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segunda-feira, 31 de março de 2014

ETC.


Vira e mexe ouvimos falar de mundo plural, sociedade conectada, diminuição de distâncias, reformulação do tempo e das relações interpessoais. As gerações recentes estão mais interessadas numa oportunidade de futuro imediato, tecnológico em especial, do que em sustentar tradições. São ávidas pelo novo. Nem certa nem errada, essa característica tem pontos positivos e negativos, e aos poucos uma espécie de equilíbrio oscilante se põe em operação. O desafio consiste em fluir/fruir com eles sem efetuar uma "divisão policial do sensível" (Jacques Rancière).

Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do "especialismo", levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor – quem dirá do universo!


No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de "artista-etc." A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As "pessoas-etc." são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade – e na multiplicidade – que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.

Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o "etc." com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.

Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o "para quê serve", o "para quê sirvo".

Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.


Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam – no sentido iluminista de "dar forma", que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.

Não se ensina ninguém a ser "etc.", muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado – a doutrina –, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. "Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade" (Favaretto).

Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.

Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição – precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria – no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.

Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.

Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os "etc." que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.

*Diagramas de Ricardo Basbaum ilustram este texto.
Da série "O que não é"

19ª questão:
O QUE NÃO É VIOLÊNCIA?

domingo, 30 de março de 2014

sábado, 29 de março de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

quinta-feira, 27 de março de 2014

Da série "O que não é"

15ª questão:
O QUE NÃO É CORRETO?

OS SISTEMAS IDEOLÓGICOS SÃO FICÇÕES

“Os sistemas ideológicos são ficções (fantasmas de teatro, diria Bacon), romances – mas romances clássicos, bem providos de intrigas, crises, personagens boas e más (o romanesco é coisa totalmente diversa: um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: o maya). Cada ficção é sustentada por um falar social, um socioleto, ao qual ela se identifica: a ficção é esse grau de consistente que uma linguagem atinge quando pegou excepcionalmente e encontra uma classe sacerdotal (padres, intelectuais, artistas) para a falar comumente e a difundir.

‘[...] Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera’ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro.”

Roland Barthes
O prazer do texto

quarta-feira, 26 de março de 2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

sábado, 22 de março de 2014

Da série "O que não é"

11ª questão:
O QUE NÃO É COMPARTILHAR?

sexta-feira, 21 de março de 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

terça-feira, 18 de março de 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

quarta-feira, 12 de março de 2014

"Se até mesmo de um artista se cobram 'mensagens' e 'posicionamentos', quanto mais de um professor! (E o que parece não passar pela cabeça dos que cobram 'posicionamentos' é o quanto essa cobrança tem de imobilizante, de ordenadora, de controladora – portanto, de antiprogressista.)

(…) O discurso de Barthes, não sendo uma fala magistral mas uma escritura, nunca é uma ameaça de opressão, mas um convite ao jogo."

Leyla Perrone-Moisés
(a respeito da Aula, de Roland Barthes)
Da série "O que não é"

4ª questão:
O QUE NÃO É MANIFESTAÇÃO?

terça-feira, 11 de março de 2014