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sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O GESTO MÍNIMO

Monotipias de Mira Schendel (1964-5)


A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.

Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?

Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.

Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.

Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br


Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.

Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.

Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.

A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.

quinta-feira, 29 de março de 2018

PAISAGENS DE MEMÓRIA: ENTRE VISÍVEIS E INVISÍVEIS, VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES

Pintura 264 (2015), de Felipe Góes
 
Estão publicados os anais do III Seminário de Estética e Crítica de Arte: as Artes Entre Urgência e Inoperância, realizado em 2017 pela FFLCH/USP. Tenho ali um artigo escrito em parceria com Gisele D. Asanuma e Felipe Góes que analisa aspectos da pintura contemporânea a partir do processo criativo do próprio Felipe.

O título é: Paisagens de memória: entre visíveis e invisíveis, visibilidades e invisibilidades. O texto completo pode ser acessado aqui, à página 172: Anais do III Seminário de Estética e Crítica de Arte: as Artes Entre Urgência e Inoperância

Pintura 291 (2016), de Felipe Góes

Resumo: O artigo pretende discutir visibilidades e invisibilidades de imagens artísticas contemporâneas por meio da análise crítica do processo criativo de Felipe Góes, que pinta paisagens a partir de referenciais da sua memória e não busca necessariamente representar lugares específicos da realidade. Entre as principais questões que mobilizam esta investigação, citamos: o que ocorre, no sentido de reprodução de realidade, quando a referência da pintura não é mais a paisagem posta diante do artista, mas um registro subjetivo que habita a sua memória? Qual é a natureza dessa realidade que o artista se põe a retratar? O que as suas imagens dão a ver e o que permanece oculto? Que regimes de visibilidade e/ou invisibilidade são operados no processo? O que resta à inoperância? Qual é a relação com o real, tal como alguns pensadores contemporâneos o têm definido? De que maneira o visível se embate com o legível no processo de construção da história da arte? Esta análise se faz em diálogo com o artista, num passeio por suas paisagens pictóricas. Ela é acompanhada de breves incursões críticas que apontam caminhos investigativos, conforme sugerido por autores que compartilham inquietações semelhantes, em especial George Didi-Huberman, Giorgio Agamben e Hal Foster.

Palavras-chave: 1) Fundamentos e crítica da arte; 2) Criação artística; 3) Memória; 4) Imagem, visibilidade e invisibilidade; 5) Pintura contemporânea

segunda-feira, 26 de março de 2018

para Victor Heringer, que não conheci 

Morre um jovem
morrem milhares todos os dias
dizem: o país não se importa
exceto por este sujeito,
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país.

É preciso matar muitos países supostos
para fazer viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos sujeitos sem jeito
teimam em envelhecer
ao ponto em que a morte eterna
confunde-se com salvação.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A CADA MANHÃ DE MINHA VIDA

O dia 23 de janeiro era como outro qualquer até este ano de 2018, quando nasceu minha pequena Lis. Agora a data será sempre especial.

Sinto-me privilegiado por ser pai de menina. Durante a gestação, várias vezes percebi olhares desapontados, vindos de homens e mulheres, como se a expectativa fosse um bebê macho. Porque homem quer menino para fazer companhia, porque menino dá menos custo, porque menino carrega o nome da família. Nunca entendi essas crenças. Eu sempre quis uma menina.

Algumas amigas entendiam perfeitamente. Conheciam a origem do meu desejo: as meninas têm um projeto ambicioso pela frente, que é tornar o mundo mais feminino. É uma missão urgente, da qual precisamos muito. Não depende só delas, mas é nelas que vejo a força para realizar o devir feminino da humanidade.

Numa entrevista a Jonathan Cott parcialmente publicada pela revista Rolling Stone em 1979 e depois transformada em livro, Susan Sontag disse acreditar que o mundo seria mais atraente “se os homens fossem mais femininos, e as mulheres mais masculinas”. Isso tem menos a ver com sexualidade e mais com forma-de-vida ou, ainda, com ser no mundo. Feminilidade e masculinidade são como intensidades manifestas tanto nos homens quanto nas mulheres. Infelizmente a masculinidade anda forte demais em ambos.

Eu concordo com Sontag, em especial no que diz respeito ao mundo ser mais feminino. Porque a subjetividade dominante é machista, lógica, belicosa. Ela nos faz acreditar que é melhor ser menino. Faz, inclusive, as meninas acreditarem nessa bobagem. Ao ponto em que, de fato, passa a ser melhor por ser mais fácil.

Movimentos feministas se empenham há pelo menos um século para virar o jogo. Agem de variadas maneiras, as quais aprovamos ou reprovamos, e por aí o debate se estenderia ao longo de muitas páginas. Eu tampouco me sinto o suficiente apropriado do assunto, prefiro deixá-lo a quem sabe dizer melhor. Por ora, posso apenas voltar à minha Lis e fantasiar que desenvolva certa sabedoria feminina, sensível, mágica, intuitiva, que tanta falta nos faz na dureza do hoje.

