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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

TODO SONHO É REAL

Eis que um dia o velho Benedito desperta de sonhos intranquilos sem estar transformado em nada: continua o mesmo velho pacato do dia anterior. Cada vez mais gagá, segundo a esposa, e só. Mas o sonho foi especial, como não acontecia há tempos, disto não restam dúvidas: alguém morreria naquela noite, na festa do padroeiro São Joaquim. O velho voltara a sonhar seus “sonhos de dom”.

“Ele nunca errou unzinho que fosse”, afirmam os vizinhos. Suas antigas previsões ajudaram muita gente naquele povoado do “bom sertão”, que poderia ser qualquer um e, de fato, é. Zé do Gás, pelo jeito, escapou de uma explosão. Não sei quem escapou do agiota. Só que desta vez não haveria escapatória: a morte era certa. Apenas a identidade do morto causava dúvidas, pois no sonho o velho não pôde ver direito.

É assim que Filipe Souza Leão estabelece o conflito do seu livro de estreia. A cidade inteira logo fica sabendo do ocorrido, levado de um canto a outro na garupa da moto do fofoqueiro Isaías, onde também anda amarrado um porco barrão, encomenda da festa que todos aguardam com a ansiedade febril de quem não conhece melhor oportunidade de divertimento. Haveria barracas de jogos e comidas, três quadrilhas juninas, a banda de Severino da Zabumba e até um grupo de pífano vindo de Caruaru. A previsão da morte chegou bem a tempo de se somar às expectativas.

Resenha publicada originalmente na Revista Tinteiro n. 2 (jun. 2019, editora da UFPR).

Os nomes das personagens chamam atenção. Benedito, “bem dito” ou “bem falado”, é quem recebe a visão; Isaías, como o profeta, é quem a espalha aos quatro ventos. O padre Eugênio, que se recusa a cancelar os festejos porque com eles deseja superar a popularidade de seu antecessor, tem muito de eu e pouco de gênio, embora não pareça notar. Não deixará sua trama se abalar por um suposto presságio. Aliás, não bastasse o finado padre Guido ter confirmado os sonhos de Benedito como dom divino, desde a chegada de seu substituto o velho deixara de fazer previsões. Uma coincidência infeliz, como inúmeras outras que afligem a comunidade.

Apesar do diz-que-me-diz, o livro é curto, como se a porção maior da história fosse contada pelos não ditos, pelos silêncios, pelos olhares desconfiados dos personagens. O autor cita como referência o romance Bonsai, do chileno Alejandro Zambra, podado ao ponto de apresentar nada mais que o fundamental. Ainda assim vemos acontecer diversas quase mortes: briga de peixeira, pau de sebo, busca-pé, desmaio de susto ou curtido no álcool. Só não houve a apresentação dos bacamarteiros, cujo cancelamento foi anunciado de improviso no calor da hora com o objetivo de evitar perigos maiores.

“A reclamação foi grande, porque Bacamarte era e talvez ainda seja um dos poucos talentos daquele fim de mundo”. É com essa ironia, humor sem decoro e sotaque marcado que Filipe conta um causo digno de cordel, como tantos outros que ouvia, ainda criança, em sua terrinha natal. As gírias também oferecem uma musicalidade típica, e junto da paisagem nos põem a imaginar uma cidadezinha de ricas fabulações perdida na aridez do sertão.

A alegoria prossegue. As diferenças entre aquela realidade e qualquer outra do Brasil atual também. Existe em ambas uma tensão feita fumaça no ar, um gosto pela tragédia, uma tendência a resolver divergências no grito ou, pior, a criar uma condição caótica em que elas jamais se resolvem.

O livro se divide em quatro capítulos: manhã, tarde, noite e manhã de novo, ilustrados por xilogravuras de Jefferson Campos, que oferecem outra camada de visualidade ao texto. Eles são percorridos por uma espécie de desejo velado para que a morte anunciada de fato se realize, e que seja a morte de um outro, claro.

Quando a fogueira se amansa e o sol desperta da ressaca, o povo arma uma revolta. Uma romaria leva meia cidade à casa do velho Benedito, onde se espera tirar satisfação pela promessa não cumprida. A morte antecipada se revela, quem diria, sonho coletivo. E o fim, por ironia, é quase onírico, não fosse a dura realidade a se impor.

Filipe conta a historieta de um lugar distante no espaço e no tempo, como se lêssemos sobre as nossas próprias raízes. Acontece que esse passado persiste, resiste e reincide. De alguma maneira, apesar dos personagens, cenários e acontecimentos provincianos, o livro fala sobre o Brasil “do futuro” que os brasileiros pretendem ser. Fala de um país que não se considera gagá, mas visionário, tal como o seu Benedito, ainda que muitas vezes se “esqueça de limpar o próprio rabo” após exercer as atividades cotidianas.

O dia em que o velho voltou a sonhar, de Filipe Souza Leão (Lamparina Luminosa, 2018. Xilogravuras de Jefferson Campos).

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

BATE-PAPO SOBRE MEU NOVO LIVRO


Todos estão convidados para um bate-papo sobre literatura e sobre meu livro mais recente, o romance Diante dos meus olhos (editora Reformatório, 2019). Estarei na livraria Zaccara junto com o escritor e jornalista Alex Xavier, do coletivo Discórdia, e o artista e arquiteto Felipe Góes, autor da pintura que ilustra a capa do livro. Venha você também, é só chegar, puxar uma cadeira e participar da conversa!

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

FAZER-ME ÁGUA PARA SEUS OLHOS


Janmari não falava nem interagia com qualquer outra criança ou presença próxima. Era fascinado pela água, capaz de passar horas a ver o córrego que cortava os morros de Cévennes, na França, onde os aracnianos da rede de acolhimento se refugiavam. Entre eles se encontrava Fernand Deligny – poeta, educador e etólogo que o adotara. O córrego, o balde içado do poço, a caneca de chá. Dizia-se inclusive que Janmari era capaz de encontrar acessos ao lençol freático onde os “normais” viam apenas terra comum. Como ter certeza? Mais incrível – talvez de fato inacreditável se tomarmos como base a forma hegemônica como nos relacionamos hoje no Ocidente – é que de Janmari nada se cobrava. Tampouco se pretendia retirá-lo do seu viver autista e fazê-lo observar o mundo com olhos “sãos”. A ele era permitido ser, simplesmente, assim como às demais crianças autistas da morada. Imagino o sentimento do pai adotivo, jamais visto pelo menino, sua presença imperceptível. Deligny não podia nem deveria moldar Janmari aos seus modos, “incluí-lo na sociedade”, no sentido mais brutal dos termos. Ao contrário, ele apenas se perguntava como fazer-se água para os olhos do filho. A pergunta ecoa até hoje uma afinada ética das relações.

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A aldeia foi reconstruída numa ilha, em meio ao rio volumoso, num local conhecido como resguardo. O território pertencia aos indígenas do que hoje chamamos Colômbia, para quem a coca é uma planta sagrada, utilizada em rituais pelos homens da tribo para se reconectarem com a feminilidade. Foi dominado por traficantes durante muitos anos, retomado pelo governo e devolvido aos habitantes originais como terra demarcada. A ameaça recente é a pecuária. A aldeia foi instalada numa ilha. Chega-se a ela percorrendo estradinhas sinuosas na floresta, caminha-se um tanto até a beira do rio; é necessário estar acompanhado de um membro da tribo, que grita do alto da montanha para que alguém na outra margem libere a jangadinha. Os visitantes são puxados um a um através da correnteza, pois é essa a capacidade da embarcação. A aldeia é feita com tijolos, galinhas, teares, um fogão a lenha. A coca é cultivada entre as hortaliças. Quase tudo ali, desde os menores apetrechos até os maiores equipamentos, chegou cruzando o rio na jangadinha, puxado por uma corda pelos indígenas. O lugar é conhecido como resguardo.

