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segunda-feira, 10 de março de 2014

MUSEUS: TRADIÇÃO / REINVENÇÃO

Clique na imagem para ampliá-la

Adorei este comparativo entre 'tradição' e 'reinvenção' dos museus. É assunto para muito debate.

Dá para ver a imagem original, entre outras matérias, aqui: Revista Select [ano 4, ed. 16, fev./mar. 2014]
Da série "O que não é"

2ª questão:
O QUE NÃO É AMOR?

quinta-feira, 6 de março de 2014

O QUE NÃO É?

Penso em começar uma série de questões. Batizada "O que não é?" Porque é costume definir as coisas, botar cada uma em sua gaveta, no tal "devido lugar". Arte é isso, amor é aquilo, política é assim, pessoas são assado. Será possível pensar pelo inverso? Será que ele leva às mesmas conclusões?

1ª questão: O QUE NÃO É PRECONCEITO?

quarta-feira, 5 de março de 2014

A MINHAS OBRIGAÇÕES

Este trecho seria perfeito para a manhã de hoje, quarta-feira de cinzas. Só que eu estava trabalhando e não podia lê-lo, o que é uma pena. Também uma doce ironia.

A todos tenho que dar algo 
a cada semana e cada dia, 
um presente de cor azul, 
uma pétala fria do bosque, 
e então de manhã estou vivo 
enquanto os outros mergulham 
na preguiça, no amor, 
eu estou limpando minha redoma, 
meu coração, minhas ferramentas.

Pablo Neruda, Navegações e Regressos

BOLO DE ROLO

Na última vez que comprei bolo numa dessas casas especializadas, era sexta-feira e o lugar estava movimentado. Enquanto aguardava na fila, ouvi a atendente explicar para um homem que não havia mais bolos em estoque, apenas encomendas.

"Quanto você quer por um desses bolos encomendados? Eu pago", disse o cidadão. A atendente demorou um tempo para entender a proposta e, quando caiu em si, explicou que os bolos não estavam à venda, e ficaria feliz por fazer uma encomenda para ele na próxima vez. O homem bufou e saiu da loja batendo o pé feito criança contrariada.

Não me surpreenderia se esse cliente fosse o primeiro a querer ver os mensaleiros presos pelo resto da vida.

Isso não significa que desejo a liberdade para aqueles criminosos. Alguém duvida que o STF fez uma manobra política lastimável para livrar a cara deles? Desejo, sim, que todos os corruptos e corruptores sejam devidamente condenados pela falta de ética de seus atos. Inclusive aqueles que os praticam em lojas de bolo.

domingo, 2 de março de 2014

GENTE DE BEM

Casa de Brodowski (1943), de Candido Portinari

A vizinha tinha certeza de que havia uma família naquela casa, porém não sabia o que ruíra primeiro. Que tenha sido a família!, disse com certa compaixão. Mas logo deu de ombros, preocupou-se com a panela no fogo e encostou a porta. Ouvi dois trincos serem acionados e averiguados para evitar novo incômodo.

Outro vizinho mencionou parentes no exterior. Eles poderiam me ajudar. Exterior onde? Não sabia. Deve ser Estados Unidos, muita gente quer ir pra lá. Quem pode vai. Ainda mais nesses tempos de agora, essa confusão toda acontecendo. Perguntei da família que morava ali. Ele não tinha muita informação, e a maior parte era inventada. Diziam que havia brigas, parece que o casal não se entendia direito, descontavam tudo nos moleques, coitados. Parece que o marido não era muito chegado no batente, veja só o estado que a casa ficou, um desleixo só, nem se aguentou de pé! Parece que a mulher era da vida, andou de graça com um sujeito do bar ali debaixo, foi o que disseram. Ficou desmoralizada. Parece também que os moleques nunca iam pra escola, ficavam à toa por aí. Esse negócio de ficar à toa não dá certo não. Não é coisa de gente de bem. Onde já se viu?

Um jornal da época estampava, na primeira página, a casa no chão, do mesmo jeito que estava hoje, como se tivessem acabado de fotografar. Tragédia: casa desaba e moradores permanecem soterrados. O texto dizia que até o fechamento da edição as buscas permaneciam sem sucesso, e que os bombeiros trabalhavam duro com auxílio de cães sem jamais abandonarem a esperança. Dava para ver também um monte de curiosos ao redor dos escombros.

Nos dias seguintes veio uma atriz de novela gravar publicidade no coreto da central, aquilo mexeu demais com a cidade, todos ficaram alvoroçados. Depois começou o Carnaval e não encontrei qualquer outra notícia sobre o ocorrido.

Segundo o registro na delegacia, a casa desabou sem ninguém dentro. Não havia detalhes. Cidade pequena, sem peritos para investigar, ficou por isso mesmo. Ninguém tampouco apareceu para reivindicar seus direitos, coisa que não surpreendia; muita gente larga a vida aqui pra se arranjar na capital. O policial começou a desconfiar do meu interesse no assunto e preferi recuar antes que encontrasse suspeito de um crime que sequer existiu.

A dona do mercadinho chamou o casal de excêntrico. Vinham pouco, compravam rapidinho, não puxavam assunto. Pagavam direitinho, nunca pediram fiado. Deviam ter muito dinheiro. Achava que tinham vindo para tratar alguma doença, essas coisas de cidade grande, sabe? Pra repousar. Tinham ficado maluquinhos com a correria, a violência, o trânsito. Ela via TV, sabia como era. Uma loucura, não tem como aguentar muito tempo. A moça era bonita. Não sorria muito, tadinha. Mas era bonita mesmo assim. Perguntei da casa. Não sabia, nunca tinha ido lá ver. Diziam ser uma casa muito engraçada, não tinha nada. Talvez meu marido possa ajudar, ele deu um pulinho ali e já volta. Se você quiser esperar, à vontade.

Na última vez que voltei à rua, um velho lavava a calçada com sua mangueira molenga. Logo se pôs a papear. Eram boa gente, sabe? Nunca incomodaram, nunca fizeram escândalo, ficavam vivendo a vida deles. Gente discreta, só isso. Gente de bem. Dizem que tinham uns probleminhas aí, mas isso todo mundo tem, certo? Se cada um cuidasse do próprio umbigo, a vida seria mais fácil.

