Pesquise aqui

segunda-feira, 13 de junho de 2016

SOBRE AS RUÍNAS DO HOJE

Uma criança constrói um castelo à beira-mar. Um castelo de sonhos, desejos e ilusões. Cuja estrutura de areia não resiste à primeira onda mais forte. A criança tenta protegê-lo, atira-se à frente; pensa que pode, sozinha, conter a catástrofe. Não adianta. Na investida da água, ela e o castelo desmoronam. Então o mar recua, e a criança, com a inocência que lhe é natural, põe-se a construir um novo castelo. No mesmo lugar do anterior, com a mesma forma, a única que conhece. À distância, a onda observa seu esforço.

A criança cresce, o reino ganha a dimensão do real, o lúdico se desfaz. Seus encantos se contaminam pelo excesso de verdade, de lógica e de razão. No paradigma em que vive já não há lugar para o simbólico, o mítico ou a fantasia. Há somente a consciência e a permanência da crise. Ela olha ao redor e percebe todos os castelos arruinados, tentando sobreviver à inércia, levando-se a sério, apesar de tudo. Fundamentados num modo de agir ilusório, que já não condiz com as demandas do presente. Mesmo as instituições novas, que se propõem substituir as precedentes, logo desmoronam, pois são erguidas conforme um modelo falido. Ainda assim os muros se elevam, a desordem interna é mantida e administrada para que o controle da ordem seja mais desejado do que a revolução. O autoritarismo de alguns explora a impotência de outros. As violências produzem novas formas de violência. Invoca-se o medo, assume-se o patético. Que vêm anunciar um final iminente.

Diversos círculos (1926), de Vasily Kandinsky

Até pouco tempo os fragmentos daquela ruína eram inspiração de certo romantismo; agora se transformam na linguagem da decadência. Vestígios de utopias que não se recuperam, exceto pela ilusão de edificar novamente o passado longínquo, um pressuposto desconhecido senão pelo que se conta a seu respeito. Passado a limpo pelas bateias da História.

As energias se exaurem. Entretanto o fim nunca basta em si mesmo. Algo sobra para indicar novo início. Algo larval, que pode gerar forma qualquer de existência. "Não se trata de deplorar essa realidade, mas de constatá-la. Pois talvez se esconda, no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um grão de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma experiência futura", diz Giorgio Agamben.

É esse ser qualquer que vem, é dele que precisamos cuidar. Abrir espaço na melancolia, retirar o acúmulo de entulho, inventar lugar algum onde aquela larva possa desenvolver sua potência, seu devir humanidade.

Como? Despojando-se do moralismo, da tradição, das regras do jogo. Tudo para fazer valer o mais importante: o direito aos direitos. Garantir, qualquer seja a comunidade porvir, que ela tenha direito à emancipação que desejar. Que possa partilhar o sensível, afetar-se, transfigurar-se. Que possa e consiga inventar desvios em desconformidade com o estabelecido, o mal ordenado e mal construído. Cuja contestação se formule à parte do senso-comum.

Se o desfazimento é incontornável, ainda podemos criar e sustentar lugares de refúgio, repouso, acolhimento, diálogo, experiência, invenção. Lugares poéticos e provisórios, sutis e delicados; algo heterotópicos, que contradigam todos os demais lugares, como pensava Michel Foucault. Lugares ambíguos, feitos de sonhos localizados na realidade, feitos da mistura de incompatibilidades; onde exista habitat para o dissenso, onde proliferem outras relações com o tempo, onde todo dispositivo fascista seja desarmado pelos artifícios poéticos. Lugar sem lugar, como um barco à deriva no mesmo oceano em que deságua o rio do esquecimento. Um imenso limiar, uma passagem sem limites.

Não cabe defender modelos nem reproduzir discursos esgotados. A ética do contemporâneo está em defender aquilo que vem. Por meio do difícil método da criação sem finalidade nem objetivo, que possibilite essa vinda sem pretendê-la solução, cura ou salvação. Está em preparar o espaço, cuidar das poéticas e políticas do sensível, abri-las ao desconhecido. É preciso coragem para se desapegar das estruturas enrijecidas, sempre de prontidão para confortar a opinião preguiçosa, que não flexiona, não reflete nem dialoga. Também é preciso acreditar naquela existência que está para ser inventada. Uma convicção intensa o bastante, de maneira que esse desconhecido sobreponha o medo que paralisa todos nós. É somente assim que evitaremos sufocar, nos escombros dos nossos ingênuos castelos de areia, o ser que vem. As ruínas estão dadas. A onda continua à espreita.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

fora tudo
do lado de fora
enquanto dentro nada
afunda atrás
de desatar um nós
que nunca existiu
na real
é posta de lado
incipiente
mulher da vida
sem eira
nem beijo

sábado, 4 de junho de 2016

PRÊMIO SESC DE LITERATURA: MENÇÃO HONROSA

Pintura nº. 125, de Felipe Góes
Este é um post para expressar a imensa felicidade que a notícia me trouxe: meu romance Bem diante dos meus olhos foi um dos três premiados no Prêmio Sesc de Literatura deste ano, entre os 794 inscritos em todo o Brasil. Um reconhecimento muito importante, eu nem imaginava! Estou tremendo desde que recebi o telefonema com a informação.

O mesmo livro já tinha recebido outra menção honrosa, no Projeto USP Nascente de 2015. E continua inédito! Quem sabe alguma editora não se anima a publicá-lo?

Tem mais informações sobre a premiação aqui: Resultado do Prêmio Sesc de Literatura 2016


Se você ficou curioso, cá está o trecho inicial:

BEM DIANTE DOS MEUS OLHOS

Papai morreu hoje. Talvez ontem, não sei dizer. O velório acontece ao redor. Estou sozinho num canto há... Sei lá quanto tempo. A bateria do celular morreu também, não sei que horas são. Também não importa, faz muito tempo. Muito tempo que estou aqui. Não conheço ninguém, me sinto um estrangeiro, perdido e ignorado. Bastante gente compareceu, por incrível que pareça. Bem mais do que eu imaginava. Papai fez vários amigos nos últimos anos, não tive como conhecer todos.
      Ora, quem eu quero enganar? Não conheço nenhum desses velhinhos que entram de cabeça baixa e vão em silêncio até o caixão dar uma olhada no que o futuro lhes reserva. Futuro breve, pessoal.

      Encaram-me com um misto de pena e indagação, escolhem uma cadeira e ficam parados ali, alguns sustentando as mãos na bengala, bem velhinhos mesmo, de olhos fechados, rezando, talvez cochilando em silêncio. Um silêncio fúnebre, se me permite o trocadilho.

O silêncio é o problema. Ao contrário do que eu esperava, saber que jamais ouvirei a voz de papai novamente é triste e um pouco angustiante. Pelo jeito, hoje é um dia de surpresas. Estou decepcionado.

Os amigos de papai me observam, porém não me reconhecem. Talvez a maioria nem saiba que eu existo. Ou que estou vivo. Talvez sequer ouviram falar de mim. Devem estar surpresos também – não esperavam alguém tão jovem? Sim, eles têm dúvidas se sou quem imaginam, está na cara.

      Isso é tudo suposição, claro. Ninguém veio me perguntar nada. Ninguém veio dar os pêsames – é assim que se diz? Dar os pêsames? É a terna indiferença do mundo. Ainda bem. Não sou mais o homem das respostas. Não quero ser, ao menos por enquanto. Estou feliz assim. No fim das contas, é melhor o silêncio.

Bebo café com leite morno, quase frio. É horrível, a pior temperatura. É quando eu sinto mais o gosto. Detesto café com leite. Nunca gostei, desde criança. Papai dizia que era bom tomar café com leite antes da escola e molhava meu pão com manteiga na xícara. Fazia para me provocar. Queria ver minha cara de indignação. Aquilo era o fim. Não bastava ter que beber o café, ainda estragava o pão, tudo ficava com gosto ruim de café com leite. Morno, quase frio. Papai sabia ser desagradável. Não estou dizendo que sabia ser desagradável quando queria. Ele era assim o tempo todo. Fazia questão. Este café, agora, só bebo porque foi trazido por uma senhora do asilo a quem papai contava tudo, segundo o que ela me disse. É para enganar o estômago, você deve estar com fome. Ajuda a aliviar a cabeça. Faço o esforço. Enquanto penso, o café esfria. Sempre um dilema.

