Pesquise aqui

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PAI

Passei a infância
ouvindo
"Meu filho estude
mas estude muito
para não ter que trabalhar
aos sábados".

Tanto estudei
– até pós fiz –
que hoje trabalho
diariamente
aos sábados e domingos
e feriados inclusive.

Quer saber?
A meu filho direi
"Se quiser ser alguém
na vida trabalhe
mas trabalhe muito".

Porque se decidir estudar
jamais compreenderá
exatamente
quem no duro
você é.

sábado, 17 de agosto de 2013

Com-Tempo 
     [percebe?]

Contém
Contrai
Compõe
Convive
Compensa
Confabula
Conversa
Confirma
Confunde


Sem-Tempo
     [sente?]

Entende
Ente
Mente
Rente
Fluente
Atente
Enfrente

Sem saber
Exatamente

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

PINTURAS, PENSAMENTOS

Folhas e flores se espalhavam pela superfície inteira. Era uma cerejeira enorme, rica em detalhes, fiquei bastante tempo observando-a. Um trabalho de nanquim e cores sobre papel, disposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo na exposição intitulada Seis Séculos de Pintura Chinesa. De perto, era possível observar os traços do lápis, depois preenchidos com pigmentos coloridos. Um projeto que exigiu semanas, talvez meses, para ser executado. Um bom exemplo da dita sabedoria – e paciência – oriental. Estava claro que, desde o início, o artista tinha consciência do que desejava pintar. É possível que tenha copiado, por observação, alguma planta de seu jardim. Seja como for, ele sabia o que fazer. Dedicou-se, colocou seu talento à prova e obteve, ao fim, uma imagem aproximada daquela suposta a princípio. A obra estava pronta. Um ou dois séculos depois, pendurada na parede do museu, contava sua história para mim.

Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.

A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.

Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.

Pintura 147, de Felipe Góes

No vernissage, alguns amigos observaram que os trabalhos não são assinados. Fiquei pensando se não seria mais uma sugestão do seu suposto "inacabamento".

Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".

Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.

Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.

Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.


Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.

domingo, 11 de agosto de 2013

FOI VOCÊ? ENTÃO QUEM FOI?

Inserções em Circuitos Ideológicos: Quem Matou Herzog? (1970), de Cildo Meireles

Algumas obras de arte permanecem atuais durante longos períodos. Outras retornam do esquecimento com uma força assombrosa, talvez porque se conectam com alguma inquietação do momento.

Conforme disse Marcel Duchamp numa palestra de 1957, "[o artista] terá que esperar pelo veredito do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte" (em O ato criador).

Ainda que não seja sua intenção, Giorgio Agamben completa muito bem essa ideia quando afirma que "é da nossa capacidade (...) ser contemporâneo não apenas do nosso século e do 'agora', mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado" (em O que é o contemporâneo?, 2008).

Afinal, não se trata de cronologia, mas de uma maneira de perceber e tocar a vida - o contemporâneo, portanto, é da ordem do discurso.

O que há de contemporâneo nas Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles? Em outras palavras, que questões aquelas propostas continuam a provocar? O que ainda há de relevante nelas em relação aos acontecimentos de agora?

Para mim, poderíamos substituir "Herzog" por "Amarildo" ou "Marcelo Pesseghini", entre tantos outros nomes, a maior parte deles desconhecidos do grande público. E a pergunta continuaria a soar e ressoar.

Até quando?

Você encontra mais informações sobre Cildo Meireles no site do Itaú Cultural.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O FIM DA REVISTA BRAVO!

Cheguei em casa ontem e encontrei uma carta dizendo que a revista BRAVO! será extinta a partir de setembro deste ano. Era a confirmação de diversos boatos que li aqui e ali. Achei uma pena. Não que a BRAVO! fosse imprescindível, mas porque era uma das poucas revistas de grande circulação que lidavam com o tema das artes e da cultura em geral.

Um tempo atrás, o editor revelou que eles estavam vendendo mais de 30 mil revistas por mês, salvo engano, e que isso os deixava muito satisfeitos. Chegaram até a baixar o preço de capa, lapso que logo foi corrigido. Não se faz uma barbaridade dessas no sistema capitalista, especialmente quando não há concorrência apertando o cerco.

Fiquei desapontado porque o número de leitores não interessa mais à editora Abril, e porque o motivo da extinção sequer considera a relevância do assunto nesse Brasil tão carente e tão mambembe.