Por sua vez, nenhum relato meu daria conta do poder da mulher gestante, que tanto me surpreendeu. Pena que a sociedade não se organizou para acolher, respeitar e dar vazão a ele. Talvez o maior mistério da vida esteja se realizando agora mesmo, perto de você, e poucas pessoas se solidarizam, seja para dar lugar no ônibus, seja para lutar por melhores condições trabalhistas, seja para admirar.

A distinção fica evidente no parto, quando a mulher se contrai em fé e dor para o bebê vir à luz, enquanto o homem ao lado não pode fazer nada, exceto estar junto. A sensação de impotência sobressai a toda macheza da cultura. Eu estava ali e nada dependia de mim, não havia nada a fazer. O momento era todo dela.

Penso se não é também por isso que a cesariana ganhou tanto espaço, ao ponto de o Brasil ser uma aberração frente a demais países – porque ela atenua esse poder que é só da mulher, transformando o mito da criação num procedimento cirúrgico automatizado. Claro que a questão é mais complexa. Existe ainda a idealização do “mundinho feliz”, em que é proibido sentir dor, em que o parto requer maquiagem. Existe a conveniência dos obstetras que agendam nascimentos como horários de cabeleireiro. Existem as extorsões que Ministério da Saúde e convênios fingem desconhecer.

Outra coisa que minha filha me ensinou nesses seus primeiros dias de vida é que não devo me sentir estúpido por saber tão pouco a seu respeito, mas privilegiado pela oportunidade de aprender. Lis é um animalzinho cheio de instinto que dominou tempo e espaço. Menospreza meu linguajar rebuscado ao ponto de ele ser inútil. Eu é que preciso aprender seus meios para convivermos.

Numa dessas madrugadas de colo, enquanto me punha a dançar para acalentá-la, Lis botou os olhinhos num quadro que tenho na cozinha, estampado com versos de Neruda que dizem: “assim, a cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho”.

As últimas madrugadas, confusas entre o sono e a vigília, foram como sonhar acordado. Aos poucos a fantasia esmaece perante a luz do sol e revela uma bebê em sua pequenez, respirando paz, indiferente a tudo o que imagino para ela.

Percebo que minha vontade pouco importa. Não deixa de ser uma espécie de egoísmo, talvez até um preconceito disfarçado de boas intenções (o tipo mais perigoso). Aqueles projetos, ambições e expectativas precisam ser depostos. Não devo colocar em suas costas os desejos meus nem os que penso ser da humanidade. Devo é estar ao seu lado, oferecendo a ela toda a condição possível para que encontre os seus próprios desejos. Para que exercite, ao longo da vida, sua potência de ser. Meu papel, daqui em diante, é preparar o solo para a flor de Lis. Eu não poderia estar mais realizado.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"ESQUENTA" PARA O LANÇAMENTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO

Meu conto Justa Medida compõe a 2ª edição especial da revista gueto | direitos humanos e minorias.

Além do orgulho de participar da coletânea ao lado de muita gente talentosa, aproveito para dizer que o conto serve de "esquenta" para o lançamento do meu livro Testemunho Ocular, pela editora Lamparina Luminosa. Mais notícias em breve! ;)

Baixe a revista em PDF, ePub ou Mobi aqui: revista gueto

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

FALAÇÃO

Eat Me - A Gula ou a Luxúria? Versão I (1976), de Lygia Pape
A fala
muda
uma relação ex-
posta.

Quem era
quem?
Como foi?

Sem saber
dizer,
ouço falarem.
E falam, ah!
como falam.

Trans-
bordam a
experiência
em lingua-
gem surda.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ATOS DE CRIAÇÃO E DE RESISTÊNCIA

Arlequin au violon (1919), de Juan Gris
Os cubistas tinham olhar acurado. Sabiam que tudo pode ser visto por inúmeras perspectivas. Ao mesmo tempo, deixaram-se iludir pela ideia impossível de reunir todos aqueles pontos de vista num mesmo plano. Seus trabalhos de arte resultam num exercício árduo de desconstrução da visualidade. Que nos oferece um método de pensamento e aponta para uma utopia. Após o Cubismo, não podemos ignorar que muitos olhares se voltam para o mesmo mundo e, nele, veem mundos diferentes.

A reunião de pontos de vista não fundamenta verdade absoluta sobre o assunto. Pelo contrário, ela apenas comprova que não pode existir verdade que não seja meio ficcional e meio ilusória. Mas o exercício de construir um comum a partir de tantas perspectivas pode levar a um dissenso, ou seja, a um lugar onde a diversidade convive com dignidade. Um comum onde os direitos são assegurados, onde todos têm voz e onde a ética medeia as relações. Uma utopia, sem dúvida. Que precisa ser sonhada, buscada, experimentada. Tal como os cubistas fizeram.

Toda relação provoca tensões. Por mais semelhantes que sejam em suas complexidades, há sempre pontos de discórdia entre um e outro sujeito. São as tensões que mantêm as relações pulsando. O exercício político deve cuidar para que elas continuem a manter vivo o organismo social. “Verdade absoluta é outro nome que se dá para a morte”, Jean Baudrillard escreveu certa vez.