Perguntei se o casal trabalhava, o que faziam na cidade, como era a rotina. Sei não. Nunca falei com eles. Ficavam aí, saíam pouco, acho que trabalhavam em casa mesmo. Tinham dois filhos, dois meninos. Eles brincavam no quintal. Acho que tinham problema de dinheiro, talvez dívida no banco. Ouvi mais de uma vez os dois discutirem, gritaram alto, essas coisas de marido e mulher. Só que com essa distância não dava pra saber do que falavam, e eu também não ia me intrometer. Acho que era dívida porque a casa foi deteriorando e eles não davam jeito. Teve um vendaval aí que arrancou as telhas e eles deixaram assim mesmo, tudo esburacado. Teve o muro que cedeu ali do lado, tá vendo?, e ficou caído lá. O mato cresceu, os meninos deixaram de bagunça. Pelo menos eu não vi mais. A pintura mofou, o portão todo enferrujado. Lâmpada que não acendia mais, parede trincada por todo canto. Até que aquela noite fez um barulho danado e, quando eu cheguei aqui, a casa tava no chão. Vieram os bombeiros, teve gente que chorou, tinha carro de imprensa, foi uma coisa de doido. Uma balbúrdia. Todo mundo muito triste. Pensar que gente tão boa podia morrer desse jeito?

Sim, é verdade, não encontraram nada. Eu disse pra eles, na ocasião, que não tinha mais ninguém morando ali. Ninguém tinha certeza, mas só podia ser. Fazia tempo que não via nem ouvia ninguém. Acho que se mudaram. É difícil fazer mudança sem ninguém ver, né? Mas acho que fizeram sim. Sei lá. Tem gente que diz que a família morreu junto com a casa, que morreu antes, que morreu depois. Tem gente que fala em milagre, outros falam em assombração. Eu não acredito nessas bobagens não. O povo fica inventando coisa. Se as autoridades disseram que tá tudo certo assim é porque tá tudo certo mesmo, isso é fato. Quem sou eu pra duvidar?


Ps.: Não tem nada a ver com o texto, mesmo assim aproveite e visite o site do Projeto Portinari [de onde tirei a imagem acima], que é excelente: www.portinari.org.br

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

“A ‘inocência’ moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico (...). E, no entanto, se o poder fosse plural (...)? Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente nos Estados, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.”

AULA
Roland Barthes

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

FEITO

cidadão de bem

muito lugar
comum

muitos lugares
como
se muitos
fossem
bons

como se
muito fosse
bem

muito bem, muito bem

tapinha nas costas
tapa na oreia

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A IMAGEM INTOLERÁVEL


"É preciso pôr em causa a opinião corrente segundo a qual esse sistema nos submerge numa vaga de imagens em geral - e imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Essa opinião é amplamente aceita porque confirma a tese tradicional de que o mal das imagens está em seu número, na profusão que invade sem possibilidade de defesa o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão de consumidores democráticos de mercadorias e imagens. Essa visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de acordo com o funcionamento do sistema. Pois os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação de televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de 'descriptar' a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão."

Jacques Rancière
O ESPECTADOR EMANCIPADO
[A imagem intolerável]


EQUAÇÃO DOS AFETOS

o que se mede
não tem fim
que se define
assim

mate-
mática

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

POT-POURRI (À MODA DA CASA)

Pot Pourri (1897), Herbert James Draper

cenas cruéis
com requintes
de humanidade

cenas vulgares
com pitadas
de piedade

cenas finais
com leves toques
de eternidade

cenas irônicas
recheadas
de ambiguidade

cenas profanas
à moda
da artificialidade

cenas picantes
apinhadas
de religiosidade

cenas poéticas
apuradas
na ociosidade

cenas imperdíveis!
bem passadas,
da pior qualidade

cenas banais
com fervor
de realidade

cenas póstumas
em repouso
por arbitrariedade

cenas improváveis
seguidas à risca
e leviandade

cenas rocambolescas
pré-aquecidas
por cretinidade

cenas imprestáveis
defumadas
com naturalidade

cenas inspiradoras
congeladas
com especificidade

cenas impossíveis
salpicadas
de passividade

cenas grandiosas
ensopadas
de moralidade

homem
manjar dos deuses

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DISSENSO

"Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência."

Félix Gattari, em AS TRÊS ECOLOGIAS


"Dissenso quer dizer uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sob as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência. É que toda situação é passível de ser fendida no interior, reconfigurada sob outro regime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste o processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contatadas que vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. É a aplicação da capacidade de qualquer um, da qualidade dos homens sem qualidade."

Jacques Rancière, em O ESPECTADOR EMANCIPADO

domingo, 2 de fevereiro de 2014

TODOS POR UM

Você sai às ruas para exigir um país mais digno. Vem um policial militar e passa por cima de toda dignidade. Refiro-me ao caso brutal do soldado da ROCAM que, após espancar uma garota completamente desarmada de más intenções, subiu com sua moto na calçada e passou por cima da vítima, colocando abaixo qualquer protocolo, bom senso ou moralidade. Em entrevista posterior, ela confessou que nem se lembrava do atropelamento, tão atordoada que estava pelos socos e pontapés. Uma estudante do ensino médio que saiu às ruas para pedir dignidade. Pois bem. Esse PM volta para sua casa, na periferia, com a farda na mochila para não chamar atenção. Ele tem medo. Ele gostaria de viver num país mais digno, em que as pessoas, inclusive policiais, fossem respeitadas. Em que todos estivessem seguros de verdade.


Quando escrevo este texto, alguns dias antes da publicação, as notícias dizem que a Corregedoria da Polícia Militar recolheu outros vídeos além daquele que originou a denúncia, gravado a partir de uma janela alta. O investigador explicou que as câmeras de segurança dos prédios vizinhos mostram a vítima sozinha, indo embora da manifestação, quando é alcançada por uma tropa e espancada covardemente, sem esboçar qualquer reação. Foram oito ou mais policiais fardados e armados contra uma garota de 18 anos. Depois de a atropelarem com a moto, os agressores continuaram a chutá-la no chão, e a abandonaram sem prestar qualquer socorro. As testemunhas que filmaram o crime resgataram a vítima com vida, e por sorte ela agora está se recuperando.

O atropelador é um criminoso, sem dúvida. Ele agiu com cúmplices. O mínimo que se espera é que sejam identificados e punidos conforme a Lei. A PM não precisa desse tipo de gente. A sociedade tampouco.

Existe outra questão aí: eles se aproveitaram da situação suscetível da moça para aplicar as "medidas corretivas" a que gostariam de submeter todos os manifestantes. Do mesmo modo, ao praticaram seu crime, colocaram em xeque a corporação inteira, suas falhas e inaptidões. Um por todos.

"O desafio consiste em não ser polícia", Eduardo Sterzi publicou no Facebook. Claro que ele não se refere à profissão somente, mas às atitudes de todos nós, em geral, que tendemos a reprimir, julgar, querer justiça com as próprias mãos, fazer mau uso do poder, violentar pessoas física e moralmente. O desafio consiste em resistir a isso tudo. Porque fomos, de alguma maneira, doutrinados a acreditar que a ordem deve ser mantida a qualquer custo. A preservar "os bons costumes" (quais mesmo?). A acreditar que o castigo resolve problemas, que a vingança deve ser buscada, que a PM deve atacar ao invés de proteger o povo manifestante. Somos doutrinados a emitir opiniões condenatórias sem conhecer o caso, sem compartilhar dele – porque, na prática, todos são culpados, exceto nós mesmos, não é assim? Nós somos santos, o inferno são os outros.

