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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

DE COR

Escultura que compõe o trabalho Vazio cérebro, de Nelson Felix

se a cor branca é
uma junção de todas
as outras, para ser
branco é preciso ser negro
amarelo, vermelho, pardo
azul-tição
mesmo assim há branco
sem graça, sem cor
sem jeito, que quer
destaque na multidão.
há branco que não se enxerga

sábado, 18 de julho de 2015

TUDO BEM

Tempo branco (1959), de Pablo Palazuelo
toda vez que a toco
que troco de lugar
encho de café,
de baldes de água fria

da boca à mesa
trabalho, repouso depois
de cabeça para baixo
no escorredor

provoco fissuras
mínimas, que sejam
invisíveis, insensíveis
por toda a sua conjetura

da superfície à estrutura
breves rompimentos
na cerâmica do dia
que não cicatriza, nunca
volta atrás

só aumento
a duras penas
sustentando-a
como se nada tivesse
acontecido

um gole a mais,
outro a menos
dia a dia
momentos, momentos

chega o que basta
leve toque de pluma
para romper a casca
desde a fundação

ela se estilhaça
seja o que for
que se faça

como saber, desgraça?
pior viver sem
provar os amores
nem arder dissabores

tudo bem?
tudo bem.

a pergunta terrível,
a resposta impassível,
impossível!

restam fragmentos, cacos
na palma da mão
lapsos da experiência única
vivida repetidas vezes
a dois, a dez, a mil

segunda-feira, 6 de julho de 2015

QUE EXPERIÊNCIA NOS RESTA?

Ler um texto como O narrador, que Walter Benjamin escreveu quase 80 anos atrás, em 1936, e perceber com espanto sua atualidade sugere algo sobre aquilo que poderíamos chamar de contemporâneo, no sentido de que condiz e é pertinente às questões que agora nos atravessam. Em primeiro lugar, sugere que o contemporâneo não se refere ao tempo cronológico, portanto não segue a linha do progresso – em vez de Benjamin poderíamos citar autores de séculos antes que parecem ter escrito especialmente para nós. Em segundo lugar, diríamos que o contemporâneo não é pleno: não conseguiríamos distinguir uma totalidade nem na apreensão sensível do tempo nem no senso comum sobre a experiência da vida; não existe comportamento padrão em nossas sociedades, mas lampejos que sugerem mudanças de atitude em meio ao previsível, lugares que privilegiam o dissenso em meio ao conforto da tradição pré-estabelecida. São pontos que brilham por um instante e logo se apagam; um surge aqui, outro responde acolá, como um grupo de vaga-lumes à noite, que vemos em sua singularidade tanto quanto na efemeridade.

O contemporâneo se constituiria, entre outras coisas, de reminiscências: passados retomados pela memória; resíduos, restos, fragmentos postos em conexão numa nova estrutura; lembranças imprecisas ou indecisas que evocam imagens borradas. Seria como um vulto: que passa sem se revelar por inteiro – restaria do contemporâneo mais uma sensação daquilo que ele manifesta do que um conceito propriamente formulado, aceito e contestável segundo os métodos da crítica conservadora.

Como as narrativas sobrevivem nos tempos atuais? Se na época de Benjamin já se notava certa precariedade dessa forma de compartilhamento de experiências, hoje em dia as perspectivas não são melhores. Conforme o filósofo escreveu, "cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação".

Enquanto a informação só tem relevância quando é fresca, a sabedoria da experiência, tecida na forma de narrativas, compartilhada geração após geração, não tem prazo de validade. Seu valor independe do tempo e por conta desse alargamento não determinado ela é mais contemporânea nossa do que o preço do dólar ou o próximo capítulo da novela.

Jorge Larrosa Bondía certa vez explicou que é preciso separar o saber da experiência e a posse de informações. Porque, ao contrário do que acontece por aí e somente diz respeito aos outros, a experiência é o que nos acontece, o que nos toca. Em suas palavras: "O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação (...), o que consegue é que nada lhe aconteça".

Por que nada nos acontece? Por que nada mais ganha a gravidade da experiência digna de ser narrada, que nos toca e transforma, além de ser passada adiante ao longo dos séculos, tal como nas mitologias que sobreviveram desde os tempos mais remotos? Talvez porque não tenhamos, justamente, tempo: na correria em que vivemos, não encontramos um instante sequer para dispor à possibilidade de irromperem experiências. Ou melhor: não arranjamos tempo para nos colocar à disposição do mundo. E as verdadeiras experiências só acontecem a quem está aberto.

Benjamin acreditava que esse processo "exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro". Para ele, tal distensão se encontraria no tédio.

Almoço na relva (1863), Édouard Manet

Tenho quase certeza de que, se eu perguntar quem se sente entediado, boa parte das pessoas responderá que sim; nos sentimos entediados com a rotina puxada, o cansaço, a falta de perspectivas, descobertas e desafios. Mas não é a esse tédio que o filósofo se refere. Estamos mesmo esgotados, porém continuamos mergulhados no excesso de informação e de tarefas. Esse excesso afasta o tédio proposto por Benjamin, que seria obtido pelo desligamento da máquina produtiva, pelo "dolce far niente" dos italianos, quer dizer, a doçura do não fazer nada, de abrir terreno para que o inusitado germine.

Para Bondía, "a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço".

Houve um tempo em que se buscava nas drogas uma espécie de interrupção, que na realidade era uma dilatação de sentidos contra a dureza da razão moral, com objetivo de experimentar outra relação com o mundo. Até mesmo isso foi desaparecendo durante o século XX, e hoje as drogas acabam usadas no sentido oposto, de anestesia, como meio de escapar das experiências da vida. Uma fuga no lugar da descoberta, embora na prática a coisa não seja tão diferente assim. Acontece que nem mesmo o estímulo dos sentidos consegue se sustentar por muito tempo, talvez por conta da sua artificialidade. Há uma frase no romance Demian, de Hermann Hesse, que sintetiza bem essa ideia: “As pessoas que vivem todo o dia nas tabernas já perderam por completo essa exaltação. Tudo se transforma num hábito”. Pois nos acostumamos até mesmo com o excesso de novidades, e logo ele próprio assume o status de banalidade.

