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sábado, 7 de setembro de 2013

CORPOS CONTEMPORÂNEOS: ANOTAÇÕES DE AULA


Quem estava ali era um corpo cansado. Tinha acordado mais cedo do que o costume, engolira qualquer coisa no café por receio de se atrasar. Enfrentara uma hora e quinze minutos de trânsito. Respondera e-mails no escritório e preparara a tarefa dos assistentes. Dirigira mais uma vez, agora até a universidade. Combinara rapidamente o programa do dia com a docente responsável. Às 10h30, a aula se iniciava, e foi assim que me apresentei à turma de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, com a qual tenho colaborado neste semestre. Um corpo cansado, agitado, ansioso com o trabalho que iniciava, curioso para conhecer os alunos, cheio de atribuições mas com vontade de assumir outras, de participar de tudo, do possível e do impossível, por mais insano que seja.

Um a um, fomos descrevendo nosso "estado de alma", fazendo-nos conhecer e aproveitando para pensar sobre a carga depositada naquele misto indissociável de corpo e mente. Sentimentos, razões, dores musculares, sono, tensão, frio, curiosidade, timidez, empolgação, estresse, apreensão, expectativas, preguiça, cansaço. Sempre o cansaço, presente na fala de todos.

Não é de surpreender. Somos demandados e superativados no contemporâneo por um sistema de produção que remonta a Revolução Industrial, no século XVIII, e que hoje em dia opera de maneira peculiar. Estamos sempre apressados, buscando o além dos limites, exauridos por excesso de informação, horas extras, trajetos longínquos, atuação nos mundos reais e virtuais, conexões várias que transformam as noções de privacidade e põem a nu as experiências mais íntimas, expondo-as, quase sempre as banalizando. Homens de execução, não de reflexão.

Isso desemboca na ansiedade, que cada um vive à sua maneira e em seu grau, e que se resume no ato de colocar-se à frente de onde deveria estar – ou seja, de antecipar questões futuras para vivê-las no presente, quando nada pode ser feito para resolvê-las.

Estávamos todos cansados antes mesmo de iniciar os estudos. O contemporâneo já se manifestava em nossos corpos sem que nós o percebêssemos. Uma das propostas da disciplina de Práticas Corporais é, por isso mesmo, tomar consciência desses sentimentos e preparar os terapeutas para acolher, cuidar e transformar outros sujeitos afetados pelas pressões da vida.


Ora, onde está a sensibilidade nos dias de hoje? Para Giorgio Agamben, "uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época; que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de 50 anos".

Este trecho foi publicado originalmente em 1985 e permanece atual. O contemporâneo, vivido como um sistema em processo, portanto sem forma definitiva, acaba por impossibilitar a apreensão exata dos novos tempos.

Nas pesquisas de Terapia Ocupacional, percebo alguns caminhos para esse estado de alma, que pela sensibilização do corpo levam a camadas profundas da existência. Por isso, escreve Flávia Liberman, "faz-se necessário um olhar que investigue o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão, ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir".

Sensibilizar é uma estratégia de descoberta e conscientização sobre nossas atitudes, sobre os papéis que exercemos no dia a dia e que, de certo modo, confluem para as realidades compartilhadas. "Pensar, viver e refletir sobre como as pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros corpos, com outros mundos", diz a terapeuta.

Nesse sentido, arte e clínica estão mais próximos do que se imagina, e ambos se agenciam no âmbito da vida comum. Porque se trata de criar corpos para o enfrentamento, para os embates cotidianos, para superar ou contornar os excessos, a ansiedade, o cansaço, o esgotamento etc. Um trabalho da Estética, localizado na fronteira entre o sentimento e o pensamento. Corpos atuando numa realidade de estrutura ficcional, inventados para certos desafios e reinventados a cada nova demanda. Que se apresentam como dispositivos – quer dizer, dispostos em relação com o outro, abertos ao entorno, à disposição das implicações contemporâneas. Postos no mundo ao mesmo tempo em que constituem o próprio mundo.


*As imagens acima foram emprestadas da tese de doutorado de Flávia Liberman, à qual você tem acesso aqui: Delicadas Coreografias: Instantâneos de uma Terapia Ocupacional

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PAI

Passei a infância
ouvindo
"Meu filho estude
mas estude muito
para não ter que trabalhar
aos sábados".

Tanto estudei
– até pós fiz –
que hoje trabalho
diariamente
aos sábados e domingos
e feriados inclusive.

Quer saber?
A meu filho direi
"Se quiser ser alguém
na vida trabalhe
mas trabalhe muito".

Porque se decidir estudar
jamais compreenderá
exatamente
quem no duro
você é.

sábado, 17 de agosto de 2013

Com-Tempo 
     [percebe?]

Contém
Contrai
Compõe
Convive
Compensa
Confabula
Conversa
Confirma
Confunde


Sem-Tempo
     [sente?]

Entende
Ente
Mente
Rente
Fluente
Atente
Enfrente

Sem saber
Exatamente

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

PINTURAS, PENSAMENTOS

Folhas e flores se espalhavam pela superfície inteira. Era uma cerejeira enorme, rica em detalhes, fiquei bastante tempo observando-a. Um trabalho de nanquim e cores sobre papel, disposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo na exposição intitulada Seis Séculos de Pintura Chinesa. De perto, era possível observar os traços do lápis, depois preenchidos com pigmentos coloridos. Um projeto que exigiu semanas, talvez meses, para ser executado. Um bom exemplo da dita sabedoria – e paciência – oriental. Estava claro que, desde o início, o artista tinha consciência do que desejava pintar. É possível que tenha copiado, por observação, alguma planta de seu jardim. Seja como for, ele sabia o que fazer. Dedicou-se, colocou seu talento à prova e obteve, ao fim, uma imagem aproximada daquela suposta a princípio. A obra estava pronta. Um ou dois séculos depois, pendurada na parede do museu, contava sua história para mim.

Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.

A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.

Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.

Pintura 147, de Felipe Góes

No vernissage, alguns amigos observaram que os trabalhos não são assinados. Fiquei pensando se não seria mais uma sugestão do seu suposto "inacabamento".

Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".

Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.

Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.

Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.


Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.

domingo, 11 de agosto de 2013

FOI VOCÊ? ENTÃO QUEM FOI?

Inserções em Circuitos Ideológicos: Quem Matou Herzog? (1970), de Cildo Meireles

Algumas obras de arte permanecem atuais durante longos períodos. Outras retornam do esquecimento com uma força assombrosa, talvez porque se conectam com alguma inquietação do momento.

Conforme disse Marcel Duchamp numa palestra de 1957, "[o artista] terá que esperar pelo veredito do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte" (em O ato criador).

Ainda que não seja sua intenção, Giorgio Agamben completa muito bem essa ideia quando afirma que "é da nossa capacidade (...) ser contemporâneo não apenas do nosso século e do 'agora', mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado" (em O que é o contemporâneo?, 2008).