"Ao invés de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão", propõe Félix Guattari. Ao invés de sustentar esse sistema violento e presunçoso, é sempre a hora de revê-lo, reinventá-lo, adequá-lo às novas realidades. A tradição da PM, caso seja o empecilho, deve ser revistada e transformada, provavelmente abandonada, se é de interesse da corporação não cair em desuso. Sua pertinência no contemporâneo depende disso.

O medo da farda não opera mais conforme a princípio. Porque o povo tem medo da farda que deveria protegê-lo, porém oprime. Os soldados têm medo da farda porque denuncia sua profissão, expondo-o ao crime, e também porque é mais forte do que suas próprias convicções, obrigando-o a agir contra a vontade, quando esta existe, em prol de uma corporação falida. Por outro lado, os criminosos, fardados ou não, não têm qualquer medo, ao menos são o suficiente para impedir suas ações.


A polícia precisa morrer. Não no sentido literal, mas no trágico. Conforme escreve Sterzi em Aleijão: "Foram tantos / que me mataram / Não tenho bocas / para agradecer". Morrer como ideal ultrapassado, rever princípios e protocolos, proteger o povo durante as reivindicações, que é uma das mais importantes provas de democracia. Entender que elas buscam um bem maior, do qual todos, policiais inclusive, poderão usufruir.

"A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem 'proveito' a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade", escreve Guattari.

Por sua vez, os manifestantes não podem agir como fazem as forças opressoras, sustentando o sistema que criticam. A estratégia deve ser outra. Nesse sentido, os rolezinhos foram eficazes: usaram do banal, da facilidade de mobilização e da legalidade para denunciar preconceitos, truculências e falta de estrutura em diversos níveis. Expuseram questões graves, antes reprimidas, e nos puseram a pensar nelas. Expuseram a insuficiência das instituições e a incapacidade dos gestores.

Concordo com Jacques Rancière, para quem "política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. (...) É a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem 'natural' que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-se sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. (...) A política é a prática que rompe a ordem da polícia".

Gostaríamos de contar com o apoio da PM, não com o ódio. Nós, povo brasileiro, policiais inclusive, temos coisas mais urgentes para odiar e melhorar.


Obs.: Vale a pena ouvir a entrevista com o pai da menina atropelada à rádio Band News. Fica mais fácil entender o que aconteceu e o que está acontecendo: entrevista com Boechat

sábado, 1 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

o que é vivo
é finitivo
definidamente
sou oco
porém são
loucos?
quem não és?
são
foram tantos
que me mataram
foram-se
todos

DESEJO PUERIL

queria morar numa rua
com nome de poeta
onde errar fosse coisa certa


rua de tripla mão
para ir, vir, devir

      não julgue vazio
      meu desejo pueril

nessa minha rua
todos que passassem
deixariam um rastro
de boa recordação

de presente
levariam sentimento
sem matéria
nem razão

uma rua de gente
justa e honesta
em que todas as memórias
fossem pura invenção

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

AFIA A DOR

assovia,
      afiador,
            assovia

sua gaita me lembra os tempos
de casa,
quando pertencia ao chão
e o dividia
com quem não merecia

saudade, sim
tristeza,
      é verdade

afia!
      a dor

Fiu-ru-lin
Fiu-ru-lon
a pele
expele
o ex

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

VELÓRIO

Protestos recentes em Kiev

"Numa noite fria do inverno passado aconteceu um incêndio na casa de um homem que, poucos dias antes, havia matado seu cachorro a pauladas. Ele era um homem forte e por isso conseguiu salvar todos seus pertences sozinho, carregando-os da casa para o jardim. Assim que terminou, uma centena de cachorros de todos os tamanhos e formas correu diante da luzes oscilantes, vindos das trevas ao redor, e prontamente sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes como se fossem os donos. Além de não deixarem o homem chegar perto e rosnar ferozes quanto ele tentava bater neles, ficavam estáticos, olhando impassivelmente para as chamas. (...)"

CONTOS DE LUGARES DISTANTES, de Shaun Tan


Veja mais fotos impressionantes dos protestos em Kiev.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

UM DOS MELHORES POSTS DESTE BLOG

Encontrei, no mesmo livro, grandes exemplos de um dos maiores e mais costumeiramente empregados VÍCIOS DE LINGUAGEM da imprensa e crítica brasileiras. E li apenas a contracapa e as orelhas, por enquanto.

Será que apenas eu me incomodo com isso, que é uma das mais relevantes necessidades de pompa e diferenciação dos últimos séculos?

1. "As entrevistas (…) constituem um dos textos mais significativos sobre a pintura do século XX."

2. "O resultado é um acesso privilegiado à mente de uma das principais figuras artísticas do século XX."

3. "(…) um dos críticos ingleses mais influentes de sua época."

4. "(…) análise precisa da obra e do pensamento de um dos mais criativos pintores do século XX."

Trechos retirados das Entrevistas com Francis Bacon, de David Sylvester, publicadas pela editora Cosac Naify. Mas poderiam ser de qualquer outro livro. Faça o teste.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

HÁ TEMPOS

Ano novo, novos tempos. Pode o tempo ser novo ou antigo? Ou somos nós que envelhecemos e rejuvenescemos? Parece que há uma inversão de lugares. Afinal, o tempo foi inventado como método de organização das nossas atividades, só que na maioria dos casos é a vida que acaba por ser formatada de acordo com uma escala de tempo exterior a ela. Ficamos escravos da própria criação. O feitiço se volta contra o feiticeiro. Ora, não se trata de feitiço e sim de relógio, agenda, prazos a cumprir. Uma rigidez antinatural que se impõe, com toda a sua ordem racionalista, em busca do progresso da nação, da evolução do homem. É assim que deve ser? Espero que não. Melhor continuar esperando.

Dear Photography - Molly
* * *

O último romance que li em 2013 foi Barba Ensopada De Sangue, escrito por Daniel Galera. Demorei quase seis meses até terminá-lo, e nesse meio-tempo li outros livros. No início, a demora incomodou, fazendo acreditar que nada acontecia na história. Foi após cem ou duzentas páginas que entendi: estava acontecendo sim. Estava acontecendo nada. O que é muito diferente. O nada já é alguma coisa. Na correria do contemporâneo, o nada irrita, mais do que entedia. A hora que não passa.