É como se eu conhecesse você desde sempre – ela me abraça meio sem jeito por causa do bule e dos copinhos de plástico, evitando derramar tudo em cima de mim, e prossegue na tarefa, dedicada. Quase acredito em suas palavras.
      Sei tudo sobre você, a senhora me disse. Seu pai contou. Observo. Talvez tenha sido a última namorada de papai. Tem seu charme, admito. Gosto das feições entristecidas, elas me atraem, são sinais de gente vivida, de experiência verdadeira. É visível que se mantém ocupada para disfarçar a dor da perda, servindo café com leite aos presentes. Para pensar em outra coisa. Ajuda a aliviar a cabeça, ela me disse. Ou porque sente que é sua obrigação, já que foi a última companheira do morto. Um tipo de obrigação conjugal implícita, uma obrigação moral. Parece uma senhora simpática, dessas que se divertem com qualquer bobeira, qualquer bate-papo, um carteado à toa no meio da tarde. Dessas que se contentam com novela, biscoitos, tricô e café com leite. Talvez um pedaço de bolo recém-tirado do forno, sim, uns minutinhos atrás, ainda quente. A manteiga escorre pelo bolo, libera aquele perfume sedutor de colesterol. Papai tinha dom para encontrar mulheres decentes, considerando o exemplo que era minha mãe. Os opostos se atraem? Talvez sim, infelizmente. É difícil demais livrar-se do seu oposto, a imantação é forte demais. Conheço bem o caso. Ao menos uma coisa ele fazia direito, sem motivo para reprimendas. Encontrar alguém que o aturasse.

      Ela diz que me reconheceu pela maneira como papai me descrevia. Não seria difícil: neste lugar sou o único não senil. Ainda. Sem foto, só descrição mesmo. Percebo isso nas entrelinhas. Eu sou bom, um menino de bom coração, que encara a vida com seriedade e sabe resolver as coisas com a rigidez necessária, usando a cabeça. Um bom menino? Papai deve ter me descrito como um crápula, essa é que é a verdade. A senhorinha mal consegue disfarçar. Ou com indiferença, talvez papai tenha falado de mim en passant, seria bem típico, apenas duas ou três frases quaisquer, meio desconexas. Sim, a velhinha só está exercendo sua simpatia nata, é muito boa nisso. Tanto que nem me dá muita bola. Deve me achar um bastardo sem coração. Vou superar, ela diz. Vou superar isso tudo. É muito boa mesmo. Concedo a ela aplausos imaginários.

A verdade – ou o verdadeiro? – não pode ser verossímil, diz uma máxima clássica, se não me engano. A verdade ou o verdadeiro? Não me lembro ao certo. Papai vivia dizendo esse tipo de bobagem, a que eu só fingia prestar atenção. Ok, não dá para saber até onde vai a verdade. É bom todo mundo saber disso, embora quase ninguém se importe. As pessoas gostam de ser enganadas, compactuam na maioria das vezes, tenho milhões de exemplos, quer ouvir? Que seja. Nunca dá para saber. Se a mentira tem perna curta, a verdade nem perna tem. Ela rasteja. Sim, a verdade rasteja. Tenho milhões de exemplos que não vêm ao caso, não agora. Prefiro não mexer com ela, prefiro não mexer com seu veneno fatal. Por quê? É simples. Não quero acabar como papai.

Se ele falava de mim, esqueceu de mencionar minha aversão a café com leite. Deve ter havido oportunidade entre uma lorota e outra, durante o papo furado com que ocupava o próprio tempo e o dos outros. Ah, papai... Eu daria tudo por um café preto forte, sem açúcar. Um levanta defunto, se me permite o sarcasmo. Serviria para animar um pouco esse lugar, afastar o tédio. Talvez também para fazer o tempo caminhar depressa. Está abafado aqui. Queria saber que horas são. A madrugada é inerte. Preciso sair. Será que existe padaria 24h neste fim de mundo? Não sinto fome alguma, não é isso. Só aceitei o café por educação. Não se deve discutir com uma senhora como essa. Não se discute num lugar como este. Isso não se faz.

Quando o cansaço me surpreende, vejo de relance um velho amigo de papai. Abro os olhos e ele está ao meu lado. Um conhecido, afinal. Não exatamente uma presença reconfortante, mas... Um amigo de infância, desses a quem ele se apegava e mantinha por toda a vida sem ter razão alguma para fazê-lo. Jamais compreendi uma só atitude sua, e ele sabe disso. Ele sabia. O velho olha o caixão, depois se volta para mim um instante sem dizer nada. Suspira, dá os pêsames com solenidade, abaixa a cabeça, abaixa a voz etc. Consigo controlar uma vontade repentina de sorrir. Gargalhar talvez fosse mais sincero. Abro os olhos uma segunda vez e ele continua ali. Ficamos lado a lado, bebericando e observando. Não tenho assunto para puxar nem quero papo. Saio para respirar, espiar a noite, e ele vem junto sem ser convidado. Parece oferecer apoio. Acho gentil. Fazer o quê?

O silêncio do velório ecoa aqui fora. Céu estrelado, ar estagnado, verão. Calor típico dessas cidadezinhas do interior. Como nas profundezas do inferno. Talvez um sinal? Sorria, vá! É só uma piada. Foi mal, hein, papai? Mal aí, desculpe.

      Que se dane, o tempo está agradável, comparado com o clima dentro da sala, embora eu preferisse um pouco mais frio, com certeza. Um friozinho gostoso, uma manta, um sofá macio. Um tempo desses e eu aqui, num velório. Não passa um único carro na rua, nenhum bêbado ou boêmio, seja qual for a diferença, ninguém aproveita a noite. As luzes cansadas dos postes clareiam em vão. Minhas pálpebras trepidam com elas, abro os olhos e a vista falha. Pressão baixa, será? Odeio calor.

O amigo de papai olha para o fim da rua, depois para o fundo do copo, depois para o fim da rua novamente. Vai longe. Pergunto como estão as coisas e ele responde "bem". A questão retorna, ele quer saber como estou me sentindo. Papo de elevador. É constrangedor. Como é mesmo o nome do sujeito? Sem saber a maneira adequada de responder para não parecer indiferente demais com o morto ou manifestar minha vontade real de sair dali o mais rápido possível, dou de ombros. Desejo voltar para casa o mais rápido possível. O velho balança a cabeça afirmativamente, concordando. Era o que esperava de mim, suponho. Não que eu me importe também. Não estou nem aí para o que ele pensa.

Passados alguns minutos, o velho comenta: – Achei que você não tomava café com leite de jeito nenhum.

(...)

sábado, 28 de maio de 2016

A PARTE DO LEÃO


A Vaca, a Cabra e a paciente Ovelha se associaram um dia com o Leão para gozar de uma vida tranquila, pois as depredações do monstro (como o chamavam pelas costas) as mantinham numa atmosfera de angústia e inquietação da qual dificilmente poderia escapar se não fosse pelas boas.

Com a conhecida habilidade cinegética dos quatro, certa tarde caçaram um ágil Cervo (cuja carne, por falar nisso, repugnava à Vaca, à Cabra e à Ovelha, acostumadas como estavam com as ervas que colhiam) e de acordo com o convênio dividiram o enorme corpo em partes iguais.

Aqui, proferindo em uníssono toda espécie de queixas e juntando ainda a incapacidade de defesa e extrema debilidade, as três se puseram a vociferar de modo acalorado, combinando antecipadamente em ficar também com a parte do Leão, pois, como ensinava a Formiga, queriam guardar alguma coisa para os dias duros do inverno.

