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segunda-feira, 18 de maio de 2015

POÉTICA

Sem título, Nelson Felix

tempo e espaço
vazio e cheio
leve e pesado
localização e perda
círculo e quadrado
força e delicadeza
poética

domingo, 17 de maio de 2015

O QUE FAZER COM ESSA INFORMAÇÃO?

"A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade."

Jorge Larrosa Bondía
Texto completo aqui [é ótimo, leia!]: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf

sábado, 16 de maio de 2015

Poder
contraPoder
poder contra
poder Poder
Contra

como poder-
íamos revolucionar
– transformar, que seja
liberdade e respeito –
sem dar outra volta
nessas reviravoltas?

Volta
reviraVolta
volta revira
volta Volta
Revira

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CÁTEDRA MICHEL FOUCAULT E A FILOSOFIA DO PRESENTE

A igreja católica, por intermédio do cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da PUC, está conduzindo o veto à formação de um grupo de pesquisa inédito no Brasil: a Cátedra Michel Foucault. A PUC seria a única instituição fora da França a ter acesso a arquivos do filósofo, cuja obra é rica e relevante para muitas áreas de pensamento. O material seria doado numa parceria que começou em 2011, com intermediação do Consulado Geral da França em São Paulo e outras nove universidades estrangeiras.

A justificativa, embora feita com meias palavras, é preconceituosa e homofóbica: a Igreja Católica tem um conflito de interesses porque Foucault era homossexual. Pois é. Além do preconceito, o veto fere um dos fundamentos da universidade, que é a liberdade de pensamento.

Se quiser se juntar às diversas universidades do mundo que defendem a formação da Cátedra, assine a petição aqui (é também uma maneira de se posicionar a favor da educação e da pesquisa no Brasil, ao contrário do que os recentes cortes de verbas públicas para universidades e cacetadas em professores têm sugerido): http://foucault.lrdsign.com/

Mais informações aqui: PUC entra com recurso contra veto da igreja à cátedra Foucault

sexta-feira, 1 de maio de 2015

UNIVERSO SUBENTENDIDO

a Verdade é
de fato algo
perigoso
      – em absoluto! –
exatamente como
seria se fosse
outra?

existiriam demais verdades
pulverizadas num ar de dúvida?
      – claro! ou melhor: obscuro! –

creio em teses, perspectivas, possibilidades
ficciono, para ser sincero
tenho fé
nas tentativas frustradas
      – abertas, disponíveis –
que nada concluem
em definitivo

há camadas sob a superfície
      – das coisas, dos homens –
germinando contra a razão
esclarecida
      – o mundo superior seria
      somente justificativa
      para nossa inferiorização –

desejo habitar as profundezas
do ser sem dono nem dogma
sem violência contra
talvez
      – sequer isso pode ser
      verdade, enfim –

quinta-feira, 23 de abril de 2015

traição das imagens,
realidade infiel
profanação da verdade,
significação

verdade e significação,
mudança, transformação
as palavras e as coisas,
ficção

mundo das imagens
versus mundo imaginado,
além do horizonte
Sua representação

dilema da representação na arte,
imagem e semelhança
a Verdade em que se crê
acima de todas as coisas

sobretudo cair em si
sentido, sentimento
absolvição

quarta-feira, 22 de abril de 2015

OLHOS DE LITERATURA

A literatura possibilita que vozes dissonantes existam – é o lugar próprio da democracia. Inclusive vozes que causam furor ou lágrimas, vozes menores que chocam e provocam desconfortos de todo tipo, que perturbam a ordem, contradizendo certa maneira de pensar do leitor, por vezes violentando sua moral. Vozes que desconstroem a linguagem, invertem preceitos e depõem contra o sagrado/instituído. É um recurso que se tem para expressar ideias e sentimentos sem que eles sejam atribuídos a um sujeito-escritor, quer dizer, sem que este seja responsabilizado pelo que a voz do texto diz ou, enfim, pela maneira como foi compreendida – ao menos seria assim a situação ideal, que vamos considerar aqui.

L'oeil cacodylate (1921), Francis Picabia
Se alguém tem qualquer controle sobre essa voz, por mínimo que seja, é o autor. Entretanto o autor nada mais é que uma conveniência, uma entidade tão inventada quanto a ficção que lhe é atribuída – uma função momentânea, como dizia Michel Foucault. O autor não é o escritor, é no máximo uma faceta dele. Por sua vez, o escritor seria o operário das letras.

O que acontece quando o leitor confunde o escritor com a voz do texto? Uma tragédia, que desfaz o jogo e acaba com a fantasia da literatura, acaba com a potência ficcional da arte de onde advêm emoções e transformações. Se o leitor está menos interessado nas histórias do que na possível relação que elas têm com a “realidade” ou com a vida do escritor, a experiência literária se deturpa: ele deseja que o sujeito determine a obra – quando esta deveria bastar em si mesma. O escritor fica exposto, sua profissão se torna perigosa – o jogo acaba em horror (Charlie Hebdo, Salman Rushdie, Ai Weiwei etc.).

Se a literatura ofende, como o leitor pode se defender? Com o gesto mais singelo, que é também de incrível força política: ele abandona o livro. Porque é do leitor a opção de ouvir a voz do texto; se preferir ignorá-la, ela não incomodará. É bonito porque é respeitoso com a obra e com os demais leitores, além de mais eficaz – se quisermos pensar nestes termos – do que a censura, a perseguição do escritor, o recolhimento e a queima de livros em praça pública etc. Por sua vez, se quiser contra-atacar, o leitor ofendido pode usar as mesmas armas e criar a sua própria literatura (#ficaadica). Isso vale desde as ações destruidoras do Estado Islâmico às críticas moralistas aos 50 Tons de Cinza.

* * *

Correm um risco todos que lêem pouca ou nenhuma literatura: deixar-se levar pelos maniqueísmos, pelas doutrinas/fundamentalismos que cegam, pela burrice da maioria, pela razão exacerbada, pelo ponto de vista que se crê único e absoluto.

Ora, quem lê literatura não necessariamente escreve melhor ou consegue expressar suas ideias de maneira mais clara, conforme prevê o senso comum. Pode acontecer que obtenha certo domínio da técnica, se houver interesse profundo, mas não é regra. Assim como comer não nos faz necessariamente melhores cozinheiros ou ouvir musica não significa que faremos lindas composições. A literatura, quando explora limites da linguagem, pode até mesmo atrapalhar quem busca nela normatização e método.

