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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

poucas vozes contam a História
algumas sem nome
outras tantas sem rosto
muitas sem palavras
cantam historietas
as mais diversas

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

donos da verdade
que coisa esta!
ah se soubessem...
até
sua ignorância
tem
prazo de validade

terça-feira, 21 de outubro de 2014

ENQUANTO É TEMPO

o ócio se diz
criativo
porém tardio
tanto
que enquanto
o espero
entedio

nada concreto portanto
quero
inventar somente
do fundo do tédio,
do fruto da mente
a via

que venha insolente
criatura
tão logo puder
– sem ódio
contraproducente –
cria!
antes que eu
me vá

ausente.



O tempo é uma ficção. A gente o inventa como convém e às vezes o sustenta por mais inconveniente que tenha se tornado. Essa estrutura de jornadas de trabalho, de descanso aos finais de semana, trinta dias de férias, idade para aposentadoria, isso tudo foi inventado recentemente, da Modernidade para cá, e aos poucos quer ser reinventado. Talvez porque a estrutura simplesmente não funcione mais, em especial nas grandes cidades, onde a alta carga horária, as longas distâncias e a dificuldade de deslocamento determinam que outras atividades sejam realizadas enquanto se deveria dedicar à produção. Consultas médicas, pagamento de contas, correio, burocracias, estudo, questões pessoais, compras em geral, manutenção da casa, entre outras.

Surgem aqui e ali algumas tentativas de adaptação: home office, horários alternativos, banco de horas, jornadas reduzidas e mais focadas etc. Assim como há demandas oriundas das novas tecnologias que embaçam a fronteira entre folga e prática profissional, provocando o exercício de atividades fora do período determinado: whatsapp, emails, internet em geral, que mantêm todo mundo conectado e põem em questão as velhas relações trabalhistas entre empregadores e proletários. Afinal, em que momento estamos trabalhando? Quando deixamos realmente de trabalhar?

Transforma-se até mesmo o conceito de trabalho: ao invés da produção quantitativa, resquício da Revolução Industrial, há também o qualitativo, que não se mede com facilidade e prova seu valor por outras vias, opera por outros sistemas.

Claro que isso não se aplica nem reflete dilemas de todas as categorias ou de todas as cidades, mas, no geral, há demandas por novas organizações de tempo. Isso não é difícil perceber.

Existe o tempo natural, relativo ao nascer do sol, à movimentação dos planetas, às estações do ano, às luas e marés. Por sua vez, existe também o tempo cultural, do relógio que nem sempre conseguimos acompanhar.

Em São Paulo, por exemplo, levo entre trinta minutos e duas horas para chegar ao escritório, conforme as situações adversas que fazem da rotina algo imprevisível. O tempo cultural, atualmente, é inventado para sobreviver neste mundo de excesso: jornadas em que se troca o dia pela noite, supermercados 24h, bancos 30h, finais de semana utilizados para solucionar pendências remanescentes dos dias úteis e assim por diante. A escola dos filhos é incompatível com o horário dos pais, que precisam se desdobrar. O atraso deixa de ser exceção. O comércio passa cada vez menos tempo fechado.

Às vezes o estresse surge mais por conta da desconexão dos tempos do que pela quantidade de tarefas. Surge também a ansiedade por viver algo antecipadamente, por se adiantar aos problemas. Somos dominados pelo imediatismo: a necessidade de fazer primeiro, de chegar antes da concorrência, de ser inédito sempre.

Exploramos o máximo do tempo. E somos explorados em contrapartida. Panetones começam a ser vendidos cada vez mais cedo, perdem o simbolismo e se tornam um produto de consumo como outro qualquer. Frutas de época agora estão disponíveis durante o ano inteiro. As luzes da granja são usadas para acelerar o crescimento dos frangos, coitados. O homem transforma o tempo conforme convém ao momento, sem muita noção das consequências.