A propósito, a história trata do tempo lento de um personagem que deseja escapar das grandes ondas que carregam todo mundo junto para um buraco perigoso à beira-mar, onde ocorre a rebentação. Um tempo individual de solidão, reflexão, revelação. Quando percebi isso, aceitei. Logo depois, o nada encontrou um rumo. E as últimas cem ou duzentas páginas foram alucinantes. É mesmo um ótimo livro, muito bem escrito. Cheio de pulso vital.

* * *

Meus melhores textos – ou ao menos aqueles de que gosto mais – não são escritos num ímpeto criativo, num único afluxo de inspiração. São aqueles que de início eram notas esparsas, sem qualquer relação proposital, e que vão aos poucos se aglutinando, ganhando consistência, tomando jeito. Na sequência, são revisitados uma porção de vezes, escritos e reescritos, cortados e acrescidos. Palavras sobrevivendo ao tempo, produzindo sincronia.

Os textos que me agradam mais são aqueles que jamais deixam de serem escritos. Se fosse necessário classificá-los, esse seria o critério.

* * *

Dear Photography - Dawn
"Lá em casa tem um poço. Mas a água é muito limpa."

Letristas como Renato Russo fariam do Brasil um país melhor. Nem precisaríamos de muitos; dois ou três já seriam uma diferença enorme.

John Lennon é outro exemplo. Minha música favorita dos Beatles chama-se A Day In The Life. Um dia na vida. Caso houvesse um disco apenas com ela, seria completo. Mas eles gravaram o maravilhoso Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band para acompanhá-la – não satisfeitos, foram além da expectativa. É por esse motivo, entre outros, que permanecem relevantes. Que perduram.

Sinto falta de vozes sensíveis, sinceras, desbocadas. Fora de protocolo. Que se fazem música pela potência poética/política dos seus dizeres.

Gosto da expressão Há Tempos, que dá nome a uma canção famosa da Legião Urbana. Porque ela traz uma ideia imediata de passado distante, e acaba por bagunçar essas relações. Gosto também porque sugere a existência de tempos diversos, muitos deles consecutivos, acontecendo ao mesmo tempo. Como as estrelas, que morreram há uma infinidade de anos e ainda são vistas no céu. Porque sua luz chega a nós apenas agora. Observá-las é o mesmo que observar o passado acontecer bem diante dos nossos olhos.

* * *

Escrevo com caneta-tinteiro em época de wi-fi e tablets. Deus, como sou retrógrado! Escrevo com pena e observo a tinta, ainda líquida, na superfície do papel. Ela demora a ser absorvida. Parte evapora e se perde no mundo; parte fica retida, incorporada. Assim é o tempo da descoberta, do aprendizado, do conhecimento. Tempo de apreensão.

Uma terceira parte daquela tinta é entrevista quando viro a página e começo a escrever do outro lado. Onde as sombras do que já escrevi me espreitam. Não consigo compreendê-las direito, já não me pertencem mais.

Se derramo água, o texto borra e se mistura, transborda, espalha pela mesa, mancha tudo o que toca. Está sempre à disposição do acaso para resignificá-lo. E para ser resignificado.

* * *

Meus pais fizeram o pedido na lanchonete de uma pequena cidade de Minas Gerais. Talvez por acaso, ouviram o garçom gritar ao cozinheiro: vai rápido porque o cliente é paulista!

O tempo corre diferente em diferentes lugares. Em alguns ele anda. Em outros se espreguiça e dorme.

Dear Photography - Rebecca

* * *

O relógio é um acordo entre os homens. Quando a maioria concorda, adiantamos ou atrasamos uma hora de verão. Para criar ou dispensar tempo. Acho isso incrível.

* * *

Se o tempo não for exato, cronológico, na medida do relógio, como será? Sensível, na medida do homem. Na medida do ser. Claro, a tarde demora a passar para o entediado, porém é curta demais para o atarefado. Os minutos sofridos na angústia, o deleite da infância que já não fazem mais.

Se não estivermos em acordo com o tempo, estaremos em desalinho. Deslocados, de modo que se possa olhar para ele e perceber o que ainda opera e o que já não serve mais. Melhor assim. Ao invés de inseridos numa escala de tempo exterior, podemos nos posicionar com o tempo; estar sem a ele pertencer. Com-temporâneos.

Não ser sujeitos do tempo. O tempo é nosso, é de cada um à sua maneira. O tempo nos pertence e com ele fazemos o que convier. Ou assim seria.

* * *

Tive um professor baiano na faculdade que dizia: tudo que é gostoso é pra ser feito devagar. Eu ria, na época. Precisei de mais de década para compreendê-lo.


Obs.: As fotos que ilustram este texto foram surrupiadas do site Dear Photography, que reúne imagens do passado sobrepostas a cenas do presente feitas por quaisquer pessoas. Em outras palavras, trata-se de um site colaborativo. Você também pode participar com suas fotos. Basta acessar o link para verificar o procedimento.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

ESTÉTICA DO NU

A noiva posta nua por seus celibatários, mesmo (vulgo O grande vidro),
1915-23, de Marcel Duchamp
"O que o nu revela é que não há nada a revelar, ou melhor, que ele é somente a própria revelação, o revelador e o revelado ao mesmo tempo; é o gesto que desnuda. O divino nu (das estátuas gregas), o pecado nu (da inquietude cristão em relação à carne) e a pele nua – esses três aspectos do nu ocupam de muitas maneiras o pensamento atual." (p. 12)

"Foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada. O corpo é reinventado mediante um ideal que lhe é externo e que o deslocará da natureza para a pólis: o corpo do cidadão era um artifício a ser criado, que deveria ser treinado e aprimorado. Por isso, todas as figuras humanas do Pathernon são jovens; o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização. Compreende-se, dessa maneira, que o nu artístico é relacionado a características morais, tornando-se modelo de virtudes e qualidades subjetivas que marcam toda a arte europeia ocidental. O nu faz abstração da dimensão do particular e do próprio ao manifestar fixidez fora do tempo: a beleza. É precisamente por causa dessa vontade obstinada do homem de dar forma visível ao humano que o nu seria o signo distintivo da sociedade ocidental, de sua metafísica milenar à procura de uma imagem sensível do ideal. As estátuas gregas representam o ideal mais elevado, uma vez que elas são o signo tangível do poder de uma cultura capaz de extrair o ideal abstrato da humanidade. O nu não representava um corpo, mas uma ideia: a ideia de homem." (p. 14)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