Porém existe algo que o contato com a literatura pode oferecer, talvez de maneira tão peculiar que no geral não o encontramos em outro tipo de leitura: a experiência sensível que nos arranca do automatismo cotidiano.

Não quero dizer que todos os leitores de literatura desenvolvam o senso estético, mas é quase sempre entre eles que encontraremos quem pondera melhor, quem tem maior facilidade para ouvir e se abrir a novas experiências, quem acolhe o outro e suas perspectivas, quem possui sensibilidade aguçada para capturar certos aspectos obscuros do mundo real. O mesmo vale para as outras artes – sei que é absurdo tratá-las de modo tão genérico, mas é o como posso fazer agora. Elas despertam sentidos e nos convidam a pensar por outros meios além da lógica. Convidam-nos também a cometer menos atrocidades em nome da Verdade.

Se os livros de ficção não lhe interessam, se você não tem tempo para eles, entretanto existe uma vontade sua de enxergar além da superfície do mundo – se você entende que há camadas ocultas sob a simples aparência e quer tentar acessá-las –, sugiro que então leia os jornais, assista aos programas da televisão, ouça as notícias do rádio, envolva-se com a publicidade, com as conversas de boteco e até mesmo com as bulas de remédio como se isso tudo fosse literatura. Se conseguir mudar seu ponto de vista e entrever com desconfiança o que há de ficcional na realidade, se conseguir ler o dia a dia com olhos ávidos por literatura, se não tomar por verdade absoluta tudo o que lhe é oferecido, se não apenas absorver e replicar essas verdades, certa potência literária será ativada. Se a voz da literatura nos ensina algo seria, justamente, não ignorar o aspecto ficcional das coisas, das pessoas e dos ocorridos. Os horrores do dogma se afastarão um passo, o que é uma conquista satisfatória nos tempos atuais.

terça-feira, 21 de abril de 2015

CARRO-CHEFE

Ramon Casas and Pere Romeu on a Tandem (1897), Ramon Casas i Carbó

– Não é lindo?
– Parece que sim. Parece bonito.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece pequeno.
– Acha mesmo? Cabem quatro pessoas aí, até cinco, se apertar.
– Cabe um cavalo?
– Um cavalo? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, esse seu carro. Eu só sei andar a cavalo.
– Mas o carro substitui o cavalo. Você não precisará mais dele!
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

(…)

– Não é linda?
– Parece que sim. Parece bonita.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece cansativo.
– Acha mesmo? É saudável, é agradável.
– Cabe um carro?
– Um carro? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, essa sua bicicleta. Eu só sei andar de carro.
– Mas a bicicleta substitui o carro. Você não precisará mais dele.
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

terça-feira, 14 de abril de 2015

DESDE CIMA E DESDE FORA

“A América Latina é difícil de compreender, principalmente quando se olha de fora e de cima. As coisas que se entende de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo. Se a gente olhar de cima, com a típica arrogância dos nossos professores de democracia dos Estados Unidos ou da Europa, e se além de olhar de cima a gente olhar de fora, não entende nada. Por um motivo muito importante: a nossa região é provavelmente a mais diversa de todas, é a pátria das diversidades humanas. Isso que para mim é uma virtude, visto de cima e de fora é um grave defeito, porque se não cabe naquele modelo, acredita-se que aqui não existe democracia. E a prova de que há é que aqui se misturam e brigam todas as cores, os cheios e as dores do mundo.” Eduardo Galeano

sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

quarta-feira, 1 de abril de 2015

VENHA CÁ, LENDÁRIO

lá se vai março
que fica abril
não sei dizer

um se arrasta, natural
outro voa

lá se vai
para o bem ou para maio
perto de mim

junho por adeus,
quando passo pelo tempo
ele acena e me deseja

boa viagem, aproveite agosto
diga setembro
ou não

diga
que mandei abraço
outubro que sinto saudade
do que há devir
novembro

dezembro já sei, janeiro
faça chuva ou faça sol,
faça falta

nada muda mesmo
o infinito ano continua
fevereiro sempre igual
um novo

sábado, 28 de março de 2015

PERCEBER O TEMPO COMO OCEANO


Ao invés de imaginá-lo como um rio, cujo curso é linear, como se houvesse uma só linha do tempo. Como se houvesse hierarquia, de cima das montanhas às baixas planícies; os tempos áureos cruzando o agora, correndo na direção do futuro. Como se o tempo mais puro tivesse ficado para trás e não pudesse ser alcançado novamente, provocando saudades eternas. Não, o tempo como oceano é diferente. Não corre numa única direção – ele é um acúmulo de temporalidades diversas, um múltiplo indeterminado de correntes marítimas que flui em todas as direções e se transforma conforme a época. Correntes frias e quentes, fortes e fracas, vivas e mortas, rasas e profundas, claras, turvas, obscuras. Consecutivas. Coexistentes.

Fatos que na linha do tempo parecem distantes são sentidos muito próximos; acontecimentos recentes, por sua vez, parecem ocorridos numa outra era. O passado não passou, não ficou abandonado lá atrás, ele extrapola seu próprio tempo e está sempre disponível. Olho para o oceano infinito e vejo nele a memória do mundo, a sua história e o seu devir, tudo se realizando agora. Autores antigos são amigos que revisito constantemente e que parecem me dedicar os seus escritos. Artistas de outras épocas são onipresentes, por vezes se confundem com os nascidos hoje.

O tempo é todo nível do mar, a mesma altura em qualquer borda do mundo. O nível compartilhado, porto de onde todos partem. Se ele sobe, a humanidade sobe junta; se desce, todos nós descemos, sem exceção. Dependendo da maré, de forças exteriores, o tempo transborda para cima de nós. Afogamos em nosso próprio tempo, em sua demasia. Por vezes se dá o contrário: experimentamos o esgotamento do tempo, que se recolhe e nos obriga a persegui-lo, a desejá-lo e sobretudo a correr em sua direção.


Ilhas a princípio isoladas possuem um comum: estão atravessadas por esse tempo-oceano. Podem endossar ou não a conexão, podem usufruir dela, renegá-la ou simplesmente ignorá-la, entretanto ela permanece como potência do tempo, como um elo perdido.