Há quem pense que a arte está aí para atenuar as tensões. Eu acredito no contrário. O próprio ato de criação já implica embates terríveis do artista com a obra. Embates violentos. O pintor, por exemplo, precisa destruir o seu próprio olhar para produzir uma imagem de arte. Precisa rasgar a tela, rasgar os clichês, rasgar a si mesmo; arrancar de si um ponto de vista que desconhecia. O escultor deve destruir sua própria forma para criar condições ao surgimento de outra. O coreógrafo precisa esvaziar-se de movimentos para que seu corpo produza gestos. O músico deve desaprender a ouvir para ressoar sonoridade outra. O fotógrafo deve deseducar o olhar. E assim por diante. Sempre tensões vitais.

O mesmo vale para outros campos do conhecimento? Não tenho afinidade, mas suponho que sim. O professor deve destituir-se do lugar de enunciador para criar pedagogias e didáticas. O advogado precisa escapar dos manuais de direito. O neurocientista precisa levantar-se contra os procedimentos tradicionais da ciência para criar novos paradigmas. O arquiteto deve pôr abaixo ideais de construção para projetar o edifício jamais habitado. Todos mirando a comunidade que vem.

Posso falar com alguma propriedade do escritor. Ele precisa desativar os mecanismos da própria língua. Não ceder aos significados prontos; desviar das armadilhas do lugar-comum. Refiro-me ao escritor que pretende fazer arte – há diversas atuações para o profissional da escrita, e nem todas têm essa vocação. Mas o artista das letras precisa jogar a própria língua contra a parede, torturá-la, fazê-la confessar o que não sabe. Deve levar cada palavra ao limite da sua realização, àquele ponto de caos em que ela já não se reconhece. Deve, com essas palavras, criar cenas e situações capazes de provocar a realidade. Falhará, inevitavelmente. É impossível sustentar tamanha destruição. Ficará devendo. Quem disse que é fácil?

Há quem pense que a arte está aí para atenuar tensões. Eu acredito no contrário: a arte vem para produzir tensões, ou para explicitar as que se encontram debaixo do tapete, ou simplesmente para potencializá-las. Mesmo quando agrada, a arte deve instigar o pensamento. Por que agrada? Em que o agrado se baseia? Quais perversidades minhas se realizam nesse prazer inexplicável? O encantamento estético oculta perigos traiçoeiros. Convém abrir os olhos.

A arte não informa nada. Ela desinforma, deforma, desenforma. Gilles Deleuze explicou assim durante uma convenção de cinema, em 1987: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém informa, diz a você em que deve crer. A informação é o sistema de controle. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, ela não contém estritamente a menor informação. A obra opera como contrainformação e se torna eficaz quando é ato de resistência.

De acordo com o filósofo, apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sobre a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.

Eu tenho dúvidas sobre como proceder com a resistência. Porque me parece que em raras ocasiões ela não é apenas um adversário jogando o mesmo jogo com as mesmas cartas, tentando assumir o poder. Raras vezes o resistente não fará girar as engrenagens tradicionais da máquina de governo.

Por sua vez, se não houver resistência, como será possível pensá-la? Se não houvesse Cubismo, como poderíamos analisá-lo e produzir críticas? É preciso olhar com cuidado e sempre perguntar em que medida a resistência de fato é um ato criador e em que medida apenas reitera os mecanismos do poder. Se este último caso prevalecer, é preciso inventar formas outras de resistir. É preciso que os insurgentes se destruam a si próprios para criar novos meios e métodos de levante.

Se a resistência parece hoje um tanto desvitalizada, ou pior, se ela se confunde cada vez mais com a brutalidade reacionária, os resistentes precisam ter a audácia de destruírem a si próprios. Toda destruição é também ato de criação; uma potência de vida capaz de sobreviver ao extermínio da diversidade, das tensões e das formas de existência no comum.

domingo, 10 de dezembro de 2017

SILÊNCIOS NA HISTÓRIA DA ARTE

Tive o prazer de participar do XII Encontro de História da Arte da Unicamp, promovido na semana passada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. O tema que norteou os quatro dias de evento era o mesmo deste texto. Acredito que ele é relevante não apenas para a academia ou para a história da arte, mas também para pensar a nossa condição sociocultural agora e sempre. Por isso retomo aqui algumas ideias debatidas na ocasião.

A começar com a constatação de que as histórias da humanidade são contadas por meio de rastros e arquivos. Constituem-se daquilo que resta dos apagamentos, esquecimentos e silenciamentos do vivido. Uma parcela ínfima da imensurável totalidade da vida sobrevive ao tempo. Por isso a natureza da história é lacunar, “resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé”, diz Georges Didi-Huberman. Para quem “o arquivo é cinza não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu, onde temos a experiência de uma barbárie documentada em cada documento da cultura”.

Uma tarefa do historiador seria esta: investigar reminiscências da cultura e buscar, na sua memória, a silenciosa barbárie que a produziu.