Fiquei desapontado com a falta de consciência cultural da nova diretoria da Abril, embora tal ignorância não me espante. Afinal, não basta alimentar os leitores com futilidades facilmente digestíveis. Para continuar a ter leitores no longo prazo é necessário formá-los. Parece que a editora se abstém dessa função e prefere focar os investimentos nos títulos que vendem mais. São conselhos da consultoria contratada. Consultoria que talvez entenda de negócios, mas que passa longe de outras questões mais profundas e menos imediatistas.

Aliás, investimento não, trata-se de mera aplicação. Porque investimento pressupõe estruturação, enquanto que a única questão visada agora é o lucro.

Será que, mesmo com retorno financeiro abaixo do esperado, não valia a pena manter no portfólio uma revista sobre cultura? Ou, ainda: dinheiro é tudo, mesmo numa empresa tão antiga e sólida como a Abril?

Não sei dizer. Isso tampouco cabe a mim. Só me parece que responsabilidade social vai muito além de reciclar papel e contratar pessoas com deficiência física, entre outras dessas coisas que as empresas fazem porque são obrigadas ou porque querem parecer "mocinhas" ao invés de bandidas.

Abandona-se a BRAVO!; deixa-se de abordar em larga escala – por ora – determinados assuntos que continuarão a existir por si mesmos, manifestados no povo e no mundo.

A carta era muito clara: a editora abre mão de uma revista que tratava a cultura de maneira mais abrangente para privilegiar um portfólio enxuto e comercializável.

Naquela tentativa de introduzir a arte entre leitores não necessariamente interessados nela, a BRAVO! parecia querer diminuir a distância sócio-cultural que tanto aflige o Brasil. Parecia resistir à distância, mesmo com todos os empecilhos implicados no processo. Eu admirava isso. Gostava de ler cada edição de cabo a rabo, tanto que a assinava.

A carta também dizia que a revista não era mais necessária, pois conteúdo similar já se encontra disponível em outros títulos da editora. Não faço ideia de quais sejam esses títulos. Nem acho que qualquer outra revista remanescente substitui a BRAVO! Os assuntos tratados por ela ficam órfãos, ao menos dentro da Abril.

No meu ponto de vista, o mercado editorial agora possui ótimas publicações especializadas de um lado – o jornal Rascunho, por exemplo – e terríveis publicações banalizadas do outro. No meio, restou um vazio imenso (do qual nem mesmo a BRAVO! dava conta, embora fosse uma opção, sem dúvida). Espero que logo surjam novas publicações para ajudar a preenchê-lo.

Por fim, uma resposta direta para Fernando Costa, diretor de assinaturas da Abril: agradeço a oferta de meia dúzia de edições de VEJA em troca das revistas BRAVO! que eu já havia pagado e que não irei receber em casa. Agradeço a oferta, mas não a aceito. Já me basta de más notícias numa carta tão breve.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

IDEIA DA VERDADE

"Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento útimo ter ainda a forma da objetualidade. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade."

Giorgio Agamben
(no livro Ideia da Prosa)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PENSAMENTO EM DEVIR

Este texto é complementar à apresentação da mostra DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes, no Centro de Educação Municipal Adamastor (Guarulhos/SP). Se você não leu o primeiro texto, está aqui.

Clique no convite para ampliá-lo.
“O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação (...). Apenas a matéria, apenas a potência do pensamento”, escreveu o filósofo Giorgio Agamben sobre Damáscio, que no século VI quis encontrar uma espécie de verdade final, única e absoluta. Até que a percebeu, quem diria!, na folha em branco que aguardava seus escritos. Em forma de potência. A única forma que a sustentaria.

O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.

Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.

Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.

Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.

Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.

Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.
     Para que serve a pintura
a não ser quando apresenta
     precisamente a procura
daquilo que mais aparenta,
     quando ministra quarenta
enigmas vezes setenta?

Paulo Leminski
La vie en close, 1971
[grifo nosso]

sexta-feira, 26 de julho de 2013

DISSOLUÇÃO: NOVA EXPOSIÇÃO DE FELIPE GÓES EM GUARULHOS

Eis o convite para a abertura de mais um trabalho que realizei em parceria com o artista Felipe Góes. Quem puder comparecer será muito bem vindo. Quem não puder, dê uma passada depois, ficou bem bacana.
Por fim, abaixo do convite há uma breve leitura das obras expostas, escolhidas porque evidenciam uma questão muito presente no trabalho do artista e, de certo modo, no pensamento artístico contemporâneo.
Clique na imagem para ampliá-la.


