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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

o que é vivo
é finitivo
definidamente
sou oco
porém são
loucos?
quem não és?
são
foram tantos
que me mataram
foram-se
todos

DESEJO PUERIL

queria morar numa rua
com nome de poeta
onde errar fosse coisa certa


rua de tripla mão
para ir, vir, devir

      não julgue vazio
      meu desejo pueril

nessa minha rua
todos que passassem
deixariam um rastro
de boa recordação

de presente
levariam sentimento
sem matéria
nem razão

uma rua de gente
justa e honesta
em que todas as memórias
fossem pura invenção

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

AFIA A DOR

assovia,
      afiador,
            assovia

sua gaita me lembra os tempos
de casa,
quando pertencia ao chão
e o dividia
com quem não merecia

saudade, sim
tristeza,
      é verdade

afia!
      a dor

Fiu-ru-lin
Fiu-ru-lon
a pele
expele
o ex

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

VELÓRIO

Protestos recentes em Kiev

"Numa noite fria do inverno passado aconteceu um incêndio na casa de um homem que, poucos dias antes, havia matado seu cachorro a pauladas. Ele era um homem forte e por isso conseguiu salvar todos seus pertences sozinho, carregando-os da casa para o jardim. Assim que terminou, uma centena de cachorros de todos os tamanhos e formas correu diante da luzes oscilantes, vindos das trevas ao redor, e prontamente sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes como se fossem os donos. Além de não deixarem o homem chegar perto e rosnar ferozes quanto ele tentava bater neles, ficavam estáticos, olhando impassivelmente para as chamas. (...)"

CONTOS DE LUGARES DISTANTES, de Shaun Tan


Veja mais fotos impressionantes dos protestos em Kiev.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

UM DOS MELHORES POSTS DESTE BLOG

Encontrei, no mesmo livro, grandes exemplos de um dos maiores e mais costumeiramente empregados VÍCIOS DE LINGUAGEM da imprensa e crítica brasileiras. E li apenas a contracapa e as orelhas, por enquanto.

Será que apenas eu me incomodo com isso, que é uma das mais relevantes necessidades de pompa e diferenciação dos últimos séculos?

1. "As entrevistas (…) constituem um dos textos mais significativos sobre a pintura do século XX."

2. "O resultado é um acesso privilegiado à mente de uma das principais figuras artísticas do século XX."

3. "(…) um dos críticos ingleses mais influentes de sua época."

4. "(…) análise precisa da obra e do pensamento de um dos mais criativos pintores do século XX."

Trechos retirados das Entrevistas com Francis Bacon, de David Sylvester, publicadas pela editora Cosac Naify. Mas poderiam ser de qualquer outro livro. Faça o teste.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

HÁ TEMPOS

Ano novo, novos tempos. Pode o tempo ser novo ou antigo? Ou somos nós que envelhecemos e rejuvenescemos? Parece que há uma inversão de lugares. Afinal, o tempo foi inventado como método de organização das nossas atividades, só que na maioria dos casos é a vida que acaba por ser formatada de acordo com uma escala de tempo exterior a ela. Ficamos escravos da própria criação. O feitiço se volta contra o feiticeiro. Ora, não se trata de feitiço e sim de relógio, agenda, prazos a cumprir. Uma rigidez antinatural que se impõe, com toda a sua ordem racionalista, em busca do progresso da nação, da evolução do homem. É assim que deve ser? Espero que não. Melhor continuar esperando.

Dear Photography - Molly
* * *

O último romance que li em 2013 foi Barba Ensopada De Sangue, escrito por Daniel Galera. Demorei quase seis meses até terminá-lo, e nesse meio-tempo li outros livros. No início, a demora incomodou, fazendo acreditar que nada acontecia na história. Foi após cem ou duzentas páginas que entendi: estava acontecendo sim. Estava acontecendo nada. O que é muito diferente. O nada já é alguma coisa. Na correria do contemporâneo, o nada irrita, mais do que entedia. A hora que não passa.

A propósito, a história trata do tempo lento de um personagem que deseja escapar das grandes ondas que carregam todo mundo junto para um buraco perigoso à beira-mar, onde ocorre a rebentação. Um tempo individual de solidão, reflexão, revelação. Quando percebi isso, aceitei. Logo depois, o nada encontrou um rumo. E as últimas cem ou duzentas páginas foram alucinantes. É mesmo um ótimo livro, muito bem escrito. Cheio de pulso vital.