Essa correria traz uma nova ordem. O consenso parece impraticável, e a busca é por espaço para o dissenso. Ao invés de forçar métodos do passado, precisamos reinventar o presente. Pode ser que dê certo. Só não sabemos até quando.

Descobri que em alguns lugares virou moda a prática do nadismo: um tempo que as pessoas reservam para não fazerem nada, ou seja, uma tentativa meio paradoxal de resistirem aos excessos do dia a dia. Paradoxal porque tem hora marcada para acontecer. Imagino uma agenda lotada, na qual um dos compromissos é não fazer nada durante uma ou duas horas por semana. Ou seja, uma agenda ainda mais lotada porque o fazer nada é outro compromisso assumido. Uma tentativa ilusória de liberdade que acrescenta um novo nó à corda da escravidão.

Com ou sem nadismo, os prazos a cumprir continuam implacáveis. A sabedoria popular diz que tudo tem seu próprio tempo. Pode ser que sim. Será que temos paciência para esperar?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ESQUERDA DE DELEUZE



– O que é ser de esquerda para você?

 – Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não veem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo, depois a França etc., até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro se percebe o horizonte.

– Mas os japoneses não são um povo de esquerda…

– Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode durar mais. Não é possível essa injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser ou devir minoria. Não deixar devir minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário.

– É vazio.

– O homem macho adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

[transcrição da entrevista com Gilles Deleuze disponível no vídeo]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A TRANSDISCIPLINARIDADE E A MODERNIDADE

"Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo – que crê que o real se pode deixar fechar na ideia, e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias."

ROQUE THEOPHILO
A Transdisciplinaridade e a Modernidade

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

já dizia o inferno:

pode vir
crente
que eu estou
fervendo

['homenagem' a Leviano Fidelix]

sábado, 4 de outubro de 2014

na minha época
significa algo
existente ou não
mais
e quem o diz
ainda existe
ou já
desistiu?

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

HOMEMFOBIAS

polícia mata
duas pessoas
e meia
toda noite
em SP

(deixa a outra
metade
para o dia
seguinte)

enquanto
a outra
mata
todo dia
em SP

porque volta
e meia
policia
também

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

ÚLTIMAS PALAVRAS ANTES DAS ELEIÇÕES

Domingo, votarei em causa própria. Votarei num índio para senador, numa tetraplégica para deputada federal e num gay para deputado estadual. Não sou índio, tetraplégico ou gay. Mas acredito que quem defende essas causas precisa de espaço na política. E não adianta votar em candidato que promete colocá-los no colo e cuidar com carinho. Que promete ajudar. Eles não precisam de dó. Precisam de espaço. Estão lutando por uma sociedade mais justa. Se conseguirem, minha causa própria estará satisfeita.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

DISSOLUÇÃO | FELIPE GÓES

O texto abaixo foi escrito na ocasião da mostra Dissolução, individual de Felipe Góes realizada pela Central Galeria de Arte entre 3 de outubro e 8 de novembro de 2014. Ele se originou na entrevista concedida pelo artista durante os preparativos da exposição.

Pintura 204 (2013)

 A pintura de Felipe Góes é um fazer que por vezes se confunde com desfazer. Que revela ausências. Pois as camadas de tinta, de tão sutis, acabam por remover parte do que já estava antes. Esse gesto delicado desemboca num embate árduo, em que incluir é retirar, pintar é apagar, criar é desconstruir, recordar é esquecer.

Suas paisagens são inventadas. “Ideias de paisagem”, como o artista costuma dizer. São sugeridas e sugestivas. Não partem de um esboço ou de uma imagem pré-concebida – elas se fazem diretamente na tela, no gesto poético, no ato criador. Não existe objetivo a ser alcançado; a finalidade é o próprio percurso, o próprio fazer da arte. Essa profusão de pensamentos e sentimentos que se materializam na pintura não termina, ela continua na seguinte, como se todas fossem uma única, dividida em etapas, numa pesquisa não linear, numa errância.