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Um dos significados de errar é caminhar a esmo, sem objetivo, desinteressadamente. Erro pode ser aquele momento de deriva em que o motor do barco é desligado, as velas são recolhidas e o destino segue o pulso das águas. O erro pode ser uma falha, e a falha pode ser uma fissura, e a fissura na concretude da vida pode oferecer um espaço por onde olhar para fora ou pode deixar a luz entrar e afogar a todos os enclausurados em demasiado esclarecimento. Errar pode acarretar um desvio do lugar-comum; pode também ser uma alternativa ao acerto de contas. O erro pode ser o desencontro entre o dito e o compreendido, entre o sentido e o significado, entre o pretendido e o resultado; o que muitos chamam de poesia.

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Pai farmacêutico, mãe psicóloga, um esquizofrênico em busca de lugar. A partir do qual pudesse conhecer outros. Lugar que desse vontade de tirar o sapato, talvez até vontade de dormir. Lugar de onde pudesse falar, ainda que de si mesmo. Aí começa a história. Deambulou pelo tempo. Aonde chegou? Que lugar é esse? Como ter certeza? Sente que encontrou o lugar em meio a um grupo de teatro, que instaura um estado poético capaz de transformar qualquer espaço num palco para performances. Lugar fictício, talvez um dos mais potentes porque pode ser muitos lugares, pode deixar de ser num acender de luzes. Seu lugar é ali, que paradoxo!, onde por princípio não há vaga para nenhum eu bem determinado; lugar de criação, não lugar, sempre um novo lugar, utopia.

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Todo o ambiente é cuidado com rigor, as coisas retiradas e devolvidas. Essa construção meticulosa é fundamental para o acolhimento das crianças autistas ao mesmo tempo em que se desconstrói a maneira convencional de estar com elas. Por ausência de um sujeito que o limite, o corpo do autista se esparrama pelos arredores. Para ele, qualquer objeto fora do lugar pode ser traumático como ter um órgão removido. Habitar todo o território, vagar sem finalidade, livre da domesticação cultural, da linguagem, dos preceitos morais que estabelecem sociedade. Talvez a única liberdade possível seja a consciência do limite. Como a compreensão é também um confinamento, não podemos, na “normalidade”, estar realmente no mundo; habitamos um mundinho apropriado ao homenzinho-que-somos.

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Basta sua estranheza para contestar a ordem local. Como é possível oferecer hospitalidade ao estrangeiro? Como lidar com a diferença entre nós? O estrangeiro não aceita apenas ser incluído, submetendo-se à nossa cultura; ele vem para transformar. Fazer junto. Como acolhê-lo senão mudando a nós mesmos, assumindo a nossa estranheza, tornando-nos estrangeiros em nossa própria pátria? Muitos são interrogados numa língua que desconhecem e deportados de volta contra a vontade, como se houvesse possibilidade de retorno, como se a experiência de deslocamento não fosse ao seu modo irreversível. Mesmo se falar a língua mãe daquele que o acolhe, jamais será reconhecido como irmão. A maior proximidade é assumir o longínquo do outro, diz Jean Oury. Para Jacques Derrida, a hospitalidade absoluta seria possível apenas se suspendêssemos a linguagem, de maneira a não mais interrogar nem submeter o estrangeiro à autoridade da Lei. Utopia. Viveríamos assim, quem sabe, uma liberdade real, muito além dessa que nos obriga a conceituá-la para exercê-la e que, contraditoriamente, impõe as suas fronteiras.

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Aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para conhecer o coral Cidadãos Cantantes. Mal conseguia falar uma frasezinha sequer. Mas isso já tem muito tempo, foi no início de tudo. Distante dali, num outro país, quando uma criança autista realiza um novo gesto, ele é sinalizado num mapa, que mais parece uma partitura de movimentos do que um instrumento científico de localização. A criança pode ter devolvido à mesa um prato recém-lavado. Pode ter mexido nos próprios pés. Pode ter desprendido um gomo da laranja. Seu gesto inédito é chamado de acontecimento inaugural. O que se pode falar sobre a força de tamanha sutileza? Ouça-a: mal conseguia articular uma frasezinha; aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para aprender a cantar.

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Nos últimos dias de outubro tive o prazer de organizar o ciclo de encontros Linhas Erráticas junto com minhas companheiras do Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Sob o mote da errância e com mesas que derivaram pela arte, clínica, política, comum, filosofia, entre outros territórios, debatemos com convidados e participantes formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio da perambulação, desvios, aventuras, falhas e recusas à domesticação. Nesse ínterim, histórias, experiências e pensamentos vieram à tona. Alguns deles, que permanecem a flutuar num oceano sensível, tive vontade de compartilhar aqui.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

DIANTE DOS MEUS OLHOS


Meu terceiro livro está sendo publicado dez anos após o seu primeiro esboço. Nesse meio-tempo eu aprendi a lê-lo e a formular ideias sobre literatura. A mais recente surgiu durante a conversa com uma colega. Quando mencionei o lançamento do Diante dos meus olhos, ela comentou: deve ter uma mensagem bonita no final. Ora, por que eu deixaria mensagem assim?

Nem é o fato de ser bonita que me intrigou; a beleza não depende apenas do livro, mas também do gosto do leitor. Há romances terríveis e, para mim, belíssimos, como O som e a fúria, do William Faulkner. Outros, que o senso-comum considera lindos porque emotivos, por exemplo, me parecem horríveis, clichês, apelativos. Tudo isso para dizer que aquele comentário me pôs a pensar por causa da palavra “mensagem”.

Imagino que todo escritor empenhado em promover uma experiência estética mais condizente com as questões contemporâneas não espera comunicar uma mensagem com seus livros. Por vários motivos: a mensagem tem um significado determinado, pressuposto, que violenta o leitor, ainda que travestida de beleza. Mensagem é aquilo que um escritor gostaria que o leitor apreendesse do livro a qualquer preço, o que o impede, ou ao menos dificulta, de apreciá-lo como bem entender. A mensagem é fechada, dura, objetiva. Enquanto um livro promissor, na minha concepção, deve ser aberto, poroso, indeterminado; deve ser um convite para o leitor abstrair dele o que quiser, ainda que seja uma mensagem.

Prescrever uma mensagem no livro quase sempre implica também dar à história uma conotação moral. Ou seja, ditar uma regra, um comportamento, um entendimento verdadeiro e compatível com certo padrão hegemônico de ser.

Penso que um livro relevante para a literatura contemporânea faz o oposto: coloca a moral em questão, dá voz a modos de existência oprimidos pela hegemonia, apresenta contradições, opera por uma lógica paradoxal, provoca o entendimento para que tome formas até então desconhecidas.

Sem dúvida, uma história que reproduz nossas crenças traz conforto. Mas a que de fato nos toca a ponto de tensionar e transformar quase sempre é aquela que nos contradiz, que nos apresenta pontos de vista inusitados, que nos fala do que jamais foi dito, talvez por ser, de certo modo, proibido.