sábado, 21 de dezembro de 2013

DES-PROPOSITADA-MENTE

O olho cacodilato (1921), de Francis Picabia

Penso que deveria escrever um conto de Natal. Este ano haveria tempo hábil. Historinha breve, só para dizer que escrevi. Pelo menos isso. Já faz tanto desde o último! Não é apenas questão de tempo, claro. Foi uma espécie de desencanto. Sem vontade não há ideias. Sem boa vontade não há solução. Fui resolvendo minhas inquietações de outras maneiras. Além do mais, o Natal se tornou um feriado qualquer, do qual só me dou conta uma semana antes, quando decidem as tarefas de cada familiar. Tarefas de ceia: peru, tender, essas coisas. Sempre as mesmas. O que mais me irrita na tradição é também o que mais conforta. Natal é um período melancólico, de baixa produção, de vontade de nada. Vou escrever sobre o quê? Fábulas e sonhos não cabem mais, o mundo cresceu, acordou. Realismo também não cabe. Para que vou escrever sobre a "realidade" se a vida lá fora é mais interessante? Alguém quer ler no Natal? Essa é uma pergunta que cabe. Alguém tem paciência? Tenho impressão de que ninguém mais lê nada, ninguém além do meu círculozinho de amigos. Nada há para dizer a eles que já não tenha dito antes. Não vale escrever sobre isso.
      Deixo, então, a pena deslizar sobre o papel. Deus, como sou retrógrado!, uso caneta-tinteiro em época de wi-fi e smartphone. Mero fetiche. Não tenho espaço, menos ainda teria a droga do meu conto de Natal. Fico sem ideias, desconstruindo um personagem qualquer. Que, no fim das contas sou eu mesmo, disfarçado de ficção. Os pensamentos se esvaem, vou junto deles. Alguém estaria interessado nesse eu mesmo, super sem graça, banal, entediado? Precisa ler muito para entender, sabe?
      Foi o que imaginei.
      Os pensamentos se esvaem, vou junto. Um conceito se desfaz. Um sujeito se fragmenta. Escrevo com pena e observo, sozinho, a tinta ainda líquida na folha de papel. Ela demora a ser absorvida. Fico olhando. Isso sim vale. Parte evapora e se perde no mundo, parte é incorporada. Parte da tinta se vai, a outra fica retida, uma terceira se conecta às demais páginas do caderno numa ambiguidade só. Vejo as sombras do que já escrevi espreitarem do outro lado da folha. Porém não consigo compreendê-las. Não me pertencem mais.
      Derramo água sobre este texto. Despropositadamente. Um copo cheio de otimismo. A tinta se dilui, borra, espalha por toda a superfície do papel, escorre na mesa, mancha a madeira, suja os dedos, tinge a roupa, preenche as falhas, estraga tudo, põe tudo num estado de urgência. Esfrego a tinta no meu corpo inteiro. Pego a água suja de texto e espalho no rosto. Me parece bem melhor assim. Eh... agora sim.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O fotógrafo Georges Pacheco preparou o estúdio e deixou o disparador da câmera na mão de modelos cegos, que podiam escolher o momento em que a foto seria feita. Mesmo sem enxergarem, nota-se que alguns se preocuparam com a maneira como seriam vistos. Curioso, não?

Veja as fotos aqui: Le regard des aveugles

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Clique na imagem para ampliá-la

"Método terrorista, radicalidade, transgressão absoluta são normalmente os termos utilizados para qualificar ou aferir o grau de confrontação das obras de [Artur] Barrio com o mundo do trabalho, o mundo cotidiano da conveniência e das normas sociais. As situações com as trouxas ensanguentadas têm a política brasileira como pano de fundo, em alusão a corpos esquartejados. Apesar da alusão a restos de corpos, o trabalho não se resume a uma simbologia da morte; parte, sim, da reação das pessoas diante da morte, diante do inesperado, mas não se restringe ou se deixa enclausurar em mera exemplificação. Não é a analogia entre trouxas e corpos que dá sentido ao trabalho, mas o atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre erotismo e morte; o que interessa é a detonação de sentido advinda da situação. Barrio lida com a transgressão do interdito da morte, uma vez que ela é redimensionada pela pulsão de vida. É o transtorno desse atravessamento que perturba a consciência ao se experimentar separada do mundo previsível e ordenado." (p. 50)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

Mais informações: Enciclopédia Itaú Cultural | Blog Artur Barrio

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ACREDITAR EM NOEL

Não me recordo da época em que acreditava em Papai Noel. Quando escrevia cartinhas, tentando convencê-lo de que, apesar das artices e malcriações, eu me comportaria melhor no ano seguinte, e não me importaria se recebesse um presentinho de incentivo. Suponho que a argumentação fosse mais ou menos essa. Do mesmo modo, não me recordo de quando deixei de acreditar nele. Havia certas suspeitas, compartilhadas entre os primos, quando passamos a observar a lógica impossível do evento. Quer dizer, Papai Noel visita todas as casas do mundo numa única noite? Se dividirmos essas bilhões de pessoas em 24 horas, quantas ele precisa visitar num minuto? Como pode? Além do mais, ele trabalha só um dia por ano? Consegue ler as cartinhas, escritas em tantas línguas diferentes? Por que algumas crianças ganham presentes melhores do que outras? Por que muitas não ganham presente algum? Cadê as renas? Noel mora no Pólo Norte ou no shopping center? Aquela barba é esquisita, quem se arrisca a puxar?

Busto do filósofo grego Sócrates
Já faz tanto tempo! Todavia ainda me recordo de quando voltei a acreditar na bondade do velhinho, e percebi a tolice que foi suspeitar da sua existência. Um despropósito da razão; dessa mesma lógica racional que transforma os homens em padrões de comportamento, dogmas e protocolos. Que só acredita vendo, que exige a verdade absoluta, que toma decisões com base em estatísticas. Que sustenta preconceitos, hipocrisias, burocracias e sistemas obsoletos, ao mesmo tempo em que esvazia símbolos, afetos e intuições. Que desacredita os sentimentos mais naturais do vivo.

Foi ao ler O Brincar e a Realidade, de Donald Winnicott, que me dei conta do que tinha acontecido. Um trecho em que ele comenta o valor simbólico de certos objetos. Assim: “Se considerarmos a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico-romana, ela é o corpo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo, de fato, o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo”. Em outras palavras, determinada coisa pode ser acolhida de maneiras diferentes, dependendo de quem lida com ela e do contexto cultural no qual está disposta. No caso citado pelo psicanalista, a hóstia pode ser uma representação ou o corpo nu e cru; pode existir como realidade ou ficção, conforme seu valor simbólico for evocado.

No caso de Noel, penso que a ordem lógica do mundo nega sua possibilidade de existência. E diminui sua potência simbólica a uma anedota infantil, sustentada enquanto a ingenuidade da fantasia permitir.

Junto isso com um pensamento de Michel Foucault, que propôs a autoria, num contexto mais contemporâneo, não como um lugar estático, mas como uma função assumida e abandonada conforme convier. Nesse sentido, todos podem ser, momentaneamente, autores dos feitos. Trata-se de uma atitude perante eles; um modo de agir. Não uma questão de posse nem de direitos autorais.