Pintura 195 (2013)

Esta mostra na Central Galeria apresenta criações recentes, produzidas durante o último ano. Elas enfatizam o processo de dissolução da tinta, das imagens e da própria atitude do pintor nos tempos atuais. Em vez de imagem definitiva, resta nelas um registro de intenções, ou seja, um instante do processo criativo que o artista decidiu preservar. Algumas intenções se concretizam, outras ficam sugeridas, muitas se esgotam e desaparecem.

As pinturas habitam esse território ambíguo, frágil e poético da efemeridade. Ao invés de afirmarem verdades, dispõem-se como espaço para incoerências. Paisagens abertas onde o espectador pode se perder; que põem em questão a cultura e a natureza, procurando não as diferenças entre elas ou as exclusões, mas suas ambiguidades, seus pontos de contato e embaçamento.

Pintura 205 (2014)

É difícil apreendê-las. No sentido de que não cabem numa definição, não significam nada exatamente. A apreensão é tão difícil quanto indesejada – elas preferem ser experimentadas, vivenciadas.

Quando percebemos nelas uma paisagem, imediatamente somos afastados da matéria pictórica; quando nos atentamos à tinta que escorre pela tela, a paisagem se esvai, levando com ela toda pretensão de certeza.

Pintura 208 (2014)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Convite para exposição DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes

Todos estão convidados para a abertura da mostra Dissolução, de Felipe Góes, na Central Galeria de Arte, para a qual eu dei uma singela contribuição. Na próxima quinta-feira, a partir das 19h. Encontro vocês lá!


"A tinta diluída. A memória difusa. O significado que quase vem à tona antes de mergulhar novamente no desconhecido. Figuras que se desfazem até flertarem com a abstração, até revelarem do que são constituídas: manchas de cor, pinceladas imprecisas, criações e dissoluções. As pinturas de Felipe Góes habitam esse território ambíguo, frágil e poético da efemeridade. Quando percebemos nelas uma paisagem, imediatamente somos afastados da matéria pictórica; quando nos atentamos à tinta que escorre pela tela, a paisagem se esvai, levando com ela toda pretensão de certeza, instigando quem se dispõe a olhar." Eduardo A. A. Almeida

sábado, 27 de setembro de 2014

VERDADE, UMA ILUSÃO

Jovem triste num trem (1911),
de Marcel Duchamp
Posso entrar? Posso entrar aqui? Posso entrar? Posso? Posso entrar?

Entrou. Continuou falando alto. Palavras soltas, frases desconexas. Difíceis de entender, se fosse o caso. Talvez não quisesse ser entendido. Talvez não fizesse questão da lógica.

Posso sentar? Posso? Posso sentar aqui? Posso sentar, posso?

Sentou. No chão. Bloqueando a porta do metrô.

Conheceu assim a maior parte dos distintos cidadãos que voltavam para casa naquela noite fatídica, e tentavam entrar no vagão sem pisotear o sujeito meio sentado meio deitado bem no meio da passagem. Desviavam dele, escapavam pelas bordas. Afastavam-se.

Os mais distraídos eram surpreendidos por um aperto de mão.

Aqui. Não tenha medo. Não tenha medo de mim. Não. Aqui. Aqui. Não tenha. É. Precisa ter medo não.

Chegou a beijar a mão de alguns. A fazer uma espécie de reverência. Teve quem se abaixou para cumprimentá-lo melhor. Teve quem retribuiu o carinho. Teve gente sem graça. Teve gente que se espremeu para longe, preferindo não se envolver.

Ele ficou a balbuciar daquele jeito esquisito, atropelando a língua, desconstruindo a linguagem em linguajares, falando consigo mesmo. Prestei atenção. Reconheci algumas palavras e fiquei intrigado. Permaneci com os olhos pregados no livro que trazia comigo. Não queria parecer indiscreto. Os ouvidos, entretanto, sondavam aquele homem sentado no chão do trem, que entre uma frase e outra insistia em cumprimentar os demais passageiros, mesmo quem já tinha sido cumprimentado antes.

