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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

DEMASIADO HUMANO

basta ser humano
basta, ser humano
basta ser, humano
basta ser humano,

é preciso ser humano?
humano, impreciso ser




Vemos tudo conforme nossa própria ótica; o ponto de vista do humano, tão complexo e restritivo, é somente o que nos resta. Por isso o mundo muitas vezes parece feito em nossa medida. Também é por esse motivo que o que foge dessa medida ganha dimensão de sagrado – a noite estrelada, o oceano infinito, a cordilheira dos Andes, o deserto do Saara; e também as bactérias, as partículas atômicas, os glóbulos vermelhos, as sinapses. A razão científica caminha na direção desse sagrado e o desmistifica. Desvendamos os mistérios do cosmos ao mesmo tempo em que recombinamos material genético; vigiamos a calota polar com satélites orbitais enquanto produzimos nanorobôs para tratar certos tipos de câncer. A humanidade se expande ao macro e ao micro.



No meio persiste o hábito egocêntrico de utilizar o termo "humano" como adjetivo elogioso. Certo idealismo também. Dizemos que o mundo precisa ser mais humano, que as pessoas devem agir com mais humanidade. Como se pudéssemos agir de outro modo, como se houvesse outra perspectiva para nós. Como se a atitude dos homens fosse somente louvável e justa. Como se o dito "desumano" não estivesse contido na humanidade e não existisse somente por causa dela; como se houvesse jeito de escaparmos de nós mesmos.



Temos humanidade em demasia. Os maiores horrores foram todos muito humanos. Inclusive a própria ideia de tragédia é exclusividade nossa; aquilo que chamamos de "tragédia natural" é figura de linguagem – a natureza age conforme suas próprias regras, ela é amoral; nós que a tratamos como boa ou má.

Mesmo a tragédia grega, provocada pela fúria divina, é criação nossa; não existe mito elaborado por outros seres. A tragédia é necessariamente humana.



Assim, precisamos assumir que o Holocausto foi muito humano, no sentido de que só se realizou porque nós o fizemos e deixamos acontecer. Os atentados terroristas e as retaliações militares são ações humanas. O desastre ambiental em Mariana. A violência policial em nosso Estado de exceção permanente, o preconceito racial, a distinção social, o menosprezo pelo feminino, a devastação da Amazônia, a corrupção em todos os seus graus, os abusos e impunidades, isso tudo é próprio dos seres humanos.

O dito "desumano" sugere algo que repudiamos. Pois mesmo ele é completamente humano, um termo está implicado no outro, assim como não existe arqui-inimigo sem que haja também o herói. O desumano é nossa obra. Tanto quanto a ajuda humanitária, o parto humanizado, o tratamento do outro com respeito e dignidade. "Sempre a vida condicionada pela nossa perspectiva e a sua injustiça", escreveu Nietzsche em Humano, demasiado humano. Não há exatidão nem completude, somente disposições e oscilações. Somos seres injustos; todo juízo de valor é injusto porque provém apenas do ponto de vista de quem julga. Entretanto resta a nós uma saída: reconhecer isso e mudar as atitudes.




É necessário admitir que as atrocidades também são humanas justamente porque muitas delas foram pautadas no argumento contrário. Por exemplo, uma vez que os indígenas não tinham alma, acabaram dizimados no maior genocídio que a América já produziu, e que ainda persiste. A escravidão negra, para citar outro exemplo, privou os africanos de sua humanidade e os transformou em mercadoria. Os judeus na Alemanha nazista, considerados "indignos", não tinham direito de viver e podiam ser exterminados. Os internados em hospícios, loucos ou não, tratados com abandono, frieza, eletrochoque e lobotomia. Nossa situação carcerária atual, a pseudossolução de reduzir a maioridade penal e o momento simbólico mais marcante da questão, conhecido como "massacre do Carandiru". As milícias, os linchamentos, as chacinas, a "bancada da Bíblia" pregando violência no governo; todos esses horrores executados em nome do bem da humanidade refletem o tipo de humanos que nós somos. "A maioria acredita no valor da existência porque o quer e o afirma somente para si", escreveu Nietzsche há quase 140 anos.



O filósofo dizia que seus livros são escola da suspeita e do desprezo, pois provocam "inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados". É algo que ainda nos falta. Desconfiar do senso comum, fugir dos holofotes e olhar para a escuridão, levantar o tapete e acolher todas as historietas da humanidade que foram varridas para lá. O que é ser humano? A partir dessa questão podemos revisar os nossos valores e repensar a humanidade que desejamos. Tendo em mente que esse projeto deve se transformar sempre que necessário, jamais ser concluído. Ser humano é inventar constantemente a própria existência, inventar a si e o outro. É aceitar as faltas e saber ser impreciso.


* * *

"Para que serve toda arte que há no mundo?", pergunta Nietzsche. Não acredito em função nem em utilidade da arte, mas podemos pensar numa arte que "serve", não no sentido de serventia ou servidão, mas no sentido da vestimenta, da arte que nos cabe e muda a nossa forma. "A humanidade, em seu conjunto, não tem objetivo nenhum", diz o filósofo. "Apenas o poeta é capaz de perceber isso e sentir sua humanidade despedaçada".



Quem oferece uma boa saída para tal desconstrução é Nicolas Bourriaud, em sua Estética relacional, de 1998. Inspirado na filosofia de Félix Guattari, ele diz que a arte é aquilo sobre o que e em torno do que a subjetividade pode se recompor. Pois ela oferece um "direito de asilo" às práticas desviantes que não encontram lugar em seu leito natural. A arte seria um dispositivo de reconstrução daquilo que foi despedaçado. Tanto quanto daquilo que parece cristalizado, imutável, eterno.

Devemos identificar no cotidiano o tipo de humano que não queremos mais ser. Enquanto que talvez encontremos na arte outras humanidades possíveis para experimentar e, quem sabe, vir a exercer.



Ps: Aviso que encontrei numa loja em São Paulo: "Cachorros são bem-vindos. Humanos, tolerados." Não, não era um pet shop. :)


*As imagens que ilustram este texto circulam na imprensa online desde o rompimento da barragem de resíduos de mineração, ocorrido na cidade mineira de Mariana em 5 de novembro de 2015.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A FORMA SE NUTRE DE MATÉRIA ORGÂNICA

estrutura (ex)posta do movimento
aperto desafoga no fôlego
forma desfaz a si
do si mesmo
outro
tempo inteiro
prestes a cair
não fosse a gravidade
manter o chão
onde está
onde?

tocar o fora
dentro
núcleo vazio
ressoa longe
estende os fios
linhas de força
potências
desejando conexão
pode, vai
o pé sustenta
a planta do pé
aterrada
no concreto do chão

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O VÍNCULO URGENTE

Sem título (da série "Droguinhas"), Mira Schendel, cerca de 1965

A vida contemporânea carece de afetividade, basta folhear este jornal* para verificar como estamos distanciados do sentido profundo das notícias (digo "sentido" pensando em "sentimento", não em "significado"). Lemos sobre violência, abuso de poder, destruição da natureza, miséria e logo retomamos nossas atividades ordinárias como se nada tivesse acontecido, isso praticamente não nos toca. Claro que é possível estabelecer relações interpessoais hoje em dia; ninguém vive isolado por completo e, no limite, mesmo o isolamento implica uma relação, seja de afastamento, ignorância, recusa etc. Então, se de alguma forma nos relacionamos com os demais, por que nem sempre criamos vínculo? Aliás, qual seria a natureza desse vínculo e por que ele seria tão urgente?

Algo que falta às sociedades de hoje, de modo geral, é disposição ao vínculo. Digo isso não num sentido moralista, mas porque essa falta provoca sofrimentos de diversas ordens, inclusive morais. Digo também que falta disposição porque vínculo não é algo que se adquire – não compramos vínculo no supermercado, não o encomendamos pela internet, não cozinhamos alimentos ricos em vínculos. Eles se constituem a partir da disposição das pessoas. Portanto não é pela lógica do capitalismo que detemos vínculos – o máximo que podemos fazer é nos abrir ao outro e sustentar a natureza vincular que porventura desperte desse exercício. O que não é pouco – exige uma complexa transformação de comportamento, de sentimento e de pensamento sobre as coisas do mundo, sobre o que está do lado de fora e tudo o que está dentro de nós.

"O tecido do vínculo é o real entre dois organismos. (...) Uma realidade feita de 'sentires', emoções em sua maioria inconscientes, mas também conscientes (...). O que faz o vínculo entre dois humanos são os alicerces de uma presença", a psicanalista Radmila Zygouris explica no ensaio O vínculo inédito.



Sem título (da série "Droguinhas"),
Mira Schendel, cerca de 1965
Durante uma consulta recente com minha endocrinologista, falávamos sobre como mudou a relação entre médico e paciente – ou como deveria mudar – nestes tempos em que a informação não procede mais de uma única fonte. Se antes o "doutor" era o detentor oficial do conhecimento científico – e por vezes abusava do poder a ele associado –, hoje é diferente: o paciente chega já sabendo pormenores da sua saúde e requer cuidado especial. Deseja ser ouvido, deseja que seu corpo seja analisado como um ser inteiro – não somente resultados numéricos de exames laboratoriais –, deseja ser acolhido naquele momento de intimidade e no espaço-tempo do seu histórico pessoal. Deseja vincular-se, talvez. O que contraria a lógica produtivista dos convênios médicos, que cobram caro, pagam pouco, recusam-se a oferecer planos particulares (porque o governo regulamenta o serviço), são coniventes com corrupções diversas – veja a quantidade de obstetras que tem solicitado remuneração à parte daquela que o convênio lhes concede para realizar partos – e alimentam um sistema de atendimento automatizado, insensível e rápido, muito rápido, que nada tem de saudável – o paciente nem se acomodou na cadeira e as guias de exames são chacoalhadas na sua frente, junto com meia dúzia de receitas farmacêuticas, algumas de antidepressivos.