É possível nadar através do tempo, assumindo o risco que acompanha o gesto. É possível navegar no tempo, em sua superfície calma ou intempestiva. Se acreditamos navegar por nossa própria conta, é somente por ingenuidade, que se faz arrogante. Acreditamos navegar livremente quando, enfim, estamos o tempo inteiro sendo sustentados. Basta um breve colapso para naufragar, desaparecer, deixar de existir, jamais ter existido na história. Basta uma guinada incerta para apagar-se.

Navegar no tempo implica desenhar um mapa. Trajetos dispostos numa carta náutica, projeto que se faz durante o percurso, cartografia de uma experiência. Viver o tempo, compor o tempo, inventar o mundo. Cruzar essas linhas com as de outros, desenhando mapas discordantes onde é permitido se perder sem medo nem razão. Fazê-lo mesmo sem permissão. Transgredir as rotas estabelecidas. Descobrir territórios no além-mar, escrever a epopeia do seu próprio existir. Fazer de fatos poesia, fazer versos das calmarias, tantos versos delas quanto das provações.

Tempo é criação, é de onde a vida surge. Invenção dos homens, só para nós ele faz algum sentido, quando faz. Sua superfície é quente, luminosa, acolhedora. É também leve e agitada. Já as profundezas são hibernais, obscuras, desconhecidas. São densas e lentas. Conseguimos mergulhar no tempo, lutar contra as forças que teimam em nos manter no conforto do sempre. Mergulhamos até o limite que os corpos suportam. Nossa carne é o que nos determina – rompemos a superfície do tempo sem conseguir ultrapassar a nossa própria. Até onde/quando o fôlego nos levará? Com a visão turva, observo os peixes nadarem com sua desenvoltura e quero saber: que relação natural é essa que mantêm com o tempo? Que tranquilidade é essa?



Que tempos são estes? São muitos tempos e relações temporais se realizando neste exato instante, que de exato não tem absolutamente nada. Quero nadar, entretanto corro. Contra o tempo, a favor, não sei. Quando tento flutuar afundo. Quero agarrar o agora porém ele escorre por entre meus dedos, fugidio; toca meu corpo inteiro sem se fixar ou se deixar possuir. Quem é dono do próprio tempo? Quando percebo, o presente já é passado; ele se esvai. Tempos líquidos, diria Bauman. Literalmente? Não. Prefiro dizer "literariamente". O tempo ficcionado, como sempre foi. Mas não o cronológico, na lógica absurda da máquina que supõe medir o tempo – o relógio mede somente a nós mesmos, os nossos mecanismos sociais. Ele é construído na medida do homem. Sua fantasia controladora, seus jogos de poder e dominação.

Que seja cronossensível, subjetivo, de acordo com a percepção de cada pessoa. Conforme os dias que voam, as horas que se arrastam, que desobedecem a ordem dos ponteiros e embaralham o calendário. Um oceano cheio de vida que, quando menos se espera, traz à superfície uma nova descoberta advinda daquele desconhecido imemorial, que está ao mesmo tempo tão longe e perto de nós.

Comecei a pensar neste texto há meses. Sinto como se fosse ontem.

[Para Maria Gabriela Llansol.]

*Imagens: trabalhos diversos de Sandra Cinto.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Composição suprematista: branco sobre branco (1918), Kazimir Malevich

quem dera,
nenhuma imagem faria
o texto só
isto, letras e palavras
soltas numa folha
a voar

escrever
o que não deixa ser
(d)escrito

domingo, 8 de março de 2015

"Minha mulher".
A expressão me desagrada, admito.
"Minha" mulher. Minha por quê? Desde quando? Como pode?
Estar junto não significa possuir. A relação é muito maior, mais complexa e mais bonita.
Sou feminista, admito. Gosto de mulher livre, dona do próprio nariz. Que vem até mim por vontade própria. Que sabe o que deseja e não hesita.
Que vem a mim não porque me pertence, e sim porque gosta. Porque quer compartilhar experiências, amar e ser amada. Que está disposta a viver em parceria - em vez de estar "à disposição".
Mulher como você. Bonita, inteligente, cheia de si. Que não é minha, não, de jeito nenhum. É mulher que escolheu viver ao meu lado. E isso muito me honra.
Por essas e outras, desejo um feliz dia das mulheres a você. Não porque é minha ou porque é mulher como as outras. Um dia muito feliz, é isso o que eu mais lhe desejo, porque você é unica e porque você merece.

sábado, 7 de março de 2015

A BUSCA DO SIGNIFICADO IMPOSSÍVEL

Senecio (1922), Paul Klee

A dimensão do mar
A verossimilhança da sombra
A altura da vontade mor

A temperatura da paixão
A resistência da fé
A dureza da escolha
A solidez da promessa

A arte do esquecimento
A força do espírito
A exatidão da carne
As razões da crítica
A apreensão do tempo
A captura do instante
O encerramento da palavra-chave

A violência predominante
O princípio do preconceito
A brutalidade da maioria
A declaração da guerra
A rua sem saída
O destino da humanidade
O sabor da derrota

O mapa do além
O real, a realidade, o horizonte
O limite da fantasia
A verdade irrefutável
Absolutamente
O ser

[para Roland Barthes]

domingo, 1 de março de 2015

NOTAS SOBRE UM PIANO

Banner que acompanha o piano.
Clique na imagem para ampliá-la
Eu quis escrever este texto no mês passado, assim que vi a recepção incrível do projeto Piano no Metrô, em São Paulo. Um projeto bastante simples: botaram um piano na estação e uma placa convidando os usuários a tocar. Desde então, não importa a hora, não importa o dia, toda vez que passo ali ouço alguém tocando, desde curiosos tendo o primeiro contato com o instrumento até músicos talentosos complementando a apresentação com canto lírico, desde o jazz mais complexo ao mais tímido dó-ré-mi-fá fá-fá. Passo todo dia pelo piano. Diversas vezes parei com intuito de ouvir a música até o final. Vi dezenas de pessoas se acumularem ao redor, vi pianistas serem ovacionados em plena hora do rush. E pensei algumas coisas a partir disso:

1) Vivemos um vazio. Não é que vivemos no vazio, pelo contrário: vivemos um vazio de experiências no excesso da metrópole, neste conturbado cotidiano de horários rígidos, informações desencontradas, imagens, consumo, whatsapp, imagens, imagens, baboseiras, bobagens, violência, impessoalidade, banalização, imagens, desafeto. O que falta para preencher o vazio? Existência, claro. Falta experiência de vida, experiência estética e política; ser, estar, ouvir, participar, compartilhar. Então o sujeito se depara com um piano no metrô e começa a tocar. Outro acha bonito, aproxima-se. A mulher, atrasada para o compromisso, reconhece a música e canta baixinho. Antes do fim, são quinze, vinte desconhecidos cantando juntos, batendo palmas no ritmo, preenchendo um pouquinho do vazio alheio.
      (A 28ª Bienal de SP: Em Vivo Contato, à época criticada como "bienal do vazio", volta à memória, revela potencial e pertinência, dando sequência à 27ª: Como Viver Junto. Não é lindo?)

