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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO

José Nunes tem um projeto incrível chamado Como Eu Escrevo, que apresenta o processo criativo de escritores, acadêmicos e juristas (Juristas? José cursa Doutorado em Direito na UnB. Ah!).

O arquivo está à disposição e já tem centenas de entrevistas. O propósito é oferecer inspiração às pessoas com dificuldade para escrever. Aplausos para José Nunes. Compartilhar ideias é mesmo uma excelente maneira de enfrentar os desafios da escrita.

Tive o prazer de responder às perguntas do projeto. A entrevista abaixo foi publicada em comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida


Se você ainda não leu meu livro mais recente, encomende seu exemplar aqui: Testemunho Ocular. Ou entre em contato comigo e receba o livro com dedicatória: edualmeida@artefazparte.com

 
1. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Quem me desperta é minha filha de 8 meses, quase sempre entre 6h e 6h30. Às vezes mais cedo. A essa hora, minha esposa já saiu para trabalhar. Lavo a louça da noite anterior, troco fralda, dou mamadeira e tomo café com a nenê no colo, tentando fazendo com que ela pare de puxar a toalha da mesa e jogar tudo no chão. Brincamos até às 9h, quando a deixo no berçário. Só então a escrita tem início.

2. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Sempre escrevi melhor de manhã, quando a mente ainda está fresca. É meu período criativo favorito. Também gosto de ler e estudar nesse horário. Sinto que, depois do almoço, a cabeça vai dormir e deixa o restante corpo a fazer trabalhos mais mecânicos como pagar contas, responder emails, revisar textos. À noite estou exausto, raras vezes consigo botar uma boa frase em pé.

Não tenho um ritual propriamente dito, mas gosto de abrir espaço na mesa de trabalho, que quase sempre está atulhada de livros e anotações, esqueço o celular em algum canto da casa e tento não ligar o computador. Gosto de silêncio e caneta-tinteiro. São poucas as ocasiões em que consigo realizar isso tudo porque sempre existe alguma tarefa banal a convocar minha atenção e a abalar o mundinho ideal. Mesmo longe o telefone toca. Chega um email urgente. Tenho que resolver qualquer coisa na rua. Além disso, estão subindo um prédio atrás do outro em meu bairro, e já são anos que passo as manhãs a ouvir serras elétricas, martelos, bate-estacas, entre outros prenúncios do caos.

3. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo quando é possível e quase sempre incentivado pelo prazo que se esgota. São os prazos que ditam as prioridades. Preciso entregar a coluna do jornal, depois tenho que ler o livro para resenhar, não posso esquecer de revisar o artigo acadêmico, e então, ou antes, ou assim que puder, preciso desenvolver os itens deste e daquele projeto, preparar a aula, enxugar a palestra, enviar o orçamento.

A literatura sobrevive em meio a isso tudo porque é mais forte, atravessa as ordenações, me arranca da cadeira ou da cama, nas madrugadas, e me obriga a desenhar palavras no papel. Minha meta diária é terminar alguma coisa, seja o que for, contanto que termine e abra espaço para algo mais. Não é comum eu escrever à toa. Mas quando tenho um projeto na cabeça, ele volta e meia me requer, sugere ideias, atira a agenda longe para ocupar o tempo possível e, com sorte, o impossível também.

4. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Costumo acumular ideias, interesses, imagens. Então sento e escrevo de uma só vez. Acontece de nascer um texto que escapou de todas as anotações, como se tivesse se contorcido por entre elas. Outras vezes o texto é uma costura de notas que, a princípio, não tinham nada em comum. Às vezes a pesquisa leva anos, outras vezes o texto aparece sem qualquer pesquisa que esteja diretamente relacionada com ele. Mas é claro que toda obra se realiza a partir dos materiais reunidos ao longo da vida, tivessem ou não um propósito específico. Isso varia conforme o tipo de texto. Ensaios costumam exigir muitas notas, leituras, diálogos. Textos ficcionais, por outro lado, saem à revelia do planejamento. Não é difícil escrever; difícil é arranjar as condições para que a escrita se realize.

5. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

A escrita só destrava quando escrevo. Antes de começar, o texto parece impossível. Entretanto uma palavra solicita outra, um sentido sugere outro, e assim o processo anda. Às vezes desanda e o texto nasce torto, requer muita plástica ou a lixeira, a depender de quão grave é seu estado. Não costumo forçar demais a barra. Se um texto não quer nascer, gesto um pouco mais, escrevo outro para compensar. Quando vier, será saudável.

As expectativas, por sua vez, podem ser minhas ou dos outros. Dou atenção às expectativas em textos de não ficção, cuja ideia a ser transmitida deve ser mais precisa. No caso de textos artísticos, a expectativa é tanto uma ilusão quanto uma violência. Ilusão porque não se pode prever a reação do leitor. Violência porque, quando se acredita em tal previsão, o escritor está determinando um perfil, um público-alvo, um preconceito. O leitor não deve ser reduzido nem menosprezado assim. Textos que preveem seus receptores são publicitários.

Um projeto precisa se manter vivo durante sua realização, tenha uma página ou cinco mil. Sua longevidade não tem a ver com longitude. Se o projeto estiver vivo, consigo trabalhar nele quanto tempo for preciso. Se morreu, escrever uma só linha será doloroso e, no fim das contas, uma falácia. O melhor teste de vitalidade ainda é a gaveta: pego o texto inconcluso e o guardo. Se volta e meia a gaveta se mexer, gritar, liberar algum feromônio, é meu dever retomá-lo.

6. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Uma coluna de jornal, por exemplo, é reescrita por volta de três vezes antes de ser publicada. Adoro mostrar rascunhos ou ao menos contar a ideia a alguém para saber sua opinião, embora nem sempre consiga, por razões variadas.

Textos acadêmicos são reescritos algumas vezes também, mas nunca estão de fato finalizados porque as ideias vão se transformando, novas associações são tecidas, novas leituras levam a diferentes concepções etc.

Contos, romances, poesias são reescritos muitas vezes, lidos por amigos, compartilhados aos pedaços. Meu livro Testemunho Ocular foi lido por uma dezena de cúmplices antes de ser publicado, em especial os escritores do coletivo Discórdia, do qual faço parte. Eles comentaram os textos, sugeriram mudanças, compartilharam impressões de leitura. Alguns contos do livro vinham sendo reescritos há anos, outros eram recentes.

Meu primeiro romance, que deve ser publicado em 2019, teve sua versão inicial escrita dez anos atrás, e desde então foi reescrito uma porção de vezes. Já foi lido por vários amigos, algumas versões foram inclusive premiadas, mas só agora estou prosseguindo com a publicação.

A vontade de publicar logo e me livrar do texto é imensa. Ainda bem que outras tarefas me ajudam a controlá-la. Enquanto isso o livro fica se rebelando dentro da gaveta.

7. Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Sempre gostei de escrever as primeiras versões à mão e só depois digitá-las. O manuscrito é mais lento, e esse tempo colabora com o pensamento. Sem contar que é muito mais fácil desenhar setas no papel, rabiscar, tracejar etc. É uma artesania que depois ganha outros contornos quando passa ao computador. Essa fase seguinte privilegia o ritmo, a técnica, a revisão.

Neste ano de 2018 estou integrando o Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council. Entrei ali com a proposta de experimentar modos diferentes de fazer. Tenho escrito as peças diretamente no computador. É um processo estranho, com prós e contras que ainda estou avaliando. Tem sido uma boa oportunidade para tentar e errar.

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

As ideias vêm do mundo. Elas ganham forma escrita e recaem no mundo. É ingenuidade pensar que têm origem na “profundidade do ser”, no “interior obscuro”, nesses lugares de teor expressionista. O mundo nos atravessa e, com sorte, conseguimos sustentar uma ideia ou outra, quase como uma peneira a sustentar uma pedra maior, que não poderia atravessá-la sem provocar um rombo.

Os hábitos que cultivo são todos relacionados a manter essa abertura na relação com o outro. Leio sobre assuntos variados, interesso-me pelas demais artes, prefiro caminhar entre as pessoas a dirigir minha bolha espacial. Gosto de ouvir histórias.

9. O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Com muito esforço fui desconstruindo algumas idealizações e apurando o senso crítico em relação às criações. Aprendi técnicas de escrever, revisar e apreciar. Mas principalmente quis conhecer melhor as potências estéticas e políticas das artes, suas relações com as pessoas, as organizações sociais, os regimes de ver, pensar e dizer. Ainda há tanto para aprender!

Se pudesse voltar àqueles escritos antigos, eu diria para não deixarem a satisfação durar tempo demais. É vital que um texto satisfaça seu autor porque ninguém consegue sobreviver em constante frustração. Mas a satisfação precisa ruir para assinalar um movimento. Não se trata de evolução, mas de pulsação; não se trata de fazer melhor numa escala qualitativa trazida de fora, mas de fazer de um jeito que renove o próprio fôlego, os pensamentos, os interesses. Se um texto antigo ainda me satisfaz, alguma coisa em mim não saiu do lugar desde que o escrevi, e isso é perigoso.

10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Difícil identificar quais projetos ainda quero fazer, mas de alguma maneira eles já foram iniciados. A pesquisa e a criação precedem o projeto, que vem apenas dar forma a elas.

Nos próximos anos pretendo lançar um estudo sobre a Estruturação do Self, trabalho derradeiro da artista Lygia Clark, que comecei a pesquisar durante o mestrado. É uma proposta instigante que inventou um lugar entre a arte e a clínica, e que infelizmente é pouco conhecida. Passados vários anos das minhas primeiras investigações, sua obra ainda pulsa.

Eu gostaria de ler um livro que provocasse em mim um corte radical, como os cortes que Lucio Fontana fazia em suas telas. Será que ainda não existe? Deve estar por aí, eu é que preciso encontrá-lo.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

DESAPRENDER A DIZER


Por diversos motivos, volto de tempos em tempos à aula inaugural de Roland Barthes no Colégio de França, oferecida em 1977 e publicada no Brasil na forma de um livrinho. Desta vez eu quis relembrar sua denúncia sobre o fascismo da língua, que sempre achei muito ousada. Para o semiólogo, a língua é fascista não porque impede de dizer, mas justamente pelo contrário: ela obriga a dizer. E, sempre que proferida, a língua se põe a serviço de um poder.

Fui relembrar essas ideias por incentivo de Peter Pál Pelbart, uma das nossas vozes filosóficas mais instigantes, que mencionou Roland Barthes durante a palestra sobre a “Experiência nômade da escrita”, oferecida no Sesi-SP como evento de abertura do Ciclo de Dramaturgia deste ano. Eu queria – ou melhor, eu precisava de – algumas palavras que me ajudassem a pensar outro fascismo, recorrente na política atual, que de política preserva bem pouco na medida em que mina debates e sustenta autoritarismo de variadas ordens. Se a campanha dos candidatos foi um horror, a atuação dos eleitores foi pior: ignorante, violenta, impositiva etc.

“Por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância”, diz Barthes com a sua lucidez tão característica.

Seremos solicitados a nos acostumar com esses autoritarismos nos anos que vêm. Para mim é impossível, aviso de antemão. Para outros milhões de brasileiros também será.

Como escapar do fascismo anunciado? De acordo com Barthes, a linguagem humana é sem exterior, só podemos sair dela pelo preço do impossível. Entretanto o autor oferece uma alternativa: se é impossível escapar do fascismo que a todo instante obriga a dizer, podemos trapacear a língua. “Essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” é o que Barthes chama de literatura.

Ele aproveita para explicar que a força de liberdade da literatura não depende do engajamento político do escritor, que afinal é um déspota entre tantos outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que exerce sobre a língua.

Eu estava, como sempre, encantado com seus pensamentos. E pretendia chamar atenção para o engano comum que tenho observado ao meu redor: a confusão entre a obrigatoriedade de dizer e a liberdade de expressão. Trata-se de um engano grave. Pois liberdade de expressão não é o direito de dizer tudo o que vem à cabeça; isso na realidade quase sempre configura um aprisionamento, que é próprio do tal fascismo da língua. O que se diz, no caso, são meras fórmulas, repetidas à exaustão; violências normalizadas, discursos prontos que colonizam o sujeito que fala, notícias falsas e lógicas escusas a corromperem todo o sistema de comunicação. Trata-se, enfim, de enclausurar a própria expressão, sufocar a vida, abrir a mão da potência de não dizer.

A verdadeira liberdade de expressão é muito mais difícil de exercer. Pois implica libertar a própria expressão das amarras já subjetivadas que impregnam, deturpam e modulam os discursos. Implica destituir o governo que se impõe sobre o dizer e o faz delirante.

Se é de fato impossível, é ainda a utopia que a literatura deve perseguir. E não apenas ela: cada um de nós precisa aprender a desarmar a própria língua, desarticular o próprio discurso e escapar dessa condição de cativo.

Vou preenchendo meu caderno com notas, apoiando-me numa aula que se atualiza desde a França de décadas atrás e me ajuda a pensar o Brasil de hoje. Lá para o fim do livro, deparo-me com a seguinte frase: “o que pode ser opressivo num ensino não é o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto”.

É nesse momento que encontro palavras para botar ordem em minhas próprias inquietações. E afirmar, em primeiro lugar, que suprimir das nossas escolas conteúdos urgentes – como a consulta pública do Senado que sugere criminalizar o debate sobre questões de gênero – é impedir que a diferença seja visível e problematizada por estudantes que têm plena capacidade de aprender com ela. Estudantes inteligentes que não precisam dessa censura disfarçada de tutela.