Algo semelhante ocorre nas salas de aula. Cada vez mais cheias e administradas por professores desestimulados, sua forma não incentiva qualquer vínculo que leve a conhecimento consistente ou que permita ao aluno buscar emancipação. Todos os anos inúmeros estudantes saem da faculdade sem habilidade intelectual, crítica ou analítica; passaram duas décadas copiando o conteúdo exposto pelo professor sem apreendê-lo adequadamente ou, pior ainda, ficaram esses anos todos a ignorar o que lhes era oferecido. São pessoas que chegam ao mercado de trabalho justamente como produtos – ofertados, patéticos, nada profissionais e ainda assim responsáveis por levarem o país adiante, seja no setor público ou privado.

Citei esses exemplos para mostrar que a questão do vínculo não é puramente abstrata – ela implica sofrimentos de diversas ordens, como vimos. Para pensá-la, vale retomar algumas ideias de Zygouris. Embora ela trate de uma relação oriunda da experiência analítica, acredito que provoque também uma reflexão sobre as demais relações experimentadas em nosso cotidiano. Podemos traçar um paralelo e, dessa maneira ampliada, destacar os seguintes pontos:

– O vínculo pertence ao território, não ao mapa. É da ordem do vivido, uma experiência que se vive em relação ao outro. Ele não se sustenta como teoria, é necessário vivenciá-lo na prática, no contato, no contágio.

– Não se interpreta o vínculo, ele não tem razão de ser, não há metáfora que dê conta da sua potência. Trata-se de um lugar de sentimentos, de silêncios; ele estabelece um plano de sensibilidade, um não-verbal que existe enquanto pessoas estão juntas – é o encontro em si.

– Sua natureza é fisiopsíquica. Isso quer dizer que não se basta numa afetação racional, ele é também visceral, vivido nas diferentes profundidades do corpo. Um vínculo "musical", que nos toca em tonalidades diversas.

– Ele requer implicação dos envolvidos, o que é mais do que participação. O vínculo exige que o "eu" esteja liberto para ser formado a partir do encontro. Não pelo poder, ao contrário; para ser formado por dissociação.

– A experiência vincular nunca se repete, ela é um fluxo sempre atual e cativante. Até ser interrompida e deixar de existir.

Antes de racionalizar, analisar ou criticar, é necessário sentir o outro na questão. Porque o "pensamento é, em primeiro lugar, um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem", diz Zygouris. Toda pessoa que pretende assumir a responsabilidade de oferecer um pensamento à sociedade precisa saber que "pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento" – isso é muito grave e muito urgente, veja quantas agressões trocamos cotidianamente sem afeto algum, sem qualquer cuidado com o outro. Enquanto não desenvolvermos a sensibilidade, que é vital ao humano e imprescindível ao convívio, continuaremos com medo, isolados e infelizes, desvinculados inclusive de nossa própria potência de ser juntos.

*Este texto foi publicado originalmente no Caderno C do Correio Popular.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

BARBARIDADE INTRÍNSECA

fico fazendo poesia
para alimentar o espírito
um banquete
interrompido pelo grito
do estômago
selvagem

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

SOBRE A POLÊMICA DE VENDER "MEIN KAMPF"

Algumas livrarias têm anunciado que não venderão o livro "Mein Kampf" (Minha Luta), de Adolf Hitler, que recentemente se tornou domínio público e está recebendo novas edições em português. Ora, por quê?


Em primeiro lugar, isso parece uma censura ingênua, uma vez que é possível obter o texto na internet com facilidade, basta digitar no Google. Depois, que história é essa de a livraria selecionar o que podemos ou não comprar (ok, todo comércio é assim, eu sei, mas normalmente a escolha não se dá por moralismo e sim por capitalismo, o que é bem diferente)!?

Tem outra coisa: estão com medo de quê? De produzir nazistas? É assim, como ignorantes ou como potenciais ignorantes, que as lojas veem os clientes leitores? No contexto de hoje? Como se todos aqueles nazistas dos anos 1930 tivessem lido o livro e se "transformado" com a leitura! Ou como se não existissem outros livros de conteúdo muito mais perigoso sendo vendidos aos montes por aí. Essa linha de raciocínio é tão tola quanto dizer que "vira terrorista quem ler o Alcorão" ou vira "cozinheiro quem ler a Dona Benta".

Há quem diga que um dos problemas éticos seria "lucrar com as ideias de Hitler". Eu fico me perguntando em que mundo essa pessoa vive. Porque tudo aqui envolve ganho ou perda de dinheiro, infelizmente essa é a lógica que nos conduz. Trata-se de um produto editorial e será comercializado como produto editorial. E daí? Eu adoraria implementar estratégias de desvio à lógica capitalista, mas boicotar o Hitler e continuar a vender os demais livros não parece muito eficaz.

Na minha opinião, a melhor forma de combater fascismos de todo o tipo é não agir como fascista. Nem agir "em nome do bem estar social", o que na prática dá quase sempre no mesmo. Política se faz de muitas formas, inclusive mais inteligentes. Com educação, por exemplo. Com acesso à cultura e liberdade de expressão também.

Torço para que muitas livrarias disponibilizem o título a quem desejar lê-lo, ao invés de quererem ocultar esse capítulo da história (como se fosse possível) ou de quererem ditar como a cultura deve ou não deve ser (como se fosse possível).

(Queridos livreiros, por favor, que tipo de política bárbara é essa que estão promovendo?)

Momento curiosidade: Esse episódio me fez lembrar de outro recente, quando as produtoras de DVD e Blu-Ray do Brasil se recusaram a distribuir o filme "Azul é a cor mais quente", num descarado ato de homofobia. Pode?

Saiba mais: Livro escrito por Hitler volta às livrarias brasileiras em meio a polêmicas

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

CARNICEIROS

a cultura requer todo
poder de pensamento
desgasta, desbasta
o corpo largado a
ser devorado
na jaula dos leões

medo terrível
do absoluto
fechado
feito barbárie

poderes que se pegam
numa rinha
ali, trancafiados
excessos
num depósito
de vazios

Varal (1993), de Adriana Varejão

A LENTIDÃO DO VERBO

"Pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento. Para tanto, é preciso dar o salto e admitir como premissa que o pensamento é, em primeiro lugar, um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem. À questão: Como sei que penso? Respondo: Sei porque sinto que penso antes de conhecer aquilo que penso. Quando Isso pensa, é o inconsciente que se apodera do intelecto e do já aí com a rapidez de um raio: é o insight, ou o Einfall do qual falava Freud. É algo que despenca sobre nós, uma experiência fulgurante. Prefiro traduzir o termo freudiano Einfall por "pensamento-raio". A tradução por "associação livre" é ruim: diria que se trata mais de uma dissociação, já que o insight chega dissociado do contexto. Chega como uma faísca, com a rapidez de um raio. Depois é preciso passar dessa velocidade para a lentidão do verbo. O verbo nos impõe a resistência de nossos órgãos submetidos ao desenvolvimento sequencial da linguagem. O Einfall, a coisa encontrada na rapidez de um raio, força a dizer e dizer obriga a amortecer, para que possam se formar as palavras, as frases, a lógica do discurso."

O vínculo inédito, Radmila Zygouris

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

YOU DON'T SAY!