2) Vão quebrar o piano, esse povo sem educação. Pois não quebraram. Não depredaram, não fizeram arruaça. E o piano vai completar dois meses. Vândalo não ouve música, é a conclusão mais fácil, que farão você apoiar, e não poderia ser mais enganosa. Os mesmos usuários do transporte público que cantam ao piano são os que quebram trens e plataformas. Somos os mesmo sujeitos, somos iguais; nem eu nem você: nós. Diferenciar-nos não leva a nada, exceto a mais violência. O que "resolve" a questão é andar de metrô, ocupar os espaços públicos, participar do dia a dia da cidade. É preciso mais piano e menos lotação, mais qualidade e menos tarifa, mais respeito e menos acusação, mais vontade política e menos pilantragem. É preciso que os cidadãos gostem do transporte público, que experimentem e cuidem da cidade. Convidá-los a fazer parte em vez de fazer vítimas. As ciclovias e corredores de ônibus seguem o mesmo caminho. Um dia você vai usá-los. E vai gostar.

3) Um responsável quis barrar o projeto, disso você pode ter certeza. Existe sempre quem duvida que um insetinho pode emitir luz própria. Talvez tenha sido você, que num primeiro momento achou bobagem, achou que não daria certo, que a prioridade seria outra. Afinal, somos todos responsáveis, não é necessário o cargo. Seja quem for essa pessoa, tenho um recado: bem feito. Seja por ter perdido o páreo, seja por ter cedido ou apoiado, bem feito, deu certo, foi uma experiência válida. Ninguém precisou construir estádios de futebol ou desviar bilhões de reais. Bastou um piano para irromper uma experiência coletiva positiva. O show fica por conta dos participantes, cidadãos, vândalos, pode nos chamar do que quiser, obrigado.

4) Ultimamente, à noite, tenho visto gente se reunir em volta do piano, botar as mãos ao alto e cantar música religiosa, transformando a estação numa espécie de culto, usando a oportunidade da experiência estética para pregação ideológica. Muita gente, mesmo. Fazem isso apesar do aviso de que "o projeto Piano no Metrô não tem finalidade política, religiosa ou esotérico-mística e não pode ser utilizado para a prática de cerimônias religiosas ou atividades afins". Ainda não sei o que pensar, já debati o assunto sem chegar a um acordo (liberdade de expressão, respeito ao espaço do outro, apossamento, segregação, profanação da música sacra, e se fosse Bach, poderia tocar?). Deixo aqui somente a constatação, além da suspeita de que logo isso vai se tornar um problema (aliás, o aviso sempre esteve ali ou foi incluído depois?).

5) O piano no metrô é um vaga-lume, cujo brilho resiste ao excesso de esclarecimento que ofusca sua tentativa de sobrevivência. "Desapareceram mesmo os vaga-lumes?", pergunta Georges Didi-Huberman. "Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (...) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (...) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes". Caminhamos pela cidade sem os notar, esses pequenos lampejos de beleza. Assim eles desaparecem para nós.

Eu quis escrever um mês atrás, mas foi bom esperar o projeto se desenvolver. Agora posso afirmar que a melhor realização do metrô de São Paulo, nos últimos anos, foi colocar o piano na estação República (parece que há outro na Luz). Poderia ter sido a construção de 50 estações, mas foi o piano. E mesmo que houvesse as 50 estações, mesmo que tivessem sido construídas sem corrupção, eu ainda gostaria mais do piano. Porque a ampliação da rede é obrigação do governo. Já o piano é um toque de sensibilidade na vida de quem habita aquele vazio superlotado tão carente de afeto.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Escultura de Tomie Ohtake
  basta ser humano
  basta, ser humano
  basta ser, humano
  basta ser humano,

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus

sábado, 31 de janeiro de 2015

EU PREFERIRIA NÃO

Faz uns anos que li Bartleby – o escrivão, o escrevente, o escriturário, conforme a tradução. E o que restou do livro foi uma lição de resistência aos mecanismos perversos da vida. Não ao "Sistema", no sentido macropolítico. Mas às engrenagens menores que botamos em funcionamento no dia a dia e que, talvez para valorizar a nossa própria existência/relevância, acreditamos que não podem parar. A micropolítica que nos atravessa o tempo inteiro, desde o bom dia ao boa noite, senão além; na padaria, no ônibus, no banco, na correria do escritório, na conversa com os filhos sobre o que aprenderam na escola, na hora de preparar o jantar. Não é exclusividade de Bartleby – quer dizer, eu raramente lembro das artimanhas da ficção. Os pormenores evaporam, faço uma miscelânea de cenas e personagens, não consigo refazer a história de cabo a rabo. Por fim, resta somente um sentimento, que carrego comigo, em especial quando o livro deixou marca mais profunda. Uma sensação de literatura. Que não guardo propriamente na memória, mas no corpo inteiro. Se me perguntam o destino de tal personagem, por que falou tal coisa, em que momento o segredo se revelou, o que aconteceu depois, admito que não sei. Seguindo a linha do raciocínio, não lembro sequer das tramas que eu mesmo escrevi. Quase nunca sei recontá-las. Porém cada livro deixa uma sensação, uma espécie de aura de significados; um despertar pela literatura.

A Metamorfose, de Kafka, se revelou uma angústia de ser; K., de Kucinski, sintetizou a violência do poder e seus métodos; Bonsai, de Zambra, tratou do imenso potencial das coisas mais singelas. Não é raro eu me lembrar apenas de que esse livro é leve, aquele é azul, o outro, quente, acolhedor.