Afinal, não se trata de cronologia, mas de uma maneira de perceber e tocar a vida - o contemporâneo, portanto, é da ordem do discurso.

O que há de contemporâneo nas Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles? Em outras palavras, que questões aquelas propostas continuam a provocar? O que ainda há de relevante nelas em relação aos acontecimentos de agora?

Para mim, poderíamos substituir "Herzog" por "Amarildo" ou "Marcelo Pesseghini", entre tantos outros nomes, a maior parte deles desconhecidos do grande público. E a pergunta continuaria a soar e ressoar.

Até quando?

Você encontra mais informações sobre Cildo Meireles no site do Itaú Cultural.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O FIM DA REVISTA BRAVO!

Cheguei em casa ontem e encontrei uma carta dizendo que a revista BRAVO! será extinta a partir de setembro deste ano. Era a confirmação de diversos boatos que li aqui e ali. Achei uma pena. Não que a BRAVO! fosse imprescindível, mas porque era uma das poucas revistas de grande circulação que lidavam com o tema das artes e da cultura em geral.

Um tempo atrás, o editor revelou que eles estavam vendendo mais de 30 mil revistas por mês, salvo engano, e que isso os deixava muito satisfeitos. Chegaram até a baixar o preço de capa, lapso que logo foi corrigido. Não se faz uma barbaridade dessas no sistema capitalista, especialmente quando não há concorrência apertando o cerco.

Fiquei desapontado porque o número de leitores não interessa mais à editora Abril, e porque o motivo da extinção sequer considera a relevância do assunto nesse Brasil tão carente e tão mambembe.


Fiquei desapontado com a falta de consciência cultural da nova diretoria da Abril, embora tal ignorância não me espante. Afinal, não basta alimentar os leitores com futilidades facilmente digestíveis. Para continuar a ter leitores no longo prazo é necessário formá-los. Parece que a editora se abstém dessa função e prefere focar os investimentos nos títulos que vendem mais. São conselhos da consultoria contratada. Consultoria que talvez entenda de negócios, mas que passa longe de outras questões mais profundas e menos imediatistas.

Aliás, investimento não, trata-se de mera aplicação. Porque investimento pressupõe estruturação, enquanto que a única questão visada agora é o lucro.

Será que, mesmo com retorno financeiro abaixo do esperado, não valia a pena manter no portfólio uma revista sobre cultura? Ou, ainda: dinheiro é tudo, mesmo numa empresa tão antiga e sólida como a Abril?

Não sei dizer. Isso tampouco cabe a mim. Só me parece que responsabilidade social vai muito além de reciclar papel e contratar pessoas com deficiência física, entre outras dessas coisas que as empresas fazem porque são obrigadas ou porque querem parecer "mocinhas" ao invés de bandidas.

Abandona-se a BRAVO!; deixa-se de abordar em larga escala – por ora – determinados assuntos que continuarão a existir por si mesmos, manifestados no povo e no mundo.

A carta era muito clara: a editora abre mão de uma revista que tratava a cultura de maneira mais abrangente para privilegiar um portfólio enxuto e comercializável.

Naquela tentativa de introduzir a arte entre leitores não necessariamente interessados nela, a BRAVO! parecia querer diminuir a distância sócio-cultural que tanto aflige o Brasil. Parecia resistir à distância, mesmo com todos os empecilhos implicados no processo. Eu admirava isso. Gostava de ler cada edição de cabo a rabo, tanto que a assinava.

A carta também dizia que a revista não era mais necessária, pois conteúdo similar já se encontra disponível em outros títulos da editora. Não faço ideia de quais sejam esses títulos. Nem acho que qualquer outra revista remanescente substitui a BRAVO! Os assuntos tratados por ela ficam órfãos, ao menos dentro da Abril.

No meu ponto de vista, o mercado editorial agora possui ótimas publicações especializadas de um lado – o jornal Rascunho, por exemplo – e terríveis publicações banalizadas do outro. No meio, restou um vazio imenso (do qual nem mesmo a BRAVO! dava conta, embora fosse uma opção, sem dúvida). Espero que logo surjam novas publicações para ajudar a preenchê-lo.

Por fim, uma resposta direta para Fernando Costa, diretor de assinaturas da Abril: agradeço a oferta de meia dúzia de edições de VEJA em troca das revistas BRAVO! que eu já havia pagado e que não irei receber em casa. Agradeço a oferta, mas não a aceito. Já me basta de más notícias numa carta tão breve.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

IDEIA DA VERDADE

"Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento útimo ter ainda a forma da objetualidade. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade."

Giorgio Agamben
(no livro Ideia da Prosa)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PENSAMENTO EM DEVIR

Este texto é complementar à apresentação da mostra DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes, no Centro de Educação Municipal Adamastor (Guarulhos/SP). Se você não leu o primeiro texto, está aqui.

Clique no convite para ampliá-lo.
“O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação (...). Apenas a matéria, apenas a potência do pensamento”, escreveu o filósofo Giorgio Agamben sobre Damáscio, que no século VI quis encontrar uma espécie de verdade final, única e absoluta. Até que a percebeu, quem diria!, na folha em branco que aguardava seus escritos. Em forma de potência. A única forma que a sustentaria.

O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.

Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.

Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.

Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.

Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.

Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.
     Para que serve a pintura
a não ser quando apresenta
     precisamente a procura
daquilo que mais aparenta,
     quando ministra quarenta
enigmas vezes setenta?

Paulo Leminski
La vie en close, 1971
[grifo nosso]

sexta-feira, 26 de julho de 2013

DISSOLUÇÃO: NOVA EXPOSIÇÃO DE FELIPE GÓES EM GUARULHOS

Eis o convite para a abertura de mais um trabalho que realizei em parceria com o artista Felipe Góes. Quem puder comparecer será muito bem vindo. Quem não puder, dê uma passada depois, ficou bem bacana.
Por fim, abaixo do convite há uma breve leitura das obras expostas, escolhidas porque evidenciam uma questão muito presente no trabalho do artista e, de certo modo, no pensamento artístico contemporâneo.
Clique na imagem para ampliá-la.


Certa vez, Felipe Góes contou que quatro vacas se materializaram em uma de suas telas, o que sugeria um pasto no lugar da grande mancha verde que já estava pintada. Uma delas sumiu logo, a segunda demorou mais, a terceira e a quarta se foram em seus próprios tempos. Nenhuma vaca restara quando o artista deu a obra por terminada; tampouco o pasto permanecera o mesmo – podia ser um brejo, um lago, um acúmulo de tinta. Não se tinha certeza de mais nada. Exceto de que havia ali um complexo registro de intenções.

Porque o pensamento do artista se manifesta na tela, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Não parte de um projeto já estruturado, não tem uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Tudo se processa no gesto poético, no ato criador da prática artística. Linhas de força, manchas de expressão, camadas de sentimentos: anseios, vontades, rancores, arrependimentos, ilusões, desapontamentos, alegrias, ambiguidades... O assunto se transforma, ganha corpo e se dissolve diante dos olhos para reaparecer adiante, não exatamente igual nem completamente diverso, implicado na matéria pictórica – ou desaparece sem voltar jamais. Assim se realiza o processo criativo de Felipe Góes.