Qual é o meu segredo? Estou sempre ocupado com alguma coisa, seja ler, pensar, rabiscar papel, matar tempo, responder email, levantar e sentar na cadeira, coçar a orelha, esfregar as mãos nos olhos, sorrir maliciosamente para o espelho, lembrar de alguém de que gosto e sentir saudade, cantarolar melodias, ouvir o vizinho martelar algo no andar de cima pela terceira semana consecutiva, roer unhas, guardar no armário as roupas penduradas nas maçanetas, empilhar livros sobre a mesa do escritório, bocejar, atualizar a agenda, recarregar canetas-tinteiro, beber a água do copo, encher o copo com água mais uma vez, olhar para o relógio, ouvir o tique-taque do ponteiro que marca os segundos, fazer xixi, passar café, comer biscoitos com o café, pagar contas, renomear arquivos no computador, considerar tudo o que preciso ler ainda esta semana, tomar notas, passar notas a limpo, riscar tarefas cumpridas, jogar notas velhas no balde de lixo reciclável, comer uma fruta, lavar as mãos, dedilhar um acorde qualquer no violão, dormir em pé e sonhar alto, escrever rascunhos, desesperar-me com tudo que prometi e ainda não cumpri, imaginar a mim mesmo numa outra vida em outro lugar com outras pessoas, ler uma frase qualquer no livro mais próximo, fingir que trabalho, esquematizar um capítulo da tese, lavar a louça, checar mensagens no celular, deixar as respostas para depois, pesquisar o preço de um livro na internet, comprar livros por impulso, esquecer de ler notícias, sentir-me só, jogar uma fase no videogame, beber suco, colocar o notebook para recarregar, esquecer de almoçar, publicar um poema no blog, surpreender-me com o ronco do estômago, abrir o armário, esquecer o que procurava, fechar o armário sem pegar nada, atender telefone, revisar manuscritos antigos, recortar imagens de folhetos que peguei outro dia já não lembro onde, guardar as imagens para quem sabe usar numa possível oportunidade, cortar um fio solto da camiseta, arranjar desculpa para sair de casa, fazer compras no supermercado, esquecer de responder as mensagens que tinha deixado para depois, perceber a preguiça acontecendo, fazer corpo mole, buscar uma encomenda na portaria, beber outro café, lembrar dos milhares de problemas que precisava resolver, reclamar que não tenho tempo para nada, passar a tarde inteira sem fazer nada útil, prometer a mim mesmo que amanhã isso não vai se repetir, sentir vergonha, maldizer o produtivismo capitalista, inventar polêmicas e teorias da conspiração, acreditar nelas por um instante, rir de mim mesmo, ignorar bobagens de Facebook, não planejar o futuro, desejar um prazo motivador e estimulante, nem que seja apenas um!, apaixonar-me por algo inesperado, esquecer todo o restante, escrever esta nota nesta caderneta, refletir. Para que serve este meu segredo tão sem graça? Para nada, segredos não ajudam nada, não existem segredos a não ser no plano ideal, claro, quando os descobrimos eles já deixaram de ser segredos. Sobra apenas mais uma anotação a ser reciclada. Assim, espero.

sábado, 26 de dezembro de 2015

UM BRINDE AOS VAGA-LUMES



A última lembrança nítida que tenho deles remete à infância, às férias vividas no litoral. Já naquela época era difícil vê-los na cidade grande. Desde então, é possível que um ou outro tenha se exibido para mim, assim como é possível ter sido apenas o relampejar de uma fantasia minha que logo se apagou.

Onde estão os vaga-lumes?, Pier Paolo Pasolini quis saber ainda na primeira metade do século passado. Questão retomada por Georges Didi-Huberman num dos livros mais tocantes que li neste ano assombroso, intitulado Sobrevivência dos vaga-lumes. Nele, o autor retoma o trabalho poético e político do cineasta italiano para refletir sobre as situações que vivemos na atualidade. Faz isso com graça, delicadeza e maturidade invejáveis, que resultam num inspirador modo de fazer crítica.

É um texto lindo, sensível, flutuante e muito urgente no que diz respeito a inventar curvas nesta barbárie reta e veloz que estamos produzindo em escala local e mundial, cuja trajetória leva certamente ao precipício.



Naquele contexto, os vaga-lumes são luzes menores que lutam para sobreviver em meio ao iluminismo feroz dos holofotes. Essas máquinas espetaculares, que pretendem trazer tudo à luz do dia e expor à razão exacerbada, ofuscam a existência daquelas luzinhas pulsantes, frágeis, ansiosas por uma escuridão que possam habitar, onde possam mostrar seus dotes, encontrar seus pares; enfim, onde possam viver as suas vontades e alegrias. Luzes intermitentes, que dançam a poesia da resistência.

Desses vaga-lumes pude ver uma porção em 2015. Um pequeno grupo aqui, uma reunião pouco maior ali, movimentando-se, requerendo a atenção dos nossos olhos para questões invisíveis, para demandas suplantadas pelos refletores dominantes, pela ignorância e pela indiferença em relação ao outro. Vaga-lumes que insistiram em brilhar apesar de todas as tentativas de repressão; os cassetetes, as palavras de ordem, as manobras políticas, os abusos de poder, a incitação e a execução de violências as mais diversas, desde o rompimento com a ética até a violação de direitos constitucionais, desde a verborragia à agressão física, as prisões, os silenciamentos, preconceitos, menosprezo e morte.

Para Didi-Huberman, os vaga-lumes desaparecem da nossa vista porque já não estamos no melhor lugar para vê-los. Não é que deixam de existir, eles simplesmente se reorganizam e se realocam quando seu habitat é invadido. Portanto fica a nós uma tarefa vital: reinventar os territórios de modo que os vaga-lumes possam habitá-los, seja esse território um país, uma cidade, uma comunidade, uma casa ou um jardim, seja esse território nem mesmo um espaço, mas uma temporalidade ou um registro afetivo. Nas palavras do filósofo, "há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes".

Existem mais de duas mil espécies desses insetos. Milhares de modos de ser. Para conhecê-los, não devemos capturá-los e os trazer à luz, "é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite", diz o autor. Pois jamais compreenderemos os vaga-lumes se os arrancarmos de seu lugar; para falar deles é necessário experimentar a escuridão.

Humanos têm algo de vaga-lume, uma vibração interior que pode ganhar vida e iluminar o arredor. A luminescência de alguns esmaece por conta da carapaça grossa, pesada e enrijecida que a oprime. Despojar-se das couraças, abrir-se à experiência sensível, amolecer o juízo e desconstruir os dogmas implicam expor a si mesmo a ameaças variadas. Mas existe outro jeito de produzir luz própria?

Sustentar o próprio brilho é um gesto poético corajoso; um ato político, social, estético. Tanto quanto deixar-se encantar pela luz dos outros. Ser atraído por ela, desejá-la; ambos tão frágeis e tão belos! Capazes de brilhar uma única vez e marcar para sempre a retina de quem os viu.



Didi-Huberman conta que, na década de 1970, após intensa batalha contra o neofascismo incorporado aos modos de agir italianos, Pasolini caiu em desespero e não conseguiu mais sustentar sua resistência poética. Os vaga-lumes deixaram de existir para ele. Não porque foram extintos, embora ele acreditasse nisso, mas porque ruiu algo central no seu desejo de ver. "O que desapareceu nele", diz o autor, "foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade 'inocente', no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar".

Vivemos tempos sombrios, em que é difícil enxergar ao longe. Tempos varridos por refletores de vigia ou de espetáculo. Também são tempos propícios para compartilhar nossa luminescência interior. Neste ano que se inicia, desejo que você brilhe, se puder. Que se deixe sensibilizar pela poesia dos vaga-lumes. E, independentemente do que venha a acontecer, que jamais deixe de procurá-los. Eles estarão dançando em algum lugar, mais perto do que você imagina.

>> Este texto é dedicado aos estudantes e professores que têm lutado em diversas frentes pela educação no Brasil, porque acreditam que toda transformação social passa necessariamente por ela. Pessoas que têm ensinado a importante lição de que política não se faz de cima para baixo nem de baixo para cima, mas horizontalmente: disponível, dialogada e, claro, com respeito pela potência luminosa dos demais.

sábado, 19 de dezembro de 2015

BREVE HISTÓRIA MINHA

vem chegando
o fim do ano
fim do mundo
afim de tudo
no fim das contas
vem chegando
junto
um começo
vem a ser a
servir
devagar um
porvir, além
após o fim
desta
breve história
minha

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CORPO PRESENTE

Mapa de lopo homem II (2004), Adriana Varejão

este lugar
quem
é um aqui
agora

ambos numa só
expressão

coincidente
é no corpo
que o hoje
se encontra

domingo, 13 de dezembro de 2015

Domingo (1926), Edward Hopper
 
são alguns silêncios
difíceis demais

suportá-los como?
sustentar esse peso,
presença insaciável

incansáveis gritos surdos
ecoam no meu vazio

sim, sim, fale
qualquer palavra
faria sentido

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

PALAVRAS ROUBADAS

"Às vezes sinto que nos roubaram até as palavras. A palavra socialismo é usada, no Oeste, para maquilar a injustiça; no Leste, evoca o purgatório, ou talvez o inferno. A palavra imperialismo está fora de moda e já não existe no dicionário político dominante, embora o imperialismo na verdade exista e despoje e mate. E a palavra militância? E o próprio fato da paixão militante? Para os teóricos do desencanto, é uma velharia ridícula. Para os arrependidos, um estorvo da memória."