Mas desta vez o Leão nem se deu ao trabalho de enumerar as conhecidas razões pelas quais o Cervo pertencia só a ele, e o comeu todo ali mesmo de uma sentada, no meio dos enormes gritos das três, entre os quais se escutava expressões como contrato social, Constituição, direitos humanos e outras coisas igualmente fortes e decisivas.

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A OVELHA NEGRA


"Em um país distante existiu faz muitos anos uma Ovelha negra.
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido lhe levantou uma estátua equestre que ficou muito bem no parque.
Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura."

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso

terça-feira, 17 de maio de 2016

A ARTE DO ESQUECIMENTO


Haveria essa exposição em Lethe, um vilarejo incrustado nas montanhas do Nepal, distante dos clichês culturais que engordam sites de viagens, afastado dos circuitos turísticos mais populares de todos os tempos. Uma exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, com sutis intervenções curatoriais, proposta por uma artista que preferiria não fazer – se possível ela apenas seria, existiria, aconteceria. Pois haveria, distribuídos pela sala expositiva, livros encadernados com papéis vulgares, oriundos de cantos desconhecidos do planeta. Páginas e páginas em branco, imbuídas de narrativas desviantes, numa lógica irracional. Haveria também fragmentos do Mapa absoluto revelado por Borges, produzido por antigos Colégios de Cartógrafos na exata medida do Império que esquadrinhava, coincidindo pontualmente com ele. Perfeição tamanha que o tornou inútil – as ruínas do Mapa acabaram nos desertos do Oeste, habitadas por Animais e Mendigos. Tais fragmentos foram cuidadosamente selecionados para que a sua "linguagem de um fim" aludisse à decadência das utopias modernas.

Faria parte do programa emancipatório do museu cultivar as artes do encontro, da narrativa e do esquecimento. Todos os dias, habitantes de Lethe sentir-se-iam convidados a ler seus particulares livros manuscritos, seus papéis biográficos vulgares; contariam os acontecimentos daquele vilarejo onde nada acontece, como se vê, conforme acreditam as pessoas de fora, cidadãos de lugares onde acontece de tudo, conforme acreditam cegamente.

Chega uma senhora para contar do marido, morto num incidente anos antes, que foi visitá-la logo cedo. Fizeram o desjejum com chá preto, tâmaras e figos, pão seco e coalhada, seus alimentos favoritos. Passaram cerca de duas horas muito agradáveis em companhia um do outro, relembraram amores antigos, confortaram-se. Até o marido pedir licença e retornar à eternidade.

Uma menina contou que o universo seria muito menor do que imaginamos. Foi o que concluíra durante a aula de universidades, quando notou que o homem é a medida de toda a cultura; que só é capaz de ver o que cabe em seus olhos.

O padeiro de Lethe revelou que consertava relógios num continente vizinho, até incerto dia em que o pensamento se adiantou: nada acontecia quando os mecanismos deixavam de funcionar! O Sol e a Lua não se atrasavam. Em tempo, deduziu que seu trabalho tratava de uma ilusão aprisionante. Mudou-se para Lethe, onde faz pão, onde a massa cresce conforme a própria vontade. Às vezes antes da fome, às vezes depois.

Uma cabra baliu que a relva no alto da montanha é mais saborosa. Ao compartilhar tal sentimento, percebeu que, acaso morasse por lá e só provasse daquele sabor, a relva do sopé possivelmente lhe pareceria melhor. Além do mais, no inverno há neve no alto da montanha, ponderou a cabra. Tanta neve quanto não há relva.

Um grupo de velhos amigos cantou uma coletânea de odes ao passado, sobre costumes antepassados, sobre heróis que ninguém mais conhece, cujos grandes feitos parecem hoje pequenos e sem propósito. Alguns velhos não tinham certeza dos versos, mas continuavam a cantar, mesmo sem harmonia, com vozes dissonantes. Cantavam como podiam, num coletivo que jamais desafina. Não se tratava de cultuar o passado, mas de fazê-lo presente conforme ainda ressoasse.

Houve mais, muito mais; realizações sem registro técnico, apenas registros sensíveis. Por vezes sequer havia alguém a ouvir as histórias narradas pelos visitantes do museu. Elas existiam por si mesmas, celebravam o próprio ato da contação. Nenhuma era maior que a outra; não havia como mensurar intensidade, extensão ou relevância. Não havia como contá-las, pois interessava a qualidade mais do que a quantidade. Uma começava antes mesmo que a anterior estivesse finalizada. Essas histórias fizeram a exposição durar enquanto durou. Foram elas que fizeram o museu existir enquanto existiu. Terminadas, se é que terminaram de verdade, a tradição já não estava na linguagem, mas na consistência dos corpos que a carregam como a um fardo.

Da exposição se produziu um catálogo adornado com singelas páginas brancas, posteriormente distribuído a bibliotecas e a influentes intelectuais de todo o mundo. Não há nada escrito na capa, na lombada, no verso, na folha de rosto, no prefácio, no índice, no glossário. Não há texto, tampouco há imagens. Trata-se de um livro impecavelmente branco.

As cópias restam esquecidas, sem catalogação nem carimbo oficial, numa prateleira qualquer. Jamais publicaram resenha a seu respeito. Certos intelectuais sequer retiraram o invólucro. Outras cópias repousam em locais desconhecidos, aguardando o leitor desatento que as encontrará.

No museu, o texto de parede situava o visitante:

Para os antigos gregos, a palavra lethe significava "esquecimento". Seu oposto, alétheia, representaria a verdade, o desvelamento, a base de toda crença e de toda forma de realidade. A verdade é o que permanece. Ou seria o contrário, o que persiste na memória acaba por se fazer verdadeiro para os homens de juízo e boa intenção?

Lethe é também um rio do Hades. Quem bebe das suas águas abandona uma existência, uma cultura, um espaço e um tempo. Esquece quem foi, torna-se porvir. Toda verdade abandonada num processo de assepsia do real, à margem da excessiva humanidade. Livre.

Li a respeito do vilarejo de Lethe um dia desses, em algum lugar. Chega-se a ele através de um imenso rio de águas cristalinas, muito convidativas. Além dele, nada há.

Haveria essa exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, uma exposição que nunca existiu.

Haveria, no lugar, somente uma inquietação: qual história perdurará?

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A ESCRITA CONTRAPRODUTIVA


O que significa escrever nestes tempos de alta tecnologia de comunicação, de imensa produção e consumo? Quando mal terminamos a mensagem e o destinatário já está a ler? Quando o leitor, cada vez mais ansioso, deseja significados e sentidos prontos, bem formatados, fáceis de reconhecer, entender e de concordar com eles? O que significa escrever para além das palavras, dobrando a língua, torcendo a moral? Escrever como ato de resistência e/ou dissidência, a inventar não-lugares? Escrever sem reproduzir discursos prontos, ideologias, preconceitos, verticalidades, pretensas verdades. Uma escrita que seja também ato político; que provoque, pela experiência estética, certa perturbação da ordem, certa reformulação das leituras e dos leitores. Que pode ser delicada; um toque sutil. Não necessariamente uma escrita combativa e muito menos persuasiva; mas sim uma que dissolva, areje, desconstrua; que seja dissonante e dissensual. Qual é o lugar dessa escrita hoje, no país em que vivemos, na situação que enfrentamos?

O escritor que percorre caminho tão inseguro está por fora, não está com nada. Está de parabéns. Seu trabalho não presta, seja ficcional ou não; o que significa que não alimenta o maquinário produtivo deste sistema de dominação e submissão, não dá corda à própria forca. Pois inventar um mundo de palavras implica, ao mesmo tempo, inventar o "mundo real" por meio das palavras.

