitoriedade como contingência ética de habitar o mundo. Ao escrever, não se busca edificar nem eternizar nada, pois a força deste gesto está no instante em que ele acontece e em sua eventual capacidade de produzir em seu entorno apenas deslocamentos, nenhuma fundação. Logo depois que se diz, aquilo já não é mais". Recortei este trecho de um lindo artigo chamado A pesquisa como prática estética, da amiga Renata M. Buelau, publicado no livro do VIII Congresso Internacional de Estética e História da Arte promovido pelo MAC/USP.

Espelho de teto criado pelo artista Olafur Eliasson na Pinacoteca de São Paulo

Eu queria saber por que as pessoas escrevem. Não acredito que haja uma resposta suficiente; ainda assim, a indagação em si parece promissora. Eu acho que escrevi o tal romance por dois motivos principais. O primeiro é "para colocar as ideias para fora", disponibilizá-las ao encontro, para que façam conexões e tentem sobreviver por si mesmas. O segundo motivo apresenta certa afinidade com o primeiro: "escrevi para me livrar dele". Nesse sentido, trata-se de uma espécie de psicanálise. Afinal, o método desenvolvido por Sigmund Freud baseia-se na verbalização como processo de investigação, ou seja, fala-se para trazer à tona (palavras de um leigo, meus amigos psicanalistas que não se ofendam). Não é necessário escrever tanto, claro. Pode ser uma página de diário, uma carta nunca enviada, uma nota no guardanapo, qualquer coisa. Por via das dúvidas, acho saudável ter sempre um caderno por perto para acolher pensamentos ou sentimentos que desejem se livrar de você. Porque o texto também precisa se livrar do autor, a rejeição é recíproca. Criador e criatura encontram no silêncio do papel um excelente psicanalista (sem ofensas novamente). É por isso que se publicam diários de grandes artistas. Eles costumam ser intrigantes.

Naquele mesmo artigo já citado, Renata Buelau explica que "os atos de pesquisar e escrever envolvem – ou deveriam envolver – uma disponibilidade para deixar algo de si para trás". Isso acontece quando se produz uma tese, uma obra literária, um e-mail sincero a um amigo, um cartão de Natal ou um parágrafo no diário. Algo de nós se vai com o texto, por isso se diz "criação". E que "nada se cria, tudo se transforma". Porque o texto é uma fração de nós mesmos que ganha vida própria e passa a se locomover por aí. Pelo mesmo motivo, não se deve confundir o texto com o seu autor. Ele já é outro. E a gente se livra dessa fração para conseguir cuidar das remanescentes. Senão, corre-se o risco de transbordar. Ou pior: de afundar devido ao excesso de si mesmo.

É bobagem escrever com intuito de produzir verdades sólidas, inéditas e que subjuguem, assim como acreditar que irá "fundar uma nova escola". Isso é coisa do passado, quando o tempo do mundo era outro, quando os interlocutores eram uns poucos ousados e/ou privilegiados. No contemporâneo, o dinamismo se estabelece como fundamento, e o potencial de uma obra está em produzir deslocamentos no entorno, como apontou Renata. "Transitório" é a palavra da vez. Entre tantas outras.

Os textos têm um caráter de infinitude, seja porque nos levam a um universo de significados, seja porque jamais encontram uma forma final, porque não sabemos por quanto tempo existirão ou porque não conseguimos enxergar além de seu horizonte, mesmo sabendo que existe algo ali. Às vezes, eu tenho a sensação de que passamos a vida a reescrever o mesmo texto, a pintar as mesmas pinturas, a fotografar os mesmos assuntos, a buscar uma nova perspectiva, a pensar e repensar "igual, só que diferente". Porque as inquietações não se esgotam com facilidade – se é que se esgotam.

Este texto que você lê agora surgiu de um post no Facebook, o qual se resumia mais ou menos ao primeiro parágrafo. A ele, o poeta Davi Araújo respondeu, citando Jorge Luis Borges: "publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos". Portanto, o que temos são pontos de virada, passagens que marcam o final de uma fase e o início da outra. Vivemos, em etapas, uma única longa vida. E só concebemos o infinito porque estamos sujeitos àquilo que termina, porém não nos conformamos. O fim não bastará.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