O menino perdido na intempérie (1990), Eduardo Galeano

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Monumento a Balzac (1898), de Auguste Rodin

morrerei velho
porque sou lento
se fosse jovem
morreria incompleto

morrerei pleno
conforme planejei
ou de improviso
se requisitado

morrerei ainda
que não todo, afinal
são sempre os outros
que morrem

morrerei no tempo
incerto ponto, além
deixarei viver
outro eu

sábado, 5 de dezembro de 2015

Quadrado preto de tinta biodegradável sobre fundo de papel reciclado
livre de alvejantes
(2015), apropriado por Eduardo A. A. Almeida

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

é preciso ter fibra
diz a embalagem
ao meu redor
é preciso ser duro
para suportar o peso todo
empilhado
sobre
eu

é preciso ter fibra
diz o doutor
para engolir sapo
sem ir pro brejo
fibrose
de processar nas entranhas
as favas do mundo

fibra entre os dentes, pequena
maldita implicação!
quero resolver no braço
arrancar raiz e tudo
e os dedos grandes demais
para alcançar

fibra ótica, ótima
velocidade a habitar
sem limites nem vínculos
no tempo-espaço de um clique, um touch
o mundo inteiro em zero segundos
acabou

é preciso ter força
para mover montanhas
abrir os mares
criar filhos com juízo
impassível carapaça
solidez à flor da pele

é preciso ter pulso firme
mostrar quem manda,
grita a maioria
empoleirada em seus galhos,
o rabo preso

bobagem

é preciso cuidado
isso sim, cuidado!
com si, com o outro
é preciso aprender a ser
maleável, poroso, vulnerável
elástico suficiente para resistir
às tensões subsistir
na aridez das relações

é preciso ser água
pingar, penetrar espaços inacessíveis
hidratar, expandir, deixar brotar
abraçar as ilhas
acolher profundamente
criar frutos suculentos
que alimentem a alma

é preciso ser vento
leve, sem razão
mover a terra
grão a grão
dia a dia
assim
a dureza do deserto
ganha curvas

é preciso ser terra
firme, territorializada, disponível
para habitar-se
na dobra do fora

é fogo
perceber que tudo vira cinza
o mesmo cinza
o mesmo tom
indiscernível

salivar
impreciso ser
aberto
amplo
disposto

cheio
de vitalidade,
tônus social

não há embalagem
em que caiba isso tudo
não há bula que dê conta de explicar
em letras miúdas
a dose certa
do afeto

é preciso ter fibra
muscular
é preciso ter pulso
cardíaco
é preciso ter estômago
rins, pulmões, fígado, cordas vocais
cérebro
pés no chão
braços abertos
desejos flutuantes

estofo, muito estofo
ser feito do mesmo estofo
com que fazemos o mundo

há fibromialgia, há sensibilidade, há flor na pele
o toque sutil da flor na pele, os espinhos
agarrar os espinhos sem piedade
incorporá-los

é preciso ter corpo
para dançar
é preciso ter corpo

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

choro
é a primeira fala
convocada
choramos
quando não resta nada
a dizer
falam então as lágrimas
linguagem das águas
cálidas

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

DESFAZER UNS LAÇOS

é o presente
desfazer uns laços,
desatar uns nós
ver a fita caída
cansada ainda
com as marcas do que passou
ali

passado um tempo
eu passo
a ferro quente desfaço
o desfeito remoço
para um novo laço
diferente
é lindo, veja só
é um presente!
do desalento para
mim mesmo

domingo, 29 de novembro de 2015

CERTA DESCONEXÃO

Cartas de agradecimento (2015), Chiharu Shiota
Na última década, trabalhei em frente ao computador num regime de dez horas por dia, com folgas ocasionais nos fins de semana. Informação de todo tipo chegava até mim sem que fosse necessariamente solicitada; em contrapartida, eu também alimentava essa rede de conexões ao mesmo tempo maravilhosa e potencialmente perversa chamada internet. Seguia o fluxo, às vezes era arrastado por ele, nunca sabia que corredeiras aguardavam adiante. Então senti necessidade de parar, tomar fôlego e refletir sobre essa infinidade na qual estamos todos imersos, que tenta nos convencer de que continuará a existir independentemente da nossa vontade.

Por trinta dias estive de férias e tentei uma experiência: quis me desconectar da urgência por informação e pertencimento virtual. Foi bom, está sendo bom e sustentarei um pouco disso na medida do possível. Para dosar essa vontade é necessário assumir que não conseguimos estar completamente conectados ou desconectados da rede – uma ingenuidade utópica acompanha ambas as opções. Por sua vez, somente uma parcela mínima de toda essa informação a que estamos expostos se converte em experiência, e o tempo dedicado a ela poderia ser melhor aproveitado, seja fazendo outra coisa, seja fazendo nada.

Lembro-me de um post de Facebook em que a pessoa se fotografou numa lagoa "distante da civilização" e escreveu: "Nada como me desconectar". Lembro e sorrio; ela foi até a lagoa, tirou uma selfie com o celular, compartilhou na rede e ainda acreditava estar "desconectada". Sim, é difícil arrancar o plugue da tomada. Talvez seja pior ainda aceitar que, no fim das contas, ele não faz tanta diferença assim. Não existe necessidade de vivermos conectados virtualmente a tudo e a todos a todo instante. Isso é uma bobagem à qual o "estilo de vida moderno" deseja nos incorporar. Por outro lado, não é o caso de considerar patológico o uso de tablets, smartphones, smartwatches, entre outras engenhocas high-tech que continuamos a inventar. Ouço a crítica com frequência: “Esse aí é viciado em celular”, “A criança só quer saber de tablet” etc. Por excessivo que seja, falta de bom senso é diferente de doença. Além disso, já somos hipocondríacos o suficiente.

Claro que um bocadinho de noção sobre o que está acontecendo não faz mal a ninguém, seja qual for sua opinião a respeito, seja qual for a atitude que tomará a partir daí. Só não pense que certa desconexão, na medida em que é possível e saudável, significa optar pela ignorância, como se fechássemos as portas para o mundo atual ou quiséssemos nos isolar dessa humanidade cool. Negar a tecnologia e seus benefícios é uma barbaridade. As oportunidades de conhecimento que hoje temos à disposição estão entre as maiores conquistas de todos os séculos.

Se não é de negação que falo, é de produzir consciência: saber se desconectar é a inteligência que precisamos exercitar. Perceber o esforço empregado nessa ilusão de compartilhar experiências com o mundo inteiro, quando na maior parte do tempo apenas buscamos distração ou fuga das nossas próprias realidades. E pesar os prós e contras desse esforço.

Neste contexto atual de superexposição, é prudente desenvolver a inteligência de nos recolher quando necessário, de selecionar aquilo que nos chega e a forma como vem. Temos que desenvolver a inteligência de gerir nossos veículos de informação ao invés de sermos dirigidos e digeridos por eles. Aprender a dizer não, a não estarmos sempre disponíveis, a organizar nosso dentro e nosso fora, a controlar o que entra e o que sai por essa membrana sensível, por vezes tratada com relapso. O que ainda nos cabe? Qual é o nosso limite?

Uma amiga fez a corajosa escolha de não receber notícias em primeira mão via mídia convencional, seja revistas, noticiários, sites ou rádios. O que chega a ela percorre outros caminhos, outros filtros, outras temporalidades. Ao contrário do que parece, ela é uma das pessoas mais bem conectadas com o contemporâneo, sustentando com ele uma fina sintonia ao mesmo tempo em que está de alguma maneira protegida dos perigos (de aparência inocente) que vão nos afetando aos poucos sem que os percebamos, até que se tornam "normais". Ao tomar aquela decisão, restou tempo e disposição para ela desenvolver novas formas de relação com os outros; sensibilidades mais aguçadas, maneiras mais profundas de apreender o que acontece à sua volta e que a toca, seja no círculo imediato (família, amigos, trabalho), seja no outro lado do planeta. Há tantas outras formas de conexão possíveis!

Cartas de agradecimento (2015, detalhe), Chiharu Shiota

Ilya Prigogine, Nobel de Química em 1977, escreveu no fim do século passado uma "Carta para as futuras gerações", na qual afirma: "Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a 'sociedade de rede', com seus sonhos de aldeia global. (...) Minha mensagem às futuras gerações é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcações ainda não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais".

Segundo ele, a ciência de hoje nega o determinismo, e essas bifurcações que exigem de nós uma tomada de decisão são ao mesmo tempo sinal de instabilidade e de vitalidade. Em suas palavras: "Quanto mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. (...) O homem é até agora a única criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. (...) Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência. (...) Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro".

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Inscrições no túmulo de Fernando Pessoa

a única conclusão é morrer
nem ponto final coloco
ou caixa alta nos nomes próprios
melhor tudo minúsculo
sobrevivendo de incertezas
a descobrir o todo,
miséria da verdade
quando fecho a porta
o encanto desfaz
os destinos todos
que poderia visitar
provisoriamente

sem eira nem beira
deixo que um caminho me pegue
pelo caminho torço
que outros entrecruzem
misturem, façam com que o eu se perca

há quem almeje encontrar a graça
prefiro ainda procurar
está certo isso?
não venha com afirmativas
decerto
já basta o fim

terça-feira, 27 de outubro de 2015

AGRADEÇO SUA CARTA E A NOTA DE 50 FRANCOS

Quase sempre a história acaba por determinar um ponto de vista hegemônico sobre um assunto, e quase sempre essa "verdade" revela outras facetas quando começamos a escavá-la, removendo o acúmulo de significações que soterrou sua essência. Nunca sabemos com exatidão como as coisas aconteceram, como tal sujeito pensava, por que a humanidade seguiu por este e não por aquele caminho. Temos teses e suposições. Temos realidades ficcionadas. E não devemos desejar mais. Em certo sentido, a história é apenas uma coleção de causos que sobreviveram ao tempo agarrados a uma grande narrativa, escrita conforme certo método científico, interesses particulares e uma dose de imprevisto. O que de maneira alguma invalida o lindo trabalho dos historiadores. Cada vez é mais evidente nossa necessidade de cultivar raízes, pois um povo sem história é um povo sem sabedoria.