Isso significa que Papai Noel não pertence a ninguém específico, mas à comunidade inteira, e somos responsáveis por ele, se concordarmos que é relevante. Compreendi, assim, que sua existência não pode se pautar no raciocínio lógico, mas no simbolismo. Claro, pois não se trata de um velhinho de carne e osso, de roupão e trenó, e sim de uma maneira de ser e estar no mundo, de partilhar desse sensível. Uma função político-social que podemos assumir com intuito de transformar a situação vigente. Isso ocorre numa época determinada – o Natal – porque está de algum modo atrelada à tradição, embora possa operar o tempo inteiro, em todos os lugares.

Penso que é dessa maneira que deveríamos falar de Noel às crianças, quando percebemos os primeiros movimentos para desmascará-lo. Explicando que o disfarce não é uma mentira, mas uma fantasia, uma representação de certa vontade transformadora. A evocação do “espírito natalino”. Ímpeto que independe de religião. Nesse sentido, Papai Noel existe sim. Como uma ficção que criamos para combater a dureza do dia a dia, as desigualdades sociais, a descrença na força afetiva do povo. Se não sobrevive ao avanço da idade, talvez seja porque a ideia de doação como proposta de vida encontra tamanha resistência que se esfacela antes mesmo de adolescer. Imagino que cabe a experiência de tentar mantê-la ativa. E o tempo dirá se vale a pena.

Noel está abandonado à voracidade do capitalismo, deturpado por ações de marketing de todo o tipo, completamente associado ao consumo. Se pudermos reverter esse quadro, me parece que só teremos a ganhar. E não estou me referindo a presentes. Não são eles que importam, afinal. É o ato de se doar.

Quando alguma criança espertinha diz que Papai Noel não existe, respondo que existe sim. Porém não da maneira como a TV ou a “verdade científica” o vendem para nós.

Carl G. Jung explica que, “como diz o cético, símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, ‘representações coletivas’ – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias”.

Eu acredito em Papai Noel. E num feliz 2014 a todos.

Ho ho ho.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PINTURA ENCARNADA

Estudo a partir no retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez – Francis Bacon

"Desde essa época de juventude, sua pintura não se afastou mais de mim. Ela agarra na gente, vive na gente. Seus 'personagens em crise generalizada' – crise moral, crise física –, como escreveu o crítico inglês John Russell, vivem ao nosso lado e nos lembram incessantemente que a vida é essa corda esticada entre nascimento e morte. Essa vida que nos traz visões exacerbadas, um vizinho de hospital, de asilo, às vezes de nós mesmos. O terror está presente, instalado em personagens que berram em silêncio. Uma crueldade veemente e visível, revelada por homens emparedados numa moldura espacial. A qualquer momento podemos nos deparar com o atroz, um acidente nos reduz a um pacote de músculos abertos. Na expectativa, possível, de uma ressurreição."

Franck Maubert, Conversas com Francis Bacon

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Varal (1993), de Adriana Varejão

"Hoje, a tecnologia assume o centro de um debate reflexivo sobre o seu domínio e predomínio na nossa sociedade. Não se trata de apresentá-la como vilã, mas a ética assume importância fundamental num mundo em que realidade e ficção parecem se fundir. O avanço técnico-científico, com as suas imagens de clones ou ciborgues, vem somar-se ao nosso contexto econômico e político, sobretudo na passagem do milênio, para instaurar uma nova subjetividade, hoje cada vez mais longe da ideia do sujeito autônomo postulado pela Modernidade. Hoje a subjetividade encontra-se em estado de fragmentação e disruptura, e simboliza a condição superlativa em que vivemos. E a arte, sem dúvida, rebate essa condição."

BOUSSO, Vitoria Daniela (curadoria). Por um fio. São Paulo: Paço das Artes, 2007. Catálogo de exposição.

domingo, 24 de novembro de 2013

sábado, 23 de novembro de 2013

VOCABULÁRIO DA RESISTÊNCIA

O governo chinês vasculha a internet atrás de informações compartilhadas por seus opositores. Para evitar a censura, os ativistas empregam termos que soam de maneira similar e até mesmo inventam uma espécie de "vocabulário da resistência", revisto a todo instante dadas as descobertas que lhe tiram o efeito.

"Com frequência usam homófonos, quer dizer, palavras que soam (quase) iguais. O exemplo mais famoso disso provavelmente é o 'cavalo de lama da grama' ['grass mud horse' em inglês], que se tornou uma espécie de mascote virtual entre os blogueiros que criticam o regime. O truque está no fato de que, em chinês, 'cavalo de lama da grama' soa quase exatamente como 'foda a sua mãe' ou 'foda a sua pátria-mãe' – coisa que seria censurada não apenas com base na obscenidade. Depois, há também os 'caranguejos de rio' ['river crabs']; este é um codinome para os censores do Estado, porque a palavra soa quase exatamente igual a 'harmonioso' ou 'harmonizar' – a descrição oficial da censura. Ai Weiwei, ao saber que seu estúdio de Xangai iria ser demolido, no segundo semestre de 2010, organizou um 'banquete de caranguejo de rio'. Foi uma clara estocada nos censores, da mesma maneira que o são as charges mostrando cavalos de lama da grama (representados por alpacas) vitoriosos em batalhas contra os caranguejos de rio."1

Aqui tem alguns exemplos de como termos cotidianos se tornam subversivos:

http://chinadigitaltimes.net/space/Grass-Mud_Horse_Lexicon

1JANSER, Daniela. Ai Weiwei como blogueiro e artista de internet. In: STAHEL, Urs (curadoria). Ai Weiwei – Interlacing. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 2013.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

CAMADAS DE UM TRABALHO ARTÍSTICO

Tinha ido à Pinacoteca de São Paulo por ocasião de uma palestra, se me lembro bem. Havia um horário a cumprir, e eu chegara trinta minutos antes. Decidi circular. Uma espécie de túnel cruzava o Octógono de um lado até o outro. Para quem não conhece, trata-se de um átrio localizado no centro do edifício, cuja forma geométrica lhe rendeu o nome. É costume que projetos especiais o ocupem (intervenções, esculturas de grande dimensão, performances etc.), ao invés de exposições convencionais. Dessa vez, havia um túnel branco, feito de madeira. De tempos em tempos, ouvia-se um estrondo, uma espécie de baque seco e potente, refletindo-se nas paredes ao redor. Fiquei curioso. Dei a volta até encontrar a entrada. O túnel se afundava em escuridão; não podia ver nada além de cinco ou seis metros à frente. O som, ali, era bem mais impactante. A identificação dizia "Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela". Entrei.

Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela. Vista interna da instalação.