Em segundo lugar, e também relacionado a outra consulta pública, é preciso desfazer a ilusão da tal “escola sem partido”, a qual é por princípio impossível. Ao contrário de mais restrições, que tendem apenas a gerar mais violências, impedir debates e autorizar opressões, é preciso dar voz a todos os que desejam falar. De maneira que, novamente pela diferença, seja possível experimentar a força arrebatadora da democracia e a resistência ao fascismo dos discursos autoritários.

Com sorte, todos nós teremos a chance de atingir o ápice da maturidade do ensino, que para Roland Barthes é a experiência de desaprender. Eu, ainda distante de tamanha sabedoria, só tenho a concordar com ele e, humildemente, agradecer o privilégio de sua aula e toda a abertura que ela oferece.

domingo, 4 de novembro de 2018

COLETIVO DISCÓRDIA NA FEIRA MIOLO(S) 2018


O coletivo de criação literária Discórdia, do qual faço parte, foi selecionado para a Feira Miolo(s) 2018, um dos mais importantes eventos de publicações independentes do país, realizado pela editora Lote 42 e pela Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo/SP).

Entre editoras, artistas e outros coletivos (são cerca de 150 expositores), estaremos lá com nossos zines, artes gráficas e livros. Faremos inclusive o lançamento de uma coletânea de contos. Imperdível!

Visite nossa banca e conheça a literatura do Discórdia. O evento é gratuito, basta chegar e se perder entre os livros.

Sábado, 10 de novembro de 2018, das 11h às 23h
Local: Biblioteca Mário de Andrade
Rua da Consolação, 94, São Paulo (pertinho do metrô Anhangabaú)

Confirme sua presença no Facebook e convide seus amigos para o evento: Discórdia na Miolo(s) 2018

terça-feira, 30 de outubro de 2018

LEITURA DRAMÁTICA DE MINHA NOVA PEÇA

Clique na imagem para ampliá-la

Dia 6 de novembro, às 18h, minha peça Museu de Arte Efêmera de Lethe terá uma leitura dramática no Mezanino do Sesi SP (Av. Paulista, 1313). A direção é de Carlos Baldim, que selecionou a dedo um grande elenco.

Os ingressos são gratuitos e devem ser reservados com antecedência aqui:
http://inscricaoeventos.sesisp.org.br

O evento Portas Abertas é promovido pelo Núcleo de Dramaturgia do Sesi - British Council, com coordenação de Marici Salomão e César Baptista. Trata-se de um projeto incrível, do qual eu e mais onze dramaturgos fazemos parte desde o início do ano.

A leitura oferece a oportunidade de apresentar um texto em processo de finalização, que será debatido com o público.

Espero ver você lá. Garanta seus ingressos, prestigie o teatro brasileiro e participe do debate para compartilhar comigo impressões da leitura.

Sinopse da peça 
Museu de Arte Efêmera de Lethe

Zakhor está inconformada porque ninguém se lembra da criança que se afogou no rio. Ela é o estopim para que venham à tona histórias de outras personagens, que têm em comum a indiferença diante de uma tragédia. Zakhor faz de tudo para que as tragédias permaneçam lembradas na história da comunidade. Lethe, entretanto, oferece às vitimas o conforto das suas águas do esquecimento.

Aproveite a oportunidade para assistir também à leitura das 20h, da peça "Sentença", de Eduardo Aleixo e direção de Carolina Bianchi. Está primorosa.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

A IMPOSSIBILIDADE DE DIZER

Ao ler o esboço de uma peça de teatro que eu escrevia, minha esposa fez o seguinte comentário: você é artista, deve saber o que está fazendo. Hoje preciso dizer que não é bem assim. A poesia habita justamente um não sabido que compõe o discurso. Não saber – e não poder enunciar –, de certo modo, é o que torna a arte interessante e a diferencia do panfleto. Por isso defendo que os teóricos e críticos sustentem a potência do não sabido e a impossibilidade de dizer sobre, em vez de pretenderem esclarecer os trabalhos de arte como se pudessem esgotá-los. O mesmo vale para outros campos das humanidades.

Num ensaio recente intitulado O que é o ato de criação?, Giorgio Agamben comenta a conferência homônima que Gilles Deleuze proferiu em 1987. Deleuze falou da arte como resistência. Agamben, por sua vez, esmiúça a ideia, querendo entender em que medida uma criação pode também resistir e qual seria a natureza dessa resistência.

Ele começa por não associar a resistência a uma força externa, mas a uma potência inerente ao próprio ato criador. Fazendo uma arqueologia da potência desde Aristóteles, como é seu costume, Agamben insiste que toda obra conserva uma inoperosidade na forma de uma potência que não se realiza, resiste e se opõe à expressão. Essa resistência impede que a potência criativa se esgote no ato da criação. Ao mesmo tempo ela expõe a própria potência e a forma criada, de maneira que possamos apreciá-las, contemplando-as, ou seja, observando-as atentamente e sem pressa. O filósofo explica: “a grande poesia não diz apenas aquilo que diz, mas também o fato de que está dizendo, a potência e a impotência de dizê-lo”. Ela diz a si mesma e o impossível de dizer que a faz poesia.

Em outras palavras, é como se algo permanecesse irrealizado durante o ato de criação da obra de arte, e que essa resistência à realização pusesse em xeque tanto o ato quanto a própria obra. De maneira que a obra de arte jamais esteja totalmente exposta, explícita ou acessível pelo olhar, pelo discurso e pelo pensamento do público e até mesmo do artista.

A poesia, por sua vez, seria uma operação na linguagem que desativa o hábito e torna inoperantes funções comunicativas e informativas, abrindo-as a um possível novo uso. É essa sua inoperosidade que desarticula modos de fazer já estabelecidos e abre espaço para alternativas, reinvenções, intervenções.

Isso que permanece não realizado durante a criação poética põe em questão uma política da arte. Ao desativar modelos, destitui governos do olhar, do dizer e do pensar numa operação política que não se distingue de certa operação estética. Nas palavras de Agamben, “política e arte não são tarefas nem simplesmente ‘obras’: elas designam a dimensão na qual as operações linguísticas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e sociais são desativadas e contempladas como tais”.

Sua filosofia me ajuda a sobreviver nestes tempos de certezas, verdades e absolutismos morais, sociais, históricos etc.; tempos em que um lado é correto apenas porque seu oposto está errado. Ela aponta a importância ética de assumir alguma incerteza na estética e na política, que as mantém vivas e passíveis de transformação. A sabedoria que extravasa todo conhecimento de causa está em perceber que algo inexplicável, indizível e invisível reside em todo discurso, inclusive no que se pretende esclarecedor. Como podemos exercitar tal impossibilidade de dizer? Eu começaria por profanar o sujeito que diz. Uma estratégia seria, por exemplo, escutar o outro. Podemos também destituir o “eu” desse ranço identitário que o quer determinar. Por fim, poderíamos experimentar dar voz a um outro, o que é o fundamento de todo ato de criação. Tal exercício de partilha do sensível pode, com sorte, abrir lugar a alguma sabedoria que mereça ser dita.