Bartleby me mostrou um caminho alternativo para a resistência; é o que vejo de mais contemporâneo nele. Para quem não conhece, essa breve história de Herman Melville fala de um sujeito peculiar, estranho, que é contratado por um advogado para fazer cópias de documentos, numa época em que elas eram feitas à mão. Um bom funcionário, no sentido produtivo: quieto, dedicado, que não enrola nem comete erros. Uma engrenagem bem azeitada na máquina do capital. Que em algum momento começa a querer girar num outro sentido. E que responde, às ordens do patrão, "I would prefer not to", eu preferiria não, talvez uma das frases mais emblemáticas do século XX – ainda que o texto seja mais antigo, publicado em 1853.

Sua perspicácia está, justamente, em não "bater de frente" com seu empregador. Ao dizer que preferiria não cumprir a tarefa – ao invés de recusá-la terminantemente –, Bartleby coloca-se sob responsabilidade do outro, que deve decidir seu destino. Ele não enfrenta a autoridade, mas com a sutileza de um toque a enfraquece toda. O patrão daria a Bartleby uma tarefa que ele não recusaria para não desagradá-lo, mas que faria contra a própria vontade. Ele sabe disso. Só não sabe como reagir. É esse jogo de consciência que se estabelece e quase leva todos à loucura, retirando-os da zona de conforto, desestabilizando o que já estava instituído.

Isso me marcou profundamente. E sempre que parece necessário intervir numa situação que incomoda, apelo ao estratagema do escrivão, perguntando a mim mesmo qual seria o caminho alternativo ao confronto direto, uma vez que este certamente levará ambas as partes à violência e, portanto, à derrota. Nem sempre funciona, claro. Mesmo assim esse método de resistência é mais inteligente e menos desgastante.

É também um método menos narcisista. Porque não se pauta numa certeza, mas em suposições, hipóteses, possibilidades diferentes. No lugar de "donos da verdade" disputando o poder, insere-se a inexatidão, a dúvida, o convite à reflexão e à revisão dos princípios.

Existe uma grande quantidade de interpretações do livro de Melville, inclusive que o vê como sintoma de esvaziamento e tendência à depressão, como Joel Birman escreveu em O sujeito na contemporaneidade. E uma interpretação não invalida necessariamente a outra. Seja como for, é surpreendente como uma ficção tão curta permaneça tão relevante.

Para mim, sua força está no próprio uso da linguagem, que rompe a dialética do sim e do não ao criar uma zona de indiferença entre o sim e o não, conforme Gilles Deleuze propõem em Bartleby, ou a fórmula. Ele insere uma fratura na ambivalência do mundo. Expressando um "nada de vontade", põe fim à lógica dos pressupostos, daquilo que procura se sustentar porque "sempre fora assim", baseado numa tradição por vezes importuna aos tempos atuais.

Bartleby rompe a ordem. Depõe a verdade absoluta sem inserir outra no lugar, sem continuar a alimentar o mesmo mecanismo de poder e dominação. É essa resistência mais inteligente e menos violenta que a sociedade contemporânea precisa produzir; é sua voz ambígua, subjuntiva, que precisa ganhar ouvidos diante dos urros da ignorância imperativa, antes que o sistema entre em colapso pelo excesso de ordem, antes que o absurdo do real se imponha pelo excesso de razão.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Lucioles (2008), Renata Siqueira Bueno
 
"Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (…) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar para vê-los. (…) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes."

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SÁBIAS PALAVRAS


Toda vez que penso em publicar um comentário no Facebook ou aqui no Arte Faz Parte, lembro do que o escritor Bernardo Carvalho disse em entrevista a Um escritor na biblioteca. Então, alguns dos meus comentários são publicados, outros são revistos e abandonados. Compartilho o método com quem for suficientemente humilde para aceitá-lo.

Eis o trecho: "Tive que reescrevê-lo [o romance Reprodução, na época ainda inédito] muitas vezes, porque queria que os personagens fossem todos do mal e muito burros, mais ou menos o modelo dos comentaristas de internet. Eu queria que os personagens, todos eles, fossem como esses caras que fazem comentários na internet, que querem se expressar, gente que tem ideia sobre tudo, que são super orgulhosos com as próprias opiniões. Queria fazer um livro que só tivesse personagens assim, que todos fossem uns idiotas."

A entrevista completa está aqui, a quem se interessar: Bernardo Carvalho, um escritor na biblioteca

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRISTE EXECUÇÃO DO BRASILEIRO NO ÚLTIMO SÁBADO

Enquanto nós permitirmos a pena de morte, que é a violência máxima que um governo pode decretar, estaremos todos sujeitados às demais violências advindas dos lados mais diversos.

Enquanto a morte for medida oficial, não haverá controle nem segurança. Não haverá limites. Muito menos limites morais.

Enquanto acharmos que isso é problema [ou "solução"] de outros países, que a pena de morte não nos diz respeito, estaremos virando as costas para os atentados contra a humanidade. E a humanidade é muito maior do que leis locais. E muito maior do que atrocidades culturais.

A pena de morte não é diferente do campo de concentração, apenas acontece com menor quantidade. Ela não melhora nada, nem a sociedade nem o executado. É ingenuidade achar que serve como exemplo, pois só é exemplo de mais estupidez.

Enquanto acreditarmos que a violência é a solução para a violência… tristes de nós.

--

"Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência. Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás. Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar-comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para exisitr, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros.

(…) Uma marca se destaca na criminalidade atual, de forma inconfundível, e se interesse diretamente à problemática da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até então impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o genocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotecas e anti-humanas."

Joel Birman, O sujeito na contemporaneidade

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#JeSuisCharlie

Que atitude tem mais chance de fazer um mundo menos ignorante?
a) Cartum
b) Ataque terrorista


"Sobretudo, o problema é evitar o julgamento. Não digo evitar o castigo. Porque o castigo sem julgamento é suportável. Ele tem, aliás, um nome que garante a nossa inocência: a infelicidade. Não, pelo contrário, trata-se de fugir ao julgamento, de evitar ser continuamente julgado, sem que jamais a sentença seja pronunciada. (…) A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles [meus semelhantes] uma vocação irresistível para julgar. (…) A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas."