Quando sabemos disso, fica evidente que esta forma apresentada pela pintura é, dos embates vividos, apenas uma etapa que o artista decidiu preservar. Tal suposto inacabamento, por sua vez, inspira a vontade criativa de quem entra em contato com a obra e passa, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar suas próprias histórias, a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.


Algumas das ideias acima estão desenvolvidas num texto complementar, que você lê aqui: Pensamento em Devir

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O ninguém
A ninguém
Um ninguém
Uma ninguém
Alguns ninguéns
Algumas ninguéns

Vários.

Muitos.

Todos.

Alguém?




Não, ninguém.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

CONTAMINAÇÃO CULTURAL

Pouco antes de falecer, Jacques Derrida teria dito que entendia sua obra como a de um epidemiólogo, pois foi sempre uma tentativa de inserir o outro no eu. Não sou familiarizado com aquela filosofia; quem me contou isso, durante uma entrevista, foi Ricardo Basbaum. Na ocasião falávamos de certo tipo de contaminação pela cultura, à qual estamos suscetíveis de uma maneira ou de outra.

Pois tudo aquilo que vivenciamos, que experimentamos, que nos inquieta é percebido por nossos corpos, apreendido pelos sentidos, incorporado. Não se trata de consciência apenas, mas de um conhecimento que extravasa as barreiras da razão e habita o corpo inteiro, fica impregnado na carne. Nós reagimos àquela ação cultural produzindo anticorpos. Quer dizer, apreendemos o que nos invade, processamos, produzimos certo tipo de reação. Tudo o que resta dessa experiência cultural permanece registrado naquilo que somos, e o carregaremos pelo resto da vida na memória do corpo.

Fiquei com a ideia a martelar. Foi assim que me dei conta do paradoxo: o corpo produz anticorpos. Trata-se de uma figura de linguagem, claro. Cujo objetivo não é tornar o homem imune à cultura, o que seria um equívoco; ao contrário, o conceito ajuda a compreender que nem todo conhecimento pertence ao território da razão, como acredita certa herança racionalista de séculos atrás que ainda prevalece nas mais banais das situações. Além de termos consciência dos nossos corpos, é também por meio deles que a consciência atua. Ou seja, corpo e consciência não existem isoladamente; eles formam uma só coisa, coincidem no ser. Num corpo-consciência.

Conforme explica José Gil, "não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência". Na prática, isso significa que todo conhecimento é, de certo modo, um conhecimento sensível. Que é por meio de afetações – aquilo que acontece ao redor e nos sensibiliza – que descobrimos as coisas do mundo. Conhecer pressupõe estabelecer uma relação afetiva com o mundo, do qual nós próprios somos parte – somos feitos da mesma matéria do mundo, diria Maurice Merleau-Ponty.

Se essa forma de conhecer parece estranha num primeiro momento – e, com sorte, plausível num segundo –, imagine como transformaria o nosso dia a dia. Na escola, por exemplo, onde a decoreba, prática ainda tão comum, parece também tão precária. Onde aprender "na marra" não proporciona mais do que desgosto, impedindo qualquer relação sensível com a matéria. Mesma escola em que os trabalhos do corpo – dança, esportes... – ocupam um lugar menor, quase sempre reduzidos a uma questão de preparo físico. Isto para citar apenas uma ocasião em que o conhecimento imposto simplesmente não opera – é necessária uma abertura do ser em direção ao outro. Disposição, acolhimento.

Para José Gil, "a contaminação afetiva seria assim o exemplo mais comum de contágio: nada mais banal do que a transmissão imediata da expressão emotiva de um rosto, lágrimas ou riso que induzem em outrem mais lágrimas e mais riso".

Nossas memórias, por sua vez, são memórias corporais, no sentido de que habitam o corpo e também o constituem. Não estão "guardadas na mente ou na cabeça", como se a consciência fosse uma instância superior ou como se fosse possível fragmentar o corpo em especialidades [médicas?]. Não se separa um pedaço sem afetar o restante, assim como não se separa corpo e mente – quando um deixa de existir, o outro também sucumbe. A memória está no corpo e, dependendo do que evoca, é possível senti-la. Lembranças carinhosas acalentam, um trauma arrepia, uma perda dói, uma paixão amolece as pernas, a ira enrijece o coração, um acanhamento aquece as bochechas e assim por diante. O caminho inverso também é possível: o frio remete às férias no Chile; o abraço, a uma experiência de infância etc.

Existem ainda fantasmas que assombram nossos corpos. Presenças ausentes que deixam marcas e reavivam sensações, que interferem no presente vindas, muitas vezes, de um além-consciência. Fantasmas que nem sempre reconhecemos e com os quais é difícil lidar. Estes sim corrompem, desconfortam, provocam sensação de desmembramento; podem levar ao grave sofrimento psíquico.

Alguns artistas contemporâneos trabalharam essas questões, e desconheço quem se aprofundou tanto quanto a brasileira Lygia Clark, cuja obra desembocou numa espécie de prática terapêutica denominada Estruturação do Self. Dos museus, ela migrou para instituições psiquiátricas, fundando um novo lugar nesse misto ambíguo de arte e clínica, que não é exatamente um nem outro.

"É precisamente do self, segundo Winnicott, que se extrai o sentimento de existir, a capacidade de uma experiência total, a sensação de participar na construção da realidade de si e do mundo que ela gera, propiciando a impressão de que a vida tem sentido", escreveu Suely Rolnik.

Lygia Clark mostrou que não apenas os corpos são contaminados pela cultura: numa dialética própria, também cada pessoa contamina o universo cultural, afetando a ele e às demais. É uma via de duas mãos. Duas entidades que coincidem sem que uma ocupe o lugar da outra e sem que seja possível separá-las. Cada um de nós está conectado a tudo o que se produz e que se entende por cultura, sendo por ela responsável. Com nossos gestos, a cultura ganha corpo; por meio da experiência cultural, o ser ganha consistência.


Obs.: A versão deste texto publicada no Correio Popular foi sutilmente reduzida pelo autor.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

COM-TEMPO

Agora,
Quando começou?
O agora,
Quando vai terminar?

Agora.

Agora.

Agora.

Neste inexato instante.
Tempo que sinto
Muito.

Agora.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

"para todo movimento, um contramovimento;
para todo golpe, um contragolpe;
e como consequência disso,
para todo beijo, um contrabeijo."

Kamasutra, de Vatsyayana

terça-feira, 25 de junho de 2013

O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA

Quando nós conhecemos apenas uma versão da história, corremos o risco de ela se tornar absoluta.
Quando assumimos essa história como verdade, o preconceito passa a nos habitar.
Quando reproduzimos esse discurso, provocamos uma violência contra o outro.
Isso tudo acontece inclusive quando se tem a melhor das intenções.