O que não podemos é nos deixar enganar pela aparência de verdade da história. Não existe um passado completamente revelado, apenas uma série de ideias de passado, algumas bem complexas, outras fragmentadas, em forma de vestígios. Para Walter Benjamin, "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

Destacar certas cenas do passado é um modo de construir história. Encadear essas cenas numa narrativa plausível é outro. Isso implica, como disse antes, determinar um ponto de vista hegemônico sobre o que pode ter acontecido e sobre como aconteceu. Por conta disso, um número incontável de outras histórias é varrido para debaixo do tapete. Histórias menores, às vezes menos relevantes; porém muitas vezes são histórias incômodas, que alguns querem esquecidas, fazendo triunfar o ponto de vista dos colonizadores. Como Benjamin alerta, a história nunca é contada pelos colonizados. Daí sua célebre conclusão de que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie". Daí também a sua proposta de escovar a história a contrapelo, buscando dar luz àqueles pontos de vista abandonados na escuridão do tempo. Revisitar, desconfiar, pesquisar e reescrever a história é estabelecer uma relação sincera com nós mesmos. É também assim que nos tornamos contemporâneos de nossos ancestrais, dos antigos feitos da humanidade e de tudo aquilo que nos constitui.

* * *


Foi com objetivo de exercitar um pouco esse pensamento crítico que, junto com alunos de pós-graduação em filosofia da USP, li as cartas enviadas por Vincent Van Gogh a seu irmão Théo; reunidas, selecionadas e publicadas pela esposa deste após a morte dos dois. Para nossa surpresa, o Van Gogh das cartas é diferente, em muitos aspectos, daquele conhecido pelo senso comum – o pintor louco, transbordante de emoções, que gostava de girassóis e que decepou a própria orelha.

Ao término da leitura, da comparação entre pelo menos quatro traduções e dos ricos debates que tivemos, ainda acredito que o sujeito do texto teve seus momentos de loucura, era um grande apaixonado pela vida simples na natureza, pintou uma série de girassóis e usou uma navalha para cortar a própria orelha. Os escritos que restaram nos autorizam supor isso tudo, com certa margem de erro interpretativo.

Porém não devemos confundir o autor das cartas com o homem Van Gogh, o qual viveu, pintou e morreu mais de um século atrás. Enquanto o primeiro é acessível e concreto (sujeito feito de texto), o segundo não passa de uma abstração, da qual podemos somente apreciar pinturas e fantasiar a respeito da sua existência.

Com isso em mente, passamos às cartas, que são reveladoras. Elas apresentam, por exemplo, um homem culto, nascido numa família com boas condições, que o possibilitou visitar museus importante da Europa e formar um profundo senso crítico em relação à história da arte. Um homem que demorou quase trinta anos para decidir pela carreira artística. Que, ao invés de grande revolucionário, preocupava-se com a tradição da pintura. Ao invés de apaixonado irracional, foi um pesquisador intenso e convicto, que não abandonou seus princípios e, por conta disso, permaneceu miserável durante toda a vida, sustentado pelos 50 francos que o irmão eventualmente anexava às cartas. Um sujeito cuja doença parece oriunda dos graves problemas de estômago causados pela fome, pela vida rústica e solitária; não uma maluquice estereotipada.

Além disso, impressiona sua consciência político-social, que o impelia a compartilhar seus parcos bens e a imprimir nas telas a força dos trabalhadores anônimos – mineiros, tecelões e lavradores –, cujo valor fora ignorado durante séculos de produção artística. Van Gogh não se considerava um pintor de girassóis, mas um pintor de camponeses. Lutou para dar lugar na arte a essas existências menores e menosprezadas, que permaneceram debaixo do tapete dos nobres e clérigos retratados com frequência entediante ao longo da história ocidental.

Não cabe comentar aqui as 652 cartas, assim fica minha sugestão de leitura a quem se interessar. No lugar de produzir uma imagem "eterna" do passado, Benjamin propõe que façamos dele uma experiência singular. Mais do que reproduzir a história de maneira boçal, temos que narrá-la novamente, pois é apenas assim que produzimos e compartilhamos sabedoria. Antes de falar, convém ouvir. Antes de aceitar, temos obrigação de desconfiar. Antes de exercer juízo é prudente pesquisar e nos implicar na questão.

Não bastassem todas as pinturas maravilhosas do artista, o outro Van Gogh, escritor de cartas, deixou esta linda imagem sobre o passar do tempo: "O moinho não existe mais, o vento continua". Assim segue a história, sussurrando notas em nossos ouvidos, sugerindo leituras e interpretações sem entretanto revelar o livro inteiro, que sustentará certo teor de mistério para nos instigar a imaginá-la.

*Pesquisadores disponibilizaram todas as cartas conhecidas de Vincent Van Gogh neste site, confira só (em inglês): vangoghletters.org As imagens que ilustram o texto foram retiradas daí.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

CARTA PARA AS FUTURAS GERAÇÕES

Texto de Ilya Prigogine (1917-2003), cientista russo, Nobel de Química em 1977. Publicado no Brasil em Caderno MAIS! Folha de SP. São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000. 

Escrevo esta carta na mais completa humildade. Meu trabalho é no domínio da ciência. Não me dá qualquer qualificação especial para falar sobre o futuro da humanidade. As moléculas obedecem a "leis". As decisões humanas dependem das lembranças do passado e das expectativas para o futuro. A perspectiva sob a qual vejo o problema da transição da cultura da guerra para uma cultura de paz -para usar a expressão de Federico Mayor- se obscureceu nos últimos anos, mas continuo otimista.

De qualquer forma, como poderia um homem da minha geração -nasci em 1917- não ser otimista? Não vimos o fim de monstros como Hitler e Stálin? Não testemunhamos a miraculosa vitória das democracias na Segunda Guerra Mundial? No final da guerra, todos nós acreditávamos que a História recomeçaria do zero, e os acontecimentos justificaram esse otimismo.

Os marcos da era incluem a fundação da Organização das Nações Unidas e da Unesco, a proclamação dos direitos do homem e a descolonização. Em termos mais gerais, houve o reconhecimento das culturas não européias, do qual derivou uma queda do eurocentrismo e da suposta desigualdade entre os povos "civilizados" e os "não-civilizados". Houve também uma redução na distância entre as classes sociais, pelo menos nos países ocidentais.

Esse progresso foi conquistado sob a ameaça da Guerra Fria. No momento da queda do Muro de Berlim, começamos a acreditar que enfim seria realizada a transição da cultura da guerra para a cultura da paz. No entanto a década que se seguiu não tomou esse rumo. Testemunhamos a persistência, e até mesmo a ampliação, dos conflitos locais, quer sejam na África, quer nos Bálcãs. Isso pode ser considerado, ainda, como um resultado da sobrevivência do passado no presente. No entanto, além da ameaça nuclear sempre presente, novas sombras apareceram: o progresso tecnológico agora torna possível guerras travadas premindo botões, semelhantes de alguma forma a um jogo eletrônico.

Sou uma das pessoas que ajudaram a formular as políticas científicas da União Européia. A ciência une os povos. Criou uma linguagem universal. Muitas outras disciplinas, como a economia e a ecologia, também requerem cooperação internacional. Fico, por isso, ainda mais atônito quando percebo que os governos estão tentando criar um exército europeu como expressão da unidade da Europa. Um exército contra quem? Onde está o inimigo? Por que esse crescimento constante nos orçamentos militares, quer na Europa, quer nos Estados Unidos? Cabe às futuras gerações tomar uma posição sobre isso. Na nossa era, e isso será cada vez mais verdade no futuro, as coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Vou usar um exemplo científico.



Quarenta anos atrás, o número de cientistas interessados na física de estado sólido e na tecnologia da informação não passava de umas poucas centenas. Era uma "flutuação", quando comparado às ciências como um todo. Hoje, essas disciplinas se tornaram tão importantes que têm consequências decisivas para a história da humanidade.

Crescimento exponencial foi registrado no número de pesquisadores envolvidos nesse setor da ciência. É um fenômeno de proporção sem precedentes, que deixou muito para trás o crescimento do budismo e do cristianismo. Em minha mensagem às futuras gerações, gostaria de propor argumentos com o objetivo de lutar contra os sentimentos de resignação ou impotência. As recentes ciências da complexidade negam o determinismo; insistem na criatividade em todos os níveis da natureza. O futuro não é dado. O grande historiador francês Fernand Braudel escreveu: "Eventos são poeira". Isso é verdade? O que é um evento? Uma analogia com "bifurcações", estudadas na física do não-equilíbrio, surge imediatamente. Essas bifurcações aparecem em pontos especiais nos quais a trajetória seguida por um sistema se subdivide em "ramos". Todos os ramos são possíveis, mas só um deles será seguido. No geral não se vê apenas uma bifurcação. Elas tendem a surgir em sucessão. Isso significa que até mesmo nas ciências fundamentais há um elemento temporal, narrativo, e isso constitui o "fim da certeza", o título do meu último livro. O mundo está em construção, e todos podemos participar dela.