Albert Camus escreveu O estrangeiro, um romance que me marcou e que eu quis homenagear, como forma de agradecimento, no Diante dos meus olhos. O início é muito famoso: “Minha mãe morreu hoje, talvez ontem, não sei bem”. Trata-se de um personagem apático, que não se deixa tocar nem mesmo pela morte da mãe. E ele será julgado por isso, inclusive quando enfrentar um tribunal, acusado de matar um árabe numa praia da Argélia. Ele está diante do júri, respondendo por uma acusação de homicídio, e todos já o consideram culpado por antecipação, afinal foi incapaz de chorar a morte da própria mãe.

Daí advém outra ideia sobre literatura: para nos falar desse tipo de conflito mais complexo, o autor não pode se colocar acima de seu enredo ou de seus personagens. Não pode escrever “sobre” eles; não deve julgá-los pelo que deles pressupõe. Deve apenas criar uma condição favorável para que eles ganhem vida da maneira como quiserem; o escritor precisa limpar o terreno, retirando inclusive a si próprio, para que seus personagens possam habitá-lo.

É vital que ele preserve, nesse processo, um lugar para o não sabido. O escritor que pensa dominar tudo atenta contra a própria criação; se pretende ser exato, o torto jamais se apresentará, e com ele se vai o imprevisto, o indomado, o inusitado. Ao tentar estabelecer “o” sentido, como já vimos, ele passa por cima dos personagens, querendo mostrar que sabe mais, querendo ditar o destino deles; torna-se um ditador. E tenta justificar o que escreve. Com isso, menospreza seu leitor. Pressupõe que o leitor não é capaz de entender por si próprio, então retoma o assunto e explica, explicita, esclarece. Traz tudo à superfície da página; ilumina todo cantinho obscuro que poderia dar algum volume à história.

Para mim, a boa história é aquela que preserva o espaço do não narrado, do que é impossível de contar porque não cabe em palavras, do que está sem explicação aparente e assim provoca um estranhamento.

A “poética do estranhamento” é uma das que mais me interessam ao ler e ao escrever. Ela não se refere necessariamente ao que é absurdo por completo. O estranho é sutil. É por vezes um detalhe capaz de transformar uma cena familiar, confortável, banal num transtorno, numa perturbação, num incômodo porque algo ali parece fora de lugar. É um elemento comum que, um pouco deslocado do que dele se espera, inquieta o leitor.

É difícil programar esse efeito, como um artifício colocado de maneira proposital na narrativa. Meus textos bem planejados sempre me pareceram medíocres, jamais me dei bem com esse processo. Penso que, quando escrevo bem, não escrevo para tirar a história da cabeça e colocá-la no papel; escrevo para descobrir a história no próprio papel, perseguindo os rastros deixados pelos personagens, tropeçando nas armadilhas do enredo.

Michel Foucault fala disso numa entrevista sobre seu processo de escrita, publicada no Brasil sob o título de O belo perigo. Ele diz: “A escrita consiste em empreender uma tarefa graças à qual e ao final da qual poderei, para mim mesmo, encontrar alguma coisa que não tinha visto inicialmente”.

A escrita é uma prática da descoberta. Depois é possível se afastar, editar, ser leitor do próprio texto. Mas a princípio é preciso vivenciá-lo.

Isso tudo se apresentou enquanto eu trabalhava no Diante dos meus olhos. Aprendi enquanto escrevia, estudava, analisava meu próprio processo. Tive dez anos à disposição. A história chegou primeiro, é a fonte a partir da qual pude pensar criticamente estas ideias que compartilho agora. Eu disse lá no início que, com o tempo, aprendi a ler o meu próprio livro. Posso dizer que ele também me ensinou a escrevê-lo.

Gostou? O romance Diante dos meus olhos está à venda no site da editora Reformatório e em diversas livrarias físicas ou digitais.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

GEPPS & CPF SESC PROMOVEM CICLO DE ENCONTROS PARA DISCUTIR A EXPERIÊNCIA DA ERRÂNCIA NO CONTEMPORÂNEO

Outubro está cheio de alegrias. Uma delas, muito especial, é esse curso/evento que estou organizando desde o começo do ano junto com o GEPPS e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

Os encontros do ciclo Linhas erráticas pretendem discutir formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio de perambulações, desvios, aventuras, erros e recusas à domesticação.

O conceito, que se inspira no trabalho de Fernand Deligny com crianças e jovens “inadaptados”, se expande de maneiras variadas em mesas que derivam pela clínica, arte, coletivo, política, ética, filosofia, saúde, educação, entre as demais singularidades oferecidas pelos debatedores, trazendo à tona invenções e outros modos de existir, habitar, criar, cuidar e conviver.

Serão dois encontros, nos dias 29 e 30 de outubro e na companhia de muita gente bacana.
Clique aqui, confira a programação completa e faça sua inscrição!


Mesas de debate

29/10
14h às 16h
Experiências erráticas em Fernand Deligny e ressonâncias atuais
Com Mariana Louver Mendes e Marlon Miguel

16h15 às 18h15
Errâncias entre arte, estética e política
Com Eduardo A. A. Almeida e Dália Rosenthal

30/10
14h às 16h
Errâncias sismográficas: abalados, resistimos!
Com Gisele Dozono Asanuma e Juliano Pessanha

16h15 às 18h15
Criação à deriva: convivência e diferença em coletivos artísticos em São Paulo
Com Isabela Umbuzeiro Valent e Jayme Menezes

18h30 às 20h
Alinhavar jangadas - derivas acompanhadas
Com Eduardo A. A. Almeida, Gisele Do. Asanuma, Isabela U. Valent e Mariana L. Mendes

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

LANÇAMENTO DO LIVRO "DIANTE DOS MEUS OLHOS"


Meu terceiro livro vem aí! Será lançado em 16 de outubro na biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, pertinho dos metrôs República e Anhangabaú.

O evento terá uma roda de conversa e sessão de autógrafos. A entrada é gratuita, aberta ao público, basta chegar. Quero ver todo mundo lá!

O romance recebeu Menção Honrosa no Programa Nascente USP 2015 e no Prêmio Sesc de Literatura 2016. Foi selecionado no 2º Edital de Publicação de Livros da Cidade de SP e publicado pela Editora Reformatório.

Criei um evento de Facebook para manter você atualizado. Confirme sua presença!

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

FUTURO SOTERRADO

Clique nas imagens para ampliá-las.

Fui acordado na manhã de domingo por duas escavadeiras. O relógio no criado-mudo marcava 6h. Punham abaixo o extenso conjunto de casas conhecido como Vila Operária João Migliari, ou apenas vila do Tatuapé, no bairro de mesmo nome em São Paulo. As casinhas estavam ali desde a década de 1950, em estado de conservação impecável, atualmente abrigando comércios e escritórios. Elas mantinham viva certa história do crescimento da cidade, de quando as indústrias se instalavam nas zonas periféricas – como Brás e Mooca, hoje parte do “centro expandido” – e seus operários moravam em conjuntos habitacionais como aquele. História pouco conhecida mesmo entre os moradores do Tatuapé, embora bastasse a simpatia da vila para encantar a todos. Em cerca de três horas, as casinhas cor de rosa se tornaram pilhas de entulho e nuvens de pó. No lugar, possivelmente construirão mais um prédio muito alto e espelhado com varandas, câmeras de vigilância e vários andares de estacionamento.