Autenticidade, mídia, poder, discernimento, coletividade, estereótipos, dignidade, diferenciação.

Na curta e emocionante palestra intitulada O perigo da história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie mostra como a questão está mais próxima do que supomos. Ela perambula em nosso cotidiano, em nossas atitudes, em nossas escolhas e palavras. Vale a pena assistir aqui:


"Todas essas histórias me fazem quem sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram."

"Quando rejeitamos a história única, quando nos damos conta de que não existe apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso."

Chimamanda Adichie

Saiba mais sobre Hibisco Roxo, livro de Chimamanda Ngozi Adichie publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Site oficial (em inglês): chimamanda.com

sexta-feira, 21 de junho de 2013

AS REDES SOCIAIS


Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998 – um livro de rara importância e dos mais variados interesses, porém esgotadíssimo, para azar de todos. Ler aquelas cartas foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne. Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Ambos eram pobretões de dar pena, às vezes faltava dinheiro até para selar o envelope. Mesmo assim, falavam de tudo um pouco em textos longos, em que revelavam muitas inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças, desejos e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso. Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. O mesmo valia para as respectivas obras. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, para as questões da psique, para o homem em desacordo com o sentimento de si, em busca de liberdade. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Em suma, completavam-se, compreendiam-se, solidarizavam-se; ainda que se soubessem muito diferentes um do outro. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.

Existiu outro movimento consecutivo, envolvendo cartas, que nada tem a ver com a correspondência entre Hélio e Lygia. Refiro-me à Arte Postal, que ganhou diversos adeptos e da qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo de arte conceitual abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas obras são de artistas que permanecem desconhecidos, enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.

Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: devido ao meu fascínio por canetas-tinteiro, adquiri o hábito de trocar cartas com aficionados do Brasil e do mundo. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Elas servem para amostras de tinta, aulas de caligrafia, relatos de experiências com marcas e modelos etc. Também servem para manter amizades. Pois o hobby me incentivou a enviar cartas inclusive a pessoas que não dão a mínima para canetas, e elas foram correspondidas. Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi com isso tudo que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.

Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e por conta das canetas descobri que o antigo sistema é também interessante, em sua medida.


Falando em demora, já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o país, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração. Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria impossível mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo correto simplesmente circula no canal inadequado.

Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão. Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.

Lygia Clark, de certo modo, antevia isso tudo. Tanto que, em 1971, afirmou ao jornalista que a entrevistava, recusando o título de cientista da arte: “É muito difícil hoje botar um limite nas categorias, mesmo entre coisas diferentes, como Ciência, Psicologia e Arte, que estão tendendo a convergir para um ponto só, que, no fundo, seria a comunicação”.

Pensamento bem contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, nenhum nó é mais importante do que o outro, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. As correntes de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século XX, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.

*Imagens: Metaesquemas, de Hélio Oiticica (fonte: Itaú Cultural – Programa Hélio Oiticica). Este texto foi publicado no Correio Popular em versão resumida.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

CURAR DE QUÊ?



"Existem muitos modos de ser mulher, de ser homem, de ser homossexual, de ser bissexual, de ser transexual. As classificações são sempre uma construção para orientar a percepção, organizar o mundo, e também para manipular e controlar. E a realidade sempre escapa a elas."

Este artigo de Cristina Veiga Judar veio na hora certa. Pois, por meio da arte, ajuda a pensar as atitudes equivocadas do Infeliciano e sua turminha machochô. Leia aqui: Entre ele e ela, quem? (Revista da Cultura nº 71)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A CULTURA ESTÁ NAS RUAS

A cultura está onde o povo está. Veja imagens aéreas dos protestos que têm mobilizado São Paulo. É lindo demais.

terça-feira, 18 de junho de 2013

DIREITO AO GRITO

Reproduzo aqui texto publicado pela editora Cultura e Barbárie. Clique nas imagens para ampliá-las ou baixe o arquivo .pdf aqui: Direito ao Grito





sexta-feira, 14 de junho de 2013

CORPO E SUBJETIVIDADE

"Nossas memórias e planos, nosso passado e possibilidades de futuro, existem na concretude de nossos corpos e de nossas ações. O corpo mais que todo, a se ultrapassar como ação orgânica e histórica, parte de um mundo-ação. Corpo não identitário, impossibilitado de isolar-se em um “si mesmo”. (...) Corpo-no-mundo, memória concreta do passado todo superfície, colapsado no presente, de onde se atualizam novas ações, as quais são o futuro no agora, a concretude do vir-a-ser."

"Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundoexpressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro."

"Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações."

"O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corpo-rizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformandoos. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista."

"O corpo é abertura para o mundo – e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada."

"Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um “si mesmo”, mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico."

Trechos colhidos em DA DIVERSIDADE: UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE SUBJETIVIDADE, de Luis Artur Costa e Tania Mara Galli Fonseca

Leia o artigo completo aqui: Revista Interamericana de Psicologia, vol. 42, n. 3

CONVITE PARA PALESTRA

O grupo de pesquisa de que participo está promovendo uma palestra na USP, seguida de debate, com o professor Dr. João Augusto Frayze-Pereira. O tema? IMPLICAÇÕES ENTRE ARTE E PSICANÁLISE. Quando? Sexta-feira próxima, dia 21 de junho, a partir das 16h30 (mais detalhes no convite abaixo). Vai ser bem legal. E vale trazer quantos acompanhantes quiser. Apareça!

Clique na imagem para ampliá-la.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

CORPO E CONSCIÊNCIA

"Importa insistir na ideia de que a consciência do corpo não nasce de uma operação que modifica o regime normal da consciência vígil, mas que constitui uma espécie de regime subjacente a todo o estado de consciência, mesmo o da mais pura consciência reflexiva. Não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência."

José Gil, em Abrir o Corpo

sexta-feira, 24 de maio de 2013

UNIDADE E DIVERSIDADE DOS SENTIDOS

"Um cego sabe exatamente pelo tato o que são galhos e folhas, um braço e os dedos da mão. Após cirurgia [que o faz enxergar] ele se espanta ao encontrar "tanta diferença" entre uma árvore e o corpo humano."

Maurice Merleau-Ponty
(1945, p. 259)


"Interrogando as coisas à sua maneira, cada um dos órgãos dos sentidos realiza uma síntese própria: é a diversidade dos sentidos. (...) No entanto, menos óbvia do que a diversidade é a unidade dos sentidos. Se, por um lado, as diferentes modalidades perceptivas nos dão diversos aspectos do mundo, constituem diferentes vias de acesso a um mesmo mundo. (...) E é necessário que todos os sentidos se abram ao mesmo mundo, do contrário os seres sensíveis com os quais eles nos põem em contato só existiriam para aqueles que os interrogam. Faltar-lhes-ia a plenitude do ser e não haveria condições para os percebermos como seres verdadeiramente existentes."