À minha frente, num assento de uso preferencial, estava outro homem, com cerca de quarenta anos de idade. Sua expressão desaprovava o comportamento extravagante do primeiro sujeito – que, para ser sincero, incomodava mesmo. Ele simplesmente não conseguia ficar quieto.

Tentou cumprimentar o homem no assento preferencial. Ficou com o braço estendido no ar e só obteve uma risada sarcástica como resposta.

Nesse momento, minha discrição já tinha sido deixada de lado junto com o livro, e eu prestava atenção em tudo que acontecia ao redor. As frases estranhas se multiplicavam pelo vagão. Cada vez que eu reconhecia uma palavra, ficava mais e mais surpreso, mais e mais curioso.

Passaram algumas estações. Não sei dizer quantas.

Posso sair? Posso? Posso sair aqui? Sair? Posso? Hã?

Saia de uma vez!, foi a sugestão do homem no assento preferencial, dada com o mesmo tom cruel da risada que a precedeu.

O falador não ouviu. Deixou o trem momentos antes de a porta bater, quando o alarme já perdia o fôlego, só para dramatizar ainda mais a cena. Imediatamente o homem no assento preferencial tomou a palavra.

Cachaça é a pior droga que existe. Está aí, ao alcance de todos. Acaba com as pessoas. Destrói famílias. A cachaça é a pior droga que existe, todo mundo tem acesso, é só ir ali e comprar.

Cheio de razão, falava com a mulher sentada ao seu lado, que decidiu dar ouvidos e repetia suas frases como um papagaio. Também balançava a cabeça afirmativamente, concordando.

O homem queria proibir a cachaça, era evidente. Tão evidente quanto a eficácia da solução. Afinal, ninguém usa outras drogas, uma vez que estão proibidas. Não existe sonegação de impostos, pois é proibidíssima. Abuso de poder idem. Pirataria e corrupção nem se fala, foram extintas assim que oficialmente proibidas. Conclui-se que: proibir é a solução para os nossos problemas.

Ao menos era o que pronunciava o homem do assento preferencial. O que não sabia é que não se tratava de cachaça nem de droga nenhuma; o sujeito falador estava num estado psicótico. Sequer cheirava a álcool. A história da cachaça foi um delírio preconceituoso. Talvez uma crise de abstinência moral.

Outra coisa que o homem não percebeu, talvez porque ignorava as línguas, é que o balbuciar do falador se dava em francês e alemão. Que entre duas frases desconexas havia citações de Os sofrimentos do jovem Werther – não domino a língua, mas reconheci os personagens. E que aquele som gutural repetido infindavelmente se referia a Goethe. Goethe. Goethe.

Não à toa, o acontecido pareceu espetáculo de ficção. Que o homem no assento preferencial ignorou, percebendo nele apenas aquele seu discurso embrutecido, ao qual se acostumou ao longo do tempo e que ganhou o absolutismo da verdade. Discurso que se ouve, aceita e reproduz sem dificuldade. Que nasce da ignorância e gera mais ignorância. Gera violência. Intolerância. E não ajuda ninguém, afinal.

A cena no metrô também reforçou a suspeita de que, mais grave que certas psicoses é a neurose de se achar dono da verdade, como se a posse dela trouxesse algum tipo de riqueza. Como se essa riqueza comprasse um lugar na sociedade.

Conforme Giorgio Agamben nos alerta (em Ideia da prosa), "toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade".

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

cheiro
horrível aqui
em Pinheiros
dizem
que é do rio
eu sei
que é nosso
porém

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"Escrever, então, passa a ser uma responsabilidade terrível. Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda lei e sua própria lei."

Maurice Blanchot
A conversa infinita 1: A palavra plural

domingo, 14 de setembro de 2014

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A CARNE

Pode entrar que a carne
é friboi
Anúncio de açougue?
Não. De uma loja de prazeres
no Largo da Batata

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

EDUCAÇÃO PARA QUÊ?