A QUEDA, de Albert Camus

sábado, 3 de janeiro de 2015

EXTRADITO

quando digo eu
há quem confunda
com outro eu,
a voz que fala
e aquele que deseja
sumir por trás dela

eu não sou, eu não é
eu não se importa
nem importo a mim,
apenas a voz exporta,
transborda, profana, abomina,
a (mal)criação do autor-deus

candidato fajuto
ao lugar do outro deus
que estava morto

resta a obra
que é toda nossa
antropofagia

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

INDISCRIMINADAMENTEM

– Loucos não mentem?
– O tempo todo.
– Como podem?
– Inventam. Indiscriminadamente. Acredita?
– Se você diz.
– É verdade, pode acreditar.
– Que loucura. Jamais pensei...
– Sim, mas tem uma coisa: é tudo verdade.
– Como assim?
– As mentiras, tudo verdade.
– Fala sério!
– Eles também. Falam sério, de verdade. Não sabem que inventam. Falam sem pesar a consciência.
– Faz sentido.
– Pode crer. Eu sei que faz.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

CONJETURA DA IMPOSSIBILIDADE

muito possivelmente é
seria impossível ainda
que desejável seja,
por mais próximo esteja
ao alcance das mãos
atadas

improvável que pareça
a ciência exata joga a toalha,
cobre de artifícios
sua própria falta
de inventividade
criativa

ato possível sim
a imaginação não nega
tampouco arrega à regra,
permite-se a si mesma
sem medo de errar
aceita

o incerto do impossível
tão real quanto alguma ficção,
fixação que solta a mente
do concreto rés do chão

convém pesar a verdade
na não-escala da abstração

       [para o infinito]

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Em Kafka, a instituição é um mecanismo que obedece a suas próprias leis que foram programadas não se sabe mais por quem, nem quando, que não têm nada a ver com os interesses humanos e que são portanto ininteligíveis."

[Kafka só não é brasileiro porque é universal.]

"Os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos (aparentemente inacreditáveis e desumanos) são os mesmos que regem as situações íntimas (inteiramente banais e muito humanas)."

Milan Kundera, A arte do romance
sim, fui muito ridículo
poucas vezes
na vida
– fui suficientemente ignorante
quase sempre
motivo de conforto, frustração
às vezes dá raiva
assim
"O que nos salva da civilização ocidental?"

Georg Lukács [pensando nos possíveis resultados da 1ª Guerra Mundial]

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

SOU BENEDITO

"Se fiz bem, vamos manter silêncio;
Se fiz mal – vamos rir então
E fazer sempre pior,
Fazendo pior, rindo mais alto
Até descermos à cova.
(...)
Creiam, amigos, a minha desrazão
Não foi para mim uma maldição!"

       Entre amigos, Nietzsche, 1886


sou benedito
       pelo mau compreendido

uma vês que
       está

       falado mas não se houve
       ah mas não se tem
       dado que não cessente
       visto que não se crê

       fidedigno de ser
       não fosse feito
       – mesmo eu –
       safaria-o

amem! e até mais ver!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

ANJO: DESTERRITORIALIZADO

ambíguo.
nem deus nem santo nem diabo
nem bom nem mau nem homem
nem carne nem sopro nem espírito
nem macho nem fêmea nem gênero

nem ser nem estar
sem eira nem beira

nem adulto nem criança
nem eros nem querubim

nem voo nem pé
tanto faz como tanto fez

nem meu nem seu
nem todos, imprecisão

nem guarda nem canta nem cai
nem lá nem cá nem acolá
nem céu nem inferno nem lugar
nenhum

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

a linguagem faz ser
o que não é
– definível, exata
sombra nem imagem
fora da linguagem
desformada está.

a linguagem facínora
obrigatoriamente é
sentido
contra o sensível,
dá forma
em troca da alma.

domingo, 14 de dezembro de 2014

descobri minha paranoia
finalmente!
há anos venho tentando
persegui-la
encontrá-la
defini-la
determiná-la
apreendê-la
cercá-la por todos os lados
para que seja só minha
– minha paranoia,
ademais ninguém


nãnãni nãnãnão

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Rooms by the Sea (1951), de Edward Hopper

incessante transgressão, ultrapassamentos
daquilo que somos, do humanismo
que nos cola a pele, gruda
como cracas no casco, dificulta
o movimento, atrasa
a navegação.
Como se desprender?
do que impregnou, da tradição
das águas que sustentam o
barco ao mesmo tempo em
que o mantém no lugar?, mesmo
com a sensação de que flutua livre-
mente? com sua carga histórica ativa
– histérica! – ainda
desconhecida? Pesada demasia-
damente pesada.

para Peter Pál Pelbart, pela aula de poesia.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

(Há pouco, no metrô:)

- Minha mãe disse, você lembra seu pai, com esse cabelo! Que ótimo, mãe, vou cortar, respondi.
- Ela gostou um dia.
- Gostou, mas hoje deve odiar.

(Pronto, pode continuar o romance.)

domingo, 7 de dezembro de 2014

SABEDORIA DO ROMANCE

É o que o escritor Milan Kundera defende, uma sabedoria própria do romance, percebida e contada por narrativas, quase sempre em desalinho com os grandes avanços científicos e muitas vezes mais pertinentes do que eles. Tal saber viria da observação do mundo e da perspicácia de captar nele não as luzes mas as trevas – para usar esta expressão do filósofo Giorgio Agamben. Ou seja, a sensibilidade do romancista seria capaz de apreender dilemas contemporâneos que ainda não vieram à tona, porém agem às escondidas e nos afetam sem que nós saibamos, sem que estejamos aptos para distingui-los.

"Descobrir o que somente ele pode descobrir é a única razão de ser de um romance". Essa ideia é desenvolvida nos diversos textos que compõem A arte do romance, primeiro livro de "não-ficção" de Kundera. Estão nele reflexões obtidas a partir da sua experiência como escritor, as quais não se propõem como teoria, mas como "confissões". Entre elas, a tal sabedoria do romance foi a que mais me chamou a atenção. Claro, olhando para minha biblioteca particular, dando-me conta de que dois terços de todos os livros que li são romances, não tenho como discordar, nem mesmo se quisesse.

Posso afirmar que foi com romances que descobri as coisas mais complicadas: a insuficiência das relações humanas; a inexatidão/enganação da História; a força transgressora, profanadora e transformadora do humor; a necessidade urgente da desmilitarização em todos os seus sentidos; o devir minoria; a penetração da política na banalidade da rotina; o fascismo da língua; a estrutura ficcional que sustenta a dita "realidade".

Nada disso é exclusividade da minha experiência como leitor – pelo menos da Modernidade em diante, boa parte dos pensadores se dedicam a analisar e até mesmo a produzir literatura, romances em especial. Filósofos, sociólogos, etnógrafos, educadores, políticos, psicólogos, artistas de outros campos – de alguma maneira eles flertam com a sabedoria possível daquela forma literária tão impregnada na cultura geral.