Quando a dureza política e institucional impõe sua vontade de ordem, a criação poética pode devolver o gesto e a potência à vida. Não existe saber algum na verdade imposta pelo grito. Como bem notou Georges Didi-Huberman, historiador da arte que se destaca entre os intelectuais contemporâneos, “a certeza não tem a ver com o saber. É na medida em que a certeza é absoluta que se tende a dizê-la alucinada”.

Estamos vivendo um momento em que se fala demais. Um palavrório que pretende dizer tudo e revelar tudo. Se a política brutal insiste nesse discurso iluminado e verdadeiro, é preciso contrabalanceá-la com o incerto, o ambíguo e o paradoxal que pode haver na criação poética. Que nos sugere não afirmar nada em absoluto senão a necessidade urgente de questionamentos. É o que a resistência do ato criador tem a nos ensinar.

*Sobre a imagem que ilustra o texto: trabalho da exposição A infinita história das coisas ou o fim da tragédia do um, organizada por Sofia Borges na 33ª Bienal de São Paulo (2018).

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

LEIA UM CONTO DO MEU NOVO LIVRO

Meu conto “Bons tempos, aqueles” foi publicado na revista Originais Reprovados #12. É uma pequena amostra do que você encontra no livro Testemunho Ocular, recém-lançado pela editora Lamparina Luminosa.


Minha avó e três dos seus irmãos juram de pés juntos que era um índio, ele se perdera da tribo e foi dar na cidade. Seus outros cinco irmãos, menos preconceituosos, falam num negrinho, só não têm certeza da origem. Meus pais sorriem da anedota. Todos concordam apenas neste ponto: a árvore genealógica da família teve um ramo enxertado, e daquele tio-avô, de que tanto falam e pouco sabem, resta somente uma fotografia embaçada, sem cores; um homem enrugado, com lábios grossos e chapéu de linho, que podia ser tanto índio quanto negro. Restou também um nome, Jacó Bento de Lima, que não devia ser negro nem índio, mas era.

Falam da caridade do bisavô, que o adotara de imediato, ainda muito menino. Quantos anos? Ninguém sabe.

Calam-se sobre a morte trágica da bisavó, afogada no poço da fazenda.

Pensam na maldição que contaminou aquela água e a todos que beberam dela durante gerações. Sentem um arrepio.

Que fazenda era essa?

Virou cidade, não existe mais.

Contam, orgulhosos, que o bisavô apareceu certo dia com esse menino meio negro ou meio índio, botou no meio dos filhos, batizou com seu sobrenome. Calam sobre o fato de que, daquele dia em diante, a bisavó viveu amuada.

Onde foi parar esse homem?

A família ignora minhas impertinências.

Teve filhos? Onde estão meus primos índios ou meus primos negros?

Minha avó e seus irmãos se entreolham, meus pais pensam um instante. Calam-se.

Minha avó diz que, quando geava na fazenda, todos os irmãos corriam a acender tochas para proteger a plantação. Uma correria danada, eles se lembram muito bem.

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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

CONVITE PARA DEFESA DE TESE


 Eis que meu doutorado se aproxima do porto final, e a universidade pública estará aberta a todos que quiserem me acompanhar durante a defesa da tese intitulada "Profanação de uma imagem do mundo: Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão".

A banca se realizará na próxima quinta-feira, 4 de outubro, a partir das 14h no auditório do MAC USP Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1301).

Contaremos com a presença dos professores Drs. Celso Fernando Favaretto, Dália Rosenthal, Erika Alvarez Inforsato e Silvia Miranda Meira, além de minha orientadora profa. Dra. Eliane Dias de Castro. Que bons ventos soprem por nós!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

LER PARA CRER

Foto por Lamparina Luminosa

Entre as diversas sensações que a literatura pode provocar, uma das mais promissoras é o estranhamento. Digo promissora no sentido da experiência estética que desloca o leitor do seu lugar-comum, de maneira a terminar a leitura diferente de como a iniciou. Por vezes confundimos o estranho com o grotesco, o exagerado ou o explícito. Não é a isso que me refiro, mas ao estranhamento tão sutil que chega a ser difícil identificar. Como uma pecinha que não se encaixa no conjunto e gera um ruído. Apenas a escuta atenta é capaz de distingui-lo. No entanto, uma vez percebido, o ruído se transforma numa espécie de “punctum”, para usar o conceito que Roland Barthes criou ao analisar fotografias. Com isso quero dizer que aquele pormenor quase imperceptível, assim que notado, domina a cena, sendo impossível desconsiderá-lo. Ele escapa das nossas convicções e expectativas, incitando-nos a perguntar: por quê? Será isso mesmo? Como é possível?

Foto por Lamparina Luminosa

Tentei explorar essa sensação nos contos do livro Testemunho Ocular, publicado algumas semanas atrás. Ali, o estranhamento está quase sempre associado ao invisível, ao implícito, ao “assassinato do Real”, como dizia Jean Baudrillard. Minha aposta é produzir tensionamentos entre territórios bem delimitados, conhecidos e habitados. De maneira que o leitor encontre nesse atrito a possibilidade de criar junto com o livro, imaginando justamente as imagens que não estão dadas – elas são, no máximo, sugeridas.

É verdade que não antecipei a proposta. Ela foi surgindo na medida em que eu escrevia, e o resultado é um livro de literatura, não uma tese. Durante o processo de criação, quando percebi um fio condutor a atravessar os textos, reuni a coletânea sob o título de Testemunho Ocular, aludindo à condição da imagem como legitimadora de verdades.

Temos ao nosso redor uma lógica perigosa ganhando força política, pautada na certeza e na razão absolutas, opressoras, fascistas na medida em que denegam formas menores de existência. Minha resposta poética para isso é celebrar a ambiguidade, o paradoxo, a obscuridade.

Capa do livro
Testemunho Ocular venceu o concurso da editora Lamparina Luminosa em 2017, e o processo de edição durou cerca de um ano. A definição da capa foi especialmente trabalhosa. Afinal, como é possível escolher uma imagem para um livro que tenta colocar em questão a nossa dependência da visualidade? Nestes tempos em que somos filmados, produzidos e compartilhados a todo instante, qual imagem contrariaria a sua própria vocação de evidenciar, esclarecer e testemunhar?

Eu e Christian Piana, editor responsável pelo projeto gráfico, consideramos diversas alternativas, até enfim concordarmos que os urubus voando em círculos resolveriam a questão sem de fato solucioná-la por completo. Era fundamental que a cena não fosse explícita. As aves têm relação com um dos contos da coletânea, chamado Rapinagem, e à primeira vista parecem lindos passarinhos voando livres no céu. Lá de cima são capazes de testemunhar extermínios das mais variadas ordens, dos quais somos cúmplices.