Certa vez, Felipe Góes contou que quatro vacas se materializaram em uma de suas telas, o que sugeria um pasto no lugar da grande mancha verde que já estava pintada. Uma delas sumiu logo, a segunda demorou mais, a terceira e a quarta se foram em seus próprios tempos. Nenhuma vaca restara quando o artista deu a obra por terminada; tampouco o pasto permanecera o mesmo – podia ser um brejo, um lago, um acúmulo de tinta. Não se tinha certeza de mais nada. Exceto de que havia ali um complexo registro de intenções.

Porque o pensamento do artista se manifesta na tela, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Não parte de um projeto já estruturado, não tem uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Tudo se processa no gesto poético, no ato criador da prática artística. Linhas de força, manchas de expressão, camadas de sentimentos: anseios, vontades, rancores, arrependimentos, ilusões, desapontamentos, alegrias, ambiguidades... O assunto se transforma, ganha corpo e se dissolve diante dos olhos para reaparecer adiante, não exatamente igual nem completamente diverso, implicado na matéria pictórica – ou desaparece sem voltar jamais. Assim se realiza o processo criativo de Felipe Góes.

Quando sabemos disso, fica evidente que esta forma apresentada pela pintura é, dos embates vividos, apenas uma etapa que o artista decidiu preservar. Tal suposto inacabamento, por sua vez, inspira a vontade criativa de quem entra em contato com a obra e passa, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar suas próprias histórias, a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.


Algumas das ideias acima estão desenvolvidas num texto complementar, que você lê aqui: Pensamento em Devir

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O ninguém
A ninguém
Um ninguém
Uma ninguém
Alguns ninguéns
Algumas ninguéns

Vários.

Muitos.

Todos.

Alguém?




Não, ninguém.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

CONTAMINAÇÃO CULTURAL

Pouco antes de falecer, Jacques Derrida teria dito que entendia sua obra como a de um epidemiólogo, pois foi sempre uma tentativa de inserir o outro no eu. Não sou familiarizado com aquela filosofia; quem me contou isso, durante uma entrevista, foi Ricardo Basbaum. Na ocasião falávamos de certo tipo de contaminação pela cultura, à qual estamos suscetíveis de uma maneira ou de outra.

Pois tudo aquilo que vivenciamos, que experimentamos, que nos inquieta é percebido por nossos corpos, apreendido pelos sentidos, incorporado. Não se trata de consciência apenas, mas de um conhecimento que extravasa as barreiras da razão e habita o corpo inteiro, fica impregnado na carne. Nós reagimos àquela ação cultural produzindo anticorpos. Quer dizer, apreendemos o que nos invade, processamos, produzimos certo tipo de reação. Tudo o que resta dessa experiência cultural permanece registrado naquilo que somos, e o carregaremos pelo resto da vida na memória do corpo.

Fiquei com a ideia a martelar. Foi assim que me dei conta do paradoxo: o corpo produz anticorpos. Trata-se de uma figura de linguagem, claro. Cujo objetivo não é tornar o homem imune à cultura, o que seria um equívoco; ao contrário, o conceito ajuda a compreender que nem todo conhecimento pertence ao território da razão, como acredita certa herança racionalista de séculos atrás que ainda prevalece nas mais banais das situações. Além de termos consciência dos nossos corpos, é também por meio deles que a consciência atua. Ou seja, corpo e consciência não existem isoladamente; eles formam uma só coisa, coincidem no ser. Num corpo-consciência.

Conforme explica José Gil, "não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência". Na prática, isso significa que todo conhecimento é, de certo modo, um conhecimento sensível. Que é por meio de afetações – aquilo que acontece ao redor e nos sensibiliza – que descobrimos as coisas do mundo. Conhecer pressupõe estabelecer uma relação afetiva com o mundo, do qual nós próprios somos parte – somos feitos da mesma matéria do mundo, diria Maurice Merleau-Ponty.

Se essa forma de conhecer parece estranha num primeiro momento – e, com sorte, plausível num segundo –, imagine como transformaria o nosso dia a dia. Na escola, por exemplo, onde a decoreba, prática ainda tão comum, parece também tão precária. Onde aprender "na marra" não proporciona mais do que desgosto, impedindo qualquer relação sensível com a matéria. Mesma escola em que os trabalhos do corpo – dança, esportes... – ocupam um lugar menor, quase sempre reduzidos a uma questão de preparo físico. Isto para citar apenas uma ocasião em que o conhecimento imposto simplesmente não opera – é necessária uma abertura do ser em direção ao outro. Disposição, acolhimento.