Impossível dizer que o Brasil passa por uma crise na educação, nós vivemos a crise, já que ela existe há tempos, talvez desde o início do sistema público de ensino. Apenas sua intensidade se transforma. Ao invés de passar, a crise se estabeleceu; hoje é instituída, banalizada, tanto que as próprias políticas se adequaram a ela (cotas raciais, Bolsa Família etc.). São pacotes oferecidos como solução e que, por ora, apenas remediam sem atuarem na raiz do problema, enterrada a fundo na cultura brasileira. Inclusive, não é sem razão acreditar que outros dos nossos pontos fracos sejam frutos dessa questão educacional. Já formamos algumas gerações nessas escolas despreparadas, que produzem cidadãos embrutecidos, desacreditados, sem espírito crítico ou mínima bagagem intelectual; passivos no que diz respeito a seus direitos e violentos no que se refere a seus deveres. Escolas que não acolhem nem acompanham a formação, apenas processam alunos com a finalidade de passá-los adiante. Porque falta infraestrutura, capacitação de professores, planos de carreira, segurança, programas de incentivo aos estudantes, materiais didáticos, uniformes, acompanhamento psicossocial etc. Em suma, falta praticamente tudo. São todas assim? Não. Porém as boas escolas públicas são exceções. Infelizmente.

No Estado de São Paulo, a crise chegou às universidades. Nos vários anos em que frequento a USP, já vivenciei algumas greves, porém nenhuma tão exigente quanto a atual. Acreditar que o problema é o 0% de reajuste nos salários oferecido pelo reitor é tão ingênuo quanto dizer que as manifestações de 2013 solicitavam apenas a redução de R$ 0,20 no preço das passagens. A questão salarial cresceu, e no momento presente todo o sistema da instituição está sendo revisto. Se não mudar, não voltará a operar, e com isso todos perderiam muito. Inclusive você, leitor.

As reivindicações são claras: abertura das contas, auditoria, diálogo, administração competente, maior participação dos docentes, alunos e funcionários nas decisões, reajuste salarial conforme padrão em outras categorias, melhores condições de trabalho, infraestrutura adequada e, talvez mais importante, autonomia.

USP, UNESP e UNICAMP se encontram hoje subjugadas pelo Estado. Quando deveriam, sim, dispor de autonomia, já que a universidade pública seria uma instituição livre dos interesses econômicos e políticos. Ela precisa de autonomia para tomar decisões administrativas e para colocar em debate assuntos que possam prejudicar o próprio governo ou o mercado. Pois um dos seus princípios é a reflexão crítica.

Nesse ponto, concordo com Jacques Derrida, que almeja a uma universidade sem condição, ou seja, de entrega completa a seus próprios interesses, autônoma para discordar e propor mudanças: "lugar em que nada está livre do questionamento, nem mesmo a figura atual e determinada da democracia; nem mesmo a ideia tradicional da crítica, como a crítica teórica, nem mesmo ainda a autoridade da forma 'questão', do pensamento como questionamento". Sua imunidade deveria ser inviolável, de modo a sustentar esse potencial de resistência e dissidência que lhe é tão caro.

Ele sabe que se trata de um ideal, portanto um lugar que se afasta na medida em que nos aproximamos. O ideal é um horizonte, mas não por isso deve-se boicotar sua busca – se não o alcançamos, ao menos fazemos descobertas no percurso.

Fala-se em privatizar a universidade pública, e quem fala desconhece que o direito à educação é assegurado pela Constituição. A educação é um direito, não um serviço oferecido pelo Estado. Fala-se em privatização por conta dos altos custos de mantê-la pública. Mas não se admite que, privatizada, a universidade se voltaria ao mercado, e que sua prioridade de pesquisa e reflexão seria substituída pela capitalização. Sua liberdade para existir sem finalidade clara – ou seja, como espaço de criação de possíveis e incubação de devires – seria corrompida pelo sistema produtivo que domina o lado de fora.