Metáforas úteis

Como escreveu Immanuel Wallerstein: "É possível -possível, mas não certo- criar ou construir um mundo mais humano e igualitário, melhor ancorado no racionalismo material". Flutuações do nível microscópico decidem que ramo emergirá em cada ponto de bifurcação, e portanto que evento acontecerá. O apelo às ciências da complexidade não significa que estejamos sugerindo que as ciências humanas sejam "reduzidas" à física. Nosso empreitada não é de redução, mas de reconciliação. Conceitos introduzidos das ciências da complexidade podem servir como metáforas muito mais úteis do que o tradicional apelo a metáforas newtonianas. As ciências da complexidade, assim, conduzem a uma metáfora que pode ser aplicada à sociedade: um evento é a aparição de uma nova estrutura social depois de uma bifurcação; flutuações são o resultado de ações individuais. Todo evento tem uma "microestrutura". Tomemos um exemplo histórico a Revolução Russa de 1917. O fim do regime czarista poderia ter tomado diferentes formas, e o ramo seguido resultou de diversos fatores, tais como a falta de previsão do czar, a impopularidade de sua mulher, a debilidade de Kerensky, a violência de Lênin. Foi essa microestrutura, essa flutuação, que determinou o desfecho da crise e, assim, os eventos que a ela se seguiram. Desse ponto de vista, a história é uma sucessão de bifurcações. Um exemplo fascinante de como isso transcorre é a transição da era paleolítica para a neolítica, que aconteceu praticamente no mesmo período em todo o mundo (esse fato é ainda mais surpreendente dada a longa duração da era paleolítica). A transição parece ter sido uma bifurcação ligada a uma exploração mais sistemática dos recursos minerais e vegetais. Muitos ramos emergiram dessa bifurcação: o período neolítico chinês, com sua visão cósmica, por exemplo, o neolítico egípcio, com sua confiança nos deuses, ou o ansioso período neolítico do mundo pré-colombiano. Toda bifurcação tem beneficiários e vítimas. A transição para a era neolítica trouxe a ascensão de sociedades hierárquicas. A divisão do trabalho implicou em desigualdade. A escravidão foi estabelecida e continuou a existir até o século 19. Ainda que o faraó tivesse uma pirâmide como tumba, seu povo era enterrado em valas comuns. O século 19, da mesma forma que o 20, apresentou uma série de bifurcações. A cada vez que novos materiais eram descobertos -carvão, petróleo ou novas formas de energia utilizável-, a sociedade se transformava. Será que não se poderia dizer que, tomadas como um todo, essas bifurcações conduziram a uma maior participação da população na cultura, e que de lá por diante as desigualdades entre as classes sociais nascidas na era neolítica começaram a diminuir?

Homem e natureza

No geral, bifurcações são a um só tempo um sinal de instabilidade e um sinal de vitalidade em uma dada sociedade. Elas expressam também o desejo por uma sociedade mais justa. Mesmo fora das ciências sociais, o Ocidente preserva um espetáculo surpreendente de bifurcações sucessivas. A música e a arte, por exemplo, mudam a cada 50 anos. O homem continuamente explora novas possibilidades, concebe utopias que podem conduzi-lo a uma relação mais harmoniosa entre homem e homem e homem e natureza. E esses são temas que ressurgem constantemente nas pesquisas de opinião sobre o caráter do século 21.

A que ponto chegamos? Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como a multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a "sociedade de rede", com seus sonhos de aldeia global.

Mas qual será o resultado dessa bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A palavra "globalização" cobre uma grande variedade de situações diferentes? É possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com globalização, uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo cultural e o respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras. Mas há outros riscos no horizonte.

Cerca de 12 mil espécies de formigas são conhecidas hoje. Suas colônias variam de algumas centenas a muitos milhões de indivíduos. É interessante notar que o comportamento das formigas depende do tamanho da colônia. Em colônias pequenas, a formiga se comporta de forma individualista, procurando comida e a levando de volta ao ninho. Quando a colônia é grande, porém, a situação muda e a coordenação de atividades se torna essencial.

Estruturas coletivas surgem espontaneamente, então, como resultado de reações autocatalíticas entre formigas que produzem trocas de informação medidas quimicamente. Não é coincidência que nas grandes colônias de formigas ou térmites os insetos individuais se tornem cegos. O crescimento populacional transfere a iniciativa do indivíduo para a coletividade.

Por analogia, podemos nos perguntar qual será o efeito da sociedade da informação sobre nossa criatividade individual. Há vantagens óbvias nesse tipo de sociedade -basta pensar na medicina ou na economia. Mas existe informação e desinformação. Como diferenciá-las? Claramente, isso requer cada vez mais conhecimento e um senso crítico desenvolvido. O verdadeiro precisa ser distinguido do falso, o possível do impossível. O desenvolvimento da informação significa que estamos legando uma tarefa pesada às futuras gerações. Não devemos permitir que surjam novas divisões resultando da "sociedade de redes" baseada na tecnologia da informação. Mas é preciso igualmente examinar questões mais fundamentais.

Em sentido geral será que a bifurcação reduzirá a distância entre os países ricos e os pobres? A globalização será caracterizada pela paz e democracia ou por violência, aberta ou disfarçada? Cabe às futuras gerações criar as flutuações que determinarão o rumo do evento correspondente à chegada da sociedade da informação.

Minha mensagem às futuras gerações, portanto, é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcação ainda não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais.

Quanto mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. Fomos da idéia geocêntrica de um sistema solar para a heliocêntrica, e de lá para a idéia das galáxias, e, por fim, para a dos múltiplos universos. Todos já ouviram falar do Big Bang. Para a ciência, não existe um evento único, e isso conduziu à idéia de que múltiplos universos podem existir. Por outro lado, o homem é até agora a única criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. Minha esperança é de que as gerações futuras aprendam a conviver com o espanto e com a ambiguidade.

A cada ano, nossos químicos produzem milhares de novas substâncias, muitas das quais derivadas de produtos naturais -é um exemplo da criatividade humana no seio da criatividade natural como um todo. Esse espanto nos leva a respeitar os outros. Ninguém é dono da verdade absoluta, se é que essa expressão significa alguma coisa. Acredito que Richard Tarnes esteja certo: "A paixão mais profunda da alma ocidental é redescobrir a unidade com as raízes de seu ser".

Essa paixão leva à afirmação prometéica do poder da razão, mas a razão pode também conduzir à alienação, a uma negação daquilo que dá valor e significado à vida. Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência, algo que ponha fim às profecias quanto ao "fim da ciência", "fim da história" ou até quanto ao advento da "pós-humanidade".

Estamos apenas no começo da ciência, e muito distantes do tempo em que se acreditava possível descrever todo o universo em termos de algumas poucas leis fundamentais. Encontramos o complexo e o irreversível no domínio microscópico (tal como associado às partículas elementares), no domínio macroscópico que nos cerca e no domínio da astrofísica. Cabe às futuras gerações construir uma nova ciência que incorpore todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua infância.

Da mesma forma, o fim da história poderia ser o fim das bifurcações e a realização das visões de pesadelo de Orwell ou Huxley quanto a uma sociedade atemporal que perdeu sua memória. Cabe às futuras gerações manterem-se vigilantes para garantir que isso jamais aconteça. Um sinal de esperança é o de que o interesse pela natureza e o desejo de participar da vida cultural jamais foi maior do que hoje. Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão. São responsabilidades pesadas.

Uma carta às gerações futuras é sempre e necessariamente escrita de uma posição de incerteza, de uma extrapolação arriscada do passado. No entanto, continuo otimista. O papel dos pilotos britânicos foi crucial para decidir o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Foi, para repetir uma palavra que usei com frequência nesse texto, uma "flutuação". Confio em que flutuações como essa surgirão sempre, para que possamos navegar seguros entre os perigos que hoje percebemos. É com essa nota de otimismo que eu gostaria de encerrar minha mensagem.

Ver publicação original: Caderno MAIS!

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O MÉTODO DESVIANTE

Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de filosofia

Texto de Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp.

Como uma boa e velha professora de filosofia, prefiro cercear o assunto, amplo demais, por caminhos negativos, desvios e atalhos que não parecem levar a lugar algum. Digo “professora de filosofia”, porque meu território de atuação é, primeiramente, a sala de aula e a dinâmica com os estudantes, com todas as vantagens e todas as restrições que o ensino universitário no Brasil traz consigo. E digo também uma “velha” professora de filosofia porque posso me permitir, hoje, nesse momento de minha carreira acadêmica, algumas provocações que não vão (pelo menos, assim o espero!) colocar em questão nem meu contrato nem meu emprego. Imagino que os jovens colegas, com ou sem vaga ainda, não ousariam pensar de tal maneira, pelo menos explicitamente, porque têm que assegurar primeiro seu lugar no sol. Ofereço a eles um pequeno descanso na sombra.

Primeira regra para o reto ensino, em particular, o reto ensino da filosofia: não temer os desvios, não temer a errância. Os programas e “cronogramas” somente servem de esboços utópicos do percurso de uma problemática. Não esquecer que o tempo é múltiplo: não é somente “chronos” (uma concepção linear que induz falsamente a uma aparência de causalidade), mas é também “aiôn” (esse tempo ligado ao eterno, que, confesso, ainda não consegui entender...) e, sobretudo, “kairos”, tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo. Quando algo acontece na aula, quando algo pode ser, subitamente, uma verdadeira questão (para todos: estudantes e professor, não só para este último), aí vale a pena demorar, parar, dar um tempo, descrever o impasse e, talvez, perceber que algo está começando a ser vislumbrado, algo que ainda não tinha sido pensado (não por ninguém na tradição filosófica inteira, isso é abstrato, mas por ninguém dos participantes concretos agora e aqui na aula), algo novo e, portanto, que não sabemos ainda como nomear.