João A. Frayze-Pereira em Arte, Dor 
(2010, p. 175)

terça-feira, 21 de maio de 2013

TESTEMUNHA AURICULAR

É um projeto curioso, literalmente e literariamente. Literal porque exige prontidão para capturar conversas alheias, descobrir nelas o que há de incompleto, ambíguo e intrigante, ser enxerido mesmo. Literário porque as falas, devidamente apropriadas e transcritas, rendem livro, tornam-se públicas, voltam às ruas em novo formato. Ora, se um mictório retirado do banheiro se fez arte ao ser levado à sala de exposição, algumas frases recolhidas diretamente da boca do povo podem seguir a mesma lógica e se transformar em literatura quando fixadas no papel. Refiro-me ao livro Delírio de Damasco, criado às orelhadas por Veronica Stigger, a partir de conversas entreouvidas nas ruas da cidade.

O projeto, como eu dizia, veio ao mundo pela primeira vez a convite do SESC São Paulo, na Mostra de Artes de 2010. A proposta era realizar uma intervenção nos tapumes da unidade 24 de Maio, em construção na época. Veronica colou cartazes com frases soltas que ouviu durante suas caminhadas pelo local, devolvendo às ruas o que nelas se originou. O que há de escritura aí?, vão perguntar. Com certeza, os ouvidos afiados e o cuidado com a seleção dos textos – mais do que as canetadas propriamente ditas –, que conferem legitimidade ao projeto, situando-o nesse limiar entre a arte e as letras.


Tem frases para todos os gostos e desgostos, minha senhora, é pegar e levar. Exagerada, irônica, erótica, engraçada, polêmica... Sim, houve quem se ofendesse e enviasse reclamação ao SESC – mensagens que a escritora fez questão de ela mesma responder. Frases do tipo: “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?”, “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, “Um cara bacana. Mas ele não é normal. Se fosse, não dava o cu”. Conversas da vida privada, do baixo volume ou do baixo calão, que, escancaradas, ganham outra dimensão, expõem seus preconceitos, revelam sua violência disfarçada de intimidade. Por sob os panos, aceitamos numa boa a agressão que não nos atinge diretamente, somos capazes de nos divertir com ela e até de incentivá-la. Mas caem os panos e ninguém quer ser envolvido, ninguém sabe de nada, somos todos santos, com o livro do moralismo debaixo do braço.

De repente, aquilo que nos acostumamos a ouvir no dia a dia incomoda, provoca, nos força a recuar um passo. A piadinha fica séria, mordemos a língua. Somos levados a reagir, a refletir ou a tomar uma atitude qualquer. Esse é o fôlego do projeto de Veronica Stigger: revelar a violência implícita nas tagarelices por meio de outra violência, esta cometida sobre elas próprias, que consiste em arrancá-las da sua zona de conforto e explicitar seus significados mais secretos.


Tem ainda outra sequela. Ao menos aconteceu comigo. É prestar atenção no que se diz e também nas entrelinhas, naquilo que permanece subentendido. Desde o divertido contrassenso de “Você ouviu falar ou fui eu que disse?”, surgido num bate-papo com minha noiva, até a bronca meio paradoxal de um colega de trabalho que, louco da vida com a falta de respeito da equipe, gritou: “Vocês não têm educação, caralho?”. Sim, passei a dar trela à língua solta, a ouvir os palavrões que ela tem a compartilhar.

A multiplicidade de leituras daqueles textos é uma característica que os enriquece. Serve também de incentivo à criação espontânea, pois o que temos ali são pílulas ativadoras. A autora contou que leitores deram continuidade às frases, as quais também poderiam ser chamadas de Pré-Histórias, conforme as publicadas anteriormente na coletânea Os anões. Escrevendo começos, meios e fins no próprio livro, imaginamos quem proferiu, a quê se referia, com quem conversava, onde estava naquele exato instante. Em suma, completamos a cena, damos vazão à literatura que também nos cabe pró-criar.

“A minha língua é da boca pra fora”, diz o poema Língua Ordinária, de Davi Araújo. Concordo. É a língua que se ouve da boca do povo, que habita as ruas, que se faz comunicando, que beija mas também envenena, cuja vida imita a literatura e vice-versa, numa dialética apetitosa. A língua afeita a se perder por aí, a engolir seco, engolir sapo, enrolar-se em si mesma; língua que se fixa no muro ou no livro e muda de tom. O que você tem a dizer? Levante a voz!

A editora que publicou Delírio de Damasco não poderia ter nome mais pertinente: Cultura e Barbárie. Porque um pouco de cada – um pouco de cultura e um tanto de barbárie – apimenta nossa língua, arranca lágrimas, acentua o verbo, acrescenta um ponto de exclamação. Convém, portanto, prestar atenção ao que se diz. E também ao que se pensa antes de dizer, se for o caso, já que nem sempre isso acontece. Cuidado: a cidade tem ouvido!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

"É da dialética entre o indivíduo e a obra que nascem os significados, e é no corpo como aparato de percepção e significação que essas relações são reveladas."

Maria Alice Milliet
(em Lygia Clark: Obra-Trajeto, p. 92)

sábado, 4 de maio de 2013

HOFESH SHECHTER


"Arrebatador" é a palavra que melhor resume o espetáculo Political Mother, da companhia inglesa comandada por Hofesh Shechter, que assisti ontem no Auditório Ibirapuera. Com música ao vivo - das pancadas heavy metal aos violinos clássicos -, a banda dividia a atenção do público com os bailarinos, e todos dançavam juntos sob a opressão do totalitarismo. Havia momentos de escuridão, sentimentos de dor e compaixão, manifestação e repressão popular, tudo pura dicotomia, pontos de vida completamente apartados e extremistas. Lembrei o tempo todo do romance 1984 (George Orwell), daquele clima de sociedade vigiada e controlada, sobrevivendo à repressão. Pensei em campos de extermínio, em refugiados de guerra e também nos momentos singulares de força que surgem ali com objetivo de tornar a existência suportável. Tudo ilusão. Essa história toda sem narrativa, sem verbo, somente linguagem corporal e música, muita música alta para impulsionar os corpos e fazê-los falar. Foi lindo. O auditório estava lotado de uma maneira que eu jamais imaginaria. Se me perguntassem quantos brasileiros se interessariam por dança contemporânea, eu responderia "poucos". Mas seria uma resposta errada. Juntos, aplaudimos a companhia por longos e entusiasmados minutos. Saí de lá arrebatado.

Aqui tem mais informações sobre o festival: O Boticário na Dança

sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A ilusão não se opõe à realidade, ela é uma outra mais sutil, que envolve a primeira com o signo do seu desaparecimento."
Jean Baudrillard

quinta-feira, 2 de maio de 2013

É QUANDO/ONDE AINDA

Algo cresce na fenda do concreto. Em meio à rigidez árida da certeza brota uma forma de resistência. Forma frágil. Ela discorda do entorno, sente que não se enquadra. Cresce assim, sem saber por quê; sem objetivos definidos, o sentido da sua existência surgirá no/do processo, ao longo dos embates, tanto das boas experiências quanto das ruins. Sempre uma nova hipótese brota entre as milhares que abandonamos pelo caminho.