Acredito mais no gesto de interrupção que se revela uma atitude estético-política. Sensível. Profunda, complexa e necessária. Um gesto singelo de resistência crítica à velocidade, à informação em demasia que nos provoca a falsa sensação de pertencimento ao mundo, à tecnologia que afasta a possibilidade de que as coisas nos toquem diretamente, ao trabalho mecânico, produtivista e inconseqüente, ao consumismo exacerbado de produtos, serviços e verdades; resistência a tudo isso que de alguma maneira preenche nosso cotidiano como se o completasse, e que nos configura como máquinas ligadas incessantemente no modo automático. Não precisa ser uma grande força contrária, é preferível até que seja um gesto frágil, que transforma e que também se transforma durante o processo. O que nos resta fazer? Resistir poeticamente, sim. Não porque aquelas coisas não sejam importantes, mas porque não podem ser absolutas.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

É, NEM

“Até gosto de Humanas”, disse um cara atrás de mim, na escada rolante do metrô, “mas não gosto desse negócio de abraçar árvores”. Ele conversava com uma amiga, e pelo jeito ambos planejavam prestar o vestibular. Fiquei tentado a perguntar se ele não confundia Humanas com algum ramo pervertido da Botânica. Fiz bem em me manter calado. Porque logo na sequência ele emendou: “Gosto também de Biologia. Mas eu não quero saber de cuidar dos animais. Quero botá-los na mesa e picá-los todinhos”.

domingo, 28 de junho de 2015

MAIS EDUCAÇÃO, MENOS ARMAS

Resolvi trazer um ponto de vista diferente sobre o que Bene Barbosa escreveu no Correio Popular de 24 de junho passado. Talvez porque eu tenha me identificado com o que ele chama de “desarmamentistas, profetas do caos”, nessa sua lógica paradoxal. Ao contrário de Bene, não sou especialista em segurança pública, e mesmo assim não é difícil mostrar outras perspectivas sobre o assunto. Afinal, aquela sua opinião acaba restrita a uma única maneira de pensar, tanto que não se sustenta se considerarmos:

1) O objetivo final da arma de fogo é provocar tragédias (guerras, mortes, ataques, violências de diversos gêneros). Ela não é fabricada para evitá-las e, ainda que alguém as empunhe com esse propósito, só poderá fazê-lo por meio de tragédia similar a qual combate. Porque é assim que as armas de fogo funcionam. Elas sustentam a própria lógica da violência.

2) Bene afirma que, quando os seguranças de shopping center passaram a portar armas, os assaltos deixaram de existir. Se seguirmos o mesmo raciocínio, nunca deveria ter ocorrido assalto a bancos ou carros-fortes, uma vez que seus seguranças sempre estiveram armados. Sabemos que isso é absurdo. E sabemos que um ambiente armado necessariamente implica maior risco potencial do que um ambiente livre de armas. Em outras palavras, o risco de consumidores tomarem um tiro no shopping é maior quando o número de balas e armas naquele ambiente aumenta. Se o tiro é disparado ou não, isso não depende somente de os seguranças apresentarem maior ameaça aos bandidos. A análise de um contexto como esse é muito mais complexa do que o fato de os seguranças estarem ou não armados. É difícil aceitar um argumento tão reducionista.

3) Acharia até engraçado, se não fosse lamentável, alguém chamar de “profetas do caos” aqueles que desejam viver num mundo sem armas. Quem seriam os armamentistas, então? Profetas da ordem? Ora, a ordem mantida pela ameaça é sempre impositiva, repressiva, violenta. Vide as ações do Estado Islâmico e dos soldados norte-americanos. Vide todas as ditaduras estabelecidas mundo afora. Vide nosso próprio dia a dia, a realidade dos morros brasileiros, a realidade das nossas ruas etc. Cada um deles impõe sua ideia de ordem à sua própria maneira.

4) Bene parece ter uma visão distorcida sobre educação. Pois, ao citar um segurança de shopping com quem conversou – e fazer questão de explicitar a pronúncia errada do sujeito (como forma de menosprezá-lo?) –, ele defende o argumento de que “os bandos de moleques que gostavam de fazer arruaça” deixaram de agir assim porque ficaram mais educados. Não, claro que não. Eles ficaram acuados porque os seguranças apresentaram maior poder. Isso não é educação, é coerção. Enquanto desconhecemos limites da educação, sabemos que a coerção sobrevive somente até que um poder maior se apresente. Em suma, acho impossível concordar com seu argumento final, de que armas nas mãos certas significariam mais educação.

Este é o texto que originou o meu. Clique na imagem para ampliá-la.

Não bastassem esses argumentos, compartilho ainda uma inquietação que me atravessa. Pois a conclusão lógica para todos esses meus pontos seria: vamos proibir o porte de armas. Porém eu não posso defender a proibição de algo como solução. Entendo que proibir é sempre uma forma de exercer violência, ainda que “cidadãos de bem” a façam com “a melhor das intenções”, conforme alguns discursos falsamente moralistas que observamos com frequência em relatos de confrontos. O mesmo vale para suprimir direitos que os cidadãos têm de agir conforme suas crenças, dentro de um limite socialmente saudável, com vontade libertária, respeito pelo outro e conduta ética. Direto de fazer suas escolhas e assumir as consequências. Talvez seja esse o único ponto em que concordo com as propostas da ONG presidida por Bene. Conforme li no site do Movimento Viva Brasil, “Não defendemos de que a população deva se armar indistintamente, mas tomamos por inaceitável que lhe seja retirado o direito de escolha em o fazer ou não”.

Entre o sim e o não, eu acredito, acima de tudo, no investimento em educação. Acredito que uma sociedade culta, capaz de refletir por si mesma e também de aceitar suas diferenças não recorreria às armas. E quem acredita em educação não aposta em armas de fogo. Simplesmente porque, em essência, as duas coisas são diametralmente opostas. Uma deseja a emancipação, a outra propõe a morte.

Não quero armas nas mãos de “pessoas certas”, até porque é o fato de estarem armadas que costuma dar razão às pessoas que as portam. Quero, sim, uma sociedade sem armas. Que não se exponha aos riscos desse porte.

Bene considera excelente um artigo do major norte-americano L. Caudill, intitulado “A arma é civilização”. Admito que sim, infelizmente. A nossa civilização acolhe violências de muitos tipos. Então, de alguma maneira, arma e civilização compartilham características que as aproximam. Só não podemos confundir, nesse caso, civilização com civilidade. Porque a arma pode ter alguma relação com o modo como a civilização se constitui. Mas portar armas jamais será uma atitude de civilidade.

domingo, 21 de junho de 2015

PALAVREADO SOBRE A LÍNGUA

Achei graça quando vi Inês Books falar sobre A desumanização, romance de Valter Hugo Mãe que ainda não li. Foi num vídeo de Youtube, numa das experiências de leitura que ela compartilha com o mundo a partir de Portugal, onde vive. Inês conta que a história se passa na Islândia, e que a presença da ilha é tão forte quanto a de outras personagens, a ponto de considerar ela própria uma espécie de protagonista. A ilha influencia o comportamento de seus habitantes e o desenrolar da narrativa, portanto o autor teria conseguido dar vida àquela porção de terra isolada no oceano, a qual sobrevive em meio ao antagonismo do gelo glacial e o fogo dos vulcões. Para Inês, é como se a lava pulsasse sob o chão, temperamental; como se corresse nas entranhas do lugar, provocando a sensação de que "a qualquer momento a ilha se vai a zangar e vai deitar tudo cá pra fora".