* * *

Meus melhores textos – ou ao menos aqueles de que gosto mais – não são escritos num ímpeto criativo, num único afluxo de inspiração. São aqueles que de início eram notas esparsas, sem qualquer relação proposital, e que vão aos poucos se aglutinando, ganhando consistência, tomando jeito. Na sequência, são revisitados uma porção de vezes, escritos e reescritos, cortados e acrescidos. Palavras sobrevivendo ao tempo, produzindo sincronia.

Os textos que me agradam mais são aqueles que jamais deixam de serem escritos. Se fosse necessário classificá-los, esse seria o critério.

* * *

Dear Photography - Dawn
"Lá em casa tem um poço. Mas a água é muito limpa."

Letristas como Renato Russo fariam do Brasil um país melhor. Nem precisaríamos de muitos; dois ou três já seriam uma diferença enorme.

John Lennon é outro exemplo. Minha música favorita dos Beatles chama-se A Day In The Life. Um dia na vida. Caso houvesse um disco apenas com ela, seria completo. Mas eles gravaram o maravilhoso Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band para acompanhá-la – não satisfeitos, foram além da expectativa. É por esse motivo, entre outros, que permanecem relevantes. Que perduram.

Sinto falta de vozes sensíveis, sinceras, desbocadas. Fora de protocolo. Que se fazem música pela potência poética/política dos seus dizeres.

Gosto da expressão Há Tempos, que dá nome a uma canção famosa da Legião Urbana. Porque ela traz uma ideia imediata de passado distante, e acaba por bagunçar essas relações. Gosto também porque sugere a existência de tempos diversos, muitos deles consecutivos, acontecendo ao mesmo tempo. Como as estrelas, que morreram há uma infinidade de anos e ainda são vistas no céu. Porque sua luz chega a nós apenas agora. Observá-las é o mesmo que observar o passado acontecer bem diante dos nossos olhos.

* * *

Escrevo com caneta-tinteiro em época de wi-fi e tablets. Deus, como sou retrógrado! Escrevo com pena e observo a tinta, ainda líquida, na superfície do papel. Ela demora a ser absorvida. Parte evapora e se perde no mundo; parte fica retida, incorporada. Assim é o tempo da descoberta, do aprendizado, do conhecimento. Tempo de apreensão.

Uma terceira parte daquela tinta é entrevista quando viro a página e começo a escrever do outro lado. Onde as sombras do que já escrevi me espreitam. Não consigo compreendê-las direito, já não me pertencem mais.

Se derramo água, o texto borra e se mistura, transborda, espalha pela mesa, mancha tudo o que toca. Está sempre à disposição do acaso para resignificá-lo. E para ser resignificado.

* * *

Meus pais fizeram o pedido na lanchonete de uma pequena cidade de Minas Gerais. Talvez por acaso, ouviram o garçom gritar ao cozinheiro: vai rápido porque o cliente é paulista!

O tempo corre diferente em diferentes lugares. Em alguns ele anda. Em outros se espreguiça e dorme.

Dear Photography - Rebecca

* * *

O relógio é um acordo entre os homens. Quando a maioria concorda, adiantamos ou atrasamos uma hora de verão. Para criar ou dispensar tempo. Acho isso incrível.

* * *

Se o tempo não for exato, cronológico, na medida do relógio, como será? Sensível, na medida do homem. Na medida do ser. Claro, a tarde demora a passar para o entediado, porém é curta demais para o atarefado. Os minutos sofridos na angústia, o deleite da infância que já não fazem mais.

Se não estivermos em acordo com o tempo, estaremos em desalinho. Deslocados, de modo que se possa olhar para ele e perceber o que ainda opera e o que já não serve mais. Melhor assim. Ao invés de inseridos numa escala de tempo exterior, podemos nos posicionar com o tempo; estar sem a ele pertencer. Com-temporâneos.

Não ser sujeitos do tempo. O tempo é nosso, é de cada um à sua maneira. O tempo nos pertence e com ele fazemos o que convier. Ou assim seria.

* * *

Tive um professor baiano na faculdade que dizia: tudo que é gostoso é pra ser feito devagar. Eu ria, na época. Precisei de mais de década para compreendê-lo.