Por sua vez, a arte pode colocar em xeque as narrativas hegemônicas da humanidade? Romper com certa ordenação do passado e do presente, sugerir desvios e linhas de fuga, abrir fissuras na solidez dos fatos? Dar a ver apagamentos que produzem regimes estético-políticos?

Acredito que sim: alguns trabalhos de arte podem provocar as certezas estabelecidas, abalar as estruturas, ouvir os silêncios. Essa hipótese se fundamenta na obra de Adriana Varejão, em especial na sua pintura intitulada Mapa de Lopo Homem II, criada a partir da apropriação de uma cartografia portuguesa do século XVI na qual a artista intervém com o artifício das feridas e tentativas de sutura. Incisões numa dada realidade colonialista que deixam ver não uma verdade por detrás, mas as infecções daquilo que permanecia oculto sob a pálida superfície do banal. Como se as feridas da história não tivessem cicatrizado e agora inflamassem. Como se uma força silenciada quisesse irromper de dentro da pintura. Como se as cinzas do passado ardessem outra vez.

Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão


Poderíamos dizer que Adriana profana a história maior, contada pelos colonizadores, que requer para si o estatuto de verdadeira, oficial, comumente aceita. Como alternativa, cria histórias outras, menores, experimentadas na carne e impressas nos corpos.

Vimos que a natureza da história é lacunar, uma vez que pouco sobrevive ao esquecimento. Portanto, “cada vez que depomos nosso olhar sobre uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição”, sugere Didi-Huberman. Uma força poderosa contrariou o desaparecimento ao qual tudo está fadado e contribuiu com alguma narrativa da humanidade. É dever do historiador perseguir as pistas que levam ao como, ao por quê, ao quando e ao quem de tal força, que quase sempre são plurais, complexos e um pouco inexatos. Mas invariavelmente estão relacionados com o poder e o possível.

Para exercer o seu poder, essas forças incidiram sobre os possíveis da vida, tornando parte deles impossíveis de se realizarem, num processo de submissão que produz outra espécie de desaparecimento. Digo outra espécie porque não se trata daquele lacunar, relativo ao que não sobreviveu na memória dos homens, mas a um desaparecimento perverso, provocado pela opressão, pelo descaso, pelo autoritarismo, pelo policiamento higienista e/ou moralista que frequentemente se exerce para silenciar as insurgências daquilo que está vivo, que é menor e que se inflama sob a superfície domesticada da existência.

Se dermos uma dobra no que Didi-Huberman propõe, encontraremos um dever ainda mais exigente do historiador: investigar os desaparecimentos que sustentam as evidências, os discursos, os conhecimentos da História. Desaparecimentos que sobrevivem ao extermínio, às extirpações e às demais violências exercidas por aquilo que é hegemônico. E que não estão nas lacunas, mas nos próprios arquivos da História, nas entrelinhas das suas narrativas legíveis e legitimadas. Pois tampouco o que sobreviveu está completamente explicitado. Além do silêncio do que desapareceu há os silêncios implícitos: o não dito, o censurado, o tabu, o insignificante, o desprezível, as vozes menores sufocadas por autoridades.

Uma tortuosa tarefa, pois esses invisíveis são também um pouco indizíveis e impensáveis. Porém, uma vez dispostos numa cadeia de produção de subjetividades, eles mantêm em operação máquinas de governo.

Tais desaparecimentos, que habitam o fora da linguagem e que portanto não se inscrevem, talvez sejam os pontos em que os arquivos falham. É para eles que devemos olhar. Didi-Huberman propõe que o historiador da arte recupere as cinzas do passado, e que a princípio parecem inertes. “É preciso acercar o rosto e soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo”.

À sua maneira, é o que Adriana Varejão faz nos interstícios da História da Arte: ela reaviva a chama dos fatos e dados que parecia extinta, reabre os arquivos, atacando as aparências domesticadas, superficiais, e assim revive a experiência no corpo da obra. Seu trabalho tem o potencial de reordenar imaginários, forças e fragilidades. Sua aposta é a própria pintura. Pois tornar visíveis os imaginários, apresentando aquilo que têm de ambíguos, suspeitos, paradoxais, talvez seja um passo para fazer a história falar e tornar os silêncios perceptíveis.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

XII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE DO CHAA (UNICAMP)

Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão - detalhe

Na próxima quinta-feira, às 8h, eu estarei na Unicamp para falar sobre Silêncios na história (da arte): as pistas do Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão. A palestra é um breve recorte da minha atual pesquisa de doutorado.

A mesa "Cartografias de um imaginário fantástico" faz parte do XII Encontro de História da Arte, promovido pelo Centro de História da Arte e Arqueologia.