Que seja descoberto em camadas, cada vez mais fundo; que não dite regras nem explique nada, não estabeleça certo ou errado. Um convite ao diálogo. Que pergunte mais e responda menos, incentivando a vontade de questionar e refletir. Que não subjugue nem menospreze o leitor, mas em vez disso o desloque do conforto da luz na direção das sombras desconhecidas. Que permita a ele, nessa escuridão sem fim, sonhar com horizontes mais encantadores.

Em entrevista ao jornal Rascunho, publicada na edição de fevereiro deste ano, Gonçalo M. Tavares fala da protagonista de seu romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. Chama-se Hanna e é portadora da síndrome de Down. Tida como frágil pelos demais personagens, revela uma potência inesperada. O autor explica: "Essa ideia de que a fraqueza pode gerar novos acontecimentos me parece importante. Nós estamos muito habituados a pensar que é a força que gera acontecimentos, que a força é que faz as coisas, e o que vemos em muitos episódios do livro é que a fraqueza potencializa situações, que a fraqueza e a fragilidade de Hanna é que mudam muitas vezes as condições". Gonçalo notou esse movimento entre os portadores da síndrome com quem trabalha há vários anos e fez dele literatura. Em vez de inferiorizá-los num dramalhão, ele reverte a passividade costumeira e dá a ver seus conflitos.

Luiz Ruffato pensa de modo similar. Acusado de ser "difícil", portanto um "escritor para intelectuais", ele rebate com uma aula de política nada assistencialista: "Esta posição pressupõe que se o outro é um proletário, então ele é imbecil, ele só vai conseguir ler um texto ordenado de forma básica. (...) O mundo que eu quero é o mundo em que as pessoas tenham condições de ler qualquer coisa. (...) Aquela linguagem é abertura e não fechamento. Se faço um livro em que falo de favela, usando linguagem absolutamente pobre e falando de violência de uma maneira absolutamente pobre, que graça tem? Qual o sentido de reforçar, com a minha literatura, um pretenso papel de inferioridade do outro?"

Se a política se define como experiência de linguagem e o nosso ser político se forma em atos de linguagem – conforme Marcia Tiburi explica no livro Como conversar com um fascista –, impor ideias ao escrever denota autoritarismo. Pois a língua é um lugar de poder. Cujo exercício autoritário se dá no discurso que nega ou desautoriza o outro em prol da verdade do autor. Ao mesmo tempo, é pela palavra que as pessoas vulneráveis ou fragilizadas podem se empoderar e fazer corpo político – então devemos abrir ouvidos àquelas vozes e nos esforçar para que, ao falarem, adquiram sua emancipação.


Como criar estratégias que abram o texto à experiência de leitura, ao invés de fechá-lo num sistema pré-concebido que somente reproduz a lógica do entretenimento? Que ampliem o vocabulário e, com ele, os limites da língua, tanto quanto o nosso entendimento sobre o outro? Esse é o desafio que rompe com o banal e apresenta a possibilidade de uma experiência estética. Olhar atentamente para tal questão resulta em escritores melhores, textos melhores, leitores melhores e, afinal, um mundo melhor. Esse sistema de retroalimentação opera por instabilidade. Porque é somente assim que podemos transformar o ser humano a tempo de evitar o colapso.

Precisamos criar um país de leitores. Lemos pouco e lemos mal. Cidades sem bibliotecas públicas são inconcebíveis. Escolas sem bibliotecas idem. O projeto social que fará um Brasil inteligente, propositivo, autocrítico é a implantação de uma rede de bibliotecas ativas, com bom acervo, bons profissionais e boa programação cultural. Se não é este governo autoritário e manipulador, seduzido pelo poder, que promoverá tamanha transformação, cabe aos escritores, às editoras, aos pais, alunos e professores, às associações civis e, no limite, à sociedade em geral exercer a tarefa.

A boa escrita desmancha realidades para que possamos fantasiar outras mais interessantes. Para que sentimentos ganhem forma. O bom texto não é estático nem preso ao seu tempo; é um fluxo de forças que percorre culturas; é a energia e também o alicerce para humanidades mais conscientes de si, dos seus problemas e soluções possíveis. É o único caminho? Não. Mas é ainda um caminho. À margem da via excludente, fria e agressiva da produção capitalista, preocupada apenas com desempenhos do mercado. A escrita necessária vai à contramão: prefere transitar pela presença, pela sensibilidade, pelo conhecimento, pela desconfiança e pelo diálogo. Prefere inventar o caminho enquanto transita por ele. Um caminho de ética e poética.


Obs.: As imagens que compõem este texto são excertos do Caderno de Escritos de Janmari, publicado na França em edição fac-símile.

domingo, 10 de abril de 2016

O CÃO


Às vezes eu acordava de madrugada e ia até o quarto de meus pais, querendo dormir com eles. Dizia ter pesadelos, de modo que me deixassem ficar. Nem sempre dava certo, mas tudo bem, custava apenas uma mentirinha e na maioria das vezes, exaustos, eles simplesmente se afastavam para os cantos, abrindo espaço onde eu me encaixava. A cama era pequena, porém suficiente para o meu tamanho.

Houve uma noite em que, no longo corredor que separava nossos quartos, deparei-me com um cachorro de olhos vermelhos e dentes tortos. Ele estava lá e rosnava, impedindo-me de avançar. Era pequeno, porém muito ameaçador. Fiquei paralisado, encarando o animal que brilhava, iluminado pelo luar da claraboia. Pensei em voltar a dormir. Ele anteviu meus movimentos e saltou para o ataque. Gritei.

Minha mãe abriu a porta do quarto na mesma hora, perguntando por instinto o que tinha acontecido. Meu pai saltou atrás dela e ambos se ajoelharam para me olhar nos olhos. Eu soluçava, sem fôlego.

Passado o susto, meus pais admitiram já não acreditar nesses pesadelos. Só me deixaram dormir na cama com eles quando perceberam a dentada profunda em minha canela, sangramento que demorou a estancar.

Passamos a noite seguinte juntos, numa cama de pensão. Voltei àquela casa apenas uma vez, acompanhado da equipe de mudança. Os carregadores estavam apressados e tremiam. Ouvi murmurarem que era por causa do cão. Para mim, estava evidente.

quarta-feira, 30 de março de 2016

IMOLAÇÃO DE SI

“Quando o vi pela primeira vez, meu avô estava numa foto em uma lápide. Eu tinha apenas cinco anos de idade, meu pai me carregou no colo e pediu que eu beijasse o seu retrato” (trecho de A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf).


De onde viemos? Quem somos e por quem somos? O que nos constitui, qual é o nosso estofo? Quanto devemos ao passado, inclusive àquele mais distante, imemorial, cujos pontos de referência se perderam? São questões que a religião tenta iluminar com seus textos sagrados, portanto não é absurdo afirmar que há muito tempo é pela literatura que tentamos desvendar a origem e a essência do ser.

No ensaio intitulado Tradição do imemorável, o filósofo Giorgio Agamben diz que toda transmissão de conhecimento – portanto toda tradição – pressupõe também a transmissão da própria linguagem, e que é por meio dela que o passado chega a nós. Transmitimos, por sua latência, a própria ilatência; alimentamos assim a tradição da transmissibilidade. “Esse legado imemorável, essa transmissão da ilatência constitui a linguagem humana como tal. [...] Por isso a filosofia, que quer dar conta dessa dupla estrutura da tradição e da linguagem humana, apresenta desde o início o conhecimento como preso na dialética memória/esquecimento, ilatência/latência, aletheia/lethe”, explica.

Essa problemática está implícita em A imensidão íntima dos carneiros, embora o romance passe longe daquelas complicadas filosofias. O que Marcelo Maluf fez foi investigar empiricamente o passado da própria família para depois o reinventar num texto leve, simbólico e tocante, que tem algo de fantástico; características antecipadas por Esquece tudo agora, seu livro de contos publicado em 2012.