Percorri toda a extensão no escuro, com cautela, tentando não esbarrar em nada nem ninguém. Segundo o artista, o objetivo do canal era executar uma "compressão prévia do sujeito". O volume do som crescia, enquanto o intervalo entre as batidas ficava mais curto. No fim, quando os olhos se acostumaram, me encontrei numa sala toda pintada de preto, com uma gigantesca imagem projetada numa das paredes e diversas pessoas acomodadas em pé ou no chão para observá-la. Descobri um espaço livre ao lado do subwoofer (caixa de som grave) que produzia aqueles estrondos e fazia tudo ao redor vibrar. No vídeo, apenas um pedaço de pele humana – uma fotografia, com enquadramento tão invasivo que mostrava os pelos, os poros e cinco pintas dispostas de modo matemático, formando esquinas de um quadrado mais um ponto no meio, bem centralizado.

Planta baixa do projeto de instalação
A foto se movia: emergia do centro até ocupar a tela inteira, sobrepondo a si mesma repetidas vezes. A cada sobreposição, uma pancada sonora; um incômodo evidente e cada vez mais veloz. Experiência angustiante, sem dúvida; algo claustrofóbica também. O som tomava conta do corpo, fazendo-o vibrar, ainda que sem vontade, sem querer se entregar à experiência. A imagem chamava atenção para as vibrações na pele, para o reflexo daquelas sensações no restante do organismo, para o andamento do coração em descompasso com o ambiente. Um conflito se impunha, e o resultado era a instabilidade, o desequilíbrio, a subserviência do sujeito em relação ao sistema dominante. Com a aceleração da imagem e do som, a angústia crescia. Eu queria sair da sala a todo custo, ao mesmo tempo em que precisava saber como aquilo acabaria.

Quando o ritmo das pulsações se aproximou do insuportável, tudo terminou de repente. O vídeo sumiu, o subwoofer silenciou. Fiquei no escuro. Tive a sensação ser empurrado para longe de mim; também certo alívio e solidão. Permaneci mais alguns minutos sentado, incorporando a experiência. Aos poucos, as pessoas deixavam a sala, caminhando pelo túnel na direção da luz. Segui junto com elas.

Na mesma semana, falei sobre a instalação com os alunos do curso de Terapia Ocupacional, na USP. Estudávamos os tecidos constitutivos do corpo, suas relações com o mundo, as camadas da pele, a reverberação, o pulso vital, percepção e sentimento, vivências disruptivas. Era possível pensar isso tudo por intermédio da experiência estética proposta na Pinacoteca.

Túnel no Octógono da Pinacoteca do Estado de SP.
Vista externa da instalação.
Meses depois, adquiri um livreto de entrevista, em que Alexandre Estrela comenta a obra. Meu entendimento a respeito dela se ampliou de maneira considerável. Pois aquilo que eu pensava serem pintas eram, na realidade, uma tatuagem comum entre presidiários portugueses. Os cinco pontos representavam o sujeito encarcerado; um homem entre quatro paredes. A instalação fora montada pela primeira vez em exposição promovida por uma companhia de seguros, batizada de Putting fear in its place (Colocando o medo em seu devido lugar). A entrevista envereda por ilusão de ótica, hospital do câncer, geometria, carga simbólica de tatuagens e seus limites como manifestação artística, divergências culturais, sistema carcerário, repetição serial como método de trabalho, realidade e veracidade, passividade do público do cinema, técnica e tecnologia, linguagem, marca e afetação, indústria do medo, entre outros assuntos. Tudo isso vinha à tona por conta de uma criação artística, cujas camadas de significado foram sendo dissecadas, aprofundando-se na direção de um núcleo – "centro conceitual e perceptivo", que perdura independentemente da montagem realizada, nas palavras de Alexandre. Uma "base de leitura", quer dizer, uma essência que se preserva qualquer que seja a roupagem empírica a envolvendo.

Levei meses até descobrir essa dimensão do trabalho, e tenho certeza de que é possível ampliá-lo ainda mais. Vale lembrar que estamos falando de uma só instalação. Tamanha a força de certas pesquisas contemporâneas.

Curiosamente, num curso sobre arte e filosofia que se realiza agora na mesma Pinacoteca, dois senhores na plateia, em dias distintos, revelaram-se encantados com as produções artísticas atuais. Os relatos foram similares: ambos descobriram a arte contemporânea somente com a chegada da aposentadoria, estavam impressionados com o seu potencial de conhecimento, crítica e reflexão, ao mesmo tempo em que frustrados por terem sido apresentados tão recentemente. Por que ninguém falou de arte contemporânea antes? Por que não se trata disso nas escolas? Por que tão pouca divulgação e tanta leviandade da mídia?

Faço minhas as palavras dos colegas.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

THE BOOK IS ON

Alguns números para refletir:

O brasileiro lê, em média, 1 livro por ano.
O alemão lê 25.

68% dos brasileiros são analfabetos funcionais.
7% são analfabetos completos.

Se entendeu os dados acima, você faz parte dos 25% restantes da população.

Uma editora com quem trabalhei disse que jamais teve problemas com roubos de carga. Nem um sequer. Afinal, se já é difícil vender livros de maneira lícita, imagine no comércio informal ou no mercado negro.

Por experiência própria, sei que boa parte dos usuários de internet, frequentadores de redes sociais, profissionais gabaritados de empresas riquíssimas, sim, boa parte deles sequer consegue se fazer entender. Não sabe escrever e-mails, conjugar verbos, ligar uma ideia na outra.

Ao contrário de muitos românticos, eu não acredito que livros mudarão o mundo. Nem acho que livros são mais importantes do que cinema ou TV. Ou qualquer outro meio de comunicação. Existem livros de todos os gêneros, bons e ruins. Assim como existem filmes e programação de todos os níveis.

O mercado de livros tem se expandido no Brasil. Mas o que as pessoas estão lendo? E o que estão fazendo com essas leituras?

Escolas transformam o mundo, sem dúvida. Professores transformam o mundo. Dedicação transforma o mundo. Boa vontade...

Penso que uma sociedade decente se constrói com vontade política e olhar crítico. Se, no caso do Brasil, isso não vem dos livros, será que vem de outros lugares?

No meu caso, e se é preciso apostar em alguma coisa, prefiro continuar com os livros.

Façam suas escolhas.

domingo, 10 de novembro de 2013

À RUA O QUE É DA RUA!

Uma amiga compartilhou este relato no Facebook. 

O autor comenta as intervenções urbanas que testemunhou no Minhocão, na cidade de São Paulo. Para quem não conhece, trata-se de um viaduto bizarro, que transformou a rua numa espécie de submundo, fez o comércio ao redor falir, transportou os carros para as janelas dos apartamentos, dividiu o bairro entre ricos de um lado e pobres do outro, além de resultar em teto para pessoas em situação de rua.