Como escreveu Marilena Chaui, "se quisermos tomar a universidade pública por uma nova perspectiva precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio, nem um serviço". Não devemos, portanto, nos livrar do custo, mas auditar as contas, exigir uma administração responsável e, se o dinheiro não for suficiente para sustentar a universidade pública – cujo trabalho cresceu de maneira desproporcional a ele nas últimas duas décadas –, devemos aumentar a quantia. Vale lembrar que a USP, sozinha, soma mais de 100 mil pessoas entre alunos, docentes e funcionários – é maior do que várias cidades ao seu redor.

A greve não é somente para os grevistas. É para a sociedade e também para o Estado. Sua organização é muito mais complexa do que se imagina, e compreendê-la é essencial para produzir uma crítica relevante. Os interessados se reúnem em núcleos diversos dentro de suas faculdades e laboratórios; num sistema representativo, propõem e discutem cada pauta em assembleias. Nada é feito ao acaso; pelo contrário, o processo demanda tempo justamente por sua seriedade. E precaução.

Foto de Renata Buelau

Isso não significa que os grevistas sempre utilizem mecanismos compatíveis com os tempos atuais. Quando paralisam as atividades, por exemplo, assemelham-se aos operários de fábricas, e se aproximam do sistema produtivo do qual tanto querem se distinguir. Em outras palavras, a universidade usa um recurso da organização privada para exigir que seus direitos de instituição pública sejam preservados. Um paradoxo que precisa ser repensado.

O mesmo vale para os casos em que grevistas impedem os colegas de acessarem seus locais de trabalho. É uma hipocrisia porque utilizam da opressão quando estão, justamente, reivindicando o fim da opressão por parte da reitoria e do Estado, além de maior abertura ao diálogo. Quando ouço notícia assim, lembro do grafite deixado numa das paredes durante a invasão da reitoria da USP em 2011, que mostrava um tirano[ssauro] e a frase: "Ocupe a reitoria que há dentro de você".

São apenas dois exemplos. E já sugerem que a maneira como se faz greve deve ser reinventada para que seja compatível com o contemporâneo. É dever da universidade repensá-la, assim como é dever da sociedade e do Estado manter a autonomia desse território de questionamento.

Por fim, quero esclarecer que, ao fazer greve, a universidade ainda executa o que Derrida considera sua essência: a elaboração reflexiva, a produção do saber e a publicação dos frutos desse esforço. E que, conforme escreveu Elizabeth Araújo Lima, devemos "pensar os lugares da produção de conhecimento não apenas como lugares de transformação de conhecimento em mercadorias e de exploração da subjetividade de todos os que dele participam, mas também e especialmente como lugar de novas formas de conflito e novas formas de luta".

A universidade pública deve ser estranha ao [jogo de] poder, livre dessas relações condicionais de soberania e dominação. Se traz exigências de um lado, enfrenta intransigências do outro. Pois a política que falta hoje deveria vir do governador Geraldo Alckmin, que empossa os reitores e, após meses de greve, ainda não se dispôs a conversar. Em tempos de eleição, preferiu evitar o risco da polêmica.

Cabe a nós, nas urnas, indicar a que vem a educação, e como vem, para evitar outra volta no círculo vicioso da crise. Porque, sem ela, jamais resolveremos os demais problemas do Brasil.

Mais informações: Sintusp e Adusp

sábado, 6 de setembro de 2014

A CRÍTICA COMO ATO CRIADOR

Se a crítica não for espaço de criação, não tem razão de existir; nestes dias em que a mediação, esse espaço institucionalizado do poder, já não opera mais.

Se a crítica insistir no jogo da tradição, se quiser medir forças, faz-se desnecessária.

Isso nada tem a ver com concordar ou discordar, apoiar ou combater; tem a ver com sustentar lugares de resistência, ser relevante diante das questões atuais. Tem a ver com fazer/criar sentidos sem qualquer lógica ou finalidade. Fazer junto. Viver junto.

Fazer crítica é fazer arte. Ou não é nada.