Finalista do prêmio da APCA e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, esse primeiro romance do autor trata da relação entre avô e neto, que não se conheceram pessoalmente, dado o falecimento precoce do primeiro. Ainda assim, sua presença é forte ao ponto de convocar uma jornada mística do neto em busca da própria origem; jornada corajosa, pois sua linhagem inteira estaria enraizada no medo. “O medo estava no princípio de tudo”, diz a frase de abertura do livro. “O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto”.

O personagem Marcelo Maluf visita o avô em sua infância e juventude, acompanhando seus dramas desde as montanhas do Zahle, no Líbano, até Santa Bárbara d'Oeste, cidade do interior paulistano que o acolheu. O desejo do avô por uma fronteira que barrasse as lembranças trazidas na bagagem se revelou um extenso limiar entre o passado e o presente, do qual ele jamais escapou. Embora a guerra tenha ficado para trás, os horrores persistiram, ocupando outro território da sua experiência, provocando feridas jamais cicatrizadas, por maior que fosse o seu esforço de cauterizá-las na memória.

De humana physiognomonia (1586), de Giambattista della Porta
(ilustração do livro)
O narrador explica: “por todos os filhos, Assaad temia. Por isso não lhes ensinou o árabe, amaldiçoou o Líbano e não lhes contou de sua infância, nem de como Rafiq e Adib foram mortos. Assaad dizia sempre que havia renascido para o mundo dentro do navio cheio de imigrantes que o trouxera para o Brasil. Assaad tem a consciência de que aos filhos negou o seu passado”.

Maluf registra fatos abandonados ao esquecimento e lembranças daquilo que não existiu, ou que não foi conhecido senão por meio de relatos anônimos – cultura ancorada na oralidade, que o autor utiliza como recurso técnico, cujas referências de tempo se perderam e que sobrevivem apenas pela transmissão. Tanto que as vozes do avô e do neto se misturam, abrem mão da identidade, até que o conteúdo da narrativa não pertença mais a ninguém específico, somente à própria história, à voz que não pode calar. O narrador se faz todos ao mesmo tempo em que não é ninguém.

Sem compromisso com o realismo, o autor recria sua própria tradição por meio da literatura. Tampouco se atém à cronologia, o que transforma a narrativa num mergulho livre na memória oceânica, nesse lugar sem começo ou fim estabelecidos, feito apenas de meios.

Como narrar uma história e permanecer fiel à realidade? Como transmitir uma tradição se o próprio linguajar a modifica, traduzindo a experiência em literatura, reinventando a vida no texto? “Penso que Assaad talvez esteja com medo de errar ao narrar o assassinato dos seus irmãos”, diz o neto ao observar as tentativas frustradas do avô de registrar num caderno suas inquietações mais profundas. “Medo de não ser fiel à sua história e que ela se apague, como um sonho que se esquece ao despertar”.

Ao transformar a história da sua família em romance, Marcelo Maluf reafirma que a ficção provém da experiência da vida, portanto toda obra fictícia se baseia em fatos reais, não somente aquela etiquetada dessa maneira com objetivo de realizar certo fetiche dos leitores. Todo livro desse gênero tem algo de biografia. Se a matéria-prima da escrita é a vida, a literatura apresenta sempre uma realidade, ainda que mais ou menos misturada à imaginação. Sua “verdade real” é uma utopia. Temos apenas perspectivas ficcionais sobre uma possível ideia de realidade. Tais fronteiras são quase sempre indiscerníveis.

Em A imensidão íntima dos carneiros, Marcelo Maluf se apropriou daquele artifício para expandir a trajetória de sua história pessoal à apreensão universal. Não se trata de um significado particular: é um romance sobre medo, violência, tradição, memória e esquecimento, razão e sensibilidade, divino e profano, mitos e fatos. Questões fundamentais da existência humana, dispostas num livro que pode ser lido de maneiras variadas; desde a trajetória de um libanês refugiado no Brasil, que jamais conseguiu se livrar dos horrores da guerra, à reflexão sobre o fazer literário e sua relação com a experiência cotidiana, com as vivências do autor e a potência de diálogo delas com o outro.

Diz o protagonista: “eu preciso que as suas palavras venham ao meu encontro. Eu preciso devorar o passado para não ser por ele consumido. Dentro de mim, meu avô, também habita um carneiro”.

Em vez de contar sua história pessoal, a seu modo Marcelo Maluf conta uma história de todos nós. Sacrifica a si próprio como a um carneiro. Sacrifica suas lembranças, sua genealogia e sua identidade para dar sentido a uma existência maior, partilhada num banquete por todos os leitores que a desejarem. Faz isso em nome da literatura.


A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf
Editora Reformatório, 2015.

Trechos:

"Uma estrela cadente é um segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois eles contemplaram o último sopro de uma luz". Essa frase esteve presente na família como uma máxima que repetíamos todas as vezes que víamos uma estrela cadente. "Quem foi mesmo que disse isso?", perguntávamos uns aos outros. Esquecíamo-nos da autoria. Essas palavras tinham o mistério necessário para que se transformassem em uma citação recorrente. (p. 31-32)

Passei horas em frente ao seu túmulo, tentando compreender que jamais tornaria a ver o seu corpo novamente, que ele estaria ali por algum tempo se decompondo e que sua imagem iria aos poucos se tornar a minha memória. Eu teria dele as impressões que, a partir daquele momento, comecei a reinventar para mim. Como nossas vidas juntas e os nossos momentos bons e ruins. Tudo seria transformado em experiência que não sei mais o que realmente aconteceu ou o que eu hoje acredito ter acontecido, ou mesmo tenha inventado. (p. 104)

O berro de um carneiro é a sua imensidão íntima, doada em forma de som para o mundo. Quando um carneiro berra, ele expressa a sua angústia, raiva, medo ou alegria. O berro de um carneiro é a maneira dele de se comunicar com Deus. O cristo berrou: "Pai, por que me abandonaste?" (p. 113)

O autor:

Marcelo Maluf nasceu em Santa Bárbaro d'Oeste, interior de São Paulo, em 1974. É músico e mestre em artes pela Unesp. Autor do livro de contos Esquece tudo agora (2012) e do infantil As mil e uma histórias de Manuela (2013), entre outros. A imensidão íntima dos carneiros é seu primeiro romance. Vive em São Paulo desde 1999.

quarta-feira, 23 de março de 2016

ORGULHO FERIDO


O C-47 que eu pilotava foi interceptado com a comporta aberta, a 37ª infantaria paraquedista saltando para trás das linhas inimigas, ponto-chave na reconquista do litoral norte francês.

– O que você está fazendo?

Não precisei tirar os olhos dos caças que perfuraram a fuselagem; eu reconhecia a voz de vovô pelo sotaque alemão, que meu pai não herdara.

– Brincando de guerra! –, respondi.

– De quem ganhou esse aviãozinho? –, quis saber ele. Nenhum detalhe escapava à revista.

– Do seu Vittorio.

Distração é morte certa, soldado! A missão foi retomada assim que ouvi o clique da fechadura.