Venham, venham! A programação completa está no site do evento: www.unicamp.br/chaa/eha

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

EVANESCÊNCIAS


Eu costumava sonhar que lutava com um sujeito sem rosto, nunca soube quem era. Para mim, no sonho, não fazia diferença. Eu sequer tentava descobrir. Nós lutávamos, isso era tudo. Podia ser boxe ou uma briga desregrada. Era sempre uma luta de mãos. Eu me lembro bem porque sonhei muitas vezes. E também porque era lenta, eu diria que era uma luta excessivamente lenta, como se assistisse a um filme frame a frame. Às vezes, com a câmera em primeira pessoa, pelos meus próprios olhos. Outras vezes eu me assistia de fora, consciente de que um dos lutadores ali adiante continuava a ser eu mesmo. Fosse como fosse, a luta seguia em ritmo vagaroso. Com um esforço imenso, eu tentava atirar o punho na direção do adversário. Era pesado demais. Eu acompanhava cada milímetro do movimento. A pele do cotovelo enrugava, a musculatura do antebraço ganhava forma alongada. O suor escorria da testa, contornava as curvas da face até pingar no chão. Ssssppllaaasssssssshhh. A gota mergulhava em si mesma, explodia em gotículas. Eu via acontecer em detalhes. Meu punho errava o alvo, passava perto, mas errava e abria a guarda. O golpe contrário também era lento, porém nem tanto. Ele se projetava na minha direção um pouco mais rápido do que o necessário para eu desviar. Antes da certeza de ser atingido, o sonho acabava. Eu costumava acordar nessa hora com os ombros rijos, tentava me virar na cama para dormir de novo. Fechava os olhos e a luta recomeçava.

* * *

Eu costumava sonhar que voava. Na verdade, eu corria uns metros para pegar impulso, saltava no ar e planava para cima, como se fosse possível. No sonho era. E não havia voo sem a decolagem. Era preciso correr, saltar e manter o corpo reto, horizontal em relação ao solo, os braços estendidos para frente como faz o Super-Homem. Eu nada tinha de super. O voo, no sonho, era sempre a iminência da queda. Eu despencaria a qualquer instante, bastaria um vacilo para me estatelar, talvez bastasse duvidar da minha própria capacidade. Eu não duvidava. Planava perto do chão, a mais ou menos um metro de altura, e o máximo que consegui alçar foi a copa de uma árvore calva. Apesar do movimento nem um pouco vigoroso, a sensação era boa demais. Meu corpo desengonçado mantinha-se suspenso no nada. De fato, sequer o ar me sustentava. Eu só voava por causa da frágil disposição do corpo. Era tudo perfeitamente crível, podia saltar e funcionaria. Eu não me lembro de como despertava desse sonho. Não queria despertar jamais.

* * *

Eu costumava sonhar que um carro me perseguia na rua. Não um motorista, por favor, não me entenda mal. Era somente o carro. Certeza que desejava me matar, não pergunte por quê. Eu corria e ele vinha atrás, eu tentava enganá-lo e ele logo percebia. Não havia tempo para discussão. Eu subia com toda a velocidade por uma escada caracol e ainda assim o carro insistia, ele fazia a curva devorando os degraus, espremendo-se entre corrimãos, e atirava-se no meu encalço. A perseguição se estendia por quarteirões, esquinas, elevadores, túneis, desertos, rios. Não parecia haver escapatória, ainda assim eu continuava a fugir. Hoje penso que, se o carro quisesse de fato me matar, não demoraria tanto. Não precisaria demorar.

* * *

Eu costumava sonhar que caía. Jamais chegava ao chão, eu apenas caía e caía e caía, cada vez mais para dentro desse fosso ininterrupto. Eu voltava a cabeça para trás e não enxergava nada, não havia luz de onde eu vinha. Tampouco havia luz adiante, eu caía direto no escuro sem de fato atingi-lo, sem saber do que me afastava e do que me aproximava. Se tudo ao meu redor era cego, como ter certeza de que caía? Não havia referência exterior. Eu não passava por objetos estáticos ou em queda menos brusca, tampouco havia qualquer parede no fosso; aliás, eu não deveria chamá-lo assim, era apenas um completo breu. Nada havia para ver, mesmo com os olhos bem abertos. Evidente, eu sabia que despencava por causa da sensação; o frio na barriga, a falta de ar provocada pelo excesso de velocidade, o vento ruidoso que agitava meus cabelos e esticava as bochechas para trás. Eu podia despencar no meu próprio vazio? A queda era somente a sensação da queda, isso é tudo o que posso afirmar. A certeza ia até aí. Eu despertava em minha cama. Aquele era o fim.