Foi essa sua expressão, em particular, que me fez sorrir. Acho divertido o que chamamos popularmente de "sotaque lusitano", e que a meu ver está além de uma sonorização diversa: é mesmo uma dobra na língua, uma espécie de marca territorial que se abre a outro campo de exploração. Um convite para desvendar um novo mundo. Quer dizer, o "português de Portugal" não seria somente questão de entonação, mas uma maneira própria de cuidar das palavras, constituir frases, construir sentidos, pronunciar e se expressar pelo verbo.

Admito que desconheço a teoria, e o que escrevo aqui diz mais respeito ao sentimento de ler e ouvir os portugueses do que a um estudo linguístico ou algo similar. Esse sentimento sugere que os portugueses utilizam a língua de maneira diferente de nós, brasileiros, seja nosso sotaque paulista, carioca, baiano ou gaúcho. Empregam palavras incomuns, expressões locais, contorções ou desvios, estruturas de diálogo que obedecem a outra lógica. Mais que isso: exploram demais sentidos das palavras que usamos corriqueiramente por aqui, e acho linda essa ampliação do campo semântico, que revela certa elasticidade da nossa língua comum.

Ao ler e ouvir o português de além-mar, sinto como se os territórios da língua se alargassem, como se cada termo operasse mais potência. A ponto de, em muitas ocasiões, a comunicação ser ininteligível: ainda que reconheça as palavras, não consigo acessar o significado maior do enunciado; ouço eles conversarem porém não apreendo com exatidão o que é dito, como se ouvisse mesmo uma língua estrangeira. Resta me aproximar aos poucos, com cautela e disposição, deixando que sons e letras indiquem um caminho.

Não me entenda mal: defendo que o português seja um só; abomino a ideia de segregar nossa língua, chamando-a de "brasileirês" ou qualquer bobagem do gênero. O que eu mais gostaria de ver são livros publicados em Portugal e nos outros países lusófonos circulando livremente por aqui, sem amarras jurídicas, mercadológicas e políticas, nem adaptações lexicais – todos só teríamos a ganhar com isso, tanto autores e leitores quanto a própria literatura e, claro, a língua portuguesa em si.

Daí a estupidez de ignorar as variações do português com um acordo ortográfico internacional, como se a norma fizesse a língua e não o contrário. Acentuação, hifenização, trema... que sejam diferentes como costumavam ser em cada canto destas terras! Não são as regras que aproximam as "línguas portuguesas", mas o incentivo à leitura e às trocas culturais; o acesso, o conhecimento e o respeito pelas diferenças; a livre circulação das publicações; a oportunidade de emergir o comum por meio do dissenso – em vez deste consenso artificial.

Admiro a resistência do jornal Rascunho, dedicado à literatura, por publicar mensalmente suas edições sem obedecer ao tal acordo ortográfico de 1990, embora pareçam ter abdicado dessa atitude há pouco tempo, não sei por qual motivo. Assim como admiro também José Saramago, que, se não me engano, não admitia a adaptação de seus livros para o "português brasileiro", sendo todos eles publicados aqui exatamente como em Portugal. Pois acredito que é pela possibilidade de exercer diferença que a língua amplia seus limites; é por causa disso que permanece viva e pulsante. Pode assim – se Inês me permite parodiar sua simpática expressão – a qualquer instante se enraivecer e irromper em verborragias sobre nossas ilhotas particulares.

sábado, 23 de maio de 2015

OCUPAR A CIDADE


No último século observamos um movimento de abertura no mundo. Que, apesar das exceções, coincide com aberturas culturais, econômicas, de fronteiras etc. Os territórios que habitamos se ampliaram: desde nossa casa, nossa rua, nossa cidade até nosso país, nossa língua, nosso continente, nossa galáxia. Não precisamos estar presentes fisicamente para que os lugares nos pertençam ou para que nós pertençamos a eles. Quase no mesmo instante em que as coisas acontecem alhures nós ficamos sabendo aqui: vitórias no esporte, transações comerciais, acidentes de trânsito, desavenças amorosas, conflitos militares e assim por diante. Assistimos a tudo pela internet, no conforto de nossas poltronas. Podemos nunca ter ido a Nova York ou Paris, mas algo que lá acontece também nos afeta.

Ao mesmo tempo em que nos abrimos para esse viver global nós realizamos um movimento contrário: corremos para casa quando anoitece, circulamos em carros blindados, instalamos cercas elétricas e câmeras de vigilância, restringimos nossos grupos sociais a padrões – moralmente, cruelmente, preconceituosamente – estabelecidos (ricos, brancos, machos, jovens, europeus).

O paradoxo é curioso. Quer dizer, o senso comum entende que abrir-se implica maior exposição, seja a boas experiências ou a ameaças diversas. Mas o que talvez passe despercebido é que fechar-se resulta apenas nas ameaças, ou seja, é ainda pior, ainda mais perigoso, ainda mais neurótico.

No livro Tempos líquidos, o sociólogo Zygmunt Bauman propõe uma perspectiva interessante a respeito das nossas atitudes. Para ele, a exposição advinda dessa abertura provoca a sensação de falta de segurança, e, querendo nos sentir mais protegidos, abrimos mão de liberdade.

Abstrato demais? Não é, basta olhar a popularização dos condomínios fechados, que isolam apartamentos ou casas dos perigos da cidade grande; basta olhar o recente projeto de lei francês que concede ao governo o direito de vigiar – leia "espionar" – qualquer cidadão sem necessidade de autorização judicial.

Em vez de construir condições para que a liberdade exista, o governo e também o povo promovem um policiamento generalizado. O que não é exclusividade da França – penso, entre tantos exemplos que poderia dar, na violência com que o Estado do Paraná tratou seus professores, num ato político movido a ignorância e incompetência. Penso também na máxima malufista da "ROTA na rua", repetida a torto e a direito como solução contra o crime – que, no limite, significa o mesmo que "estupra mas não mata", outra das suas propostas políticas. Com exceção de que a ROTA mata. E mata muito.

Enfim, se a proteção não é provida pela polícia nem pelos políticos, se eles não dão conta de garantir a liberdade e preferem a heteronomia à população, o que podemos fazer? Uma das respostas possíveis é simples, embora a solução exija um belo esforço coletivo: precisamos ocupar a cidade.

Sabemos que os vazios não permanecem assim por muito tempo, há sempre quem reivindique poder sobre eles. Em outras palavras, toda vez que nos recolhemos em nossos bunkers, toda vez que preferimos nossos carros, abandonamos o espaço do entorno, que acaba tomado pela violência.

Bauman explica que "a vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar. Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo".