Dias depois, encontrei outra miniatura estacionada no aeroporto, sobre a cômoda de meu quarto, lado a lado com o C-47. Havia também um bilhete de vovô, que dizia apenas: "Pilote este Junker 52 da Luftwaffe. É melhor que seu yank".

segunda-feira, 21 de março de 2016

O TEMPO DE CADA UM

Relógio de sol em Tiradentes, Minas Gerais

Penso no meu primeiro relógio "de verdade", que já não tinha pulseira de plástico nem personagem da Disney no mostrador. Presente de minha avó. Não me recordo com exatidão a idade. Dez? Doze anos no máximo. Usava-o todos os dias em todos os lugares, quer dizer, de segunda a sexta-feira na escola, fim de semana em casa de parentes. O relógio escorregava de cima a baixo em meu pulso magrelo. O tempo que marcava não condizia com o meu. Até o dia em que matei aula para jogar fliperama no boteco. Tinha acabado de descobrir essas possibilidades. Cedinho, fazia frio, estávamos apenas eu e os bêbados mais dedicados. Enquanto jogava, outro garoto se aproximou, ficou olhando. Quando apenas ele olhava, puxou do bolso uma faca e levou embora meu relógio. A frágil ingenuidade que me restava acabou ferida de morte. Sem festa nem parabéns, naquela hora abriram para mim as portas da vida adulta. Fui empurrado para dentro, passaram a chave logo depois. Ninguém notou nada diferente, nenhum movimento suspeito. Vivo desde então desorientado, incerto, inseguro; sem saber direito quanto tempo me resta.

sábado, 19 de março de 2016

MÃE É AMOR

VERSÃO1: Minha mãe é amor. Minha mãe é amor quando cozinha. Quando jogo bola dentro de casa enquanto ela pica cebolas. Quando jogo bola dentro de casa contra a sua vontade, quando a desobedeço. Quando quebro seu vaso de orquídeas favorito. Minha mãe é amor quando me surpreende ao lado do vaso, em cacos, paralisado. A faca ainda na mão. O cheiro ácido das cebolas. Amor que explode de raiva, berra maldições, agarra a bola e a apunhala na minha frente. A sangue frio. Meus olhos arregalados se enchem de lágrimas, é o único movimento de que sou capaz. Sem ar, tenho o vazio dentro de mim. Reajo assim àquela violência jamais sofrida. É amor de mãe que a faz paralisar também, que solta a faca no chão. É seu amor, somente ele, que a traz para chorar junto comigo.

VERSÃO 2: Eu queria ficar por perto enquanto minha mãe cozinhava. Ela me mandava ao quintal, eu insistia com a bola dentro de casa. Ela berrava sem largar a faca nem a cebola. Eu chutava a bola. Corria, batia nos móveis, quicava nas paredes. Continuei até atingir seu vaso de orquídeas favorito. Eu não tinha ido ao quintal, agora sequer podia dar um passo. Minha mãe sim, deu todos os passos num só. Chegou transtornada. Era outra pessoa, alguém que eu desconhecia. Tudo mudado, menos a faca, ainda à mão. Minha mãe nunca me batia, era uma santa. Naquele dia ela atirou a cebola no chão, agarrou a bola e a apunhalou sem piedade. Eu era apenas olhos, arregalados; jamais me moveria de novo. Chorar era tudo o que me restava. Não pela bola, mas pela mãe, que não era a minha, não podia ser. Chorei tormentas que lavaram sua maldição. Até ela voltar ao que era, aquela mãe amorosa que me envolveu e chorou comigo. Que eu queria para sempre por perto.

quinta-feira, 17 de março de 2016

DESRAZÃO

Que me desculpem os pragmáticos, não acredito em função da arte. Se me perguntarem para que ela serve, respondo com convicção: para nada. Ela não pertence a esse registro típico do capital nem da razão esclarecida; a arte como produto vale somente para colecionadores e como ganha-pão dos artistas e donos de galeria. Se você não é nenhum dos três, usufrua dessa liberdade. Pois a arte pode se apresentar como produto, mas não é o produto em si; é aquilo que se abstrai dele. Você pode pendurar um quadro na parede, encher a biblioteca de livros, convidar amigos para uma sessão de cinema ou de teatro; pode pagar por isso tudo e acabar sem nada. Quantos colecionadores conheci que possuíam apenas dinheiro transmutado em pintura!

O valor da arte, se é que devemos usar esse termo, está na experiência que ela proporciona, ou seja, está na sua relação com as pessoas. Não podemos dizer que uma obra é melhor do que outra sem determinar o sujeito: essa é melhor para você, esta conversa melhor com as minhas questões, aquela os toca profundamente. Colocadas na balança, todas pesam o mesmo; quer dizer, não pesam nada. Não se consome arte a quilo.

Por outro lado, quanto vale a emoção de encontrar uma obra que lhe desconstrói e apresenta outra forma de pensar, fazer, olhar, existir? Que permite a você reorganizar sua subjetividade? A experiência tem efeito alucinógeno. Uma informação se conecta a outra, produz novos sentidos, apresenta uma realidade que estava ali o tempo inteiro e que você não percebia. Isso é magnífico. Descobre-se outro eu, que chega tanto pela razão quanto pela emoção. Essa é a potência transformadora do conhecimento pela arte.

O nascimento de Vênus (cerca de 1484), de Sandro Botticelli

Quando estive na Galleria degli Uffizi, deparei-me com O nascimento de Vênus, de Botticelli, um clássico renascentista. Eu perambulava pelas salas do museu até que, de repente, estanquei diante da pintura; linda, estonteante, muito maior do que eu imaginava a partir das reproduções nos livros. Junto me veio uma onda de sentimentos, que só então ganharam corpo. Eu estava na Itália, pisando o solo de meus antepassados e de muita gente que admirava. Eu realizava um sonho. Via com meus próprios olhos séculos de história espalhados por todos os cantos e me sentia transbordante. Aquilo tomou uma dimensão que eu não podia controlar e tampouco queria. O que pude fazer foi chorar.

Quanto vale essa experiência? Nada. Não há dinheiro que pague, não se mede isso de jeito nenhum. A pintura pode atingir centenas de milhões de dólares, caso colocada à venda. Para mim, não vale nada. Minha relação com ela é imensurável, incomparável, insubstituível; sem valor de troca nem de uso.

Enquanto soluçava diante da Vênus, uma porção de turistas passava, olhava, apontava um detalhe aqui e outro acolá, fazia comentários em sua língua estrangeira, prosseguia a visita. Sabe qual é o valor daquela pintura para eles? Eu não sei. Mas tenho certeza de que cada um contaria algo diferente, se fosse questionado; algo banal ou impressionante, conforme seu interesse.

Muitos ainda não se deram conta de que a arte tem essa potência de nos deslocar do lugar comum para outra realidade e para outro regime de relação com as coisas. É um privilégio que poucos conseguem realizar. Mudar a chave, experimentar diferentes pontos de vista, aproximar-se do outro, recusar absolutismos e permitir a si mesmo experiências transformadoras. Nestes tempos de crises, isso tem uma importância vital.

A arte oferece a possibilidade de nos afastar dos excessos, da lógica maniqueísta, da percepção condicionada pela mídia e pela moral. No lugar do racionalismo, ela convoca o plano sensível, das poéticas, que também é um meio de apreender o mundo, trocar conhecimento e fazer política. Uma produção impactante ou delicada, abrangente ou profunda, quase sempre ignorada em meio a este automatismo que habitamos e que só existe por nós.

É ignorância enquadrar a arte no sistema de valores cotidiano, que estamos cansados de saber como funciona e que, no geral, só produz violência. Você pode tentar fazer isso, não duvido que consiga, porém nada restará no fim senão um número ou uma razão qualquer. Talvez até o sentimento narcisista de que você poderia ter feito melhor.

Mais uma vez, não se trata de fazer melhor. Trata-se, sim, de se propor a fazer e fazer de fato, de se colocar à disposição da arte e se permitir transformar. Nem sempre é possível, há trabalhos que simplesmente não conectam. Isso significa que não foram feitos para você neste momento, para este você de hoje que, espero, não é o mesmo de ontem nem de amanhã. Pode ocorrer daqui uns dias, pode ser que jamais seja afetado por eles. Tudo bem, alguma arte haverá de lhe tocar.

Quando julgamos a produção de um artista, falamos de nós mesmos e em nosso próprio nome. Quando muitos concordam que é bom, seja porque vende mais ou porque sensibiliza mais pessoas, é provável que ele entre para algum rol, seja de best sellers, seja a História. A essa altura você já supõe o que tenho a dizer: nos termos da estética, tal seleção não significa que o trabalho é melhor do que os outros, por mais que o mercado e a comoção popular insistam no contrário. Não é melhor nem tem maior serventia.

Ao visitar uma exposição de artes, ao ler um livro, ouvir música ou assistir a um espetáculo de dança, tente saber mais sobre o trabalho daqueles artistas. O que os motiva? O que investigam? O que desejam com a obra?