Para José Gil, "a contaminação afetiva seria assim o exemplo mais comum de contágio: nada mais banal do que a transmissão imediata da expressão emotiva de um rosto, lágrimas ou riso que induzem em outrem mais lágrimas e mais riso".

Nossas memórias, por sua vez, são memórias corporais, no sentido de que habitam o corpo e também o constituem. Não estão "guardadas na mente ou na cabeça", como se a consciência fosse uma instância superior ou como se fosse possível fragmentar o corpo em especialidades [médicas?]. Não se separa um pedaço sem afetar o restante, assim como não se separa corpo e mente – quando um deixa de existir, o outro também sucumbe. A memória está no corpo e, dependendo do que evoca, é possível senti-la. Lembranças carinhosas acalentam, um trauma arrepia, uma perda dói, uma paixão amolece as pernas, a ira enrijece o coração, um acanhamento aquece as bochechas e assim por diante. O caminho inverso também é possível: o frio remete às férias no Chile; o abraço, a uma experiência de infância etc.

Existem ainda fantasmas que assombram nossos corpos. Presenças ausentes que deixam marcas e reavivam sensações, que interferem no presente vindas, muitas vezes, de um além-consciência. Fantasmas que nem sempre reconhecemos e com os quais é difícil lidar. Estes sim corrompem, desconfortam, provocam sensação de desmembramento; podem levar ao grave sofrimento psíquico.

Alguns artistas contemporâneos trabalharam essas questões, e desconheço quem se aprofundou tanto quanto a brasileira Lygia Clark, cuja obra desembocou numa espécie de prática terapêutica denominada Estruturação do Self. Dos museus, ela migrou para instituições psiquiátricas, fundando um novo lugar nesse misto ambíguo de arte e clínica, que não é exatamente um nem outro.

"É precisamente do self, segundo Winnicott, que se extrai o sentimento de existir, a capacidade de uma experiência total, a sensação de participar na construção da realidade de si e do mundo que ela gera, propiciando a impressão de que a vida tem sentido", escreveu Suely Rolnik.

Lygia Clark mostrou que não apenas os corpos são contaminados pela cultura: numa dialética própria, também cada pessoa contamina o universo cultural, afetando a ele e às demais. É uma via de duas mãos. Duas entidades que coincidem sem que uma ocupe o lugar da outra e sem que seja possível separá-las. Cada um de nós está conectado a tudo o que se produz e que se entende por cultura, sendo por ela responsável. Com nossos gestos, a cultura ganha corpo; por meio da experiência cultural, o ser ganha consistência.


Obs.: A versão deste texto publicada no Correio Popular foi sutilmente reduzida pelo autor.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

COM-TEMPO

Agora,
Quando começou?
O agora,
Quando vai terminar?

Agora.

Agora.

Agora.

Neste inexato instante.
Tempo que sinto
Muito.

Agora.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

"para todo movimento, um contramovimento;
para todo golpe, um contragolpe;
e como consequência disso,
para todo beijo, um contrabeijo."

Kamasutra, de Vatsyayana

terça-feira, 25 de junho de 2013

O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA

Quando nós conhecemos apenas uma versão da história, corremos o risco de ela se tornar absoluta.
Quando assumimos essa história como verdade, o preconceito passa a nos habitar.
Quando reproduzimos esse discurso, provocamos uma violência contra o outro.
Isso tudo acontece inclusive quando se tem a melhor das intenções.

Autenticidade, mídia, poder, discernimento, coletividade, estereótipos, dignidade, diferenciação.

Na curta e emocionante palestra intitulada O perigo da história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie mostra como a questão está mais próxima do que supomos. Ela perambula em nosso cotidiano, em nossas atitudes, em nossas escolhas e palavras. Vale a pena assistir aqui:


"Todas essas histórias me fazem quem sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram."

"Quando rejeitamos a história única, quando nos damos conta de que não existe apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso."

Chimamanda Adichie

Saiba mais sobre Hibisco Roxo, livro de Chimamanda Ngozi Adichie publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Site oficial (em inglês): chimamanda.com

sexta-feira, 21 de junho de 2013

AS REDES SOCIAIS


Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998 – um livro de rara importância e dos mais variados interesses, porém esgotadíssimo, para azar de todos. Ler aquelas cartas foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne. Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Ambos eram pobretões de dar pena, às vezes faltava dinheiro até para selar o envelope. Mesmo assim, falavam de tudo um pouco em textos longos, em que revelavam muitas inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças, desejos e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso. Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. O mesmo valia para as respectivas obras. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, para as questões da psique, para o homem em desacordo com o sentimento de si, em busca de liberdade. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Em suma, completavam-se, compreendiam-se, solidarizavam-se; ainda que se soubessem muito diferentes um do outro. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.