Oscar Niemeyer faleceu aos 104 anos de idade, quase 105. Saber de sua morte é muito triste. Não o conheci pessoalmente, o que é uma pena, pois ele parecia ser um grande homem, talvez maior do que a própria obra. Jamais encontrei a “pessoa Niemeyer”, mas tive muito prazer ao descobrir as profundezas ocultas da OCA, a visão privilegiada do MAC de Niterói, as curvas insinuantes do Copan e o maravilhoso auditório do Ibirapuera, que se abre para fora e para dentro com uma tocante consciência social. Portanto, tínhamos alguma intimidade, e eu o admirava. Trata-se da perda lastimável de quem poderia ser herói do Brasil no lugar de muita gente que é sem merecer. De alguém que não apenas contribuiu para nossa formação cultural, mas que a construiu. Que inventou a arquitetura moderna brasileira e a tornou respeitada mundo afora. E, mais importante ainda, ao meu ver, Oscar Niemeyer foi um homem que possibilitou que pessoas comuns como eu, na banalidade do dia a dia, experimentassem uma nova relação com o espaço. O espaço como lugar que habitamos física e intelectualmente, pois sua arquitetura era ao mesmo tempo estrutura de concreto e de pensamento. Gente como eu, que poderia viver uma vida inteira sem perceber seu lugar na realidade compartilhada. Niemeyer abriu nossa percepção às potências do entorno. Por isso, dizem que desenhava o futuro. Mas ele desenhava, apenas, com olhar de menino curioso, sem medo de riscar no papel linhas tortas, livres de régua e de regras.

sábado, 1 de dezembro de 2012

QUESTÕES CRUCIAIS PARA O CAMPO DA PESQUISA NAS CIÊNCIAS HUMANAS*

1) A impossibilidade da transparência do olhar do pesquisador e a afirmação do perspectivismo. Em outras palavras, não existe ciência “pura”, e toda construção objetiva sofre interferência de uma cadeia de subjetividades. Afinal, os dados não significam nada sem alguém que os produza e interprete.

2) A crítica da separação entre o sujeito e o seu objeto. Porque nós e o mundo somos feitos da mesma matéria, e um está contido no outro assim como o outro está contido no um**.

3) A articulação do conhecimento com o desejo (vontade do pesquisador e/ou da coletividade) e a implicação (entender “implicação” como conhecimento intrínseco às coisas, portanto o movimento da pesquisa acontece tanto do observador para o assunto quanto – e talvez mais relevante – do assunto em direção ao observador).

4) A recusa da atitude demonstrativa em nome do construtivismo tido como experimentação de conceitos e novos dispositivos de intervenção. Afinal, como Adorno explicou***, a ciência não dá conta de todos os conhecimentos possíveis no mundo.

* Este post foi inspirado em um texto sobre Cartografia e Pesquisa-intervenção, se eu não me engano. Encontrei essas anotações num caderno antigo, mas não a fonte.
** Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, (1964).
*** O ensaio como método, de 1958 (?).

terça-feira, 27 de novembro de 2012

domingo, 25 de novembro de 2012


Palavrinha rápida sobre o show de Marcelo Jeneci no Auditório Ibirapuera, do qual eu acabo de voltar. Porque os caras merecem. Confesso que não me empolguei tanto com o disco, talvez por não ter prestado a devida atenção, talvez por achar que a "onda fofa" da atual MPB quisesse sobressair, a qual eu considero ingênua e, por vezes, entediante. Mesmo assim, achei que valia a pena ver ao vivo. Pois então o show começou e na mesma hora deu para perceber que só tinha talento grande no palco, e que esse talento sobressaía a qualquer modinha paz & amor. Arranjos bem construídos, tocada emocionante nem um pouco cafona, carisma, boa vontade, postura de palco madura, letras interessantes e show de bom gosto. 

Fiquei impressionado com a qualidade técnica da banda e com a aparente - só aparência mesmo - facilidade com que encantavam a plateia. Porque fazer aquilo não é para qualquer um. Teve também uma nota de sorte (ou talvez de boa providência): garoava em São Paulo, e o clima fora do auditório combinava perfeitamente com o de dentro - confirmamos isso quando o portão se abriu para o parque e o Wurlitzer soou bonito, melancólico, harmonioso. Som de alma lavada. Havia um sorriso em cada canto dos meus lábios. Meus e de todos ao meu redor. Foi um ótimo show de um ótimo disco. "Feito pra acabar". 

Uma pena, pois acabou mesmo. E eu queria mais.

O público sobe no palco a convite dos músicos

Merece palmas também o Auditório Ibirapuera, uma das raras casas de show que oferece programação de qualidade a preços justos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

FAZER(-SE) E DESFAZER(-SE)

O homem empurra um grande bloco de gelo pelas ruas da cidade, fazendo-o deslizar com algum esforço. Deve pesar cinquenta quilos, talvez mais. Empurra com as costas arqueadas e deixa para trás um rastro de água que lembra o muco dos caracóis. Algumas pessoas olham sem interesse, uma criança aponta mas logo se distrai com outra curiosidade qualquer, ninguém vê nada de errado. Afinal, ele está fazendo alguma coisa, e manter uma atividade é socialmente bem aceito, seja ela tão estranha quanto levar um bloco de gelo para passear. Deve ser o seu trabalho, coitado. E, se trabalha, é um homem de bem, melhor deixá-lo em paz.