O medo da livre circulação leva à baixa autoestima. A sensação generalizada de impotência nos empurra pouco a pouco para o abismo. O estado social se torna cada vez mais policial e prisional. O combate às ameaças é feito com guerra – a fórmula estúpida da tal "guerra ao terror". As grandes corporações lucram um absurdo com nossos medos de inimigos fantasmas, ou seja, nossa fragilidade as fortalece no poder. Ficamos reféns do excesso de informação. Consumimos altas doses de opiniões fabricadas porque não temos tempo para refletir e construir as nossas próprias – não temos tempo a perder porque "tempo é dinheiro".

Parece urgente a necessidade de realizar um gesto de interrupção nesse assombroso declínio da "experiência autêntica", conforme Walter Benjamin já alertava cerca de 80 anos atrás. Um gesto poético e político de interrupção, que seja: reatar vínculos sociais e ocupar a cidade. Conversar, concordar ou discordar, refletir e construir pensamentos coletivamente só para poder desconstruí-los depois – em vez de apenas reproduzir o que se ouve por aí. Pedalar, criar grupos com interesses culturais comuns, produzir algo engrandecedor (em outro sentido que não o financeiro). Organizar hortas comunitárias, fazer manutenção no parque mais próximo, oferecer oficinas na escola pública do bairro, usar transporte público, visitar bibliotecas, universidades e museus públicos da cidade. Exigir melhores condições para aquilo que é de interesse de todos – e não somente da sua família! Abandonar o racionalismo perverso e deixar-se levar pelo sensível. Tocar violão na praça, ler poesia em voz alta, frequentar cinema de rua, andar a pé. Porque ocupar também significa cuidar – tomar posse em vez de exercer poder. Ocupar a cidade é o primeiro passo para melhorá-la, transformando ausências em espaços de convivência. Porque num planeta ao mesmo tempo "globalizado" e fragmentado não temos condições de transformar o todo senão começando por nosso próprio eu e seu arredor.

Peço desculpas por escrever tamanhas obviedades, mas elas parecem tão necessárias!

segunda-feira, 18 de maio de 2015

POÉTICA

Sem título, Nelson Felix

tempo e espaço
vazio e cheio
leve e pesado
localização e perda
círculo e quadrado
força e delicadeza
poética

domingo, 17 de maio de 2015

O QUE FAZER COM ESSA INFORMAÇÃO?

"A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade."

Jorge Larrosa Bondía
Texto completo aqui [é ótimo, leia!]: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf

sábado, 16 de maio de 2015

Poder
contraPoder
poder contra
poder Poder
Contra

como poder-
íamos revolucionar
– transformar, que seja
liberdade e respeito –
sem dar outra volta
nessas reviravoltas?

Volta
reviraVolta
volta revira
volta Volta
Revira

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CÁTEDRA MICHEL FOUCAULT E A FILOSOFIA DO PRESENTE

A igreja católica, por intermédio do cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da PUC, está conduzindo o veto à formação de um grupo de pesquisa inédito no Brasil: a Cátedra Michel Foucault. A PUC seria a única instituição fora da França a ter acesso a arquivos do filósofo, cuja obra é rica e relevante para muitas áreas de pensamento. O material seria doado numa parceria que começou em 2011, com intermediação do Consulado Geral da França em São Paulo e outras nove universidades estrangeiras.

A justificativa, embora feita com meias palavras, é preconceituosa e homofóbica: a Igreja Católica tem um conflito de interesses porque Foucault era homossexual. Pois é. Além do preconceito, o veto fere um dos fundamentos da universidade, que é a liberdade de pensamento.

Se quiser se juntar às diversas universidades do mundo que defendem a formação da Cátedra, assine a petição aqui (é também uma maneira de se posicionar a favor da educação e da pesquisa no Brasil, ao contrário do que os recentes cortes de verbas públicas para universidades e cacetadas em professores têm sugerido): http://foucault.lrdsign.com/

Mais informações aqui: PUC entra com recurso contra veto da igreja à cátedra Foucault

sexta-feira, 1 de maio de 2015

UNIVERSO SUBENTENDIDO

a Verdade é
de fato algo
perigoso
      – em absoluto! –
exatamente como
seria se fosse
outra?

existiriam demais verdades
pulverizadas num ar de dúvida?
      – claro! ou melhor: obscuro! –

creio em teses, perspectivas, possibilidades
ficciono, para ser sincero
tenho fé
nas tentativas frustradas
      – abertas, disponíveis –
que nada concluem
em definitivo

há camadas sob a superfície
      – das coisas, dos homens –
germinando contra a razão
esclarecida
      – o mundo superior seria
      somente justificativa
      para nossa inferiorização –

desejo habitar as profundezas
do ser sem dono nem dogma
sem violência contra
talvez
      – sequer isso pode ser
      verdade, enfim –

quinta-feira, 23 de abril de 2015

traição das imagens,
realidade infiel
profanação da verdade,
significação

verdade e significação,
mudança, transformação
as palavras e as coisas,
ficção

mundo das imagens
versus mundo imaginado,
além do horizonte
Sua representação

dilema da representação na arte,
imagem e semelhança
a Verdade em que se crê
acima de todas as coisas

sobretudo cair em si
sentido, sentimento
absolvição

quarta-feira, 22 de abril de 2015

OLHOS DE LITERATURA

A literatura possibilita que vozes dissonantes existam – é o lugar próprio da democracia. Inclusive vozes que causam furor ou lágrimas, vozes menores que chocam e provocam desconfortos de todo tipo, que perturbam a ordem, contradizendo certa maneira de pensar do leitor, por vezes violentando sua moral. Vozes que desconstroem a linguagem, invertem preceitos e depõem contra o sagrado/instituído. É um recurso que se tem para expressar ideias e sentimentos sem que eles sejam atribuídos a um sujeito-escritor, quer dizer, sem que este seja responsabilizado pelo que a voz do texto diz ou, enfim, pela maneira como foi compreendida – ao menos seria assim a situação ideal, que vamos considerar aqui.

L'oeil cacodylate (1921), Francis Picabia
Se alguém tem qualquer controle sobre essa voz, por mínimo que seja, é o autor. Entretanto o autor nada mais é que uma conveniência, uma entidade tão inventada quanto a ficção que lhe é atribuída – uma função momentânea, como dizia Michel Foucault. O autor não é o escritor, é no máximo uma faceta dele. Por sua vez, o escritor seria o operário das letras.

O que acontece quando o leitor confunde o escritor com a voz do texto? Uma tragédia, que desfaz o jogo e acaba com a fantasia da literatura, acaba com a potência ficcional da arte de onde advêm emoções e transformações. Se o leitor está menos interessado nas histórias do que na possível relação que elas têm com a “realidade” ou com a vida do escritor, a experiência literária se deturpa: ele deseja que o sujeito determine a obra – quando esta deveria bastar em si mesma. O escritor fica exposto, sua profissão se torna perigosa – o jogo acaba em horror (Charlie Hebdo, Salman Rushdie, Ai Weiwei etc.).