Uma das sabedorias que Kundera destaca é a da incerteza – a incrível capacidade que o romance oferece de contrariar a lógica e os dogmas, de mostrar que o julgamento e a busca da verdade se esfacelam perante a relatividade do mundo dos homens. É o que nos faz acreditar nas perguntas porém jamais nas respostas; a jamais sermos guiados apenas pela razão, uma vez que ela levará – necessariamente – a uma ilusão absolutista. Relatividade que manterá sempre em dúvida a moral de Anna Karenina, de Tolstói; K., de Kafka; Capitu, de Machado. E que colocará em questão a moral em si. "O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade". Ele dá a ver a ambiguidade de que somos feitos.

O romance oferece aberturas. Linhas de fuga. Desvios. Oferece a possibilidade de inventar lugares para que modos de existência de todo tipo ocupem, encontrem outros, dialoguem. Lugares oriundos de fraturas do mundo, para citar novamente Agamben, que por sua vez chega a essa ideia por um poema de Osip Mandelstam.

A vontade de abertura do pensamento caracteriza o romance como transgressor de uma ordem social pautada na obediência, na servidão e no assujeitamento; desse ideal iluminista que acredita cegamente na democracia da maioria e que pretende assegurá-la pelo terrorismo de Estado. Não à toa foi uma pilha de livros que vimos queimar toda vez que um regime totalitarista assumiu o poder.

A dissidência provém da sua inquietação. "O romance não pode mais viver em paz com o espírito de nosso tempo: se ainda quer continuar a descobrir o que não foi descoberto, se ainda quer 'progredir' como romance, ele só pode fazê-lo contra o progresso do mundo".

Vale ressaltar que o romance não se apresenta como manual, não tem a pretensão de salvar nem de corromper, por mais que algo consiga ser aprendido com ele. A noção de verdade lhe escapa. Sua memória falha. Seu sentido para a existência humana é irônico. Talvez por isso sua sabedoria é menosprezada quando comparada à ciência.

Kundera alerta que "não se pode julgar o espírito de um século exclusivamente segundo suas ideias, seus conceitos teóricos, sem levar em consideração a arte e especialmente o romance. O século XIX inventou a locomotiva, e Hegel estava certo de ter apreendido o próprio espírito da História universal. Flaubert descobriu a tolice. Ouso dizer que essa foi a maior descoberta de um século tão orgulhoso da sua razão científica".

A tolice que Flaubert denunciou permanece em nosso cotidiano. Uma tolice moderna que não significa ignorância ou falta de informação, mas o "não pensamento das ideias recebidas", ou seja, a nossa preguiça concordante, consensual, superficial, agressiva, confortável. Tolice que determina um padrão de comportamento dominante, que aceita esse padrão, independente de idade, gênero ou classe social.

Admiro o romance pelas suas tentativas de retratar um contemporâneo que não fica parado para ser observado em detalhes, portanto impossível de ser descrito com exatidão. Pelo contrário, ele jamais adquire forma verossímil.

Como Kundera explica, "o romance não examina a realidade mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana. (...) Existir, isso quer dizer: 'ser-no-mundo'. É preciso portanto compreender o personagem e seu mundo como possibilidades".

sábado, 6 de dezembro de 2014

O HOMEM PENSA, DEUS RI

"François Rabelais inventou muitos neologismos que em seguida entraram para a língua francesa e para outras línguas, mas uma dessas palavras foi esquecida e podemos lamentá-lo. É a palavra agélaste; ela é tomada do grego e quer dizer: aquele que não ri, que não tem senso de humor. Rabelais detestava os agélastes. Tinha medo deles. Queixava-se de que os agélastes eram tão 'atrozes contra ele' que esteve a ponto de parar de escrever, e para sempre.

Não existe paz possível entre o romancista e o agélaste. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agélastes são convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin.

(...)

A erudição de Rabelais, por maior que seja, tem portanto um outro sentido que a de Descartes. A sabedoria do romance é diferente daquela da filosofia. O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor. Um dos fracassos da Europa é jamais ter compreendido a mais europeia das artes – o romance; nem seu espírito, nem seus imensos conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus é, por sua essência, não tributária mas contraditória das certezas ideológicas."

KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 147-148.

sábado, 29 de novembro de 2014

todo fim de texto
me convida a voltar,
ler de novo
desde o início
outro texto
recém-criado
se existe
a vontade de negar
aquela existência
é
necessário
admitir que está
no mundo

[ignorar, apagar.
de onde vêm
tais vontades?
de que sentimentos
se alimentam?]

a existência de qualquer
algo específico, talvez genérico
incômodo discordante,
por demais concordante

[só vira questão
quando bate a crise]

excessos da existência
não sei por quê
da negação

deveria saber
por que privá-la de tudo?
a decisão espera por nós.
o juízo é nosso, infelizmente
a sentença é nossa
alçada

seja qual for
o motivo de tamanha violência
a existência ainda existe
resiste
continuará existindo
quando nós não mais

[tamanha importância tem
o nosso próprio ser
e estar]
lugar tão pequeno revelou-se
labirinto em que conhecer
significava se perder

[para Bem Diante dos Meus Olhos, um livro porvir]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A SABEDORIA DA INCERTEZA

“O que quer dizer o grande romance de Cervantes? Existe vasta literatura a esse respeito. Há os que pretendem ver nesse romance a crítica racionalista do idealismo obscuro de Dom Quixote. Outros veem nele a exaltação do mesmo idealismo. Ambas as interpretações são errôneas porque pretendem encontrar na base do romance não uma interrogação, mas um preconceito moral.
      O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado.
      Nesse ‘ou – ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”

A arte do romance 
Milan Kundera

terça-feira, 4 de novembro de 2014

creio,
entretanto,
no porém.

todavia até
certo ponto
convém considerar
que não devo, nego
afirmo acaso pudesse.

ora! que nada.
nesse meio tempo subo
no muro observo
ambos os lados
um de cada olho,
outro a contrassenso
afastando a luz
com a palma
da mão daqui
até o infinito
e além

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

poucas vozes contam a História
algumas sem nome
outras tantas sem rosto
muitas sem palavras
cantam historietas
as mais diversas

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

donos da verdade
que coisa esta!
ah se soubessem...
até
sua ignorância
tem
prazo de validade

terça-feira, 21 de outubro de 2014

ENQUANTO É TEMPO

o ócio se diz
criativo
porém tardio
tanto
que enquanto
o espero
entedio

nada concreto portanto
quero
inventar somente
do fundo do tédio,
do fruto da mente
a via

que venha insolente
criatura
tão logo puder
– sem ódio
contraproducente –
cria!
antes que eu
me vá

ausente.