O projeto editorial condiz com o conceito do livro, que é espelhado desde a epígrafe do início à que o encerra. Há também dois poemas e vinte textos em prosa. No centro se encontra um trecho de páginas pretas com letras em branco, que chamo carinhosamente de “ponto cego”, repleto de provocações, expressões corriqueiras revisitadas e jogos de palavras que tentam escapar dos seus sentidos imediatos.

Foto por Lamparina Luminosa

Se existe um lugar de sobrevivência da literatura neste oceano de esclarecimento em que estamos naufragados, atormentado por ondas de verborragia, realismos e certezas moralizantes, talvez seja a poética do incerto, do não dito, do desvio, do obscuro e do estranhamento que o contato com o diferente pode provocar. Talvez possamos abrir aí uma brecha por onde a ameaça escoe e onde apareçam formas de vida mais contemporâneas.

Gostou? Compre seu exemplar aqui: www.lamparinaluminosa.com

sábado, 15 de setembro de 2018

CRIME PERFEITO

The guest (2004), de Adriana Varejão

o que há de criminoso
no crime perfeito é
a sua perfeição, pois bem:
o assassinato do Real

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

ENTREVISTA SOBRE O TESTEMUNHO OCULAR

Concedi a entrevista abaixo ao jornalista e escritor Alex Xavier, que propôs questões sobre o processo criativo e outras um tanto inusitadas a respeito do recém-lançado Testemunho Ocular, meu novo livro de contos. Bateu uma curiosidade? Clique e encomende seu exemplar no site da Lamparina Luminosa.



O que justifica esses contos compartilharem um mesmo livro?
Os contos foram escritos ao longo de vários anos. Com o tempo, percebi que havia entre eles uma inquietação comum, uma espécie de estranhamento com relação às imagens e à visualidade. Foi nesse momento que optei por reuni-los e desenvolver um projeto gráfico compatível. O livro coloca em evidência esse meu interesse pelo inquietante e pelas imagens que, apesar de dominarem nosso dia a dia, são insuficientes em muitos quesitos.

Do que você abriu mão durante o processo do livro? (contos inteiros? ideias desconexas? um palavreado muito formal? seu sono?)
Alguns contos selecionados na primeira versão da coletânea foram excluídos, mas isso faz parte do processo editorial. Acho que não abri mão de muitas coisas. A editora respeitou minhas escolhas e colaborou bastante para a qualidade do livro, tanto gráfica quanto literária. Até mesmo o ano e meio que levou desde a seleção no concurso até a publicação foi bom, apesar de angustiante, porque permitiu que a poeira assentasse, detalhes pudessem ser revistos e as decisões fossem mais acertadas.

Cite uma sugestão de alguém que leu seu livro que mudou a forma como você enxergava o próprio trabalho?
Os amigos do coletivo de criação literária Discórdia leram uma das primeiras versões do livro e fizeram sugestões imprescindíveis. A mais radical talvez tenha sido do Filipe Souza Leão, que sugeriu uma redução de 50% do conto que, por coincidência (ou não?), se chama A Metade de Tudo. Foi quando percebi que, escrevendo menos, era possível dizer muito mais.

Quem (vivo ou morto, famoso ou não) você gostaria que lesse seu livro e comentasse (bem ou mal)?
Por mais que críticas negativas algumas vezes nos ensinem a escrever melhor, todo escritor prefere os comentários elogiosos. Não apenas pelo ego, que de qualquer maneira precisa ser rebaixado para produzir um bom texto, mas principalmente porque o trabalho de escrita é demorado e solitário. Quando o livro chega, após anos de gestação, uma acolhida gentil é sempre bem-vinda. Eu gostaria que Julio Cortázar lesse. Apesar de conhecer pouco da obra dele, tenho um fascínio que é também certo fetiche. O mesmo vale para o Murilo Rubião. Esses são famosos. Porém eu gostaria que muitos leitores comuns lessem e se inquietassem com as histórias, do mesmo jeito que eu me inquieto quando leio outros livros. Para mim, essa é a sensação mais interessante que a literatura pode provocar.

Quem dirigiria uma adaptação de seu livro (ou de um conto específico) para o cinema?
Sou péssimo com nomes de cineastas. Aliás, depois de pesquisar sobre problemas das imagens na arte e na literatura, a relação com o cinema ficou mais difícil. Talvez Wim Wenders fosse um bom diretor para a adaptação. Já o vi, em diversas ocasiões, questionar as imagens cinematográficas de um jeito que mostra certa proximidade com o Testemunho Ocular.

Mencione uma pessoa próxima que não gosta ou não entende sua prosa (e qual crítica essa pessoa costuma fazer).
Não faz muito tempo, minha esposa leu uma dramaturgia que eu estava escrevendo. O comentário foi: bom, você é artista, deve saber o que está fazendo. Ela se esforça para conhecer meus textos, mas eu sei que são muito diferentes do que gosta de ler. Essa distância é boa, no fim das contas, porque traz uma perspectiva diferente e me faz abrir os olhos para demais possibilidades.

Com qual personagem do seu livro sairia para jantar ou levaria para um mochilão pela América do Sul?
Eu tomaria um cappuccino com Lucia, que aparece no último conto, chamado Flashes. Para descobrir o motivo desse encontro, sugiro leia o livro. ;)

O livro Testemunho Ocular está disponível aqui: www.lamparinaluminosa.com

Entrevista publicada originalmente em: Medium / Alex Xavier
Siga o Medium do coletivo Discórdia.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A VIDA COMO A ARTE É

Cena de Empire (1964), de Andy Warhol

Andy Warhol é bastante conhecido pelas serigrafias de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Liz Taylor. Ele também retratou outros ícones da cultura norte-americana, tais como as latas de sopa Campbell’s e as caixas de esponja Brillo. Acontece que todos esses trabalhos são de um período inicial de sua carreira. Com o passar dos anos, o artista foi se interessando cada vez mais pelo cinema e, depois, pela televisão, produzindo em ambos os formatos. Filmes, por exemplo, são cerca de setenta e cinco. Talvez o mais emblemático seja Empire, de 1964, que ultrapassa oito horas de duração.

O enredo de Empire é mínimo: Warhol levou uma câmera até um prédio vizinho – uma janela do Rockefeller Center –, apontou-a para o Empire State e deu início à gravação, substituindo os rolos na medida em que acabavam, a cada trinta e cinco minutos. O resultado, para o espectador, pode ser tão entediante quanto o artista desejava; Warhol dizia adorar o tédio.

Difícil encontrar alguém com disposição de ver o filme inteiro. Por que Warhol o quis assim, afinal? Por que gravar oito horas de um prédio – estático, naturalmente –, se nada acontece? Por que produzir um filme quase impossível de ser assistido?

O primeiro ponto é que, apesar da inércia aparente, muita coisa acontece nesse retrato de um dos mais célebres edifícios de Nova York. As nuvens transitam no céu, o sol se põe, os refletores da fachada se acendem. Não bastasse isso, uma infinidade de ações tem lugar além do alcance visual do filme e, por consequência, dos nossos olhos: pessoas trabalham dentro e fora do Empire State, caminham nas ruas, nascem e morrem. Em outras palavras, a vida acontece ao mesmo tempo em que o filme roda.