Tente também dispensar o juízo. Sustente esse lugar do não julgamento, afaste as ideias preconcebidas tanto quanto puder; abra espaço na dureza do cotidiano e experimente. Se não gostar, tente descobrir por quê. Sem receio da explicação, ela não precisa fazer sentido. Se o trabalho não lhe disser nada, paciência, acontece. Não há necessariamente nada de errado com ele ou com você. Pode ser que a execução deixou a desejar, pode ser que você não estivesse num dia propício, pode ser que um não interesse ao outro. Tudo bem. Haverá outras oportunidades de viver com arte, se você deixar.

domingo, 13 de março de 2016

INFERNO



O fogo tem esse poder. Destrói a inocência inteira, bastam-lhe poucos segundos. As chamas a consomem, não importa o tamanho, não importa a idade, não importa a natureza. Diante de olhos arregalados resta a impotência de ser e de agir, a dimensão reduzida diante da claridade infinita; cinzas que mancham a eternidade da memória. Resta a certeza da punição desmedida. No terreno devastado brota a culpa. Só ela. A trajetória sem retorno, a rua sem saída. Reclusão, danação. O arredor se agiganta, as paredes se tornam muros, a fiação de arame farpado, as janelas têm grades. Através delas há a decepção do pai, o choro represado da mãe. A desconfiança dos vizinhos, a família que se recusa a acreditar. Dedos apontam em minha direção, ardentes como labaredas, famintos como o inferno. Atiçam-me a carne, açoitam-me a consciência; as bolhas estouram a pele, o sangue irrompe e se esvai de uma só vez na tentativa inútil de apagar a cena, abafar a tragédia, reverter a brincadeira inconsequente. Aquele eu não existe mais, nada dele sobreviveu. As asas queimaram, a queda iminente anunciada pelas sirenes cada vez mais altas. Nada direi em minha defesa. Não há palavra, tudo se foi. Queimei a língua, queimarei a alma. Nada se sustentará. Desabo diante da verdade. Desfaço-me em fragmentos minúsculos. Recolhem os indícios do que fui. Varrem o pó para o calabouço da humanidade. Frio. Faz muito frio aqui.

domingo, 6 de março de 2016

DISSABORES

O colesterol de minha avó chegou a 800. Nem os médicos acreditaram, segundo relato de meu pai. Meu pai gordo adorava os bifes que só minha avó sabia fritar. Os bifes nadando em óleo fervente, os gomos de batata encharcados, o arroz cozido em banha de porco como ela aprendera a fazer ainda menina na roça. Isso tudo deslizava com prazer goela abaixo de meu pai, eu sabia porque via por entre seus dentes ferozes enquanto ele mastigava com vontade, a mandíbula incansável, como se alguém fosse lhe apanhar a comida antes que se desse por satisfeito, como se jamais pudesse se satisfazer.

O cheiro da cebola amolecida na gordura anunciava o almoço para a vizinhança inteira, mais ainda quando minha avó virava sobre ela uma xícara de vinagre de vinho tinto. Então o caldo gritava na panela como se o torturassem. Aquela essência da cozinha de minha avó me impregnava as roupas, os cabelos, a minha própria carne tenra. Não importava aonde corresse eu continuava a senti-la em redor.

A rusticidade daqueles bifes era demais para mim. A carne acinzentada, por descuido tostada em vários pontos, retorcida de agonia. Aquele sumo que escorria em sangue quente, enquanto os soldados rasos de minha boca tentavam a todo custo esfacelar a resistência do pelotão. Eu mastigava e mastigava e mastigava até que restassem somente talhos de tecido fibroso, invencíveis, intragáveis; mastigava até doerem os músculos do rosto, ao ponto de os bifes encouraçados terem somente gosto de minha própria saliva.

Queria largar aquela provação e afundar os dentes até as gengivas no pudim de leite que só minha avó sabia fazer, servido como um céu após o purgatório salgado. Pudim macio e convidativo, sedutor como o próprio nome sugere, "pudim deleite". Que minha avó dividia conforme as visitas. Fôssemos apenas eu, meu pai e ela, a sobremesa seria partida em três pedaços gigantescos, do tamanho quase compatível ao da minha gulodice inocente, do tamanho exato do diabetes de vovó, que papai dizia chegar ao teto. Um pudim de leite que ia até o teto, não tão alto assim, da sua casinha humilde.

Ao contrário dos bifes, o pudim era cremoso, irresistível às colheradas, tão leve quanto pode ser um pudim de leite gordo; furadinho por toda a extensão, não importava onde eu lhe tascasse os dentes ele estaria repleto de caramelo engrossado ao ponto de fio, nem espesso nem ralo demais. Muita calda abaunilhada a lambuzar meus lábios, por vezes meus dedos e minhas roupas. Eu dava colheradas maiores porque queria mais e mais, eu queria mastigar o pudim inteiro de uma só vez, senti-lo acariciar os cantos todos da boca, deitar a língua em seu sabor familiar.

Talvez eu ainda viesse a compreender por que meu pai amava aqueles bifes; talvez chegasse o dia em que eu também preferiria os bifes ao pudim. Isso não tem receita. De qualquer modo, não tive chance de prová-los por muito tempo. O bom senso diria que me foi oferecida uma vida saudável, sem aquela gordura toda, sem açúcar em demasia. Tendência dos dias atuais, das capas de revista. Não tenho certeza se concordo, para se sincero. Para mim, são dissabores. A cada exame médico que me reafirma a boa saúde, sinto gosto de nada. Eles não estão absolutamente corretos. Não há como ser saudável com essa saudade doída que sinto da minha avó, de seus quitutes, de seu sangue mineiro.

sábado, 5 de março de 2016

Azulejaria com cozinha e caças variadas (1995), Adriana Varejão

o tempo rasga com violência
a carne exposta
ao relento, desalento
rápido demais para a não-máquina

o mundo resta inerte
esfacelado em flashes, fragmentos
daquilo que foi, que já não é quase
desejo de recompor vida nova

quase porque não chega
o progresso lhe deixa para trás
abandonado, órfão, desterritorializado
sem teto, sem chão, sem tempo

quinta-feira, 3 de março de 2016

LINGER*

"Do you have to let it linger?", insistia a vocalista da banda. Cranberries. É o nome da banda. The Cranberries. O nome da vocalista eu não sei. Engraçado isso, só agora me dou conta. Ouvi aquela música pela primeira vez no pé da serrinha que divide as cidades de Caraguatatuba e São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Minha memória fica ancorada nos ouvidos, aguardando a hora certa de navegar; tal como os barcos de pescadores naquele canto da praia. Lembro da música e no mesmo instante desemboca a viagem, o local exato da estrada, a curva que terminava de frente para o cais. O céu azul claro praticamente sem nuvens, o sol muito brilhante, a brisa morna a entrar pela metade aberta da janela. Lembro da sensação de dirigir aquele carro, vencer a infinidade do asfalto; minha mão apoiada levemente na perna da namorada, sentindo na pele o seu descompasso com a pulsação da música. Eu apreciava cada movimento seu. Ela não. Minha namorada não gostava do calor, da umidade, dos insetos, da pele pegajosa de suor misturado ao protetor solar, dos cabelos desalinhados ao vento. De minha mão em sua coxa. Uma composição dissonante, um dueto sem aplausos no final.

A música toca minhas lembranças; elas vêm e vão como ondas no mar. Têm o mesmo ritmo pacato. A vida demora a chegar ao grand finale.

Decido buscar a tradução e não me surpreendo com o que encontro, tantos anos depois. "Você precisa prolongar isso?", questionava o refrão. E desenterra da memória um baú de sentimentos bem ou mal resolvidos.

Não me surpreendo com a letra da música porque o tempo transforma lembranças em coincidências. Conexões, acasos, destino, chame como quiser. É dele que emerge o sentido profundo daquilo tudo que se passou, que parecia não existir mais.