* * *

Eu costumava sonhar. Agora não mais. A neurologia diz que a atividade cerebral não para. A psicanálise sugere que eu já não me recordo dos sonhos porque desenvolvi algum mecanismo de defesa contra eles. Eu gostaria de chamá-los de pesadelos, tamanha a inquietação que provocavam, tamanha a estranheza deles e a impotência minha, mas ao mesmo tempo não acho justo. Aposto que há sonhos piores. Seja como for, se não me lembro mais, meus sonhos ainda existem? Que existência é essa? Não sei. Eu apenas durmo e horas depois desperto como se nada tivesse se passado entre um momento e outro. Na maioria das vezes durmo bastante, de acordo com o relógio. Em outras noites pareço dormir muito, só que na realidade acordo apenas uma hora após ter me deitado. Como saber se não me engano? Como saber se desperto para fora do sono ou para dentro do pesadelo?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

É PRECISO SER FORTE PARA SER DELICADO


Em 2010, Sandra Cinto realizou uma pintura na sala expositiva redonda do Instituto Tomie Ohtake, na cidade de São Paulo. A parede foi tingida de azul profundo, sobre o qual a artista criou ondas imensas, compostas por uma infinidade de linhas prateadas desenhadas à mão. O ambiente era como um mar intempestivo e ao mesmo tempo calmo, inquietante e acolhedor, sublime. Na época eu trabalhava ali perto e aproveitava o horário do almoço para mergulhar – uma experiência poética revigorante. Por quê? Qual a força daquele mar, que me fazia sentir um náufrago na concretude da metrópole? Por que a condição de náufrago fazia tão bem?

Passaram sete anos até que assisti Sandra Cinto apresentar sua trajetória artística no III Seminário Internacional Arte e Natureza, realizado na USP em agosto. Sua fala soava ingênua, aclamando a beleza das pessoas, do mundo, da vida. Nestes tempos sombrios, tomados por violências e intolerâncias de diversas ordens, o discurso parecia alienado. Como é possível, eu me perguntava, que uma artista contemporânea se ponha a falar sobre as flores que enfeitam o seu ateliê enquanto as ruas ardem? Como é possível que, enquanto alguns se armam de paus e pedras, Sandra Cinto escolha uma canetinha qualquer e fique a desenhar marolas?

Minha incredulidade foi aos poucos se deixando infiltrar pela perseverança do seu trabalho. Que no início dos anos 1990 consistia em pintar céus e também contemplar os céus de outros artistas, desde Giotto, no Gótico italiano, à nossa Carmela Gross. Um trabalho que se mobilizava pelo desejo de céu em uma cidade que já não conseguia admirá-lo, fosse por causa do ar poluído, fosse pelos prédios que dominaram o horizonte, pela falta de hábito ou pelo excesso de luz que ofusca as estrelas.


“Se houve outra vida, fui japonesa”, diz Sandra Cinto, apaixonada pelo modo como aqueles orientais celebram os menores acontecimentos e não separam o homem da natureza. Com a mesma dignidade ela se coloca a desenhar por três semanas ininterruptas, desde a manhã prematura à madrugada plena, para realizar um trabalho que ficará exposto durante o mesmo tempo e depois será destruído. Pela efemeridade da obra, a artista exercita a própria finitude e se concilia com a morte.

Usa borracha para não se ludibriar com a utopia da perfeição; prefere negociar os erros e incorporá-los à obra, ao ponto em que nada parece fora de lugar. A beleza se encontra na própria imperfeição.

Em determinado momento, a artista quis experimentar tintas mais fluídas, que escorriam pela tela independentemente da sua vontade de controlá-las. Foi, assim, aceitando os acasos da criação.

São palavras suas. Sandra Cinto define o próprio trabalho como “muito simples e de coração”. Ao término da palestra, tal ingenuidade aparente tinha diluído minha expectativa árida e me deixava ver, debaixo daquela água toda, uma aposta política. Cuja força não pretende impor uma vontade – sua natureza é outra, menos combativa e mais sensível, menos destrutiva e mais vital, menos razão e mais corpo. Uma força política pautada na delicadeza, que age na contramão da guerrilha ou, em outras palavras, que desvia do puro e simples enfrentamento.

Isso não implica covardia ou irresponsabilidade, mas a busca por outro modo de agir. Ela não se arma para enfrentar o adverso; ao contrário, evita os velhos estratagemas e corre na direção do mar. “Toda poética é também política”, explica. E pode operar de maneiras diversas. Por vezes, bater contra uma ameaça apenas concede a ela relevância.

A poética é ainda mais potente quando não reproduz nem reitera as artimanhas do poder. Resta a questão: como? Como desativar os mecanismos da opressão sem recorrer a atitudes semelhantes? Como criar linhas de fuga em meio à perversidade? Como dançar em plena batalha?

As demonstrações de força quase sempre implicam abuso de autoridade, incapacidade de dialogar e medo do diferente. Sim, a força bruta se apresenta como uma reação amedrontada à vontade de mudança ou à existência outra. Já a potência política da arte de Sandra Cinto está na delicadeza exercida com rigor e tenacidade, e que oferece uma alternativa às tormentas atuais. A força dos seus mares coloca certezas em suspensão, permite ao espectador flutuar e se deixar levar, experimentar a segurança da superfície e a imensidão desconhecida que se encontra logo abaixo.

A artista aposta no belo. Pois acredita que o ímpeto transformador desse gesto é mais promissor do que a verborragia, a perseguição e o julgamento dogmático. Porém eu não acredito que o belo baste. Não é só disso que se trata. Acontece que Sandra Cinto consegue romper a beleza superficial para encontrar um ponto sísmico profundo, capaz de abalar a sensibilidade do espectador. Um ponto que toca a estrutura da sua subjetividade.