Demorei a tomar coragem e olhar pela janela. A vila já me atiçava a curiosidade desde antes de eu me mudar para o prédio em frente. De início, entre os dois quarteirões repletos de casinhas geminadas havia uma rua estreita, ainda calçada com paralelepípedos, que oferecia a rara oportunidade de experimentar outra relação com o tempo na cidade neurótica, que se pretende veloz quando na verdade é puro congestionamento.

Um daqueles quarteirões já tinha sido demolido no início do ano pela construtora Porte, que planeja erguer duas torres no local. Um grupo de arquitetos, urbanistas e moradores requisitou o tombamento das casinhas remanescentes, sob o risco de que o lucro de uma incorporadora acarretasse um prejuízo imenso para a já preterida memória da cidade. Uma reunião com a prefeitura tinha sido agendada para a segunda-feira. Daí a demolição realizada às pressas nas primeiras horas da manhã do domingo, 1º de setembro, sem apoio da Companhia de Engenharia de Tráfego e com embargo por irregularidade na obra. Restou apenas um dos conjuntos de sobrados, que aguarda na justiça um acordo sobre a indenização para também vir abaixo. Em resumo, encerrou-se o assunto com autoritarismo, repercutindo o que se faz no restante do país. Quando predomina o descaso geral pela nossa cultura, há quem se sinta na razão de fazer o que bem entender.

Por infeliz coincidência, a demolição da vila operária se deu no mês em que é comemorado o 351º aniversário do bairro. E um ano após o incêndio que destruiu o nosso Museu Nacional, apenas mais um entre os inúmeros exemplos que poderíamos citar, e que me fazem sentir essa espécie de nostalgia por um futuro que já não pode se concretizar, por paradoxal que seja. Quando um resquício de passado desaba, junto se soterra um futuro.

Também como no caso do Museu Nacional, a demolição em São Paulo foi amplamente denunciada depois de ocorrida, mostrando que, quando muito, somos apenas reativos, e essa indignação tampouco vai longe.

Precisamos revisar nosso conceito de valor. Alguns com quem comentei sobre a demolição se referiram de imediato à quantidade de dinheiro envolvida na transação. O financeiro fala mais alto, em detrimento de tantos outros valores a serem considerados, por mesquinho que seja, por insignificante quando comparado à história perdida. Por quê?

Não sou contra a construção de prédios. Essa demanda da cidade é uma discussão complexa que atravessa planejamento urbano, desejos, especulação imobiliária e muito mais. Ao redor da vila demolida há pelo menos meia dúzia de obras em andamento. Minha questão é a construção naquele local e sob tal condição.

A Vila Operária João Migliari permitia ao caminhante sentir-se estrangeiro em sua própria cidade, que a cada dia se parece mais com uma cidade qualquer. Sentir-se estrangeiro significa estranhá-la, deixar que sua singularidade chame a atenção, desfaça a apatia da rotina e desperte sonhos esquecidos ao longo do tempo. Como uma espécie de inconsciente urbano que nos constitui e que só podemos conhecer caminhando por esses lugares, tal como os surrealistas propuseram em Paris quase um século atrás com suas deambulações. Ou mesmo antes, quando João do Rio denunciava com suas crônicas o “bota-abaixo” executado pelo prefeito Pereira Passos nos primeiros anos de 1900, no centro do Rio de Janeiro, com intuito de modernizá-lo, afastando a população pobre para as periferias.

No primeiro domingo de setembro de 2019, vivenciei o oposto do inconsciente urbano surrealista: despertei da vigília dentro de um pesadelo.

Gostaria que nós, enquanto cidadãos, assumíssemos a consciência, a responsabilidade e o poder que nos cabe. E que os usássemos para intimidar quem passa com escavadeiras sobre nossos patrimônios culturais. Por exemplo: conscientes, responsáveis e empoderados, jamais compraríamos os apartamentos ou salas comerciais que serão construídos sobre as ruínas da vila do Tatuapé. Pois cabe a nós não financiar esse tipo de atrocidade.

Também cabe a nós exigir a mudança nas leis ou a rapidez dos processos que protegem o patrimônio histórico caso um prédio de interesse público não se enquadre nos termos em vigor. Nosso interesse pela preservação do que resta deve pesar mais do que a poeira acumulada sobre a regulamentação, que precisa ser avivada com frequência. Isso serve tanto para prédios quanto para museus, florestas, universidades; tudo que vem sendo minado há tempos e que agora tem recebido as derradeiras pás de cal.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

ESTAREI NO IV SEMINÁRIO DE ESTÉTICA E CRÍTICA DE ARTE, NA USP


O Seminário de Estética e Crítica de Arte é organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Nesta quarta edição, falarei sobre "O caminhar na história da arte rumo a Paulo Nazareth: alguns pontos de parada e observação". A mesa se chama "Performance, corpo e cidade" e se realizará em 3/9, das 14h às 16h, na sala 104 A.

Para participar, basta chegar. Você encontra outras informações sobre o evento aqui: IV Seminário de Estética e Crítica de Arte

terça-feira, 20 de agosto de 2019

DIANTE DA IMAGEM

Faz um ano que publiquei o livro Testemunho ocular, formado por contos e dois poemas, além de alguns experimentos em páginas pretas que chamo de “ponto cego”. Selecionar os textos não foi difícil; desafio foi criar a capa, o que me fez quebrar a cabeça junto com o editor Christian Piana ao longo de mais ou menos vinte tentativas. Desde o início insisti que fossem urubus, e sem dúvida existem imagens tenebrosas deles, que chocariam o leitor potencial durante seu passeio entre as prateleiras da livraria. Além da referência direta ao conto Rapinagem, existe em todo o livro um sentimento de espreita, portanto a ideia viria a calhar. Enquanto nos convencíamos disso, experimentamos alternativas aos bichos. Nenhuma delas parecia tão pertinente. Por fim, acabamos com duas fotografias possíveis: a que foi escolhida e uma bem mais chamativa, que escancarava o que as aves têm de mais repugnante, mostrando um bando delas empoleirado numa árvore caquética. Esta renderia uma capa impactante, sem dúvida. Ainda assim fiquei com a outra, sugestiva em vez de chamativa, pois só então compreendi sua razão de ser: as histórias do livro compartilham um ponto comum, que é uma espécie de invisibilidade capaz de produzir tipos de perturbação. Pode ser um mistério, uma ocultação, um não dito. Para acompanhá-lo, a imagem da capa não poderia ser evidente, quer dizer, não poderia explicitar os urubus. Por isso escolhi aquela em que as aves aparecem ao longe, parecendo até passarinhos quaisquer ao leitor desatento. Na capa do Testemunho ocular, os urubus voam em círculos, porém não sabemos o que observam. Quem sabe a nós mesmos?


Essa relação da imagem com a literatura rende inúmeros caminhos de discussão, que vão muito além das capas dos livros. Nas histórias em quadrinhos, por exemplo, quase sempre texto e desenhos se complementam ao desenrolarem a narrativa. Não é necessário dizer que a roupa do Super-Homem é azul e vermelha, pois nós a vemos, mas os balões apresentam diálogos porque seria um tanto limitante – ou demasiado complexo – resolvê-los somente com desenhos.