Por mais fiel a ela que pretenda ser, o filme não é a vida que retrata, embora passe a fazer parte dela depois de ser produzido; trata-se de uma elaboração técnica disposta à apreciação estética do espectador. Por mais realista que se queira, Empire é uma conformação artística que se destaca do banal. É um “objeto de arte”, além de um objeto qualquer. Esse paradoxo nos leva a uma possível definição da arte, esteja ou não relacionada a um objeto material: um gesto poético dado à experiência estética que se distingue da vida comum.

Claro que toda tentativa de encerrar a arte numa definição absoluta está fadada ao fracasso. Nosso objetivo aqui é somente instaurar uma referência que possibilite pensar quais práticas ditas “artísticas” se enquadram ou não naquele quesito, e a partir daí elaborar conceitos críticos, comparativos, referenciais etc.

Se Empire apresenta certo realismo formal, notamos que esse sufixo “ismo” já denota imitação, criação ou fingimento, no sentido da ficção e da ilusão de que mesmo a arte realista não escapa. Quer dizer, ainda que o Empire State seja mostrado “tal como é”, o enredo é de natureza criativa, o registro é poético e momentâneo, e o retrato o mostra “tal como Warhol o quis”, conforme a sua perspectiva e o objetivo do seu projeto cinematográfico. Pois mesmo a arte realista é ainda uma elaboração que se distingue da “vida real”.

Essa ideia nos ajuda a olhar proposições mais contemporâneas, especialmente as de cunho relacional, e a nos perguntar o que detêm daquele modelo de arte e o que escapa a ele. Arte social, arte política, arte terapia etc. são cada vez “menos arte”, no sentido convencional, na medida em que se aproximam da vida comum. Sob o risco de se tornarem outra coisa, colocando-se em diferente registro de apreensão. Não digo isso num sentido conservador, como se a arte precisasse ser preservada de um jeito determinado; pelo contrário, talvez esse seja um risco promissor, se junto forem assumidas também as consequências do afastamento da “instituição Arte”.

Com o artifício do tédio e do realismo, o filme Empire nos convoca a pensar a rotina da metrópole, a falta de tempo, o vício no consumo de novidades e assim por diante. Sua lentidão incomoda porque nos desacostumamos a ela. Fomos educados a gostar dos filmes repletos de reviravoltas, adrenalina, personagens ou relacionamentos idealizados. A disposição que o filme de Warhol requer, entretanto, parece muito além do que podemos oferecer. Mesmo que se trate de uma celebridade encantadora como o Empire State.

Por conta desses tensionamentos entre o banal e a maneira como a arte o concebe, o gesto do artista retorna e nos convoca a rever a vida tal como ela é para nós, espectadores. Com sorte, cada um se põe a reinventar o próprio viver. A irreconciliabilidade entre o comum e o estetizado é o ponto de inflexão dessa arte contemporânea que pode de fato produzir transformações, deslocamentos e reconfigurações da vida, indicando como ela ainda pode vir a ser.

domingo, 19 de agosto de 2018

ESCREVER COMO QUEM DEPÕE AS ARMAS

Desembarque das tropas norte-americanas no Dia D (1944), de Robert Capa

Eu me aproprio de uma ideia de Jacques Lacan com intuito de transtorná-la. No Livro 11 dos seus seminários, em que trata dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, há um trecho sobre pintura. Para ser mais específico, refiro-me à afirmação de que o pintor convida o espectador a depor o olhar no quadro “como quem depõe as armas”. Lacan chama atenção para certo efeito pacificador da pintura, que se oferece como “pastagem para o olho”. Essa ideia não me interessa tanto quanto a oportunidade reversa sugerida pela própria frase que a concebe; penso que não se trataria de olhar passivamente, no sentido pejorativo da apatia, mas de abandonar as armas do combate previsível.

Quer dizer, é possível vivenciar a experiência estética diante de um quadro depondo todas as armas que temos para subjugá-lo, combatê-lo, ameaçá-lo? Ou, ainda, é possível abandonar os instrumentos que armam o olhar e que exigem do quadro uma correspondência às nossas expectativas? Tal desafio ao espectador deve ser também método de todo pintor: fazer imagens a partir de um desfazimento daquilo que entende por pintura. Criar a partir de uma desconstrução.

Dou essa volta toda para chegar à escrita, que pode ter aqui um ponto de interesse, e perguntar se o mesmo se aplicaria aos leitores e aos escritores: é possível depor as armas durante o embate com o texto? Negar as expectativas de como se gosta de ler ou de como já se acostumou a escrever? Depor os clichês, as formas convencionais, os meios e métodos pressupostos da “boa” escrita?

Nossa condição atual não cansa de mostrar que o bom e o bem são enrascadas, sempre prontos a oprimir o outro em função daquilo em que o eu – ou talvez alguns nós – acredita. Em suma, bondade tem endereço. Se o texto se apresenta adjetivado assim, nossas primeiras questões a ele deveriam ser: bom para quem? Por qual motivo, segundo quais parâmetros, conforme quais interesses?

Isso vale para a literatura de caráter experimental e, em certa medida, precisa valer também para tudo o que escrevemos no dia a dia, da mensagem de Whatsapp à tese de doutorado. Até que ponto estamos presos à norma? Quais potências do escrito são prejudicadas por ela? Por qual motivo não as depomos?

Existe um universo a ser combatido. Com as armas de sempre, porém, o resultado será conhecido, e a vitória será meramente ilusória; permaneceremos subjugados pelo senso comum.

Nesse sentido, Jacques Lacan liderou um ataque inesperado pelos flancos: escrevia sem o propósito de ser entendido. Alertava assim os demais psicanalistas para o cuidado de jamais compreenderem seus pacientes. Pois, uma vez compreendidos, o mistério da vida se desfaria num rótulo, numa fórmula, num diagnóstico, numa pressuposição ou num preconceito qualquer, reduzindo toda a potência daqueles ao cadáver ponto para o sepultamento.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

É OFICIAL: VEM AÍ MEU NOVO LIVRO

Testemunho Ocular, meu novo livro de contos, será lançado daqui duas semanas. \o/
Já deixo aqui o recado para você se programar. Data e local estão no pôster abaixo.
A gente se encontra lá!

ATUALIZAÇÃO: você já pode comprar seu exemplar no site da editora: www.lamparinaluminosa.com


domingo, 22 de julho de 2018

ARTE COM "A" MAIÚSCULO

Durante a disciplina de pós-graduação em História da Arte que ofereci no semestre anterior, surgiu o debate sobre a arte dos índios, dos loucos, dos escravos do Brasil colonial, entre outros marginalizados em relação à instituição Arte, assim mesmo, grafada com A maiúsculo. A questão é recorrente, sinal de sua atualidade. E cada vez mais eu acredito que não devemos colocar tudo sob o mesmo guarda-chuva, ou seja, não devemos chamar aquelas produções de Arte.