Segunda regra para o reto ensino, já cheio de desvios: não ter medo de “perder tempo”, não querer ganhar tempo, mas reaprender a paciência. Essa atitude é naturalmente muito diferente, imagino, num ensino dito técnico, no qual os estudantes devem aprender várias técnicas, justamente, vários “conteúdos”, ensino essencial para o bom funcionamento de várias profissões. Mas, no ensino da filosofia (e talvez de mais disciplinas se ousarmos pensar melhor), paciência e lentidão são virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à pressa produtivista do sistema capitalista-mercantil-concorrencial etc. etc. (esqueci de dizer que a velha professora tinha 20 anos em 1968). Lyotard disse isso lindamente: “Si l’un des principaux critères de la réalité et du réalisme est de gagner du temps, ce qui est, me semble-t-il, le cas aujourd’hui, alors le cours de philosophie n’est pas conforme à la réalité d’aujourd’hui. Nos difficultés de professeurs de philosophie tiennent essentiellement à l’exigence de la patience. Qu’on doive supporter de ne pas progresser (de façon calculable, apparente), de ne faire que commencer toujours, cela est contraire aux valeurs ambiantes de prospective, de développement, de ciblage, de performance, de vitesse, de contrat, d’exécution, de jouissance”(1) (« Le Postmoderne Expliqué aux Enfants », Galilée, 1986, Paris, pp. 158/159).

Terceira regra desviante: não querer ser “atual”, estar na moda, up to date, mas assumir o anacronismo produtivo, uma não-conformidade ao tempo (Unzeitgemässheit, dizia Nietzsche), não correr atrás das novidades (mercadorias intelectuais ou não), mas perceber o surgimento do devir no passado antigo ou no presente balbuciante, hesitante, ainda indefinido e indefinível. Deixar que essa hesitação possa desabrochar. Não procurar por normas e imperativos, mesmo na desorientação angustiante, mas conseguir dizer, de maneira diferenciada, as dúvidas. (Caro leitor, você já percebeu a quantos imperativos somos submetidos, somente andando 10 km na cidade ou lendo uma revista? O tempo do imperativo é o da propaganda).

Resistir, portanto à tentação do professor e do “intelectual” em geral de ter de encontrar uma saída, uma solução, uma lei, uma verdade, um programa de partido ou não. Agüentar a angústia. Adorno dizia que essa dimensão era uma dimensão de resistência não só ao sistema dominante do mundo administrado, mas também aos sonhos de dominação do pensamento. Não querer colocar uma ordem necessária onde há primeiro, desordem, não confundir “taxinomia”, arranjo em várias gavetas com pensamento -pois pensar é, antes de mais nada, duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho.

Quarta regra de método desviante (“Método é desvio”, dizia um velho mestre quase chinês, Walter Benjamin): não se levar tão a sério assim, só porque estudou latim e grego ou fez doutorado na Alemanha ou consegue entender Heidegger. Mais radicalmente: não levar demais a sério as “opiniões” pessoais, em particular as suas. São, no melhor dos casos, somente a ocasião de ir além delas, do reino dito encantado das “idéias” e “crenças” subjetivas. Não cair na ilusão liberal de que a liberdade se esconde nas escolhas individuais, arbitrárias e/ou manipuladas. Se há algo que a reflexão filosófica pode realmente ajudar a pensar é a necessidade de ultrapassar, de ir além -isto é de “transcender”- os pequenos narcisismos individuais para vislumbrar “o vasto oceano da Beleza” (dizia o velho Platão), o Reino do Espírito, dizia outro velho senhor idealista, hoje talvez digamos o “enigma do Real” ou, então, as linhas de fuga e os acontecimentos.

Essa dimensão “objetiva” (não em oposição ao “sujeito”, mas levando em questão a materialidade e a historicidade das “coisas” que nos resistem e nos atraem) do pensamento justifica a exigência, imprescindível, da diferenciação conceitual, isto é, do esforço e da ascese (askesis, ou exercício, em grego) conceituais: não se trata de malabarismos intelectuais complicados, mas de tentativas sempre reiteradas de compreender o “real” sem violentá-lo. Esse esforço, essa “paciência do conceito”, vai, de novo, contra a pressa reinante, e também contra os “achismos” tão prezados na imprensa e na televisão, nos meios ditos de “comunicação”. Também resiste à ilusão de que o debate de idéias, como se diz, seja um enfrentamento de dois ou mais oradores brilhantes (ou não) que tentam, cada um, fazer prevalecer sua opinião sobre a opinião do outro.

A ascese conceitual também implica o aprendizado de um certo despojamento da vontade individual e concorrencial de auto-produção perpétua em detrimento dos outros. Não se trata de ser melhor que os outros, mas de estar atento às possibilidades de transformação da realidade, portanto, de não passar ao lado dela, de compreendê-la melhor, na sua possível mutabilidade. Isso implica, aliás, que, muitas vezes, não sei, não posso dizer nada que ajude, portanto também ouso calar-me, não cedo à tentação de falar sobre tudo e qualquer coisa.

Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.

Publicado originalmente na revista Trópico em 3 de dezembro de 2006.

(1) “Se um dos principais critérios da realidade e do realismo é ganhar tempo, o que é, me parece, o caso hoje em dia, então o curso de filosofia não se ajusta à realidade de hoje. Nossa dificuldade de professores de filosofia concerne essencialmente à exigência de ser paciente. Que se deva suportar não progredir (de maneira calculável, aparente), ter que começar sempre, isso é contrário aos valores dominantes de prospectiva, de desenvolvimento, de alvo, de performance, de velocidade, de contrato, de execução, de gozo.” (tradução da Redação)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

INUNDAÇÃO

Jovem triste num trem (1911), Marcel Duchamp
arrastado
o menininho
agarrado pela mão
no último instante, o derradeiro
frágil braço lançado entre
forças e fluxos
a mãe, lutando
contra o turbilhão
de gente

Passa gente de todo lugar. Venham, gentes. Vão, gentes. A casa é de vocês, fiquem à vontade. Indivíduos, sujeitos, gêneros, pessoas de toda cara e idade, de todos jeitos e suspeitos. Só de passagem. Afagam o celular com esse carinho próprio de nossos dias, esse amor maquinal, cheio de jogos e aplicativos. Leem um livro e eu estico olhos curiosos para saber qual é. Muitas vezes me surpreendo. Ulysses, você!, aqui?, no metrô?! Moby Dick? David Copperfield!, que saudade, rapaz, apareça quando quiser. Atenção, senhores passageiros, a companhia alerta para risco de tijolada iminente. São as iminências da poética, a Bienal deu a dica uns anos atrás.

Observo e as pessoas não param, os retratos ficam borrados, desfigurados, futuristas. Um movimento incessante, pêndulo de Foucault, para lá e para cá, para aqui e acolá. Narrativas enviesadas que só acontecem nos cruzamentos, transculturalmente, sem começo, meio e fim. Apenas errância e acertância. Uma estação de baldeação, um desvio no caminho. Um ponto de fuga? Que nada! Não tem por onde, não há escapatória. Há somente saída. Muitas saídas. Todas dão no mesmo lugar. O nível das ruas, a superfície plana da humanidade, mil platôs.

Saia não, fique um tanto mais. Para que essa correria? Vamos operar com velocidade reduzida e maior tempo de parada. Problema? Nenhum. Precisa ter? Precisa não. É uma experiência, vamos provar ritmo diferente, deixar para outro dia o arroz com feijão, e mais outro, e mais outro. Desse prato eu já comi demais, deu moleza. Venha provar do coletivo, essa iguaria popular, cultura local que gringo deseja com água na boca.

Veja lá quem vem na nossa direção. Conhece? Vejo todo dia mas não conheço não. Devemos ter coisas em comum, porém compartilhamos somente o caminho. Caminhamos juntos e separados, lentos e apressados, cada um na sua mas com alguma coisa em comum. Free, distraídos. A distração é por segurança. Tá olhando o quê? Nunca viu? Olha, não se ache demais, especial aqui só o assento mesmo, aqueles de cor diferente em que todo mundo planeja descansar o traseiro, ainda que poucos detenham o privilégio. Lição de democracia. Aprende aí e não reclama. Eu chamo o segurança, tá pensando o quê?

As filas andam, às vezes se trançam, dá a maior confusão. Acelera, freia, acerta o passo, acerta o calo, recolhe o pé, deixa passar quem tá com pressa, eu tô, eu também, sai pra lá, folgado!, tira esse cotovelo daqui, empurra não, bota essa mochila pra frente, diminui a música que eu não gosto dessa pouca vergonha. Tem quem se ache no direito, mas aqui ninguém é mais direito nem mais esquerdo, sem exceção, estamos juntos no mesmo barco. No mesmo trem, se você me entende. Quando um desequilibra, um monte vai pro chão. Que não é chão, se você me entende. É assoalho. Coisa fina.

Não entende, não faz mal. A vida é assim. Claro, você não vê? Essas estações são a síntese da convivência social, bicho. Tem conflito de classes, propaganda, exploração de desabastados, indiferença. Eu disse desabastadados, com A! Abestado tá no Congresso. Aqui tem gente vendendo bala, chiclete, chocolate invalível, doçura de origem duvidosa, papelzinho xerocado. Ajuda, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, eu podia estar transferindo a sua ligação, mas eu estou é ganhando a vida, com licença, com licença, questão de sobrevivença.