Dia desses, durante uma oficina de escrita criativa, conversávamos sobre o impacto que uma imagem tem sobre o texto, no caso de livros adaptados para o cinema. Não à toa, sempre há leitor que se decepcione: enquanto o livro dá sugestões para que cada pessoa imagine os personagens conforme quiser, o cinema os apresenta de forma definitiva. Um verdadeiro paradoxo: o livro oferece a possibilidade de um imaginário prolífico, já o cinema, que detém o poder da imagem, reduz a imaginação a uma solução específica de ator, figurino, maquiagem etc. Depois de ver o filme, é difícil imaginar o personagem com rosto e trejeitos diferentes daqueles do ator que o interpretou. Em outras palavras, o predomínio da imagem decorre num achatamento do imaginário, ao menos no que diz respeito a esse tipo de caracterização. Não é o caso sempre, e com certeza há cineastas capazes de manter suas imagens abertas a muitos caminhos interpretativos, mas parte considerável dos filmes de grande circulação procura ser o mais explícita possível, sem preocupação com violentarem os olhos do espectador. Com isso, não me refiro a cenas de agressão ou de sexo – não se trata de uma questão moral –; preocupa-me mais a reiteração de clichês, essas violências menores que ferem profundamente a nossa subjetividade, como o soldado norte-americano, seja do exército ou sobre-humano, a salvar a população indefesa contra a ameaça estrangeira, para citar um exemplo banal entre tantos outros possíveis.

É também nesse sentido que a imagem sugestiva oferece um convite à imaginação, enquanto a evidente encerra toda uma potência de significados, avançando contra seu interlocutor, colonizando seu olhar, dominando e determinando suas capacidades sensíveis. São pontos pacíficos a exercerem um autoritarismo sobre o assunto ou o objeto. E, bem sabemos, de todo autoritarismo advém uma pobreza de relação com o outro, ou até mesmo um veto à experiência de alteridade.

Como é próprio das artes visuais subverter sentidos dados de antemão, levantando-se contra a domesticação do olhar, costumo perguntar aos artistas que entrevisto: como produzir imagens poéticas na atualidade, quando há um predomínio do imagético publicitário e dos clichês autobiográficos nas redes sociais, os quais reforçam uma lógica perversa na relação com a sensibilidade e com a subjetividade contemporâneas?

No livro Diante da imagem, o historiador da arte Georges Didi-Huberman explica que “se quisermos abrir a ‘caixa da representação’, devemos praticar nela uma dupla rachadura ao meio: rachar ao meio a simples noção de imagem e rachar ao meio a noção simples de lógica”. Daí ele propor a imagem poética como rasgadura, capaz de abrir uma fenda nos paradigmas visuais.

De volta à literatura de ficção, encontramos diversos casos de escritores que agregaram imagens a seus textos. Uma linha criativa que pode ser traçada desde os surrealistas Louis Aragon e André Breton, em cujos livros O camponês de Paris, de 1926, e Nadja, de 1928, respectivamente, há anúncios de jornal, fotografias, desenhos etc. Tal linha faz diversos desvios ao longo de um século, passando pelos livros de W. G. Sebald, por exemplo, até chegar aos mais recentes, como o romance Opisanie swiata, da nossa conterrânea Veronica Stigger. Diferentemente da ilustração, que pretende iluminar o texto, as imagens mais interessantes apresentadas por esses autores são aquelas que contrastam com ele, produzindo ruídos ou tensionamentos. Pois foi mote dos próprios surrealistas criar condições para estranhar o que se costuma ter como familiar.

Em outubro próximo, publicarei o romance Bem diante dos meus olhos, que retoma algumas questões do Testemunho ocular sob outras perspectivas. A capa ainda é surpresa e vem dando o que pensar. O livro conta a história de uma viagem em que pai e filho se perdem numa antiga vila onde é difícil acreditar até mesmo no que os olhos veem nitidamente. Essa problemática que atravessa os campos das artes visuais e da literatura me interessa de maneira especial. Quem sabe não retomamos o assunto em breve?

domingo, 18 de agosto de 2019

UM ANO DE TESTEMUNHO OCULAR


Hoje faz um ano que publiquei o Testemunho ocular, livro que me trouxe novos amigos, abriu portas no mercado editorial e me encorajou a oferecer oficinas de escrita, dialogar com outros autores por meio de resenhas críticas e escrever mais. De certo modo, foi o livro que me ofereceu um lugar no universo da literatura.

 
O lançamento foi um momento de muita alegria ao lado de amigos e familiares, além dos outros três autores selecionados comigo no concurso da editora Lamparina Luminosa. Algumas fotos do dia podem ser vistas clicando aqui.

Só tenho a agradecer ao carinho de todos que participaram desse processo, em especial a Christian Piana, Michele Navarro, Ana Rosa Carrara e Lolita Campani Beretta, que trabalharam diretamente na edição e fizeram com que meu livro ficasse ainda mais especial.

Os exemplares continuam à venda no site da editora, basta clicar aqui e encomendar o seu: Testemunho ocular 

Em breve, publicarei aqui no blog uma curiosidade sobre o processo de criação da capa do livro. E em outubro, meu primeiro romance, intitulado Bem diante dos meus olhos, será lançado também numa noite especial. Todos estão convidados. Aguarde as novidades!

segunda-feira, 22 de julho de 2019

CAMINHAR, OLHAR, TRANSFORMAR

O trabalho mais conhecido do artista brasileiro Paulo Nazareth é a caminhada realizada entre março de 2011 e outubro de 2012, que o levou de Minas Gerais aos Estados Unidos. Ela gerou uma série de narrativas contadas por meio de fotografias, relatos escritos, objetos, mapas, performances documentadas e entrevistas, reunidas sob o título de Notícias de América. “Narrativas errantes”, nos dizeres de Paola Berenstein Jacques, não apenas porque são o que resta a ser compartilhado da experiência da errância, mas também porque dão lugar a vozes menores, a personagens coadjuvantes e a cenários invisíveis nas narrativas hegemônicas.

Paulo Nazareth partiu com destino certo e com a proposição de percorrer a América Latina calçando apenas chinelos, acumulando a terra dos países nas rachaduras de sua pele, até que enfim lavasse os pés no rio Hudson, em Nova York. O trajeto, porém, foi se definindo pelos próprios passos, que o desenhavam num mapa imaginário de dimensão coincidente com a do território, como no famoso conto de Jorge Luis Borges intitulado Do rigor na ciência, e como se o artista pusesse em prática os versos de Antonio Machado, segundo os quais o caminho não existe por si só, ele se faz pelo caminhar.

sem título (da série Notícias de América, 2011-2012), de Paulo Nazareth

A viagem do brasileiro sugere muitas questões. A que nos interessa aqui, em especial, é a que dialoga com demais manifestações artísticas realizadas ao longo dos dois séculos precedentes, desde a flânerie parisiense ao Stalker italiano, passando pelas visitas dadaístas, as deambulações surrealistas e as derivas situacionistas. Proposições que transformaram o olhar na medida em que fizeram da errância uma forma de experiência estética. Essas transformações também trouxeram consigo maneiras outras de dizer e de pensar, uma vez que se caminha como o camelo – animal que, segundo Henry David Thoreau, rumina enquanto avança. Trata-se de caminhar, talvez, em busca do que o próprio intelectual norte-americano chamou de “pensamento selvagem”: incivilizado, livre, indomado.

O encontro com outras pessoas e outras culturas pelo caminho fez Paulo Nazareth olhar diferente inclusive para si mesmo, percebendo a própria identidade se transformar. “Em minha mestiçagem me faço”, disse ele, cuja ascendência negra, latino-americana, indígena e italiana veio à tona e o fez sentir-se mais negro quando se aproximava de um índio, mais índio quando comparado a um latino e assim por diante. Revelando um “corpo que é muito e pouco negro, muito e pouco índio, muito e pouco branco, a depender do lugar onde se situa, sempre provisoriamente”, como escreveu Moacir dos Anjos. Pois não seria esse o tônus do corpo brasileiro, mestiço, que muda a depender do lugar e de com quem se encontra? Legítimo exemplo do “eu” que se forma a partir das diferenças oriundas na relação com o outro, ou com muitos outros, como é o nosso caso; princípio fundamental de psicanálises e filosofias contemporâneas, desde Donald Winnicott e Jacques Lacan a Gilles Deleuze e Félix Guattari, para citar alguns.