Existiu outro movimento consecutivo, envolvendo cartas, que nada tem a ver com a correspondência entre Hélio e Lygia. Refiro-me à Arte Postal, que ganhou diversos adeptos e da qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo de arte conceitual abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas obras são de artistas que permanecem desconhecidos, enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.

Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: devido ao meu fascínio por canetas-tinteiro, adquiri o hábito de trocar cartas com aficionados do Brasil e do mundo. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Elas servem para amostras de tinta, aulas de caligrafia, relatos de experiências com marcas e modelos etc. Também servem para manter amizades. Pois o hobby me incentivou a enviar cartas inclusive a pessoas que não dão a mínima para canetas, e elas foram correspondidas. Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi com isso tudo que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.

Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e por conta das canetas descobri que o antigo sistema é também interessante, em sua medida.


Falando em demora, já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o país, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração. Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria impossível mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo correto simplesmente circula no canal inadequado.

Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão. Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.

Lygia Clark, de certo modo, antevia isso tudo. Tanto que, em 1971, afirmou ao jornalista que a entrevistava, recusando o título de cientista da arte: “É muito difícil hoje botar um limite nas categorias, mesmo entre coisas diferentes, como Ciência, Psicologia e Arte, que estão tendendo a convergir para um ponto só, que, no fundo, seria a comunicação”.

Pensamento bem contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, nenhum nó é mais importante do que o outro, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. As correntes de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século XX, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.

*Imagens: Metaesquemas, de Hélio Oiticica (fonte: Itaú Cultural – Programa Hélio Oiticica). Este texto foi publicado no Correio Popular em versão resumida.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

CURAR DE QUÊ?



"Existem muitos modos de ser mulher, de ser homem, de ser homossexual, de ser bissexual, de ser transexual. As classificações são sempre uma construção para orientar a percepção, organizar o mundo, e também para manipular e controlar. E a realidade sempre escapa a elas."

Este artigo de Cristina Veiga Judar veio na hora certa. Pois, por meio da arte, ajuda a pensar as atitudes equivocadas do Infeliciano e sua turminha machochô. Leia aqui: Entre ele e ela, quem? (Revista da Cultura nº 71)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A CULTURA ESTÁ NAS RUAS

A cultura está onde o povo está. Veja imagens aéreas dos protestos que têm mobilizado São Paulo. É lindo demais.

terça-feira, 18 de junho de 2013

DIREITO AO GRITO

Reproduzo aqui texto publicado pela editora Cultura e Barbárie. Clique nas imagens para ampliá-las ou baixe o arquivo .pdf aqui: Direito ao Grito





sexta-feira, 14 de junho de 2013

CORPO E SUBJETIVIDADE

"Nossas memórias e planos, nosso passado e possibilidades de futuro, existem na concretude de nossos corpos e de nossas ações. O corpo mais que todo, a se ultrapassar como ação orgânica e histórica, parte de um mundo-ação. Corpo não identitário, impossibilitado de isolar-se em um “si mesmo”. (...) Corpo-no-mundo, memória concreta do passado todo superfície, colapsado no presente, de onde se atualizam novas ações, as quais são o futuro no agora, a concretude do vir-a-ser."

"Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundoexpressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro."

"Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações."

"O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corpo-rizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformandoos. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista."

"O corpo é abertura para o mundo – e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada."

"Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um “si mesmo”, mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico."

Trechos colhidos em DA DIVERSIDADE: UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE SUBJETIVIDADE, de Luis Artur Costa e Tania Mara Galli Fonseca

Leia o artigo completo aqui: Revista Interamericana de Psicologia, vol. 42, n. 3

CONVITE PARA PALESTRA

O grupo de pesquisa de que participo está promovendo uma palestra na USP, seguida de debate, com o professor Dr. João Augusto Frayze-Pereira. O tema? IMPLICAÇÕES ENTRE ARTE E PSICANÁLISE. Quando? Sexta-feira próxima, dia 21 de junho, a partir das 16h30 (mais detalhes no convite abaixo). Vai ser bem legal. E vale trazer quantos acompanhantes quiser. Apareça!

Clique na imagem para ampliá-la.