Obs.: As fotos que ilustram este texto foram surrupiadas do site Dear Photography, que reúne imagens do passado sobrepostas a cenas do presente feitas por quaisquer pessoas. Em outras palavras, trata-se de um site colaborativo. Você também pode participar com suas fotos. Basta acessar o link para verificar o procedimento.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

ESTÉTICA DO NU

A noiva posta nua por seus celibatários, mesmo (vulgo O grande vidro),
1915-23, de Marcel Duchamp
"O que o nu revela é que não há nada a revelar, ou melhor, que ele é somente a própria revelação, o revelador e o revelado ao mesmo tempo; é o gesto que desnuda. O divino nu (das estátuas gregas), o pecado nu (da inquietude cristão em relação à carne) e a pele nua – esses três aspectos do nu ocupam de muitas maneiras o pensamento atual." (p. 12)

"Foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada. O corpo é reinventado mediante um ideal que lhe é externo e que o deslocará da natureza para a pólis: o corpo do cidadão era um artifício a ser criado, que deveria ser treinado e aprimorado. Por isso, todas as figuras humanas do Pathernon são jovens; o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização. Compreende-se, dessa maneira, que o nu artístico é relacionado a características morais, tornando-se modelo de virtudes e qualidades subjetivas que marcam toda a arte europeia ocidental. O nu faz abstração da dimensão do particular e do próprio ao manifestar fixidez fora do tempo: a beleza. É precisamente por causa dessa vontade obstinada do homem de dar forma visível ao humano que o nu seria o signo distintivo da sociedade ocidental, de sua metafísica milenar à procura de uma imagem sensível do ideal. As estátuas gregas representam o ideal mais elevado, uma vez que elas são o signo tangível do poder de uma cultura capaz de extrair o ideal abstrato da humanidade. O nu não representava um corpo, mas uma ideia: a ideia de homem." (p. 14)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

sábado, 21 de dezembro de 2013

DES-PROPOSITADA-MENTE

O olho cacodilato (1921), de Francis Picabia

Penso que deveria escrever um conto de Natal. Este ano haveria tempo hábil. Historinha breve, só para dizer que escrevi. Pelo menos isso. Já faz tanto desde o último! Não é apenas questão de tempo, claro. Foi uma espécie de desencanto. Sem vontade não há ideias. Sem boa vontade não há solução. Fui resolvendo minhas inquietações de outras maneiras. Além do mais, o Natal se tornou um feriado qualquer, do qual só me dou conta uma semana antes, quando decidem as tarefas de cada familiar. Tarefas de ceia: peru, tender, essas coisas. Sempre as mesmas. O que mais me irrita na tradição é também o que mais conforta. Natal é um período melancólico, de baixa produção, de vontade de nada. Vou escrever sobre o quê? Fábulas e sonhos não cabem mais, o mundo cresceu, acordou. Realismo também não cabe. Para que vou escrever sobre a "realidade" se a vida lá fora é mais interessante? Alguém quer ler no Natal? Essa é uma pergunta que cabe. Alguém tem paciência? Tenho impressão de que ninguém mais lê nada, ninguém além do meu círculozinho de amigos. Nada há para dizer a eles que já não tenha dito antes. Não vale escrever sobre isso.
      Deixo, então, a pena deslizar sobre o papel. Deus, como sou retrógrado!, uso caneta-tinteiro em época de wi-fi e smartphone. Mero fetiche. Não tenho espaço, menos ainda teria a droga do meu conto de Natal. Fico sem ideias, desconstruindo um personagem qualquer. Que, no fim das contas sou eu mesmo, disfarçado de ficção. Os pensamentos se esvaem, vou junto deles. Alguém estaria interessado nesse eu mesmo, super sem graça, banal, entediado? Precisa ler muito para entender, sabe?
      Foi o que imaginei.
      Os pensamentos se esvaem, vou junto. Um conceito se desfaz. Um sujeito se fragmenta. Escrevo com pena e observo, sozinho, a tinta ainda líquida na folha de papel. Ela demora a ser absorvida. Fico olhando. Isso sim vale. Parte evapora e se perde no mundo, parte é incorporada. Parte da tinta se vai, a outra fica retida, uma terceira se conecta às demais páginas do caderno numa ambiguidade só. Vejo as sombras do que já escrevi espreitarem do outro lado da folha. Porém não consigo compreendê-las. Não me pertencem mais.
      Derramo água sobre este texto. Despropositadamente. Um copo cheio de otimismo. A tinta se dilui, borra, espalha por toda a superfície do papel, escorre na mesa, mancha a madeira, suja os dedos, tinge a roupa, preenche as falhas, estraga tudo, põe tudo num estado de urgência. Esfrego a tinta no meu corpo inteiro. Pego a água suja de texto e espalho no rosto. Me parece bem melhor assim. Eh... agora sim.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O fotógrafo Georges Pacheco preparou o estúdio e deixou o disparador da câmera na mão de modelos cegos, que podiam escolher o momento em que a foto seria feita. Mesmo sem enxergarem, nota-se que alguns se preocuparam com a maneira como seriam vistos. Curioso, não?