“O estrangeiro tem que deixar a terra dos pais, a casa, a memória. Se mesmo a mais tênue raiz o detivesse – um estremecimento de saudade que fosse –, tornaria a cair no antigo vício da identidade que se espelha em si mesma”, propõe Mauro Maldonato, para quem a errância se faz rumo ao aberto, ao deserto, inclusive a errância do pensamento.

Thoreau, por sua vez, não via sentido em caminhar num jardim ou numa alameda urbana; para ele, a “arte de caminhar” consistia em se abrir aos bosques e neles se abandonar. Perder-se propositadamente no selvagem, de modo a desorientar sua domesticação.

Pois é somente esse grau de abertura que possibilita a Paulo Nazareth questionar a própria identidade. Para outrar-se, ou seja, para se fazer estrangeiro de si, não basta vontade própria. É preciso caminhar na direção do outro e encontrá-lo, abrir os olhos para discernir “o vulto do Outro”, que para Maldonato é quem nos remete à nossa própria estranheza, fazendo-nos perceber diferentes e nos sugerindo valorizar essa diferença tão constitutiva.

O olhar transformado ao longo da errância revela que a condição de estrangeiro não deveria ser escondida, menosprezada nem deportada; é na verdade um privilégio à disposição daquele capaz de se desfazer de sua própria territorialidade tal como a terra que se desfez dos pés de Paulo Nazareth nas águas do Hudson, desocupando as fendas de uma pele ainda porosa porque viva.

Ao longo da história da arte, a experiência do caminhar tomado como prática estética nos aproxima de questões atuais de cada época em que se realizou. Reside aí uma forma de furar fronteiras, expandir limites, conhecer pontos de vista necessários diante de aventuras hoje tão programadas pela lógica do consumo. Errar, ao contrário, requer desviar do trajeto preparado com antecedência, evadir a zona de conforto, aprender a saudar o outro que se encontra no caminho. É pelo desvio que as invisibilidades se apresentam. É por ele que deparamos com o imprevisível e vivemos para depois termos o que narrar.

Clique na imagem para ver a publicação original no Correio Popular.

sábado, 22 de junho de 2019

EMOÇÃO ESTÉTICA


Edgar Morin entra pela plateia, não pelo palco, e de imediato começam os aplausos. O teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, está lotado. O intelectual francês completará noventa e oito anos de idade daqui vinte dias. Pessoas de várias gerações se levantam e o aplaudem de pé durante um longo tempo. Emocionado, ele acena de volta. Então a sua emoção contagia a todos.

Li Morin pela primeira vez durante a faculdade de comunicação. Dois livros seus, na época, foram os que mais me marcaram, e os tenho ainda hoje. Falam sobre cultura de massas no século XX, “espírito do tempo”, indústria cultural e as diversas crises socioculturais dos anos 1960 e 1970. Entre o mestrado e o doutorado, interessei-me por suas ideias sobre o pensamento complexo, em especial enquanto método de pesquisa. Li trechos de seus diários já publicados e estou curioso a respeito de A aventura do método, que deve sair ainda este ano. Tenho certeza de que a maioria do público presente nessa conferência oferecida por Morin no último 18 de junho tem também alguma relação intelectual e afetiva com a sua extensa obra, que soma mais de trinta livros sobre sociologia, epistemologia, educação, filosofia, entre outros assuntos relacionados com o conhecimento.

Após uma breve apresentação de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, Morin sobe ao palco. Tira o relógio do pulso e o deposita no atril. Fala de pé ao longo de quase uma hora, a princípio em português, depois num francês gesticulado, vivaz. Quase não recorre às anotações.

Seu argumento é um tanto simples: a emoção estética, conforme explica, pode ser experimentada por qualquer pessoa em situações não premeditadas, como ao contemplar uma paisagem ou encontrar-se com um conhecido. Não se trata de uma exclusividade das artes, mas de uma qualidade poética da vida. Ela também independe de cultura, etnia ou classe socioeconômica, sendo natural a todos.

As artes, por sua vez, suscitam tais emoções, que servem à sua comunicação, ao encantamento ou à inquietude. Segundo Morin, além do caráter afetivo, a emoção estética provinda das artes tem também uma força cognitiva. Isso significa que o contato com a literatura, a música, o teatro etc. pode resultar num conhecimento acerca da humanidade, do mundo e da vida em geral; um conhecimento específico que devemos valorizar tanto por sua singularidade quanto por sua potência.

Ao lermos um romance de Dostoievski, por exemplo, podemos conhecer a Rússia de sua época de maneira diversa – e não menos verdadeira – do que ao ler uma análise histórica de cunho científico. Ao ouvirmos um concerto de Schubert, é possível reviver os dramas do músico e de seu contexto. Ao assistirmos ao Marlon Brando em O poderoso chefão, é possível nos compadecer por um criminoso violento que é também um devotado pai de família, e assim apreender que as contradições e os paradoxos do ser humano são muito mais complexos do que os estereótipos, os preconceitos, as polarizações que empobrecem o pensamento e afastam as pessoas.

Com o mundo em constante compartimentação, faz-se necessário criar vínculos e estabelecer conexões. Porém as ditas “bolhas culturais” que habitamos – agrupamentos formados segundo familiaridades, afinidades ou interesses comuns – oferecem poucas surpresas ou situações inesperadas, além de nos isolarem da rica diversidade da vida, como se assim nos protegessem.

Em contrapartida, as artes tendem a nos colocar em contato com o diferente, o inusitado, o estranho, e com eles precisamos nos reaver. Acho bonito o sentido não literal desse termo, reaver, que tem menos o caráter de posse do que o de relação e implica um trabalho de lidar com o outro, vê-lo de novo e vê-lo com cuidado, e procurar maneiras de com ele fazer as pazes, gostando ou não, concordando ou divergindo, mas o respeitando, reconhecendo a legitimidade da sua diferença e assegurando o seu direito de ser como desejar. Daí a impossibilidade de separar estética e política.

Assim como a poesia advém do esforço de fazer as palavras abandonarem seus sentidos prosaicos para assumirem outros singulares, a experiência estética é essa força que nos arranca da banalidade e confere à nossa existência uma qualidade poética. Tamanho deslocamento pode ser tão maravilhoso quanto terrificante; não à toa as artes muitas vezes incomodam, ferem valores morais, desconstroem formas de ver, de pensar e de dizer. Lidar com elas é tão necessário quanto lidar com quaisquer emoções. Precisamos a todo o momento nos reaver com as artes. A experiência estética é, assim, um aprendizado constante. É também um aprendizado daquilo que só pode ser apreendido por meio da estética.