Explico por quê. Em primeiro lugar, existe a idealização dessa Arte. Como se a pintura feita por um louco, uma cerâmica marajoara, uma tatuagem tribal, por exemplo, se tornassem “melhores” caso consideradas Arte. Como se precisassem desse rótulo para terem suas qualidades legitimadas. Não ignoro que, em muitos casos, elas precisam mesmo apelar a tal recurso para serem valorizadas, ganharem atenção e, principalmente, escaparem de rótulos pejorativos. Minha proposta é, no entanto, mudar a condição do preconceito, e não ocultá-lo sob o poder raras vezes questionado da Arte.

Em segundo lugar há a consequência da rotulagem, que é o enquadramento daquelas produções num registro construído ao longo de séculos e que reitera a própria colonização cultural ainda ativa. Isso porque a palavra Arte evoca um modo de fazer, uma história, políticas e valores estéticos fundamentalmente europeus, hegemônicos, brancos, falocêntricos. Submetê-las a esse modelo acaba por ignorar que elas têm suas próprias redes de significados, propósitos e funções em suas respectivas culturas – tal como os modernistas fizeram com as estampas japonesas e as máscaras africanas, por exemplo. Ficamos, pois, tentando encontrar nelas valores estéticos da Arte, que na realidade não existem, exceto quando tal estética é aplicada de maneira selvagem, forçada, colonizadora.

O que nos leva ao terceiro problema da questão, que é a apropriação ou, pior ainda, o domínio e o governo que a Arte passa a exercer sobre tais criações. Porque essa instituição, operando num sistema capitalístico, com rapidez captura produções desviantes e as coloca sob sua tutela, mantendo certa linha narrativa, de circulação e, claro, de consumo.

Arthur Bispo do Rosário com seu manto. Foto de Walter Firmo

Poderíamos pensar em vários exemplos em que isso ocorre de maneira menos ou mais grave. Um bastante conhecido é o caso de Arthur Bispo do Rosário, internado ainda jovem como psicótico na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde viveu ignorado durante cinco décadas. Acontece que Bispo criava objetos com os materiais encontrados nas celas, no lixo ou fornecidos pelos profissionais que cuidavam dele. O principal era seu manto, todo bordado com linha desfiada de outros panos, que ele vestiria durante seu encontro com Deus.

Pode parecer tocante dizer que Bispo era um artista injustiçado, revolucionário, a fazer Arte no hospício. Fato é que a Arte o descobriu e logo o enquadrou no registro maiúsculo. Quem olha de fora pode mesmo se enganar, acreditando que ele fazia Arte. Porém suas criações estavam mais próximas de um rito, memorialístico ou religioso, e o fundamento era mais místico do que estético. O que para nós era Arte, para Bispo era uma espécie de fé, como ele mesmo explicou.

Seus objetos foram apropriados pelo mundo da Arte e hoje se encontram em museus, são pesquisados por teóricos, críticos e historiadores, escreve-se um tanto a respeito de seu valor artístico. Não faz muito tempo a Bienal de São Paulo reservou a eles um espaço privilegiado, onde os visitantes podiam, inclusive, ver o manto, exposto com destaque.

Arthur Bispo do Rosário faleceu no hospital psiquiátrico onde viveu quase toda a sua vida adulta e foi enterrado sem o manto que criou para encontrar-se com Deus, e que nada queria com o mundo da Arte. Esse é o tipo de sacrilégio que a Arte comete quando se apropria das produções que lhe escapavam.

Por isso tenho pensado que dar o rótulo de Arte a certas criações é um perigo, uma distorção e até mesmo uma violência contra elas e seus criadores. Se por um lado há o ideal salvacionista da Arte, de outro existe perversidade, contradições e jogos de poder. Não porque a Arte é ruim ou má, mas pelo simples motivo de que ela não é diferente de nenhum outro campo da produção humana, neste regime de subjetividade em que vivemos e que colonizou quase o mundo inteiro. A Arte não está livre dos defeitos gerais, que devem ser considerados toda vez que se aposta nela como prática política, econômica, social etc. Trata-se de um agente de conhecimento da humanidade como outro qualquer, que apenas se organiza de maneira diversa para dar forma a significados, sentidos, ideias, sentimentos, símbolos, expressões, entre tanto mais que a Arte mobiliza. Não se trata de negar a Arte, que tanto me encanta, mas de saber ver seus limites.

As criações dos índios, dos loucos, dos negros escravizados que citei no início do texto, entre muitas outras, não deveriam depender da legitimação da instituição Arte para ter valor. Não deveriam ser apropriadas e, assim, colonizadas.

O que precisamos, nós e eles, é valorizá-las em si mesmas, em seus contextos originais, nessa condição de minúsculas onde toda a sua força se realiza. Talvez assim percebamos que a tarefa, da nossa parte, é fadada ao fracasso: somente o louco sabe o que sua obra significa, somente o índio ou o escravo é capaz de acessar o potencial de cada criação sua dentro da própria cultura. Nós podemos tentar aproximações, podemos tentar compreender qualquer coisa, só que a Arte quase sempre não nos permite, ela dificulta a tarefa, uma vez que fomos capturados e educados por ela desde o berço.

Poderíamos chamá-las de arte, assim, grafada com a minúsculo? Ainda que seja um começo, a mim parece insuficiente. Por que não perguntar seus nomes originais, se é que existem? O que devemos exercer, em todo caso, é certa ética do cuidado com o outro. O que já é muito, dada as circunstâncias nada animadoras.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

MEU NOVO LIVRO ESTÁ CHEGANDO


Está confirmado o lançamento do meu novo livro de contos em São Paulo!
Será 18 de agosto na Tapera Taperá, a partir das 14h.
A livraria fica na avenida São Luís, 187, loja 29, pertinho do metrô República.

Junto comigo estarão outros três vencedores do concurso da editora Lamparina Luminosa (categorias poesia, HQ e autor regional). Os livros estão lindos. Então venham, aguardamos vocês!

quinta-feira, 5 de julho de 2018

SILÊNCIOS NA HISTÓRIA (DA ARTE)

No ano passado, tive a oportunidade de apresentar um trecho do meu doutorado no XII Encontro de História da Arte da Unicamp. Sob o título de Silêncios na História (da Arte): as pistas do Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão, essa apresentação acaba de ser publicada nos anais do evento e pode ser lida aqui.

Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão


Resumo do artigo: As histórias da humanidade se constituem daquilo que resta dos apagamentos, esquecimentos e silenciamentos do vivido. Mas pode a arte visual colocar em xeque as narrativas hegemônicas da humanidade e insurgir com versões, personagens e perspectivas outras? Romper com certa ordenação do passado e do presente, sugerir desvios e linhas de fuga, abrir fissuras na solidez dos fatos? Ajudaria a pensar o que há de ficcional na História? Daria a ver apagamentos que produzem regimes estético-políticos? Minha hipótese é que sim: alguns trabalhos de arte podem provocar as certezas, abalar as estruturas, ouvir os silêncios. Ela se fundamenta na obra de Adriana Varejão, em especial no seu Mapa de Lopo Homem II, onde aquelas questões emergem como pistas a serem perseguidas. É o caminho investigativo que proponho aqui: descobrir aonde o mapa nos leva com sua violentada imagem de mundo, suas ordens e subversões.

Palavras-chave: História da Arte; Teoria e Crítica de Arte; Arte Contemporânea; Estética e Política; Pintura.

Acesse a publicação completa do evento aqui: Atas do XII EHA Unicamp

segunda-feira, 2 de julho de 2018

OFICINA DE REDAÇÃO E APRIMORAMENTO DA ESCRITA


Vou oferecer uma oficina na FMU de São Paulo para quem deseja aprimorar a redação de textos em geral, seja no trabalho, na escola ou em qualquer outra situação. É um curso prático, livre, sem pré-requisitos. Vamos botar o português para se exercitar! Sejam bem-vindos e espalhem a novidade para os amigos.

Inscreva-se aqui: https://fmu.educaz.com.br/curso/oficina-de-redaco-e-aprimoramento-da-escrita/

Principais tópicos do curso:

– Fundamentos do texto bem escrito
– Forma e conteúdo
– Principais erros e como evitá-los
– Como transformar ideias em texto
 – A escrita no trabalho e na sala de aula
– A escrita informal
– Técnicas e truques para o dia a dia
– Esboçar, escrever e revisar o próprio texto
– Ferramentas e recursos do Word

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O SONHO IMPOSSÍVEL

Terminei na semana passada minha tese de doutorado em Teoria e Crítica de Arte. Naquela mesma noite, minha esposa perguntou: e agora, qual é o seu sonho? A princípio não tenho nenhum, respondi. Ela não acreditou e me contou uma série de sonhos seus. Para mim, eram desejos, dos quais também tenho vários. Os desejos são realizáveis. Por outro lado, penso no sonho como algo de natureza utópica e definitivamente impossível de realizar, sob pena de que o sonhador desperte no deserto do real. Na tese, influenciado pela filosofia de Alain Badiou, chamo isso de “ponto de impossível”.

O ponto de impossível do capitalismo é a igualdade, afirma Badiou. Ponto declarado como princípio embora, acaso realizado, acarrete na destruição do seu operador. O capitalismo jamais levará à igualdade social, uma vez que depende da desigualdade para continuar operante. Em outras palavras, o capitalismo continuará possível enquanto a igualdade social for impossível, embora sonhada, nem que seja apenas como discurso falacioso.

Pintura Suprematista (1915), de Kasimir Malevich
A mesma lógica, aplicada à história da arte, indicará como ponto de impossível o anacronismo. Georges Didi-Huberman tem se esforçado para tensionar as linhas do tempo, inspirado no legado de Aby Warburg, em especial no Atlas Mnemosyne. Ele chega mesmo a afirmar que só existe razão em pensar a história da arte, nos tempos atuais, como disciplina anacrônica. Entre as tensões e torções experimentadas pelo autor, notamos que a história continuará a exigir um fio de tempo e um espaço para suas narrativas. De fato, o século XX viu em diversas oportunidades declarações de fim da história da arte por conta de crises na historiografia, sem, entretanto, reinventar por completo os velhos métodos de narrar. Quando o anacronismo se realizar, não haverá história, mas outra coisa, possivelmente similar à literatura.

O ponto de impossível da política é o consenso, ao menos quando se pensa numa política apartada da barbárie. Na barbárie plena, o consenso é possível e serve de justificativa às violências; aliás, quase sempre é pelo consenso que se chega à barbárie. Por sua vez, a política depende do dissenso para existir enquanto lugar de trocas, de coletivização, de diferenciação. Qualquer contexto plenamente consensual é outra coisa que não política, ainda que esta pregue o consenso como comportamento de ordem, no limite até democrático. O consenso implicaria seu fim; a política sobrevive apenas na diferenciação.

Mais uma vez chegamos à arte, cujo ponto de impossível é a vida. Apesar de desejável, quando a arte abandonar sua elaboração poética e coincidir com a vida banal, deixará de existir. Ferreira Gullar usava o jargão de que a arte existe porque a vida não basta. De fato, quando a arte tentou enveredar pela funcionalidade, pela positividade ou pela objetividade, como em diversos aspectos da Bauhaus, por exemplo, tornou-se design, arquitetura, desenho industrial, comunicação. Quando se tornou ferramenta de regimes totalitários como o stalinista, o nazista ou o da china comunista de Mao Tsé-Tung, a arte tornou-se meio de comunicação que apenas reiterava ideias previamente estabelecidas pelo programa do governo.

Lygia Clark levou a arte à fronteira com a clínica, e sua Estruturação do Self confunde-se com metodologias terapêuticas. Joseph Beuys fez movimento semelhante na relação entre arte, educação e sociopolítica, misturando-se a associações de agricultores e criando modelos de universidade.

De alguma maneira, todos esses casos comprovam que o sonho modernista de estetização da vida nasceu fadado ao fracasso, ao menos no sentido de apontar um futuro para a arte. Seus resquícios no contemporâneo seguem o mesmo caminho. As artes comunitárias, por exemplo, ou mesmo as práticas artístico-terapêuticas tendem a fazer ruir o conceito europeu tradicional da arte. Não se trata de julgar o mérito de cada vertente, mas de constatar que o afastamento da estética na direção da vida comum desconfigura certo lugar da arte enquanto instituição, cujas consequências são ainda incertas.

De volta à pergunta de minha esposa, percebi que não tinha pensado a finalização da tese como realização de um sonho, mas de um desejo, e isso não me fazia menos feliz. Pelo contrário, eu me sentia pleno. O sonho, no caso, talvez fosse o conhecimento: como é impossível obtê-lo, a pesquisa não termina nunca, mesmo que tenha havido uma monografia, depois uma dissertação de mestrado e agora uma tese de doutorado, entre outras etapas da trajetória acadêmica.

Claro que cada um usa a palavra que preferir; longe de mim querer estragar os sonhos ou os desejos de ninguém, e muito menos determinar um ponto final sobre o assunto. Aliás, quanto mais estudo, mais tenho consciência do pouco que sei. Não digo isso apenas com objetivo de parodiar Sócrates, o qual “só sabia que nada sabia”, mas para afirmar que tal consciência nutre uma ética social e profissional.

De qualquer maneira, fico a pensar que o sonho precisa ter um ponto de impossível para que sua busca não cesse e a vida não perca o encanto com a sua realização. A busca é, afinal, a grande satisfação que jamais se satisfaz. É o sonho que mantém sua pulsação.

sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.