Para isso ela não precisa recorrer à bomba atômica. Sua obra é mais forte porque consegue, em meio às tensões do presente, sustentar a delicadeza. A qual, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, nada tem de ingênua ou frágil. Em tempos de violência, é preciso ser muito forte para ser delicada.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

JORNADA DE PESQUISA EM ARTE PPG IA/UNESP 2017


Amanhã, a partir das 14h, eu estarei no Instituto de Artes da Unesp (São Paulo/SP), participando da Jornada de Pesquisa em Arte. O título da minha fala é Humanidade Ficcionada, Humanidade Profanada: Patricia Piccinini e Ron Mueck em São Paulo. Ela faz parte da Mesa 11: Arte Moderna e Contemporânea em São Paulo). Todos estão convidados!

Mais informações sobre o evento estão aqui: https://jornadadearteunesp.wixsite.com/pesquisa2017/2017

CONVERSAS-COLETIVAS NO MAM-SP

Em uma parede imensa do MAM-SP você encontrará também o diagrama que Ricardo Basbaum produziu para a exposição. Este é apenas um trecho (clique na imagem para ampliá-la)


Nossa criação coletiva para o 35º Panorama da Arte Brasileira já está disponível no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O projeto é de Ricardo Basbaum. Foram sete dias de trabalho intenso para produzir o texto e gravar o áudio. Em visita ao museu você pode se sentar numa grande mesa branca, colocar os fones de ouvido e acompanhar a conversa pelos roteiros deixados à disposição.

Se você não pôde nos assistir ao vivo durante o evento de abertura ou não conseguirá visitar a exposição a tempo, ouça o áudio e leia o roteiro nos links abaixo. Sugestão: use fones de ouvido para perceber melhor as variações do som.

Ouça aqui o áudio e leia o roteiro.

Como mencionado em post anterior, trata-se de "um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons".

Participantes: Bruna Beber, Eduardo A. A. Almeida, Julia de Souza, Marina Jerusalinsky, Monise Rigamonti, Rafa Éis, Ricardo Basbaum, Rodrigo Munhoz.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

ILUSTRAÇÕES PARA O MEU LIVRO

Estas ilustrações, inspiradas no Por que a Lua brilha, foram feitas por Ruth Becker, graduanda de Terapia Ocupacional que tem estudado a transposição de linguagens artísticas. Ruth propôs trabalhar sobre um texto meu, e a sua criação foi uma grata surpresa. ;)






segunda-feira, 25 de setembro de 2017

NÓSONS


O 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM/SP, será inaugurado em 26 de setembro. Tive o prazer de participar, junto com um pequeno grupo de pessoas, do projeto Conversas-Coletivas, do artista Ricardo Basbaum.

Ao longo de alguns encontros nós trocamos ideias, expusemos desejos, negociamos possibilidades, experimentamos comuns e diferenças. Verdadeiro exercício político. O resultado é um roteiro que orquestra nossas vozes, a ser lido durante a abertura da exposição. Haverá também uma gravação para quem visitar o museu depois.

Um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons.

Se você puder, vá à abertura para nos assistir ao vivo.
Será terça-feira, 26 de setembro, a partir das 20h.
No MAM/SP (dentro do Parque do Ibirapuera).

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

O SABER COMO RASGADURA

Durante a última aula de pós-graduação, quando fazíamos a avaliação da disciplina, uma estudante tomou coragem e se pôs a falar sobre a crise que experimentara ali, junto com a turma, sem que ninguém soubesse. Ela explicou que, nos primeiros encontros, “sentia-se burra, pois não entendia uma palavra do que estudávamos, não entendia os textos nem os debates”. Seus colegas pareciam saber muito, e ela nada. Foi a mãe que não a deixara desistir. Sábia mulher. Aconselhou a filha a persistir, pois ela também tinha capacidade de saber. Ao final do semestre, a estudante já havia se apropriado do assunto e sentia-se mais à vontade nas aulas. O esforço a recompensara.



Ouvir seu depoimento me tocou profundamente. Aquela linda coragem de assumir o não saber e enfrentá-lo. Agradeci o que ela me ensinava. Relembrei momentos do meu próprio percurso e disse que esses lugares onde nos sentimos burros são os que de fato podem provocar alguma movimentação em nosso pensamento. Não os lugares que oprimem, claro. Mas aqueles que desafiam, tiram o chão, inquietam. Experiências intensas de conhecimento advêm quase sempre quando estamos entre pessoas que parecem oceanos, e que generosamente acolhem o nosso barquinho. Sem graves tempestades, sem bancos de areia traiçoeiros. Por exigente que seja, viver entre quem admiramos é mais promissor do que o conforto do ambiente onde parecemos saber muito ou, ao menos, o suficiente. Acreditar que sabemos é uma ilusão.