Se a literatura ofende, como o leitor pode se defender? Com o gesto mais singelo, que é também de incrível força política: ele abandona o livro. Porque é do leitor a opção de ouvir a voz do texto; se preferir ignorá-la, ela não incomodará. É bonito porque é respeitoso com a obra e com os demais leitores, além de mais eficaz – se quisermos pensar nestes termos – do que a censura, a perseguição do escritor, o recolhimento e a queima de livros em praça pública etc. Por sua vez, se quiser contra-atacar, o leitor ofendido pode usar as mesmas armas e criar a sua própria literatura (#ficaadica). Isso vale desde as ações destruidoras do Estado Islâmico às críticas moralistas aos 50 Tons de Cinza.

* * *

Correm um risco todos que lêem pouca ou nenhuma literatura: deixar-se levar pelos maniqueísmos, pelas doutrinas/fundamentalismos que cegam, pela burrice da maioria, pela razão exacerbada, pelo ponto de vista que se crê único e absoluto.

Ora, quem lê literatura não necessariamente escreve melhor ou consegue expressar suas ideias de maneira mais clara, conforme prevê o senso comum. Pode acontecer que obtenha certo domínio da técnica, se houver interesse profundo, mas não é regra. Assim como comer não nos faz necessariamente melhores cozinheiros ou ouvir musica não significa que faremos lindas composições. A literatura, quando explora limites da linguagem, pode até mesmo atrapalhar quem busca nela normatização e método.

Porém existe algo que o contato com a literatura pode oferecer, talvez de maneira tão peculiar que no geral não o encontramos em outro tipo de leitura: a experiência sensível que nos arranca do automatismo cotidiano.

Não quero dizer que todos os leitores de literatura desenvolvam o senso estético, mas é quase sempre entre eles que encontraremos quem pondera melhor, quem tem maior facilidade para ouvir e se abrir a novas experiências, quem acolhe o outro e suas perspectivas, quem possui sensibilidade aguçada para capturar certos aspectos obscuros do mundo real. O mesmo vale para as outras artes – sei que é absurdo tratá-las de modo tão genérico, mas é o como posso fazer agora. Elas despertam sentidos e nos convidam a pensar por outros meios além da lógica. Convidam-nos também a cometer menos atrocidades em nome da Verdade.

Se os livros de ficção não lhe interessam, se você não tem tempo para eles, entretanto existe uma vontade sua de enxergar além da superfície do mundo – se você entende que há camadas ocultas sob a simples aparência e quer tentar acessá-las –, sugiro que então leia os jornais, assista aos programas da televisão, ouça as notícias do rádio, envolva-se com a publicidade, com as conversas de boteco e até mesmo com as bulas de remédio como se isso tudo fosse literatura. Se conseguir mudar seu ponto de vista e entrever com desconfiança o que há de ficcional na realidade, se conseguir ler o dia a dia com olhos ávidos por literatura, se não tomar por verdade absoluta tudo o que lhe é oferecido, se não apenas absorver e replicar essas verdades, certa potência literária será ativada. Se a voz da literatura nos ensina algo seria, justamente, não ignorar o aspecto ficcional das coisas, das pessoas e dos ocorridos. Os horrores do dogma se afastarão um passo, o que é uma conquista satisfatória nos tempos atuais.

terça-feira, 21 de abril de 2015

CARRO-CHEFE

Ramon Casas and Pere Romeu on a Tandem (1897), Ramon Casas i Carbó

– Não é lindo?
– Parece que sim. Parece bonito.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece pequeno.
– Acha mesmo? Cabem quatro pessoas aí, até cinco, se apertar.
– Cabe um cavalo?
– Um cavalo? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, esse seu carro. Eu só sei andar a cavalo.
– Mas o carro substitui o cavalo. Você não precisará mais dele!
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

(…)

– Não é linda?
– Parece que sim. Parece bonita.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece cansativo.
– Acha mesmo? É saudável, é agradável.
– Cabe um carro?
– Um carro? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, essa sua bicicleta. Eu só sei andar de carro.
– Mas a bicicleta substitui o carro. Você não precisará mais dele.
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

terça-feira, 14 de abril de 2015

DESDE CIMA E DESDE FORA

“A América Latina é difícil de compreender, principalmente quando se olha de fora e de cima. As coisas que se entende de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo. Se a gente olhar de cima, com a típica arrogância dos nossos professores de democracia dos Estados Unidos ou da Europa, e se além de olhar de cima a gente olhar de fora, não entende nada. Por um motivo muito importante: a nossa região é provavelmente a mais diversa de todas, é a pátria das diversidades humanas. Isso que para mim é uma virtude, visto de cima e de fora é um grave defeito, porque se não cabe naquele modelo, acredita-se que aqui não existe democracia. E a prova de que há é que aqui se misturam e brigam todas as cores, os cheios e as dores do mundo.” Eduardo Galeano

sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

quarta-feira, 1 de abril de 2015

VENHA CÁ, LENDÁRIO

lá se vai março
que fica abril
não sei dizer

um se arrasta, natural
outro voa

lá se vai
para o bem ou para maio
perto de mim

junho por adeus,
quando passo pelo tempo
ele acena e me deseja

boa viagem, aproveite agosto
diga setembro
ou não

diga
que mandei abraço
outubro que sinto saudade
do que há devir
novembro

dezembro já sei, janeiro
faça chuva ou faça sol,
faça falta

nada muda mesmo
o infinito ano continua
fevereiro sempre igual
um novo

sábado, 28 de março de 2015

PERCEBER O TEMPO COMO OCEANO


Ao invés de imaginá-lo como um rio, cujo curso é linear, como se houvesse uma só linha do tempo. Como se houvesse hierarquia, de cima das montanhas às baixas planícies; os tempos áureos cruzando o agora, correndo na direção do futuro. Como se o tempo mais puro tivesse ficado para trás e não pudesse ser alcançado novamente, provocando saudades eternas. Não, o tempo como oceano é diferente. Não corre numa única direção – ele é um acúmulo de temporalidades diversas, um múltiplo indeterminado de correntes marítimas que flui em todas as direções e se transforma conforme a época. Correntes frias e quentes, fortes e fracas, vivas e mortas, rasas e profundas, claras, turvas, obscuras. Consecutivas. Coexistentes.

Fatos que na linha do tempo parecem distantes são sentidos muito próximos; acontecimentos recentes, por sua vez, parecem ocorridos numa outra era. O passado não passou, não ficou abandonado lá atrás, ele extrapola seu próprio tempo e está sempre disponível. Olho para o oceano infinito e vejo nele a memória do mundo, a sua história e o seu devir, tudo se realizando agora. Autores antigos são amigos que revisito constantemente e que parecem me dedicar os seus escritos. Artistas de outras épocas são onipresentes, por vezes se confundem com os nascidos hoje.