Ai, madame, bobeia com esse celular novinho não, custa o olho da cara, com um desses eu teria até onde morar por seis meses, se não chover. Olha ali, o sujeito lendo em voz alta, pregando como se todo mundo se interessasse. Essa história eu já sei como acaba! O final parece feliz mas não é. Não importa o céu se o inferno ainda existe, isso não é salvação, é só a enganação nossa de todo dia. Nos dai hoje um pouquinho de paz, por favor!, pare de martelar nossas cabeças, anda, deixe cada um com seu próprio livro ou jornal, cada um que acredite na verdade que quiser.

Bom mesmo é encarar as diferenças com indiferenciação, olha que palavrona bonita! Já basta de gente controlando a minha liberdade. Vou pitacar na vida alheia? Tenho mais o que fazer!

Ai, se tem coisa que me incomoda é ficar parado no túnel. Perda de tempo... Algum objeto na linha, só pode ser. Um braço, uma perna, indigente. Passa por cima que eu tô com pressa! Passa por cima do respeito! Digo, do sujeito! Infeliz. Tá com pressa vai de táxi, vai pra Cuba, vai no jatinho do Neymar, vai na Ferrari do Neymar! E para onde vai com essa urgência toda? Vou pagar os meus impostos, sou um cidadão de bem, gente de família! Ah, taí ostentando ignorança, truculença, verborragia!? Só pra chegar primeiro? Gente sem coração...

Aperta não que a malmita abre, não é gurmê. Crise? Conheço não. Dólar? Aquele do 44b? Corrupção eu uso pra pescar robalo. Livre-arbítrio? Claro que sei!, moreninho, apitou a final do Brasileirão, idos de 1990. Tava comprado. Péra aí, tá livre de novo? Esse país não tem solução. É o fim da picada!

Será que o metrô chega lá? Um dia ainda desço na estação final, ahh, vocês vão ver. Só para poder voltar sentado. Que alívio! Passear de barco nesse mar de gente, nessa represa transbordante! Isso é que é vida! Mas hoje não, hoje não dá, tô atrasado. Dá licença que desço aqui, falei demais, dá licença, moço, segura a porta, por favor, obrigado. Desculpa aí por atrasar a viagem de vocês. E de todos os outros trens.



O vídeo acima foi gravado na estação República do metrô de São Paulo.
Conheça mais do trabalho artístico de Adam Magyar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

PENSAMENTO PERDIDO

já não se sabe
o que atravessa
a cabeça arremata o
pensamento perdido
atirado de longe
sem cara nem coração
sai nos jornais
comentário assassino
sem experiência viva
nem pulso de coragem
tomado de assalto
feito bala de fuzil
vitimando inocentes
pelo prazer algoz
pela justiça falha
insegurança
atravessa a carne se
aloja no cerne
do suspeito
veias abertas da América
marginal de cor, de raça
perseguida, impedida
graças adeus

domingo, 13 de setembro de 2015

ASSOVIO

resistência poética
quase espiritual
ao som maquinal
da cidade
dominante

sábado, 12 de setembro de 2015

O ABSTRATO E O CONCRETO

Amarelo, vermelho, azul (1925), de Wassily Kandinsky

Li qualquer coisa sobre um pintor abstrato. Fiquei a imaginar uma mancha, talvez algumas formas sem nome nem identidade, apanhadas ao acaso, que se apresentariam como pintor, olá, muito prazer, sou artista, percebe meu propósito? Meu significado? Esse pintor abstrato andaria por aí, fazendo arte.

Agora quero ler qualquer coisa sobre um pintor concreto.

(para Wassily Kandinsky)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

resistir a Darwin
acolher fragilidades, aprender
com elas convidar ao mundo
deixar as portas abertas
a quem quiser participar
fendas, fissuras, intervenções
onde os fracos não têm vez
fazê-los visíveis, olhar por eles
inventar lugares onde tenham
potência corporal
existência, liberdade
involuir para ser sutil
menos super-homem, menos moralismo
menos reis e suas leis
menos direitos enrijecidos
mais gentileza, por favor
mais poesia, ainda que dura
seja poesia

terça-feira, 8 de setembro de 2015

TODOS ÍNDIOS

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

Isto aqui trata daquilo que somos e do que pretendemos ser, disse Danilo Santos de Miranda na cerimônia de abertura da exposição. Somos índios. Quer queira, quer não. Todos aqueles que nos chamamos todos, somos todos os índios. Então, por que é tão estranho? Houve uma performance que simulava um ritual de tribo, eu estava ali no meio dos atores, eles cantando e dançando, eu estava ali e achava tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que achava estranho esse próprio estranhamento, tinha vergonha dele. Por que a cultura indígena é pouco familiar a nós, que somos índios – desde o berço – sem saber? Por que não identificamos seus meios nem apreendemos seus sentidos? Por que não somos capazes de enxergar nossas raízes, soterradas ainda vivas por toneladas de ordem e progresso, toneladas de preconceitos e desrespeito?

Se a voz não partir de dentro do peito, é melhor que nada fale. Não pode haver voz que fale "sobre" os índios. Que sujeito é esse que se põe de fora, que se põe acima e quer determiná-los? Os índios são isso ou são aquilo. Não. Ou os índios somos, ou é prudente calar a própria voz, calar essa arma que já disparou as ignorâncias mais violentas. Falar a respeito dos índios, mesmo sem conhecê-los, mesmo que o único índio já visto seja aquele da cartilha escolar, da letra "i", já é falar sobre nós, sobre esse sujeito que fala, sobre seu passado, seu presente e seu futuro. Sobre o que somos e o que pretendemos ser.

Entretanto o que o índio deseja é poder permanecer diferente de nós, explica Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo autor das fotos expostas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Essa igualdade diferente, antes de ser um paradoxo dos tempos atuais, é um dos problemas mais delicados que criamos para nós mesmos ao longo de séculos de massacres velados. É um problema de identificação cultural pautado na invisibilidade das vítimas e, pior, é questão de sobrevivência. Dos índios? Sim, de todos nós.

Chegamos a um ponto em que não parece haver solução. O que existe é somente a oportunidade de pendurar uma rede digna onde o corpo ferido do índio possa repousar. Onde nosso corpo, quem sabe, possa curar as feridas e aprender com as cicatrizes, caso sobreviva. Corpo, quer dizer, "conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus", segundo o antropólogo-fotógrafo. Corpo individual, corpo coletivo, corpo sociocultural. É a partir do corpo – e somente dele – que se dá nossa relação com o mundo. Variações do corpo selvagem, conforme o título da mencionada exposição.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro


O que pode ser feito é tocar o nosso sagrado com penas e sementes. Pintar nossa pele de urucum. Dar ritmo de chocalho à correria da metrópole. Incorporar a sensibilidade abandonada, vesti-la com pele de onça. Algo que os curadores Veronica Stigger e Eduardo Sterzi conseguiram propor com ética e sutileza. Pois não cabe idealizar o índio, não cabe idealizar a cultura nem a natureza, isso não faria o menor sentido; mas cabe muito bem provocar estranhamento, um estranhamento que denuncia nosso ponto de vista, que questiona nossas crenças, porque é somente assim que o índio em nosso sangue ouvirá o chamado e emergirá, esse índio que corre pela escuridão do nosso contemporâneo.

Freud dizia que estranho é o quase familiar, quase comum e reconhecível, que de algum modo não se encaixa na normalidade e por isso nos inquieta, por vezes até apavora. Próximo ao mesmo tempo em que longínquo. Esse estranho tem o poder de nos arrancar do conforto apático do dia a dia e nos levar a outro plano de realidade. Uma experiência transformadora, uma potência que, com sorte, vai nos fazer questionar a normalidade da situação. Não podemos continuar a achar "normal" o índio ser massacrado. Não podemos aceitar que suas terras sejam arrancadas à força. Não podemos achar normal que o índio continue sem voz política, invisível, impedido. Nós comemos alimentos indígenas, caminhamos por ruas indígenas, falamos com suas palavras, curamos enfermidades com suas ervas e ritos. Somos todos nativos do Brasil. Não é normal, nem jamais poderá ser, carregar um índio morto no peito, nem deixar que seu sangue morto corra pelos rios do nosso corpo selvagem. Já basta de civilização.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ORELHA QUE TIREI DA MALA



Olha que coisa linda, a amiga Mariana Teixeira está lançando O que tirei da mala, seu segundo livro de poemas (o primeiro se chama Inversos Paralelos). Perguntou se eu escreveria uma breve apresentação para sair na orelha. É lógico que escrevi, com o maior prazer. Ficou assim:  

cenas breves
na rua, no bar, na cama
só ela nota, Mariana
anota!
faz disso aí
a poesia que já é
só não sabia
incessante
num fluxo
pega no ar
no ato
leveza passarinha
conta, recita, sussurra, desabafa
uns versos sobre a vida
chegam muito bem, no mínimo
não fazem mal a ninguém
infindáveis histórias do universo
uma página por vez
na correria o homem fica
em seu tempo
a poesia vai além

Assim este livro se apresenta, uma página por vez, retiradas da bagagem que Mariana Teixeira acumulou pelos percalços da vida. Se o fardo está pesado, ela faz dele poesia, que bate asas e flana mundo afora até encontrar você, leitor de sorte.