Todos conhecemos bastante, entretanto. Isso porque sobreviver demanda aprender o tempo inteiro. Há quem esteja distante do conhecimento certificado, que é o da escola e da universidade, e que não é único. Quantas formas maravilhosas acabam menosprezadas? O conhecimento místico, a prática das artesanias, o conhecimento implicado dos ribeirinhos, caiçaras, indígenas, agricultores, nômades, curandeiros. Sinto-me diminuído diante disso tudo. Teríamos tanto a crescer, enquanto sociedade, acaso valorizássemos tais variedades de conhecimento e as fizéssemos circular! Entretanto ficamos quase sempre restritos ao instituído, formatado conforme o mercado, a comodidade, o preconceito, a aplicação ou até mesmo o medo da grandiosidade dos saberes menores. Fomos subjetivados a acreditar que o conhecimento amplo é perigoso, desnecessário, entediante. A acreditar que devemos nos especializar: não apenas conhecer muito sobre assunto restrito, mas também restringir a forma, o método e a experiência do conhecimento. De modo que compartilhá-lo se converta em jogos de poder e submissão, como se quem conhecesse mais também pudesse mais. O professor domina a inteligência dos alunos, o médico domina a saúde do paciente, o gerente domina a força de seus operários. Tristeza. Pois o conhecimento, no caso, serve apenas para si. Podemos ser grandes conhecedores, acumular informações preciosas, lotar o cofre com essa suposta riqueza. Ainda assim, conhecer, individualmente, não é saber.

A sabedoria só existe pela partilha do sensível, quando é doada ao coletivo e posta a circular. Um homem pode deter muito conhecimento; sabedoria, entretanto, é produção de um povo. Não pertence a um nem a todos, ela não tem dono. É uma espécie de intensidade invisível, intocável, por vezes indizível e impensável. Sábio não é quem acredita manipulá-la, mas quem se deixa atravessar por ela, quem a evoca e encaminha, quem a alimenta com a própria vitalidade.

Como temos tratado a nossa sabedoria?

Em quase dez anos publicando neste jornal, só nos últimos tempos tenho sentido um impedimento de dizer. As palavras parecem duras demais, as frases soam descompassadas e descartáveis. Em tempos de demasia, é penoso assumir este lugar discursivo. Sinto receio de alimentar o palavrório que dominou as redes, onde todos pensam saber muito de tudo, e de imediato se lançam a dizer; onde não há trocas senão de ofensas, onde ninguém sabe se calar. Fala-se, ininterruptamente, absurdos sem fundamento nem generosidade, sem sabedoria alguma, sem nem mesmo conhecimento. Fala-se apenas por falar, para dominar um território, para impedir que o outro fale. Falam todos ao mesmo tempo, ninguém ouve. Para que, então? Palavras pré-concebidas que sequer apresentam algo apropriado, elas apenas se replicam ao infinito. A cada manifestação supostamente inteligente, crítica e mordaz, escancara-se a ignorância do indivíduo falante, sua redução ao próprio eu, sua captura e colonização, sua fragilidade disfarçada de força e brutalidade. Fala-se alto para esconder a pequenez. Espelho, espelho meu. A estupidez é tamanha que sequer a percebemos, ou não temos coragem de assumir. É preciso, sim, muita coragem, além de um esforço interminável, para ignorar o que conhecemos e assumir o não saber.

Didi-Huberman cita a “rasgadura”, que seria a primeira palavra de quem renuncia às “palavras mágicas”, as quais tudo sabem, tudo dizem, já estão prontas para o consumo. Rasgar para despojar a palavra da sua significação, para arrancá-la do dicionário e da linguagem. Rasgar o mapa da nossa situação, que está por demais domesticado. Buscar um ponto de fuga rumo ao não saber.

Afinal, não somos oceanos, somos meras pocinhas de ignorância que transbordam, afogam as margens, desolam a vida que tentava se estabelecer ali. Quando retomamos a calmaria, ao redor resta apenas aridez. Vamos, assim, constituindo uma sociedade de pequenas poças isoladas num deserto.

O poder até consegue restringir o acesso ao conhecimento, mas não ao saber. A sabedoria é viva porque brota entre os indivíduos, na própria intensidade que faz deles um povo. Onde há água também há esperança. Talvez, se rasgarmos essa terra árida, se abrirmos sulcos por onde cada poça escoe na direção do outro e compartilhe sua liquidez quase extinta, enlameada, talvez alguma sabedoria consiga se formar e transformar a paisagem. Exercício lento, doloroso, de abandonar a relevância das próprias opiniões, tão ilusória; de enxugar o ego, banindo-o ao subsolo da humanidade, deixando a terra filtrá-lo; cavoucar as certezas duras, abrir nelas fissuras por onde os conhecimentos voltem a circular, de maneira a conectar a sua pocinha convalescente a outra, desconhecida. Talvez assim. Talvez.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A palavra maiúscula
soa tão minúscula
diante de tamanha pretensão
sua.
Maior é a pequenez
do gesto menor.
Despercebido, invisível, singelo
a transformar não a ordem do dia,
poderoso escalão primeiro.
Mas a oferecer um imensurável
mísero
segundo de desordem.