O tempo é uma ficção. A gente o inventa como convém e às vezes o sustenta por mais inconveniente que tenha se tornado. Essa estrutura de jornadas de trabalho, de descanso aos finais de semana, trinta dias de férias, idade para aposentadoria, isso tudo foi inventado recentemente, da Modernidade para cá, e aos poucos quer ser reinventado. Talvez porque a estrutura simplesmente não funcione mais, em especial nas grandes cidades, onde a alta carga horária, as longas distâncias e a dificuldade de deslocamento determinam que outras atividades sejam realizadas enquanto se deveria dedicar à produção. Consultas médicas, pagamento de contas, correio, burocracias, estudo, questões pessoais, compras em geral, manutenção da casa, entre outras.

Surgem aqui e ali algumas tentativas de adaptação: home office, horários alternativos, banco de horas, jornadas reduzidas e mais focadas etc. Assim como há demandas oriundas das novas tecnologias que embaçam a fronteira entre folga e prática profissional, provocando o exercício de atividades fora do período determinado: whatsapp, emails, internet em geral, que mantêm todo mundo conectado e põem em questão as velhas relações trabalhistas entre empregadores e proletários. Afinal, em que momento estamos trabalhando? Quando deixamos realmente de trabalhar?

Transforma-se até mesmo o conceito de trabalho: ao invés da produção quantitativa, resquício da Revolução Industrial, há também o qualitativo, que não se mede com facilidade e prova seu valor por outras vias, opera por outros sistemas.

Claro que isso não se aplica nem reflete dilemas de todas as categorias ou de todas as cidades, mas, no geral, há demandas por novas organizações de tempo. Isso não é difícil perceber.

Existe o tempo natural, relativo ao nascer do sol, à movimentação dos planetas, às estações do ano, às luas e marés. Por sua vez, existe também o tempo cultural, do relógio que nem sempre conseguimos acompanhar.

Em São Paulo, por exemplo, levo entre trinta minutos e duas horas para chegar ao escritório, conforme as situações adversas que fazem da rotina algo imprevisível. O tempo cultural, atualmente, é inventado para sobreviver neste mundo de excesso: jornadas em que se troca o dia pela noite, supermercados 24h, bancos 30h, finais de semana utilizados para solucionar pendências remanescentes dos dias úteis e assim por diante. A escola dos filhos é incompatível com o horário dos pais, que precisam se desdobrar. O atraso deixa de ser exceção. O comércio passa cada vez menos tempo fechado.

Às vezes o estresse surge mais por conta da desconexão dos tempos do que pela quantidade de tarefas. Surge também a ansiedade por viver algo antecipadamente, por se adiantar aos problemas. Somos dominados pelo imediatismo: a necessidade de fazer primeiro, de chegar antes da concorrência, de ser inédito sempre.

Exploramos o máximo do tempo. E somos explorados em contrapartida. Panetones começam a ser vendidos cada vez mais cedo, perdem o simbolismo e se tornam um produto de consumo como outro qualquer. Frutas de época agora estão disponíveis durante o ano inteiro. As luzes da granja são usadas para acelerar o crescimento dos frangos, coitados. O homem transforma o tempo conforme convém ao momento, sem muita noção das consequências.

Essa correria traz uma nova ordem. O consenso parece impraticável, e a busca é por espaço para o dissenso. Ao invés de forçar métodos do passado, precisamos reinventar o presente. Pode ser que dê certo. Só não sabemos até quando.

Descobri que em alguns lugares virou moda a prática do nadismo: um tempo que as pessoas reservam para não fazerem nada, ou seja, uma tentativa meio paradoxal de resistirem aos excessos do dia a dia. Paradoxal porque tem hora marcada para acontecer. Imagino uma agenda lotada, na qual um dos compromissos é não fazer nada durante uma ou duas horas por semana. Ou seja, uma agenda ainda mais lotada porque o fazer nada é outro compromisso assumido. Uma tentativa ilusória de liberdade que acrescenta um novo nó à corda da escravidão.

Com ou sem nadismo, os prazos a cumprir continuam implacáveis. A sabedoria popular diz que tudo tem seu próprio tempo. Pode ser que sim. Será que temos paciência para esperar?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ESQUERDA DE DELEUZE



– O que é ser de esquerda para você?

 – Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não veem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo, depois a França etc., até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro se percebe o horizonte.

– Mas os japoneses não são um povo de esquerda…

– Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode durar mais. Não é possível essa injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser ou devir minoria. Não deixar devir minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário.

– É vazio.

– O homem macho adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

[transcrição da entrevista com Gilles Deleuze disponível no vídeo]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A TRANSDISCIPLINARIDADE E A MODERNIDADE

"Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo – que crê que o real se pode deixar fechar na ideia, e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias."

ROQUE THEOPHILO
A Transdisciplinaridade e a Modernidade

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

já dizia o inferno:

pode vir
crente
que eu estou
fervendo

['homenagem' a Leviano Fidelix]

sábado, 4 de outubro de 2014

na minha época
significa algo
existente ou não
mais
e quem o diz
ainda existe
ou já
desistiu?

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

HOMEMFOBIAS

polícia mata
duas pessoas
e meia
toda noite
em SP

(deixa a outra
metade
para o dia
seguinte)

enquanto
a outra
mata
todo dia
em SP

porque volta
e meia
policia
também

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

ÚLTIMAS PALAVRAS ANTES DAS ELEIÇÕES

Domingo, votarei em causa própria. Votarei num índio para senador, numa tetraplégica para deputada federal e num gay para deputado estadual. Não sou índio, tetraplégico ou gay. Mas acredito que quem defende essas causas precisa de espaço na política. E não adianta votar em candidato que promete colocá-los no colo e cuidar com carinho. Que promete ajudar. Eles não precisam de dó. Precisam de espaço. Estão lutando por uma sociedade mais justa. Se conseguirem, minha causa própria estará satisfeita.