Veja as fotos aqui: Le regard des aveugles

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Clique na imagem para ampliá-la

"Método terrorista, radicalidade, transgressão absoluta são normalmente os termos utilizados para qualificar ou aferir o grau de confrontação das obras de [Artur] Barrio com o mundo do trabalho, o mundo cotidiano da conveniência e das normas sociais. As situações com as trouxas ensanguentadas têm a política brasileira como pano de fundo, em alusão a corpos esquartejados. Apesar da alusão a restos de corpos, o trabalho não se resume a uma simbologia da morte; parte, sim, da reação das pessoas diante da morte, diante do inesperado, mas não se restringe ou se deixa enclausurar em mera exemplificação. Não é a analogia entre trouxas e corpos que dá sentido ao trabalho, mas o atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre erotismo e morte; o que interessa é a detonação de sentido advinda da situação. Barrio lida com a transgressão do interdito da morte, uma vez que ela é redimensionada pela pulsão de vida. É o transtorno desse atravessamento que perturba a consciência ao se experimentar separada do mundo previsível e ordenado." (p. 50)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

Mais informações: Enciclopédia Itaú Cultural | Blog Artur Barrio

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ACREDITAR EM NOEL

Não me recordo da época em que acreditava em Papai Noel. Quando escrevia cartinhas, tentando convencê-lo de que, apesar das artices e malcriações, eu me comportaria melhor no ano seguinte, e não me importaria se recebesse um presentinho de incentivo. Suponho que a argumentação fosse mais ou menos essa. Do mesmo modo, não me recordo de quando deixei de acreditar nele. Havia certas suspeitas, compartilhadas entre os primos, quando passamos a observar a lógica impossível do evento. Quer dizer, Papai Noel visita todas as casas do mundo numa única noite? Se dividirmos essas bilhões de pessoas em 24 horas, quantas ele precisa visitar num minuto? Como pode? Além do mais, ele trabalha só um dia por ano? Consegue ler as cartinhas, escritas em tantas línguas diferentes? Por que algumas crianças ganham presentes melhores do que outras? Por que muitas não ganham presente algum? Cadê as renas? Noel mora no Pólo Norte ou no shopping center? Aquela barba é esquisita, quem se arrisca a puxar?

Busto do filósofo grego Sócrates
Já faz tanto tempo! Todavia ainda me recordo de quando voltei a acreditar na bondade do velhinho, e percebi a tolice que foi suspeitar da sua existência. Um despropósito da razão; dessa mesma lógica racional que transforma os homens em padrões de comportamento, dogmas e protocolos. Que só acredita vendo, que exige a verdade absoluta, que toma decisões com base em estatísticas. Que sustenta preconceitos, hipocrisias, burocracias e sistemas obsoletos, ao mesmo tempo em que esvazia símbolos, afetos e intuições. Que desacredita os sentimentos mais naturais do vivo.

Foi ao ler O Brincar e a Realidade, de Donald Winnicott, que me dei conta do que tinha acontecido. Um trecho em que ele comenta o valor simbólico de certos objetos. Assim: “Se considerarmos a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico-romana, ela é o corpo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo, de fato, o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo”. Em outras palavras, determinada coisa pode ser acolhida de maneiras diferentes, dependendo de quem lida com ela e do contexto cultural no qual está disposta. No caso citado pelo psicanalista, a hóstia pode ser uma representação ou o corpo nu e cru; pode existir como realidade ou ficção, conforme seu valor simbólico for evocado.