O tempo é todo nível do mar, a mesma altura em qualquer borda do mundo. O nível compartilhado, porto de onde todos partem. Se ele sobe, a humanidade sobe junta; se desce, todos nós descemos, sem exceção. Dependendo da maré, de forças exteriores, o tempo transborda para cima de nós. Afogamos em nosso próprio tempo, em sua demasia. Por vezes se dá o contrário: experimentamos o esgotamento do tempo, que se recolhe e nos obriga a persegui-lo, a desejá-lo e sobretudo a correr em sua direção.


Ilhas a princípio isoladas possuem um comum: estão atravessadas por esse tempo-oceano. Podem endossar ou não a conexão, podem usufruir dela, renegá-la ou simplesmente ignorá-la, entretanto ela permanece como potência do tempo, como um elo perdido.

É possível nadar através do tempo, assumindo o risco que acompanha o gesto. É possível navegar no tempo, em sua superfície calma ou intempestiva. Se acreditamos navegar por nossa própria conta, é somente por ingenuidade, que se faz arrogante. Acreditamos navegar livremente quando, enfim, estamos o tempo inteiro sendo sustentados. Basta um breve colapso para naufragar, desaparecer, deixar de existir, jamais ter existido na história. Basta uma guinada incerta para apagar-se.

Navegar no tempo implica desenhar um mapa. Trajetos dispostos numa carta náutica, projeto que se faz durante o percurso, cartografia de uma experiência. Viver o tempo, compor o tempo, inventar o mundo. Cruzar essas linhas com as de outros, desenhando mapas discordantes onde é permitido se perder sem medo nem razão. Fazê-lo mesmo sem permissão. Transgredir as rotas estabelecidas. Descobrir territórios no além-mar, escrever a epopeia do seu próprio existir. Fazer de fatos poesia, fazer versos das calmarias, tantos versos delas quanto das provações.

Tempo é criação, é de onde a vida surge. Invenção dos homens, só para nós ele faz algum sentido, quando faz. Sua superfície é quente, luminosa, acolhedora. É também leve e agitada. Já as profundezas são hibernais, obscuras, desconhecidas. São densas e lentas. Conseguimos mergulhar no tempo, lutar contra as forças que teimam em nos manter no conforto do sempre. Mergulhamos até o limite que os corpos suportam. Nossa carne é o que nos determina – rompemos a superfície do tempo sem conseguir ultrapassar a nossa própria. Até onde/quando o fôlego nos levará? Com a visão turva, observo os peixes nadarem com sua desenvoltura e quero saber: que relação natural é essa que mantêm com o tempo? Que tranquilidade é essa?



Que tempos são estes? São muitos tempos e relações temporais se realizando neste exato instante, que de exato não tem absolutamente nada. Quero nadar, entretanto corro. Contra o tempo, a favor, não sei. Quando tento flutuar afundo. Quero agarrar o agora porém ele escorre por entre meus dedos, fugidio; toca meu corpo inteiro sem se fixar ou se deixar possuir. Quem é dono do próprio tempo? Quando percebo, o presente já é passado; ele se esvai. Tempos líquidos, diria Bauman. Literalmente? Não. Prefiro dizer "literariamente". O tempo ficcionado, como sempre foi. Mas não o cronológico, na lógica absurda da máquina que supõe medir o tempo – o relógio mede somente a nós mesmos, os nossos mecanismos sociais. Ele é construído na medida do homem. Sua fantasia controladora, seus jogos de poder e dominação.

Que seja cronossensível, subjetivo, de acordo com a percepção de cada pessoa. Conforme os dias que voam, as horas que se arrastam, que desobedecem a ordem dos ponteiros e embaralham o calendário. Um oceano cheio de vida que, quando menos se espera, traz à superfície uma nova descoberta advinda daquele desconhecido imemorial, que está ao mesmo tempo tão longe e perto de nós.

Comecei a pensar neste texto há meses. Sinto como se fosse ontem.

[Para Maria Gabriela Llansol.]

*Imagens: trabalhos diversos de Sandra Cinto.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Composição suprematista: branco sobre branco (1918), Kazimir Malevich

quem dera,
nenhuma imagem faria
o texto só
isto, letras e palavras
soltas numa folha
a voar

escrever
o que não deixa ser
(d)escrito

domingo, 8 de março de 2015

"Minha mulher".
A expressão me desagrada, admito.
"Minha" mulher. Minha por quê? Desde quando? Como pode?
Estar junto não significa possuir. A relação é muito maior, mais complexa e mais bonita.
Sou feminista, admito. Gosto de mulher livre, dona do próprio nariz. Que vem até mim por vontade própria. Que sabe o que deseja e não hesita.
Que vem a mim não porque me pertence, e sim porque gosta. Porque quer compartilhar experiências, amar e ser amada. Que está disposta a viver em parceria - em vez de estar "à disposição".
Mulher como você. Bonita, inteligente, cheia de si. Que não é minha, não, de jeito nenhum. É mulher que escolheu viver ao meu lado. E isso muito me honra.
Por essas e outras, desejo um feliz dia das mulheres a você. Não porque é minha ou porque é mulher como as outras. Um dia muito feliz, é isso o que eu mais lhe desejo, porque você é unica e porque você merece.

sábado, 7 de março de 2015

A BUSCA DO SIGNIFICADO IMPOSSÍVEL

Senecio (1922), Paul Klee

A dimensão do mar
A verossimilhança da sombra
A altura da vontade mor

A temperatura da paixão
A resistência da fé
A dureza da escolha
A solidez da promessa

A arte do esquecimento
A força do espírito
A exatidão da carne
As razões da crítica
A apreensão do tempo
A captura do instante
O encerramento da palavra-chave

A violência predominante
O princípio do preconceito
A brutalidade da maioria
A declaração da guerra
A rua sem saída
O destino da humanidade
O sabor da derrota

O mapa do além
O real, a realidade, o horizonte
O limite da fantasia
A verdade irrefutável
Absolutamente
O ser

[para Roland Barthes]

domingo, 1 de março de 2015

NOTAS SOBRE UM PIANO

Banner que acompanha o piano.
Clique na imagem para ampliá-la
Eu quis escrever este texto no mês passado, assim que vi a recepção incrível do projeto Piano no Metrô, em São Paulo. Um projeto bastante simples: botaram um piano na estação e uma placa convidando os usuários a tocar. Desde então, não importa a hora, não importa o dia, toda vez que passo ali ouço alguém tocando, desde curiosos tendo o primeiro contato com o instrumento até músicos talentosos complementando a apresentação com canto lírico, desde o jazz mais complexo ao mais tímido dó-ré-mi-fá fá-fá. Passo todo dia pelo piano. Diversas vezes parei com intuito de ouvir a música até o final. Vi dezenas de pessoas se acumularem ao redor, vi pianistas serem ovacionados em plena hora do rush. E pensei algumas coisas a partir disso:

1) Vivemos um vazio. Não é que vivemos no vazio, pelo contrário: vivemos um vazio de experiências no excesso da metrópole, neste conturbado cotidiano de horários rígidos, informações desencontradas, imagens, consumo, whatsapp, imagens, imagens, baboseiras, bobagens, violência, impessoalidade, banalização, imagens, desafeto. O que falta para preencher o vazio? Existência, claro. Falta experiência de vida, experiência estética e política; ser, estar, ouvir, participar, compartilhar. Então o sujeito se depara com um piano no metrô e começa a tocar. Outro acha bonito, aproxima-se. A mulher, atrasada para o compromisso, reconhece a música e canta baixinho. Antes do fim, são quinze, vinte desconhecidos cantando juntos, batendo palmas no ritmo, preenchendo um pouquinho do vazio alheio.
      (A 28ª Bienal de SP: Em Vivo Contato, à época criticada como "bienal do vazio", volta à memória, revela potencial e pertinência, dando sequência à 27ª: Como Viver Junto. Não é lindo?)