Edgar Morin sabe disso muito bem. Perto de completar um século de vida, continua a pesquisar, conhecer, dialogar e se abrir à música, à literatura, às artes visuais, à fotografia, ao cinema, ao teatro etc. Justamente por isso parece tão vivo enquanto palestra acerca dessa cultura, que chama de humanista porque apenas o homem é capaz de produzi-la e porque, com ela, pode-se ver além da própria humanidade.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

POTÊNCIAS DO COLETIVO

Tenho o privilégio de compor dois grupos diferentes entre si e com muitas qualidades em comum. A principal delas talvez seja a maneira como se organizam, conforme a disponibilidade de cada pessoa em cada momento e em cada projeto. Refiro-me ao coletivo de criação literária Discórdia e ao GEPPS – Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível.

7.000 carvalhos (1982), de Joseph Beuys

O primeiro se formou ao término do Curso Livre de Preparação do Escritor, oferecido pela Casa das Rosas, em São Paulo. Após quase um ano se encontrando duas vezes por semana, parte da turma decidiu que não bastava; criamos então um grupo de trabalho movido pela amizade, colaboração e desejo comum. Adotamos o nome Discórdia, que diz muito sobre o funcionamento do coletivo: trata-se de um espaço em que o consenso interessa bem menos do que o dissenso, ou seja, somos unidos pelas diferenças. Pois são elas que impulsionam o motor da criatividade e possibilitam realizar ações tão variadas.

O coletivo Discórdia me trouxe a oportunidade de participar de feiras de literatura; organizar saraus e lançamentos de livros; criar publicações conjuntas; explorar o universo das produções independentes; ler, comentar e acompanhar passo a passo os projetos dos colegas; ter meus textos criticados por eles; conhecer pessoas e lugares; ministrar oficinas; divulgar ideias; administrar redes sociais e compartilhar opiniões, sonhos e risadas.

Nossos interesses são vários: zines, cartuns, humor, poesia, ficção científica, ensaios, prosas de diferentes gêneros e formatos, colagens, cartazes, entre outros. Essa aparente incompatibilidade poderia ser um empecilho, como acontece com associações que ainda prezam pela tediosa homogeneidade; no caso do Discórdia, é ela que torna o movimento possível.

Certa vez fomos instados a diferenciar grupo de artistas e coletivo artístico. Percebemos que coletivo, mais do que o mero trabalho em equipe, é uma forma de estar juntos, compartilhar uma comunidade, participar de algo vivo e complexo, que é o encontro com o outro. É generosidade, abertura, interesse. A partir da nossa experiência pudemos afirmar que o coletivo não é um agrupamento de autores, mas um espaço comum em que as individualidades se dissolvem e se confundem para que alguma criação possa acontecer. O coletivo Discórdia é uma oportunidade para discordar e permanecer unidos, tensionar limites estético-políticos e resistir às opressões, produzindo por meio da diversidade que, no fim das contas, é feita das potências de cada integrante dispostas numa relação ética.

O GEPPS, por sua vez, nasceu como um grupo de orientação de pós-graduação que num determinado momento se emancipou. É composto por pesquisadores com formações diversas: artistas, escritores, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, produtores culturais e historiadores, teóricos e críticos de arte decididos a elaborar outras formas de relação, atuação e funcionamento. Somos atravessados por inquietudes que apontam para temas como: poéticas e políticas do sensível; experiências na interface entre arte e produção da saúde; aspectos da experiência no contemporâneo; teoria, curadoria e crítica de arte; processos escriturais; ética, estética e política; clínica; produção de subjetividade; linguagens e poéticas artísticas; territórios; memórias, histórias e narrativas; formas de emancipação.

Diante de políticas que avançam sob a racionalidade neoliberal, em que territórios – geográficos, científicos, subjetivos, entre tantos outros – são cada vez mais disputados, prevalecendo a lógica da posse, da acumulação e da concorrência generalizada, propomos inventar espaços para experimentar modos de pesquisa e de produção de conhecimento pautados em outras perspectivas. Criações singulares que emergem de uma lógica transdisciplinar, em que as composições de campos distintos parecem mais urgentes do que os especialismos que pretendem salvaguardar territórios do saber e da ciência. Partilhas tecidas como artifícios de insurgência, convocando modos de pensar e de se posicionar criticamente diante de questões atuais.

No GEPPS também compartilhamos sonhos, e a potência de sonhar coletivamente é tão forte que quase podemos agarrá-los com as mãos. Ao longo dos anos aprendemos a produzir juntos, desfazendo a autoria individualista; abandonamos certezas; criamos textos, cursos e projetos de intervenção; colaboramos com mobilizações políticas em defesa da universidade; organizamos eventos; sustentamos grupos de estudo; encubamos desejos ainda informes; negociamos responsabilidades e apoiamos uns aos outros em nossos projetos pessoais.

Compor grupos assim é um privilégio raro, ainda mais por eles tentarem escapar de uma tendência à institucionalização. Esse desvio não é simples, assim como não é simples sustentar lugares de troca e de criação que não sejam baseados na obrigação, na subordinação ou na falta de opção. Lugares horizontalizados, que não dependam da imposição hierárquica para operarem e onde cada integrante tenha o espaço que deseja e do qual pode cuidar. Onde a força do trabalho coletivo ganhe corpo, pautada no respeito e no propósito de estar junto, fazer junto, aprender com o outro e colaborar com todos sem intenções mesquinhas.

Uma aproximação com tal qualidade entre pessoas é, por si só, uma forma de recusa às opressões que infelizmente modelam grande parte das relações sociais, organizacionais, empresariais etc. É também uma forma de realizar o que, sozinho, seria impossível.

Cada vez mais precisamos abrir os acontecimentos e observá-los sob diferentes escalas e ângulos para combater a naturalização das máquinas de governança que achatam formas e homogeneízam modos de fazer, de pensar, de dizer e de se movimentar, aprisionando a vida.

Com a cultura e a educação brasileiras ameaçadas, a potência desses coletivos constitui um lugar de proteção, uma oportunidade de partilha de certo sensível fragilizado diante da racionalidade dominante e, sem dúvida, uma preciosa forma de sobrevivência.

terça-feira, 30 de abril de 2019

EDUCAÇÃO DESVIANTE

Vamos (re)descobrindo Fernand Deligny aos poucos, como uma vida retirada de sob os escombros da educação. No Brasil, temos dois livros traduzidos nos últimos anos, publicados pela n-1 edições. Alguns trabalhos estéticos de sua autoria ou em referência a Deligny fora exibidos nas Bienais de São Paulo em 2012 e 2014. Sua experiência na França desde meados do século passado com pacientes psiquiátricos, jovens inadaptados e crianças autistas é fundamental ao debate de hoje sobre escolas militares, diminuição da maioridade penal e cortes de investimento em programas da interface arte-saúde, entre outros endurecimentos socioculturais que demandam nossa resistência.

O livro intitulado O aracniano e outros textos chegou por aqui em 2015 e, como o título sugere, reúne quinze ensaios de Deligny relacionados, em especial, à sua experiência-limite em Cévennes, no centro-sul da França, onde montou residência para acolher e conviver com crianças autistas.

Acabo de ler Os vagabundos eficazes, segundo livro traduzido pela n-1 e publicado aqui no ano passado, setenta e dois anos após a edição original. É parte da primeira produção do educador e trata, basicamente, da sua atuação como diretor do Centro de Observação e de Triagem (COT) da região do Norte, onde recebia jovens delinquentes à espera de decisão judicial. Com um misto de revolta, ousadia, convocação social, crítica, coloquialismo, método e esperança, o autor debate a qualidade das medidas reeducativas em voga à época.