O que cresce ali, afinal? Não se sabe dizer, não há nada igual ao redor, apenas semelhanças e diferenças. Não há sinônimo. Comparação indefinida/inexata. Invenção. Não é exatamente nada, está deslocado do eixo pressuposto. Mas ainda assim é alguma coisa. Um ser. Não se pode negá-lo, não se consegue ignorá-lo. Ele incomoda/provoca. Mesmo quieto, inquieta. Estranhamente familiar. Por quê?


Uma das sensações mais angustiantes de se colocar entre territórios emparedados, estruturas estabelecidas e rótulos é a falta de chão. Viver na fenda, na heterotopia, quase sem apoio, sempre ameaçado pela altura do penhasco e a gravidade da queda. Estar sem pertencer. Não ser um exímio isso ou aquilo, o especialista mais especializado, a precisão mais precisa, a referência. Beber do múltiplo o seu desejo de completude. Ser um pouco de cada coisa e um monte de nada. Oscilar entre a ilusão e a desilusão por tudo aquilo que poderia ter sido. Assumir a indefinição como possibilidade de vida. O inacabamento. O caminho sem fim. O universo.

Parece fácil. Vão dizer que tudo pode, que é covardia, que o difícil é conviver com as restrições. Mas no lugar da cobrança exterior surge uma enorme exigência própria. É de fato mais difícil, convoca um olhar desautomatizado, atenção redobrada. Procurar a sombra onde a maioria se encanta com a luz, onde o excesso cega e ludibria. Caminhar por um piso que não se reconhece, sempre um novo passo no desconhecido. Deixar-se afetar e criar a partir das afetações. É bem mais sincero assim.


Transitar entre mapas. Transpassá-los. Saltitar aqui e ali, habitar e mudar, procurar sem saber o quê. Manter o compromisso com o projeto, seja ele nítido ou não; permitir que se transforme ao seu bel-prazer. É o que resta. Perceber as fronteiras como ligações, locais de troca e passagem; interlocuções ao invés de limites/barreiras. Vizinhança. Estar no meio é, na realidade, estar conectado a tudo/todos. Almejar a liberdade, buscá-la, mesmo que ela desapareça ao toque mais sutil, mesmo que evapore quando se tenta agarrá-la.

É diferente de ficar em cima do muro. Estar no “entre” é um posicionamento político, o limiar entre a vida e a arte. Não se encaixar, não se enquadrar, não se encaixotar, não se enquadradar. Existir num lugar inexistente. Onde ainda. Posicionar-se na fenda entre os partidos é diferente de não tomar qualquer partido. Livre de dualismos, dogmas, maniqueísmos. Livre da verdade/mentira, certeza/fé, certo/errado, é/não é, realidade/ficção, consciência/inconsciência, corpo/mente, permissão/proibição, meu/seu, individual/público, bem/mal...

Viver o outro como si mesmo. Superar os condicionamentos a que estamos acostumados, recusar a ideia de “normal”, como se o normal existisse absolutamente. Posicionar-se num outro plano é, ainda assim, compreender que existe relação; o pertencimento surge da exclusão, o reconhecimento se dá pela diferença. Tudo condiz, convive, coincide. A questão é aceitar, acolher, positivar.

Reconhecer a ambiguidade. Experimentá-la. Vê-la acontecer por aí. Perceber que tudo tem de assim e assado, um pouco de cada; valorizar isso, aprender a lidar com as emoções sem precisar traduzi-las verbalmente. Nem sempre a palavra dá conta da emoção de lidar.


Viver a multiplicidade dos sentidos, os significados que atravessam as coisas e as resignificam. As transformações constantes, sempre necessárias. As diferentes camadas de significado implicadas na mesma coisa. A poética da obra aberta, a vida como ser vivo, cada dia com um humor. Assumir a imprecisão. Do tempo, das narrativas, dos eixos, das categorias, dos métodos. O esgotamento impossível. Retirar tudo das gavetas e mandar pelos ares. Jogar, brincar. Demolir a pretensão de verdade e não erigir memorial no lugar, não eleger substituto. Ver a roda girar como fizeram Marcel Duchamp e John Lennon, enquanto os loucos tentam provar sua razão, justificar a existência com importâncias. Os loucos com quem convivemos cotidianamente; deixá-los para lá. Inventar com as sombras projetadas nas paredes, divertir-se com a maleabilidade delas.

Quando o sabor da carne ainda não foi estragado pela salmoura do dia a dia; é quando ainda se choca, é quando ainda se revolta, é quando ainda – poetizou Paulo Leminski. É onde ainda. Sim. Sonhar acordado. Viver a fantasia da realidade; o real de estrutura ficcional. Manifestar-se. Narrar a própria história nas entrelinhas. Mas não é exatamente disso que se trata.

Obs.: Este texto jamais seria escrito sem as conversas com a amiga Renata Monteiro Buelau e sem o grupo de pesquisa que se reúne, sob orientação da profa. Dra. Eliane Dias de Castro, no Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (FM/USP).

terça-feira, 23 de abril de 2013

TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA

Impressões anotadas logo depois de assistir à montagem de Antunes Filho, aqui reproduzidas:


Aquele comportamento estranho que é tão familiar. Os valores morais seguidos à risca, cegamente. Os relacionamentos postos de ponta-cabeça. Ação e relação. A esquisitice de ser. A emoção impregnada de maniqueísmos. Poder e não poder, permissão ou permissividade. Poder, poder! Poder ficar de joelhos. Deixa, vai?Interesses reunidos em prol de um único sujeito. Surpreende? Que nada. A baixeza, a baixaria, a bicharada. A raça animal. A dor do outro transformada em prazer pessoal e vice-versa. A falsidade ideológica e moral. O moralismo. A falta. O tango, o Édipo, a fratura exposta, a verdade posta à flor da pele vira drama, música, espetáculo. O castigo. Nelson Rodrigues.



"Sebastião Milaré, pesquisador teatral, apresenta ensaio de Toda nudez será castigada, dirigido por Antunes Filho, em homenagem a Nelson Rodrigues, no MIRADA – FESTIVAL IBERO-AMERICANO DE ARTES CÊNICAS DE SANTOS, durante o lançamento do Festival no Sesc Santos, em 15 de agosto de 2012." [fonte: SESC]

terça-feira, 9 de abril de 2013

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Clique na imagem para ampliar.
Olha só que surpresa boa! O Anuário Dasartes recém-publicado tem uma página sobre o artista Felipe Góes e cita um trecho do texto que escrevi para sua exposição em Porto Alegre. Já nas bancas, rs!

Site oficial: Dasartes 2013

terça-feira, 2 de abril de 2013

AOS VINTE E TANTOS

Li o poema abaixo e o adorei de imediato. Li e reli uma dezena de vezes então. Só depois percebi que renderia um ótimo pensamento para este meu dia de aniversário.