2) Vão quebrar o piano, esse povo sem educação. Pois não quebraram. Não depredaram, não fizeram arruaça. E o piano vai completar dois meses. Vândalo não ouve música, é a conclusão mais fácil, que farão você apoiar, e não poderia ser mais enganosa. Os mesmos usuários do transporte público que cantam ao piano são os que quebram trens e plataformas. Somos os mesmo sujeitos, somos iguais; nem eu nem você: nós. Diferenciar-nos não leva a nada, exceto a mais violência. O que "resolve" a questão é andar de metrô, ocupar os espaços públicos, participar do dia a dia da cidade. É preciso mais piano e menos lotação, mais qualidade e menos tarifa, mais respeito e menos acusação, mais vontade política e menos pilantragem. É preciso que os cidadãos gostem do transporte público, que experimentem e cuidem da cidade. Convidá-los a fazer parte em vez de fazer vítimas. As ciclovias e corredores de ônibus seguem o mesmo caminho. Um dia você vai usá-los. E vai gostar.

3) Um responsável quis barrar o projeto, disso você pode ter certeza. Existe sempre quem duvida que um insetinho pode emitir luz própria. Talvez tenha sido você, que num primeiro momento achou bobagem, achou que não daria certo, que a prioridade seria outra. Afinal, somos todos responsáveis, não é necessário o cargo. Seja quem for essa pessoa, tenho um recado: bem feito. Seja por ter perdido o páreo, seja por ter cedido ou apoiado, bem feito, deu certo, foi uma experiência válida. Ninguém precisou construir estádios de futebol ou desviar bilhões de reais. Bastou um piano para irromper uma experiência coletiva positiva. O show fica por conta dos participantes, cidadãos, vândalos, pode nos chamar do que quiser, obrigado.

4) Ultimamente, à noite, tenho visto gente se reunir em volta do piano, botar as mãos ao alto e cantar música religiosa, transformando a estação numa espécie de culto, usando a oportunidade da experiência estética para pregação ideológica. Muita gente, mesmo. Fazem isso apesar do aviso de que "o projeto Piano no Metrô não tem finalidade política, religiosa ou esotérico-mística e não pode ser utilizado para a prática de cerimônias religiosas ou atividades afins". Ainda não sei o que pensar, já debati o assunto sem chegar a um acordo (liberdade de expressão, respeito ao espaço do outro, apossamento, segregação, profanação da música sacra, e se fosse Bach, poderia tocar?). Deixo aqui somente a constatação, além da suspeita de que logo isso vai se tornar um problema (aliás, o aviso sempre esteve ali ou foi incluído depois?).

5) O piano no metrô é um vaga-lume, cujo brilho resiste ao excesso de esclarecimento que ofusca sua tentativa de sobrevivência. "Desapareceram mesmo os vaga-lumes?", pergunta Georges Didi-Huberman. "Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (...) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (...) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes". Caminhamos pela cidade sem os notar, esses pequenos lampejos de beleza. Assim eles desaparecem para nós.

Eu quis escrever um mês atrás, mas foi bom esperar o projeto se desenvolver. Agora posso afirmar que a melhor realização do metrô de São Paulo, nos últimos anos, foi colocar o piano na estação República (parece que há outro na Luz). Poderia ter sido a construção de 50 estações, mas foi o piano. E mesmo que houvesse as 50 estações, mesmo que tivessem sido construídas sem corrupção, eu ainda gostaria mais do piano. Porque a ampliação da rede é obrigação do governo. Já o piano é um toque de sensibilidade na vida de quem habita aquele vazio superlotado tão carente de afeto.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Escultura de Tomie Ohtake
  basta ser humano
  basta, ser humano
  basta ser, humano
  basta ser humano,

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus

sábado, 31 de janeiro de 2015

EU PREFERIRIA NÃO

Faz uns anos que li Bartleby – o escrivão, o escrevente, o escriturário, conforme a tradução. E o que restou do livro foi uma lição de resistência aos mecanismos perversos da vida. Não ao "Sistema", no sentido macropolítico. Mas às engrenagens menores que botamos em funcionamento no dia a dia e que, talvez para valorizar a nossa própria existência/relevância, acreditamos que não podem parar. A micropolítica que nos atravessa o tempo inteiro, desde o bom dia ao boa noite, senão além; na padaria, no ônibus, no banco, na correria do escritório, na conversa com os filhos sobre o que aprenderam na escola, na hora de preparar o jantar. Não é exclusividade de Bartleby – quer dizer, eu raramente lembro das artimanhas da ficção. Os pormenores evaporam, faço uma miscelânea de cenas e personagens, não consigo refazer a história de cabo a rabo. Por fim, resta somente um sentimento, que carrego comigo, em especial quando o livro deixou marca mais profunda. Uma sensação de literatura. Que não guardo propriamente na memória, mas no corpo inteiro. Se me perguntam o destino de tal personagem, por que falou tal coisa, em que momento o segredo se revelou, o que aconteceu depois, admito que não sei. Seguindo a linha do raciocínio, não lembro sequer das tramas que eu mesmo escrevi. Quase nunca sei recontá-las. Porém cada livro deixa uma sensação, uma espécie de aura de significados; um despertar pela literatura.

A Metamorfose, de Kafka, se revelou uma angústia de ser; K., de Kucinski, sintetizou a violência do poder e seus métodos; Bonsai, de Zambra, tratou do imenso potencial das coisas mais singelas. Não é raro eu me lembrar apenas de que esse livro é leve, aquele é azul, o outro, quente, acolhedor.


Bartleby me mostrou um caminho alternativo para a resistência; é o que vejo de mais contemporâneo nele. Para quem não conhece, essa breve história de Herman Melville fala de um sujeito peculiar, estranho, que é contratado por um advogado para fazer cópias de documentos, numa época em que elas eram feitas à mão. Um bom funcionário, no sentido produtivo: quieto, dedicado, que não enrola nem comete erros. Uma engrenagem bem azeitada na máquina do capital. Que em algum momento começa a querer girar num outro sentido. E que responde, às ordens do patrão, "I would prefer not to", eu preferiria não, talvez uma das frases mais emblemáticas do século XX – ainda que o texto seja mais antigo, publicado em 1853.