A lógica engana. "Às vezes, fazer algo não leva a nada". Este é o título que Francis Alÿs, artista belga radicado no México, escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apoiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na "idade ativa", não é assim que se diz?

A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo nem trabalho nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas. No primeiro caso, tem-se a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no segundo, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como ferramentas construtoras do coletivo. São regimes aos quais a própria arte está sujeita – e que às vezes provocam reações críticas como aquela.

Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade – qualquer atividade se enquadra –, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e "desperdícios" de tempo. São aqueles modos de "fazer algo" que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.

Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo, que são intrínsecas a ele. Porque ignorá-las – ou mesmo negá-las – pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.

Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.

Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o "nada" não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.

A propósito, acabei me esquecendo de contar o final do filme. Pois bem, o bloco de gelo se reduz até ficar do tamanho de um sabonete, que o artista chuta despreocupadamente. Sua postura de trabalhador dedicado também se transforma, agora ele parece um vagabundo que caminha sem rumo pela cidade. Por fim, o gelo é abandonado, desfaz-se numa pequena poça e logo não é mais nada, desparecendo por completo. Sumiu, embora a gente saiba que permanece ali, evaporado no ar, habitando a memória de quem o viu, descrito na proposta do artista ou sugerido na mancha que restou no pavimento. Mesmo que não haja nada para ver, o gelo e o esforço de quem o deslocou estão presentes de alguma maneira. Sempre resta uma evidência, sempre existe a possibilidade de um significado que contrarie a aridez do "nada".

Nós fazemos coisas o tempo todo. Trata-se do bem e do mal-estar da civilização. "Não fazer" é uma promessa que tanto se deseja quanto se condena. Veja a integridade, esse valor social tão benquisto, que também está associado ao fazer: pois moral íntegra é aquela bem constituída, que não se desfaz. Porque trabalhar tornou-se sinônimo de existir, é o ato que tenta nos definir. Ao ponto de, quando conhecemos alguém, perguntarmos "O que você faz?" ao invés de "Quem é você?"

Não que seja um jeito "errado" de viver (se por acaso existem certos e errados). Tampouco é o único jeito. Enquanto fazer algo pode levar a nada, fazer nada também poder ser um caminho ou uma maneira de ser. Não?

Para mim, parece errado apenas não pensar a respeito. Trabalhar a vida inteira sem saber aonde vai chegar, sem consciência das escolhas. A arte incentiva essa reflexão. Temos o quadro na parede, o gelo que escorre por entre nossos dedos e desaparece no chão. Temos todas as nossas realizações e arrependimentos que ainda buscam sentido. O esforço valeu a pena? Se a resposta é "sim", já me parece um ótimo motivo para se fazer.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

ALGUMAS VEZES, FAZER ALGO NÃO LEVA A NADA


A proposta do artista belga Francis Alÿs (assista ao vídeo acima) é chamar atenção para os regimes e processos de produção (inclusive de arte) que operam nas sociedades, sejam elas orientadas por ideias capitalistas ou socialistas. Em um caso, a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no outro, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como construção de um coletivo. Mas não é apenas desse tipo de política que o artista trata. Seu "fazer algo" leva também:

- A uma provocação.
- Ao nada (que, diferente do simples "nada", é um lugar ou alguma coisa).
- Ao trabalho não objetivo. Afinal, por que tudo precisa de uma razão?
- A uma crítica dos valores que direcionam nosso dia a dia.
- A um vídeo/registro que é comercializado por uma galeria de arte e também exibido gratuitamente no Youtube.
- A uma reflexão, o que me parece ser o resultado mais importante.
- E assim por diante.

E você, aonde - ou a quê - o vídeo leva?

Saiba mais sobre o artista em seu site oficial.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012


Estar é um ponto de vista. 
Ser idem.

(Encontrei esta anotação em minha agenda, depois vi o desenho de Bruno Saggese no blog Imposturas e achei que ambos combinavam. Enfim, é apenas um pensamento perdido que parece ter encontrado alguma conexão.)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

UM LIVRO SOBRE A INFINITUDE

"Escrevi um livro" é uma afirmação mentirosa. A gente publica livros, mas eles jamais terminam de ser escritos. As publicações são fases do texto. Digo isso porque, até ontem à noite, eu achei que tinha escrito um livro. Fresquinho, ainda sem previsão de publicação, mas estava "finalizado", por assim dizer. Só que hoje de manhã eu comecei a ler "Como viver junto", do Roland Barthes. Ele fala desse meu livro ali, parece até uma crítica direta. Ou uma devolutiva criativa. Sim, Barthes me deu bons conselhos, acho que rolou uma sintonia. Compartilha comigo das mesmas afetações. Em alguns trechos, claro, não quero parecer pretensioso e me comparar ao grande Barthes.