Penso nos milhares de sonhos que gostaria de já ter realizado com 29 anos. Penso que o tempo é curto demais para tanto.

Penso também que não quero envelhecer, não quero ser envelhecido, não quero pessoas que me envelheçam. Quero, ao contrário, somente a companhia de quem me faz crescer; todos os outros estão dispensados, podem voltar para a salmoura do dia a dia, o vazio do egoísmo, o subterrâneo da ética e da fé.

Penso nos milhares de sonhos acumulados, nos lugares a conhecer, nas obras a construir, nas descobertas a fazer. Penso nos 29 anos, tão fugidios! Penso demais, talvez.

Tenho meu próprio tempo. O tempo de uma vida pela frente.

Quando?

Agora.

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os dentes afiados da vida
preferem a carne
na mais tenra infância
quando
as mordidas doem mais
e deixam cicatrizes indeléveis
quando
o sabor da carne
ainda não foi estragado
pela salmoura do dia a dia

é quando
ainda se chora
é quando
ainda se revolta
é quando
ainda

Paulo Leminski, em Quarenta clics em Curitiba
(1976, aos 32 anos de idade)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

"Sei que isso soa estranho. Mas tais ideias me ocupam cada vez mais, e preciso de cada vez mais esforço para voltar ao cotidiano."

Milva, quando ela ainda era bem jovem
(conto do alemão Ingo Schulze publicado na coletânea Celular).

sábado, 30 de março de 2013

O EU E O OUTRO

Comecei a ler mais um livro sobre o artista suíço Alberto Giacometti. Já é o quinto ou sexto, nem sei dizer. Sua obra inspira, em especial porque é também sua própria vida, seus amigos e familiares, o ateliê e as questões de forma e expressão que ele remoeu dia após dia, até seu falecimento em 1966. Identifico-me com Giacometti. Não porque somos parecidos, mas justamente pela diferença que existe entre nós. Eu admiro sua obsessão, a profundidade de suas investigações estéticas e seu desprendimento em relação à obra pronta. Eu queria ser um pouco assim, transformar minha leviandade em projeto, concretizar as flutuações, abrir mão dos compromissos e me enfiar de cabeça na poética para nunca mais ser arrancado de lá. Claro que não poderei jamais fazer isso. Não sou Alberto Giacometti, não vivo como ele vivia, não penso como ele pensava nem nada disso. Tampouco tenho um projeto tão bem estruturado, tão consistente. O que me agrada na comparação é simplesmente descobrir o que não sou naquilo que ele foi, e do mesmo modo descobrir a mim mesmo nas lacunas que Giacometti deixou por preencher.

O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo. 

O que chama atenção nas criações de Giacometti é esse cruzamento de olhares. Sua obsessão por retratar uma pessoa da maneira como a via produziu séries de obras feitas e refeitas umas sobre as outras, criadas, destruídas e recriadas novamente. Os relatos do crítico James Lord reunidos no livro Um retrato de Giacometti nos apresentam esse método angustiante, é uma leitura que recomendo a todos que se interessam por processo criativo e trabalho de arte. O livro fala de um retrato encomendado ao artista, cuja produção não demoraria mais do que uma tarde, mas que se estendeu ao longo de meses e meses, até esgotar a paciência do retratado. Porque, na medida em que o pintor o conhecia melhor, mudava a imagem que fazia dele, mudava a percepção do sujeito, a qual se refletia na impressão pictórica. Giacometti queria pintar a verdade fundamental de seus modelos, um idealismo inalcançável tornado insuficiência e sofrimento. Terminava a sessão feliz com o resultado, a missão quase cumprida, bastariam uns poucos retoques. Só que na manhã seguinte tanto ele quanto o outro estavam diferentes, então a tela era apagada e recomeçada; de novo, de novo e de novo.

Nessas obras, os retratados olham para nós, que nos colocamos diante da tela. Nós devolvemos o olhar. Mas o que vemos, na verdade, é o olhar do artista sobre o assunto; sua expressão manifestada na expressividade daquelas figuras. Descobrimos, desse modo, o próprio Giacometti por meio das obras que deixou. Suas pinturas e esculturas são também retratos do próprio artista. Ele está contido nelas de maneira tão intensa que o termo "contido" não é justo – o artista se expande para além da superfície da obra. Vemos claramente suas questões estéticas, suas crises e suas vontades.

Percebo também a mim mesmo. Não no que Giacometti pintou, mas nos espaços em branco, no que não há de mim na obra, no que não está dado. Descubro minha identidade pela diferença, olhando o que não sou, imaginando como gostaria de ser. Converso com Giacometti por meio de suas criações; descubro a arte como um campo necessariamente intersubjetivo. O outro não é o meu limite, como se costuma dizer, mas a experiência que me faz existir como eu mesmo, consciente de mim. Um corpo reflexivo que olha e é olhado, que toca e é tocado. "Quando o outro reflete a minha imagem espelhada, é às vezes ali onde eu melhor me vejo", cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. E completa: "é na diferença sensível existente entre o eu e o outro que se afirma a identidade".

Leio mais uma vez sobre Alberto Giacometti. A obra é sempre aprendizado. Entre as linhas, nas fissuras abertas por sua vida e arte, descubro a mim mesmo, leio a história do meu próprio ser, que também se faz e refaz a cada dia pelo gesto poético de existir, de estar no mundo, de me colocar à disposição da alteridade. Descubro minha vocação no que falta ao mundo, e o mundo em tudo aquilo que falta a mim. É por conta disso que ele é tão grande, tão rico, tão entusiástico e misterioso.

sexta-feira, 29 de março de 2013


"Tudo o que eu conseguir fazer será nada mais que uma pálida imagem daquilo que vejo, e meu sucesso será sempre menor que meu fracasso ou talvez sempre igual ao fracasso. Não sei se trabalho para fazer alguma coisa ou para saber por que não consigo fazer o que quero." Alberto Giacometti