Sua perspicácia está, justamente, em não "bater de frente" com seu empregador. Ao dizer que preferiria não cumprir a tarefa – ao invés de recusá-la terminantemente –, Bartleby coloca-se sob responsabilidade do outro, que deve decidir seu destino. Ele não enfrenta a autoridade, mas com a sutileza de um toque a enfraquece toda. O patrão daria a Bartleby uma tarefa que ele não recusaria para não desagradá-lo, mas que faria contra a própria vontade. Ele sabe disso. Só não sabe como reagir. É esse jogo de consciência que se estabelece e quase leva todos à loucura, retirando-os da zona de conforto, desestabilizando o que já estava instituído.

Isso me marcou profundamente. E sempre que parece necessário intervir numa situação que incomoda, apelo ao estratagema do escrivão, perguntando a mim mesmo qual seria o caminho alternativo ao confronto direto, uma vez que este certamente levará ambas as partes à violência e, portanto, à derrota. Nem sempre funciona, claro. Mesmo assim esse método de resistência é mais inteligente e menos desgastante.

É também um método menos narcisista. Porque não se pauta numa certeza, mas em suposições, hipóteses, possibilidades diferentes. No lugar de "donos da verdade" disputando o poder, insere-se a inexatidão, a dúvida, o convite à reflexão e à revisão dos princípios.

Existe uma grande quantidade de interpretações do livro de Melville, inclusive que o vê como sintoma de esvaziamento e tendência à depressão, como Joel Birman escreveu em O sujeito na contemporaneidade. E uma interpretação não invalida necessariamente a outra. Seja como for, é surpreendente como uma ficção tão curta permaneça tão relevante.

Para mim, sua força está no próprio uso da linguagem, que rompe a dialética do sim e do não ao criar uma zona de indiferença entre o sim e o não, conforme Gilles Deleuze propõem em Bartleby, ou a fórmula. Ele insere uma fratura na ambivalência do mundo. Expressando um "nada de vontade", põe fim à lógica dos pressupostos, daquilo que procura se sustentar porque "sempre fora assim", baseado numa tradição por vezes importuna aos tempos atuais.

Bartleby rompe a ordem. Depõe a verdade absoluta sem inserir outra no lugar, sem continuar a alimentar o mesmo mecanismo de poder e dominação. É essa resistência mais inteligente e menos violenta que a sociedade contemporânea precisa produzir; é sua voz ambígua, subjuntiva, que precisa ganhar ouvidos diante dos urros da ignorância imperativa, antes que o sistema entre em colapso pelo excesso de ordem, antes que o absurdo do real se imponha pelo excesso de razão.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Lucioles (2008), Renata Siqueira Bueno
 
"Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (…) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar para vê-los. (…) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes."

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SÁBIAS PALAVRAS


Toda vez que penso em publicar um comentário no Facebook ou aqui no Arte Faz Parte, lembro do que o escritor Bernardo Carvalho disse em entrevista a Um escritor na biblioteca. Então, alguns dos meus comentários são publicados, outros são revistos e abandonados. Compartilho o método com quem for suficientemente humilde para aceitá-lo.

Eis o trecho: "Tive que reescrevê-lo [o romance Reprodução, na época ainda inédito] muitas vezes, porque queria que os personagens fossem todos do mal e muito burros, mais ou menos o modelo dos comentaristas de internet. Eu queria que os personagens, todos eles, fossem como esses caras que fazem comentários na internet, que querem se expressar, gente que tem ideia sobre tudo, que são super orgulhosos com as próprias opiniões. Queria fazer um livro que só tivesse personagens assim, que todos fossem uns idiotas."

A entrevista completa está aqui, a quem se interessar: Bernardo Carvalho, um escritor na biblioteca

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRISTE EXECUÇÃO DO BRASILEIRO NO ÚLTIMO SÁBADO

Enquanto nós permitirmos a pena de morte, que é a violência máxima que um governo pode decretar, estaremos todos sujeitados às demais violências advindas dos lados mais diversos.

Enquanto a morte for medida oficial, não haverá controle nem segurança. Não haverá limites. Muito menos limites morais.

Enquanto acharmos que isso é problema [ou "solução"] de outros países, que a pena de morte não nos diz respeito, estaremos virando as costas para os atentados contra a humanidade. E a humanidade é muito maior do que leis locais. E muito maior do que atrocidades culturais.

A pena de morte não é diferente do campo de concentração, apenas acontece com menor quantidade. Ela não melhora nada, nem a sociedade nem o executado. É ingenuidade achar que serve como exemplo, pois só é exemplo de mais estupidez.

Enquanto acreditarmos que a violência é a solução para a violência… tristes de nós.

--

"Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência. Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás. Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar-comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para exisitr, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros.

(…) Uma marca se destaca na criminalidade atual, de forma inconfundível, e se interesse diretamente à problemática da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até então impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o genocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotecas e anti-humanas."

Joel Birman, O sujeito na contemporaneidade

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#JeSuisCharlie

Que atitude tem mais chance de fazer um mundo menos ignorante?
a) Cartum
b) Ataque terrorista


"Sobretudo, o problema é evitar o julgamento. Não digo evitar o castigo. Porque o castigo sem julgamento é suportável. Ele tem, aliás, um nome que garante a nossa inocência: a infelicidade. Não, pelo contrário, trata-se de fugir ao julgamento, de evitar ser continuamente julgado, sem que jamais a sentença seja pronunciada. (…) A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles [meus semelhantes] uma vocação irresistível para julgar. (…) A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas."

A QUEDA, de Albert Camus

sábado, 3 de janeiro de 2015

EXTRADITO

quando digo eu
há quem confunda
com outro eu,
a voz que fala
e aquele que deseja
sumir por trás dela

eu não sou, eu não é
eu não se importa
nem importo a mim,
apenas a voz exporta,
transborda, profana, abomina,
a (mal)criação do autor-deus

candidato fajuto
ao lugar do outro deus
que estava morto

resta a obra
que é toda nossa
antropofagia

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

INDISCRIMINADAMENTEM

– Loucos não mentem?
– O tempo todo.
– Como podem?
– Inventam. Indiscriminadamente. Acredita?
– Se você diz.
– É verdade, pode acreditar.
– Que loucura. Jamais pensei...
– Sim, mas tem uma coisa: é tudo verdade.
– Como assim?
– As mentiras, tudo verdade.
– Fala sério!
– Eles também. Falam sério, de verdade. Não sabem que inventam. Falam sem pesar a consciência.
– Faz sentido.
– Pode crer. Eu sei que faz.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."