Enfim, como resultado, vou reabrir meu livro "terminado" e recomeçá-lo (pela quarta vez). E assim ele não termina nunca. Pois "escrever é reescrever", disse certo autor um dia. Não me lembro quem foi nem quando li, mas não consigo esquecer a frase, tão bem escrita, tão pulsante, tão infinita!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A PINTURA COMO DISCURSO, PENSAMENTO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Quando Felipe Góes disse que eu poderia escolher uma ou mais pinturas e levar para casa, eu achei que ele estava ficando maluco. "Pode levar todas se preferir, assim vocês terão um tempo juntos para se conhecerem melhor". Imagine a responsabilidade de andar por aí com obras de arte! E se me roubam o carro? Ou se derrubam água sanitária em cima? Sabe-se lá que tipo de tragédia pode acontecer, é melhor não dar sopa para o azar. Por isso, quando aceitei a proposta e cheguei em casa com uma tela sua debaixo do braço, percebi que aquilo já havia me contagiado também.

Foi mais ou menos assim que iniciamos o trabalho deste ano, que rendeu três exposições individuais em museus e centros de cultura de Porto Alegre, Goiânia e Castro. Eu queria colaborar com Felipe desde que o conheci, portanto fiquei bastante entusiasmado quando surgiu a oportunidade e ele fez o convite.

Estávamos sentados num café no bairro de Pinheiros, São Paulo. Passamos a nos encontrar durante o almoço ou no fim de tarde para ver as pinturas, trocar ideias, estruturar um pensamento que servisse de proposta curatorial para cada exposição e também para entender melhor nossas próprias convicções estéticas, as quais se transformavam no decorrer do processo. Foram diversos encontros, páginas e páginas de anotações, finais de semana inteiros pesquisando, dezenas de e-mails e muita vontade de ambas as partes para colocar os projetos de pé.

O que significa pintar no contemporâneo? Essa era a questão-chave. Cada seleção de trabalhos parecia oferecer uma resposta apropriada, complementares ou divergentes entre si, o que já se mostrava bastante sugestivo. A nossa missão era fazer com que elas ficassem evidentes para os visitantes. Na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, as pinturas chamavam atenção para os estímulos visuais por meio dos quais inventamos o mundo ao nosso redor e que despertam emoções ocultas na memória; o limiar entre o figurativo e o abstrato, a racionalidade do dia e o vago sentimento dos sonhos. No Museu de Arte de Goiânia, tratamos do processo criativo do artista, levando a público experimentos que nunca haviam deixado o ateliê, além de apontar para o espaço expositivo e para a ocupação que tanto a arte quanto as pessoas fazem dele. Por último, na Galeria Ondas do Yapó, em Castro, Paraná, tratamos da experiência sensível dos visitantes, da construção de discurso e pensamento, da transição entre as maneiras de compreender o mundo, que muitas vezes se assemelha ao transitar entre as camadas de tinta de um quadro. Queríamos ver além da superfície, avançando no subjetivo.

Essas três possibilidades, entre tantas outras que gostaríamos de explorar, deixam claro que não há uma resposta exata para a questão que as provocou. Pintar, no contemporâneo, significa muitas coisas. Se podemos afirmar algo, talvez seja apenas que não se trata de um formalismo alienado e tampouco de uma afirmação de verdade com pretensão de ser única. Pintar é um método de produzir conhecimento, de lidar com o múltiplo, criar diferentes conexões e apreensões de tempo, espaço e sociedade.

Quando se aplica o primeiro borrão de tinta sobre a tela, ativa-se uma porção de problemáticas, que não é função do artista resolver. Não se espera da arte uma solução, mas sim o questionamento em si. O artista percebe e reúne problemas, apropria-se deles e os transforma, transgride, refaz, de modo que sejam apreendidos sob outro ponto de vista. Às vezes, a construção se dá pela própria desconstrução. O objetivo, entretanto, permanece inalterado: provocar reações e, se possível, reflexões.

Como escreveu o pintor, professor e pesquisador Marco Giannotti no livro Breve História da Pintura Contemporânea, "a pintura cria um campo de experiência, um espaço existencial; não cabe mais ao artista descrever um mundo dado, mas transformá-lo a cada instante".

Eu e Felipe desejamos que o trabalho deste ano tenha contribuído, de alguma maneira, para dar novo fôlego aos problemas do homem com os quais a pintura tenta lidar. Porque uma pincelada, por menor que seja, carrega consigo o potencial para resignificar a composição inteira.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

“Aprendi que, quando falam de mim, fãs e desafetos estão falando de si mesmos, do modo como encaram as relações, os problemas, os sonhos. Sirvo apenas de pretexto.”

Marisa Monte em entrevista à revista Bravo! nº 181 (setembro de 2012).