quinta-feira, 28 de março de 2013

É TUDO FRUTA PODRE

Cesto de frutas, cerca de 1595, de Caravaggio

É tudo fruta podre. São as coisa que dão pra gente comê. Só fruta podre, escura, colhida antes do tempo. Cheia de veneno, pra gente comê. Não tem gosto de nada. Tem gosto podre. Nasceu de onde isso? Foi a fruta podre que me deu isso aqui, ó. Na barriga, tá veno? Esse ponto verde, essa verruga. Foi a fruta podre. Vô fazê o quê? É o que tem, não tem mais nada, só isso. Na hora de comê, só tem isso, não tem mais nada. A gente vai comprá na xepa e tá caro, tá tudo imbutido no preço, imposto, safadeza dessa gente, essas coisa, tudo imbutido. Essa gente, é. Agora tem essa verruga verde na barriga. Eu, ela cresce, tá sabendo? Tô ligado, tô vendo, ela cresce sim. Tá maior todo dia, a verruga. Não tem o que fazer. Eu queria tirá, mas não tem o que fazer. O médico lá do posto disse pra esperá pra vê. Tô vendo, tô vendo, não tem mais o que fazê, tem que esperá. Eu queria tirá, não quero verruga verde não, não é de mim. Fica esse negócio aqui cresceno. Parece pequeno pra você, não faz essa cara não, você não sabe como é. Mas vai sabê, vai sabê. Você também só come fruta podre, tô ligado, tô sabeno. Paga caro, num paga? Paga sim, não tem opção, tamo tudo numa só, tudo junto. Eu e você. Puta que pariu. Não quero mais isso não, sabe, não quero não, fazê o quê? Todo dia, todo dia a mesma coisa. Cê acha que a gente quer? Acha que eu quero? FALA BOBAGEM NÃO! Não fala bobagem. Já basta as fruta podre, basta disso, não quero engoli mais merda pelo ouvido. E a verruga, que que eu faço? Quero tirar, não quero isso em mim não, quero rancá fora. Olha!, olha!, tá cresceno, viu? Cê viu? Voltei no posto de saúde, não sei se disse, o medico não tava não, ninguém sabia, o moço pediu lá pra esperá. Espera ou volta depois. Ai, moço, tira vai, tira daí. Tem que esperá, tem que esperá pra vê. Vê o quê? Tá podre, tá tudo podre, tô sabeno. Eu quero tirá, não quero mais isso não.

segunda-feira, 11 de março de 2013

ESTILO CRÍTICO

Quando um artista do porte de Ai Weiwei grava sua própria versão de Gangnam Style, convém suspeitar de que existe algo por trás desse aparente modismo. O chinês já foi agredido, preso e teve seu ateliê fechado pela polícia; hoje, permanece sob os olhares do governo e proibido de sair do país. Tanto que não pôde comparecer à abertura da maior retrospectiva de sua obra já realizada na América Latina, em cartaz no MIS São Paulo. Não é à toa que seu estilo Gangnam inclui uma particularidade à coreografia: algemas.

O vídeo em questão foi banido na China. Porém, como o próprio artista afirmou certa vez, “em algum momento, todos terão de entender que não é possível controlar a internet”. Para comprovar, você assiste a ele aqui:




terça-feira, 5 de março de 2013

O HOMEM DA CAVERNA


Eu me senti um tanto abandonado quando assisti ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, que o alemão Werner Herzog realizou com maestria num dos lugares mais incríveis do planeta. Descoberta no sul da França em 1994, a Caverna de Chauvet, como foi batizada, estava isolada há milhares de anos devido a um deslizamento de terra. Espaço de tempo amplo demais para ser compreendido por quem raramente vive mais de um século. Havia ali vestígios de homens e animais, antepassados nossos. São ossadas, pegadas, desenhos nas paredes; sonhos que ficaram esquecidos, dos quais praticamente nada sabemos. Quem foram aqueles homens? Por que fizeram os desenhos? Podemos apreender alguma coisa da caverna com o imaginário de hoje, tão diferente? Quais são os significados possíveis? Restam suspeitas, hipóteses, ficções – é com o que devemos nos contentar. Foi dessa lacuna que emergiu a sensação de abandono; da fissura na rocha e no tempo. Uma sensação de vazio, de solidão, de "falta de chão", como se diz, por causa da nossa origem desconhecida. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos; somos o "meio" de algo apenas imaginável.

"Para o ser humano, mais importante que viver é sentir-se real, mais importante que preservar a vida é dotar a existência de sentido", escreveu o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Revi minha caderneta e deparei com uma série de citações, colhidas ao acaso, com essa temática "existencial". A Caverna de Chauvet ativou certa inquietação em mim. Levantei a antena e comecei a captar sua frequência na tentativa de pertencer a algo tão maior e misterioso que se deixa facilmente confortar nos abraços do sagrado.

Quem eram os homens que passaram por Chauvet há mais de 30 mil anos? E os animais, já extintos? Ursos, mamutes, bichos enormes feitos para habitar um território infinito.

Lembrei do título de uma das obras de Bruno Munari exibidas na última Bienal de São Paulo: Reconstrução teórica de um objeto imaginário. Não é assim a nossa história? Uma construção hipotética que se refaz a cada descoberta. "Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá", escreveu Vanessa Carneiro Rodrigues no Jornal Rascunho. 

Herzog mostra as pegadas de um lobo junto das de um menino. E completa: jamais saberemos se a criança foi acuada pelo lobo, se eram amigos, se as pegadas foram deixadas com um dia ou com cinco mil anos de diferença. Todas são histórias possíveis e, a seu modo, existem. Discorrer sobre a verdade e a mentira não cabe; a caverna está além desse maniqueísmo.

"Tentando calcular a probabilidade de dúvida de uma certeza quase absoluta", brincou o escritor Felipe Borges Valério no Facebook. Um trabalho definidamente imprevisível. A ciência exata não basta. Um dos responsáveis pelas pesquisas em Chauvet conta a importância de mergulhar nas profundezes dos seus silêncios inquietos e depois se afastar. Mergulhar na memória que se solidificou a cada gota de água, calcificada na forma de colunas para sustentar um tempo antigo perdido no presente. Colunas que, em muitos casos, ainda estão na forma de devir. Deixar-se pertencer. Depois, afastar-se fisicamente, para a superfície; afastar-se também no tempo e na teoria. Buscar em outras culturas significados ocultos na experiência sensível recém-vivida, buscar pontos de vista menos reticentes, usar outra linguagem. Não para descobrir a verdade, mas justamente para não acreditar em afirmações rígidas, para não se render a elas. Ninguém saberá nada sincero a respeito da caverna se a observar com olhos acostumados com a luz do exterior.


O filósofo Maurice Merleau-Ponty propõe um tempo que não existe por si só, com autonomia, mas que se estabelece por relações: a experiência do tempo. "O passado não é passado nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva".

Em 1994, a caverna se reabriu a relações. A despeito de todas as câmaras e corredores que contém, ali dentro só conseguimos nos aprofundar em nós mesmos. "Mas o que somos nós?", quer saber a psicanalista Melanie Klein. "Tudo de bom e de mau pelo que passamos desde os primeiros dias de vida; tudo o que recebemos do mundo externo e tudo o que sentimos no nosso mundo interno. Se fosse possível apagar algumas das nossas relações do passado, com todas as memórias a que estão associadas, todos os sentimentos que desprendem, como nos sentiríamos empobrecidos e vazios!"


O escritor Mia Couto propõe uma solução para tal angústia que se baseia em aceitação e criação: "Temos sempre que explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. (...) Essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso".

É natural sentir-se pequeno diante da grandiosidade de Chauvet. Mesmo assim, como mostra o deslizamento de terra que a isolou e a preservou até hoje, devemos ter consciência de que tudo tem seu peso e sua medida, e que mesmo um pequeno deslocamento é uma revolução.