O texto fala de intervenções urbanas, ocupações artísticas, políticas culturais, do que fazer, das maneiras de fazer, de a quem pertence a cidade, das questões éticas... É bem interessante, forte, atual. Vale uma reflexão. Ou mais.

Copiei e colei tudo na íntegra, exceto por alguns detalhes de formatação. Desconheço o autor, e acredito que a foto também tenha sido feita por ele. Se alguém souber seu nome, ficarei feliz por citá-lo.

Enfim, achei que este é um bom assunto para o momento. Cá está:




À RUA O QUE É DA RUA!!!

Nos últimos dias o espaço do Minhocão, no centro da cidade de de São Paulo, tem sido destaque na grande mídia por causa de intervenções que atualmente ocuparam visualmente as pilastras do lugar. A cobertura é sempre tendenciosa, é bom colocar o outro lado da história. Se inicialmente foi projetado para ser um local de passagem o Minhocão, foi aos poucos, e cada vez com mais intensidade, sendo ocupado por pessoas e formas de intervenção marginalizadas pela sociedade e pelo poder público, como moradores de rua, graffiteiros e pichadores. Muito tempo já passou desde que esse processo de ocupação do minhocão começou a acontecer. Muitos moradores de rua já foram enxotados de lá como bichos e voltaram, muitos graffiteiros e pichadores já foram presos ou esculachados pela polícia por pintar seus pilares e voltaram e também muitos artistas plásticos presentes nas galerias já intervieram neste espaço, mas na maioria das vezes respeitando quem já ocupava o local. Trata-se claramente de uma disputa política, entre a cidade que queremos e a cidade que o poder público tenta impor para nós.

Nas ultimas duas semanas uma boa parte das intervenções presentes nos pilares do Elevado foram substituídas por uma série de fotos gigantes de moradores da região. Para isso TODAS as intervenções presentes nestes pilares foram cobertas com tinta cinza. Coincidência, ou não, também pude reparar que os moradores de rua também não estão mais lá. No fim de semana passado estava passando pela região com a Magê e encontramos um grupo de pessoas colando as fotos e registrando o momento. Decidimos fazer alguns questionamentos para entender o que estava rolando. Estavam presentes a artista, algumas pessoas ligadas ao projeto e algumas pessoas que me pareceram pessoas contratadas para colar as fotos e pintar as pilastras de cinza. Depois de algum tempo pedimos para conversar com a artista e as coisas se esclareceram. Descobrimos que se tratava de um projeto em parceria com o SESC e com a Prefeitura, para ocupar a região, e que ela havia sido convidada para expor suas fotos no local. Perguntamos se ela sabia que aquele espaço já estava ocupado. E que esta ocupação era fruto de diversos anos de disputa entre várias pessoas e a prefeitura, tais como graffiteiros, pichadores e artistas plásticos que desejavam realizar intervenções públicas. Questionamos também se ela sabia que entre as pessoas que realizam suas intervenções nas rua de São Paulo existe uma forma de proceder em que se respeita as intervenções realizadas anteriormente nos muros, não colocando seu trabalho por cima delas, e que este proceder era fundamental para que o espaço visual da rua fosse ocupado de forma democrática, pois só assim seria possível que o trabalho de graffiteiros, pichadores e artistas plásticos mais consagrados e experientes coexistisse com os de pessoas que estão se iniciando neste mundo da intervenção urbana, sem depender de seleção prévia ou curadoria de ninguém, e muito menos dos projetos políticos da prefeitura.

A artista nos respondeu que sabia das formas de proceder da rua mas que, apesar de saber disso, o convite feito pelo SESC para fazer essa intervenção era “A SUA CHANCE”. Disse que não teve escolha, e que por causa disso tinha pedido autorização para pintar os trabalhos de 2 dos graffiteiros que ocupavam o espaço (tinha pelo menos uns 20 ou 30 graffiteiros com trabalhos nos pilares apagados). Ela nos disse também que seu trabalho era político porque questionava o uso daquele espaço e porque dava destaque para a imagem de moradores da região, principalmente moradores de rua.

Algumas reflexões sobre isso:

– Essa intervenção no Minhocão desrespeitou não só os graffiteiros, pichadores e artistas que tinham ocupado o espaço das pilastras do Minhocão, desrespeitou também todos os outros que de alguma forma lutaram por anos para ocupar este espaço. Para além disso atropelou também a história e o registro das formas de interação de uma série de outras pessoas que convivem neste espaço e que também marcam de forma ativa estas pilastras. A Prefeitura e o SESC estão dizendo que a população não tem condições de contar sua própria história, que ela só tem valor quando registrada por um terceiro, no caso a fotógrafa.

– O espaço do Minhocão sempre foi ocupado e teve vida, diferentemente do que a cobertura da mídia tenta demonstrar. Se está vida é marginalizada e incomoda os autoproclamados cidadãos de bem já é outra história. A solução do problema não está em varrer os moradores de rua para longe dos olhares dessas pessoas, muito menos em tentar cobrir de cinza as frases cores e nomes que aparecem nos muros, pois essas são vozes também fazem parte da vida urbana, e não se calarão.

– Vemos mais uma vez aqui a ideia capitalista da oportunidade individual atropelando a ação coletiva. A ideia de que esta é a minha chance e eu não tenho escolha mostra isso. SEMPRE TEMOS ESCOLHA.

– O trabalho da artista é sim político, aliás, nada contra a ideia de colar fotos gigantes de moradores da região na rua, mas tudo contra a forma como isso foi feito. Se tivesse sido feito de forma independente e respeitando as intervenções anteriores seria algo bem interessante. Mas feito de forma institucionalizada e aliada à prefeitura e sua dita política de “revitalização” do espaço a obra muda sim de característica. Para mim deixa de contestar a ordem vigente para reproduzi-la. Não sei se a artista tem dimensão de tudo isso (me pareceu que não), mas espero que ela descubra de que lado ela está sambando.

– Por ultimo, é bem interessante como a intervenção feita sobre uma das fotos teve repercussão e incomodou a grande mídia. Teve jornal que embaçou a foto na parte da frase escrita para que não se pudesse ler, teve outro que colocou uma bola vermelha em cima dela censurando-a explicitamente. E teve outros que disseram que ali não havia nada...só vandalismo e rabiscos feitos por gente sem inteligência com a intenção de estragar a obra da fotógrafa que tinha dado vida no Minhocão. Se alguns fazem jornalismo manipulador e baseado em preconceitos que os impedem de ler imagens e pesquisar a história, pelo menos recente de um lugar, e se acham inteligentes é preciso rever essa ideia de inteligência.

A RUA ESTÁ VIVA SIM! SEMPRE ESTEVE! E SEMPRE ESTARÁ!!! À RUA O QUE É DA RUA!!!