No caso de Noel, penso que a ordem lógica do mundo nega sua possibilidade de existência. E diminui sua potência simbólica a uma anedota infantil, sustentada enquanto a ingenuidade da fantasia permitir.

Junto isso com um pensamento de Michel Foucault, que propôs a autoria, num contexto mais contemporâneo, não como um lugar estático, mas como uma função assumida e abandonada conforme convier. Nesse sentido, todos podem ser, momentaneamente, autores dos feitos. Trata-se de uma atitude perante eles; um modo de agir. Não uma questão de posse nem de direitos autorais.

Isso significa que Papai Noel não pertence a ninguém específico, mas à comunidade inteira, e somos responsáveis por ele, se concordarmos que é relevante. Compreendi, assim, que sua existência não pode se pautar no raciocínio lógico, mas no simbolismo. Claro, pois não se trata de um velhinho de carne e osso, de roupão e trenó, e sim de uma maneira de ser e estar no mundo, de partilhar desse sensível. Uma função político-social que podemos assumir com intuito de transformar a situação vigente. Isso ocorre numa época determinada – o Natal – porque está de algum modo atrelada à tradição, embora possa operar o tempo inteiro, em todos os lugares.

Penso que é dessa maneira que deveríamos falar de Noel às crianças, quando percebemos os primeiros movimentos para desmascará-lo. Explicando que o disfarce não é uma mentira, mas uma fantasia, uma representação de certa vontade transformadora. A evocação do “espírito natalino”. Ímpeto que independe de religião. Nesse sentido, Papai Noel existe sim. Como uma ficção que criamos para combater a dureza do dia a dia, as desigualdades sociais, a descrença na força afetiva do povo. Se não sobrevive ao avanço da idade, talvez seja porque a ideia de doação como proposta de vida encontra tamanha resistência que se esfacela antes mesmo de adolescer. Imagino que cabe a experiência de tentar mantê-la ativa. E o tempo dirá se vale a pena.

Noel está abandonado à voracidade do capitalismo, deturpado por ações de marketing de todo o tipo, completamente associado ao consumo. Se pudermos reverter esse quadro, me parece que só teremos a ganhar. E não estou me referindo a presentes. Não são eles que importam, afinal. É o ato de se doar.

Quando alguma criança espertinha diz que Papai Noel não existe, respondo que existe sim. Porém não da maneira como a TV ou a “verdade científica” o vendem para nós.

Carl G. Jung explica que, “como diz o cético, símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, ‘representações coletivas’ – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias”.

Eu acredito em Papai Noel. E num feliz 2014 a todos.

Ho ho ho.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PINTURA ENCARNADA

Estudo a partir no retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez – Francis Bacon

"Desde essa época de juventude, sua pintura não se afastou mais de mim. Ela agarra na gente, vive na gente. Seus 'personagens em crise generalizada' – crise moral, crise física –, como escreveu o crítico inglês John Russell, vivem ao nosso lado e nos lembram incessantemente que a vida é essa corda esticada entre nascimento e morte. Essa vida que nos traz visões exacerbadas, um vizinho de hospital, de asilo, às vezes de nós mesmos. O terror está presente, instalado em personagens que berram em silêncio. Uma crueldade veemente e visível, revelada por homens emparedados numa moldura espacial. A qualquer momento podemos nos deparar com o atroz, um acidente nos reduz a um pacote de músculos abertos. Na expectativa, possível, de uma ressurreição."

Franck Maubert, Conversas com Francis Bacon

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Varal (1993), de Adriana Varejão

"Hoje, a tecnologia assume o centro de um debate reflexivo sobre o seu domínio e predomínio na nossa sociedade. Não se trata de apresentá-la como vilã, mas a ética assume importância fundamental num mundo em que realidade e ficção parecem se fundir. O avanço técnico-científico, com as suas imagens de clones ou ciborgues, vem somar-se ao nosso contexto econômico e político, sobretudo na passagem do milênio, para instaurar uma nova subjetividade, hoje cada vez mais longe da ideia do sujeito autônomo postulado pela Modernidade. Hoje a subjetividade encontra-se em estado de fragmentação e disruptura, e simboliza a condição superlativa em que vivemos. E a arte, sem dúvida, rebate essa condição."

BOUSSO, Vitoria Daniela (curadoria). Por um fio. São Paulo: Paço das Artes, 2007. Catálogo de exposição.

domingo, 24 de novembro de 2013