Desejo cavoucar um pouco mais as areias do tempo, descobrir o nome da vocalista dos Cranberries, ver uma foto sua. Por enquanto, ela tem o mesmo nome daquela antiga namorada, da época da viagem a São Sebastião. Em minha cabeça, o rosto delas também é idêntico. Não parece muito justo com a realidade.


*Durante os meses de fevereiro e março de 2016, estou participando da oficina de criação literária oferecida por Marcelo Maluf na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. O título explica seu propósito: "Imaginar, lembrar e narrar - a arte da ficção". Postarei aqui alguns exercícios produzidos no curso, que poderão ser localizados por meio do link "Memória e  Ficção" na nuvem de tags (da coluna ao lado) ou clicando aqui.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

5º PRÊMIO DE POESIA PORTAL AMIGOS DO LIVRO

No ano passado, um poema meu foi selecionado no 5º Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro. Recebi hoje alguns exemplares da antologia, com direito a marcador de página personalizado. Bem legal, olha só:



A propósito, este é o poema premiado:


creio,
entretanto,
no porém.
todavia
até certo ponto
convém considerar
que não devo, nego
afirmo acaso pudesse.

ora!
que nada.
nesse meio tempo
subo
no muro
observo ambos os lados
um de cada olho,
outro a contrassenso
afastando a luz
com a palma da mão
daqui até o infinito
e além

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

DEMASIADO HUMANO

basta ser humano
basta, ser humano
basta ser, humano
basta ser humano,

é preciso ser humano?
humano, impreciso ser




Vemos tudo conforme nossa própria ótica; o ponto de vista do humano, tão complexo e restritivo, é somente o que nos resta. Por isso o mundo muitas vezes parece feito em nossa medida. Também é por esse motivo que o que foge dessa medida ganha dimensão de sagrado – a noite estrelada, o oceano infinito, a cordilheira dos Andes, o deserto do Saara; e também as bactérias, as partículas atômicas, os glóbulos vermelhos, as sinapses. A razão científica caminha na direção desse sagrado e o desmistifica. Desvendamos os mistérios do cosmos ao mesmo tempo em que recombinamos material genético; vigiamos a calota polar com satélites orbitais enquanto produzimos nanorobôs para tratar certos tipos de câncer. A humanidade se expande ao macro e ao micro.



No meio persiste o hábito egocêntrico de utilizar o termo "humano" como adjetivo elogioso. Certo idealismo também. Dizemos que o mundo precisa ser mais humano, que as pessoas devem agir com mais humanidade. Como se pudéssemos agir de outro modo, como se houvesse outra perspectiva para nós. Como se a atitude dos homens fosse somente louvável e justa. Como se o dito "desumano" não estivesse contido na humanidade e não existisse somente por causa dela; como se houvesse jeito de escaparmos de nós mesmos.



Temos humanidade em demasia. Os maiores horrores foram todos muito humanos. Inclusive a própria ideia de tragédia é exclusividade nossa; aquilo que chamamos de "tragédia natural" é figura de linguagem – a natureza age conforme suas próprias regras, ela é amoral; nós que a tratamos como boa ou má.

Mesmo a tragédia grega, provocada pela fúria divina, é criação nossa; não existe mito elaborado por outros seres. A tragédia é necessariamente humana.



Assim, precisamos assumir que o Holocausto foi muito humano, no sentido de que só se realizou porque nós o fizemos e deixamos acontecer. Os atentados terroristas e as retaliações militares são ações humanas. O desastre ambiental em Mariana. A violência policial em nosso Estado de exceção permanente, o preconceito racial, a distinção social, o menosprezo pelo feminino, a devastação da Amazônia, a corrupção em todos os seus graus, os abusos e impunidades, isso tudo é próprio dos seres humanos.

O dito "desumano" sugere algo que repudiamos. Pois mesmo ele é completamente humano, um termo está implicado no outro, assim como não existe arqui-inimigo sem que haja também o herói. O desumano é nossa obra. Tanto quanto a ajuda humanitária, o parto humanizado, o tratamento do outro com respeito e dignidade. "Sempre a vida condicionada pela nossa perspectiva e a sua injustiça", escreveu Nietzsche em Humano, demasiado humano. Não há exatidão nem completude, somente disposições e oscilações. Somos seres injustos; todo juízo de valor é injusto porque provém apenas do ponto de vista de quem julga. Entretanto resta a nós uma saída: reconhecer isso e mudar as atitudes.




É necessário admitir que as atrocidades também são humanas justamente porque muitas delas foram pautadas no argumento contrário. Por exemplo, uma vez que os indígenas não tinham alma, acabaram dizimados no maior genocídio que a América já produziu, e que ainda persiste. A escravidão negra, para citar outro exemplo, privou os africanos de sua humanidade e os transformou em mercadoria. Os judeus na Alemanha nazista, considerados "indignos", não tinham direito de viver e podiam ser exterminados. Os internados em hospícios, loucos ou não, tratados com abandono, frieza, eletrochoque e lobotomia. Nossa situação carcerária atual, a pseudossolução de reduzir a maioridade penal e o momento simbólico mais marcante da questão, conhecido como "massacre do Carandiru". As milícias, os linchamentos, as chacinas, a "bancada da Bíblia" pregando violência no governo; todos esses horrores executados em nome do bem da humanidade refletem o tipo de humanos que nós somos. "A maioria acredita no valor da existência porque o quer e o afirma somente para si", escreveu Nietzsche há quase 140 anos.



O filósofo dizia que seus livros são escola da suspeita e do desprezo, pois provocam "inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados". É algo que ainda nos falta. Desconfiar do senso comum, fugir dos holofotes e olhar para a escuridão, levantar o tapete e acolher todas as historietas da humanidade que foram varridas para lá. O que é ser humano? A partir dessa questão podemos revisar os nossos valores e repensar a humanidade que desejamos. Tendo em mente que esse projeto deve se transformar sempre que necessário, jamais ser concluído. Ser humano é inventar constantemente a própria existência, inventar a si e o outro. É aceitar as faltas e saber ser impreciso.


* * *

"Para que serve toda arte que há no mundo?", pergunta Nietzsche. Não acredito em função nem em utilidade da arte, mas podemos pensar numa arte que "serve", não no sentido de serventia ou servidão, mas no sentido da vestimenta, da arte que nos cabe e muda a nossa forma. "A humanidade, em seu conjunto, não tem objetivo nenhum", diz o filósofo. "Apenas o poeta é capaz de perceber isso e sentir sua humanidade despedaçada".



Quem oferece uma boa saída para tal desconstrução é Nicolas Bourriaud, em sua Estética relacional, de 1998. Inspirado na filosofia de Félix Guattari, ele diz que a arte é aquilo sobre o que e em torno do que a subjetividade pode se recompor. Pois ela oferece um "direito de asilo" às práticas desviantes que não encontram lugar em seu leito natural. A arte seria um dispositivo de reconstrução daquilo que foi despedaçado. Tanto quanto daquilo que parece cristalizado, imutável, eterno.

Devemos identificar no cotidiano o tipo de humano que não queremos mais ser. Enquanto que talvez encontremos na arte outras humanidades possíveis para experimentar e, quem sabe, vir a exercer.



Ps: Aviso que encontrei numa loja em São Paulo: "Cachorros são bem-vindos. Humanos, tolerados." Não, não era um pet shop. :)


*As imagens que ilustram este texto circulam na imprensa online desde o rompimento da barragem de resíduos de mineração, ocorrido na cidade mineira de Mariana em 5 de novembro de 2015.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A FORMA SE NUTRE DE MATÉRIA ORGÂNICA

estrutura (ex)posta do movimento
aperto desafoga no fôlego
forma desfaz a si
do si mesmo
outro
tempo inteiro
prestes a cair
não fosse a gravidade
manter o chão
onde está
onde?

tocar o fora
dentro
núcleo vazio
ressoa longe
estende os fios
linhas de força
potências
desejando conexão
pode, vai
o pé sustenta
a planta do pé
aterrada
no concreto do chão