Jovem com centáurea (1890), de Vincent Van Gogh
São jovens com histórias diversas reunidos sob o estigma de “inadaptados”: anormais, desviantes, com transtornos de caráter, abortos sociais, vadios, miseráveis, ralé ou apenas “difíceis”, que são levados ao centro por autoridades. Espera-se que ali sejam punidos, transformados, talvez simplesmente ocultados, porém Deligny coloca isso tudo em questão, a começar pela moral que pretende determinar a forma de vida dessa juventude, acarretando em sofrimentos das mais diversas ordens.

“A correção moral”, acusa ele. “Como se as crianças tivessem em algum lugar um pedaço de não-sei-quê, direito em uma, torto em outras, e que poderia ser modelado vergando-lhes as costas a golpes de exemplos ou dando-lhes bolachas amanteigadas nos dias de visita ou de grande festa”.

A isso Deligny contrapõe uma ética do cuidado; preocupa-se menos com a integração dos jovens a um sistema ávido por explorá-los do que com manter viva neles certa rebeldia – essa “improvável ousadia de manifestar transtornos de comportamento”.

Sabendo que educadores bem orientados por instituições tradicionais “regurgitam todas as formas educativas às quais eles próprios foram submetidos”, Deligny faz uma escolha inusitada: recruta pessoal não qualificado nas periferias próximas. Pessoas que, até então, registravam queixas contra os delinquentes do COT e os queriam distante. Convoca, assim, uma responsabilidade comunitária sobre aqueles jovens, desmontando com isso a lógica da mera exclusão/inclusão social.

São os operários, artistas e revolucionários mencionados no subtítulo do livro, “donos de uma moral completamente desarticulada”. Vagabundos eficazes não porque fazem cumprir normas impostas verticalmente, mas porque, tão inadaptados quanto os jovens de que cuidam, são atentos ao contexto e capazes de criar circunstâncias para o convívio horizontalizado. Apenas daí é possível obter algum pertencimento social.

Mais interessante do que os breves trechos iniciais e finais do livro é, sem dúvida, o longo Diário de Bordo que os separa, escrito entre janeiro de 1945 e maio de 1946, no qual o autor narra uma porção de acontecimentos vivenciados no COT. É o seu olhar perspicaz e a sua elaboração poética que geram um pensamento estético e político acerca da educação.

Chama atenção o lugar que reserva aos artistas entre os seus monitores. Também não se trata de profissionais bem cultivados no meio, mas daqueles cidadãos desequilibrados que, como Pestalozzi, Rimbaud e Van Gogh, estão “em busca de uma moral que não seja uma impressão morta”. Pessoas cuja vida é marcada pela inquietude e recusa à domesticação, que canalizam essas forças para a concepção de uma obra marcante – revolucionária no melhor sentido do termo, pois livre da romantização posteriormente associada a ela. Artistas que têm, no fazer cotidiano, a resistência e a insurgência. E que valorizam, incentivam e dão lugar às ousadias que escapam do papel na direção da vida, preservando a espontaneidade própria da infância saudável.

Deligny obteve resultados positivos, e seus métodos eram permissivos com aqueles a quem os demais cidadãos desejavam punições severas. Na contramão da brutalidade social que desejava encarcerá-los, desenvolveu um trabalho para ensinar os jovens a viver, não a morrer. Entretanto, destreza profissional era, e por vezes ainda é, mostrar às pessoas o que elas esperam ver, não uma perspectiva nova, corajosa e melhor sob vários aspectos.

Apesar do inédito sucesso, em especial quando comparado a casas de detenção convencionais, o COT foi fechado em 1946 e teve todos os seus educadores dispensados por “burocratas pequeno-autoridades” que, na maioria, jamais puseram os pés lá. Falou-se que Deligny comandava “experimentação sociológica, não reeducação”. Incomodava-os saber que o centro era um pedaço do mundo comum, não uma heterotópica “incubadora artificial coletiva” em que prematuros sociais viviam sob rígida disciplina. A máquina de sofrimento não podia aceitar caminho desviante.

terça-feira, 23 de abril de 2019

E-BOOK GRATUITO SÓ ATÉ DOMINGO

Para celebrar o Dia Mundial do Livro, a versão digital da minha primeira publicação está disponível para download gratuito na Amazon até domingo (28 de abril). É só clicar e começar a ler no computador, celular ou Kindle: Por que a Lua brilha

Baixe o seu agora mesmo e divulgue para amigos e inimigos. ;)

Veja o que já se disse sobre o meu livro Por que a Lua brilha:

O conto é uma ficção disfarçada de ensaio científico. Em que o autor investiga a relação entre os seres humanos e os fenômenos luminosos da Lua, com intenção de avaliar as implicações culturais do projeto de Lei que visa apagá-la.

Em Por que a Lua brilha, Eduardo A. A. Almeida inventou uma realidade – não tão alternativa assim – em que os homens exploram a vida de outros seres para o próprio bem.

Apesar do caráter fantástico, o livro possui diversas referências à política e a instituições científicas que legitimaram ou ainda legitimam comportamentos autoritários, opressivos e fascistas.

Com o subterfúgio da forma ensaística, o escritor coloca em questão o poder que a própria linguagem tem de produzir verdades, por mais absurdas que possam parecer. Denuncia também o argumento intelectual científico que influencia o comportamento das pessoas com o pretexto de oferecer informações verídicas ou de formar opiniões incontestáveis.

Sua distopia parece cada vez mais factível de se realizar no mundo atual, em que se banalizam os métodos sórdidos do Neoliberalismo, o terrorismo, os levantes militares, a perseguição e a cegueira religiosas, o racismo, o machismo, o ódio pelo diferente, entre outras violências enraizadas, incorporadas, instituídas e legitimadas.

Trata-se de um livro provocante, que nos faz questionar as nossas próprias maneiras de pensar, fazer e dizer a realidade contemporânea.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

PRELIMINARES DEMAIS

Resenha do livro:  Chester Brown. Pagando por sexo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. 

Com forte apelo autobiográfico, o quadrinista canadense Chester Brown narra nesse livro as aventuras sexuais do personagem Chester, que decide conhecer o mundo da prostituição após o término de um namoro e a subsequente desilusão amorosa. São memórias em formato de história em quadrinhos, segundo o autor; registro de todas as vezes em que pagou por sexo até o final de 2003.

De fato, a HQ quase é somente uma listagem das mulheres que o protagonista visitou ao longo dos anos. Não se aprofunda na intimidade e, pior, mantém uma distância própria da relação entre patrão e empregado. Por outro lado ele debate com seus amigos, durante várias páginas, questões morais, legais e curiosidades sobre o tema.

O autor se justifica logo no prefácio, explicando que nos encontros as prostitutas compartilharam detalhes da sua vida pessoal, os quais ele preferiu omitir para preservar a identidade delas. É uma pena, pois fazem falta; com essas histórias, e seus prováveis conflitos, o livro ganharia substância e afetividade para conquistar o leitor.

Sabemos que o nome das mulheres foi duplamente mascarado: Chester Brown inventou novos, diferentes dos reais e dos “profissionais”. Por que não utilizou o mesmo artifício para tratar suas histórias? Poderia manipulá-las, reinventá-las, trocá-las de corpo e de alma ao bel-prazer da ficção, mas ficou atado a certo compromisso com a realidade, o que não deixa de ser uma fantasia, e acabou por prejudicar a potência da obra.

(Observação: o corpo das mulheres foi retratado “com precisão”, afirma o autor. Não fosse uma constatação estranha por si só, vale lembrar que os desenhos não são nada realistas.)

Esse problema adquire outras formas ao longo do livro. É tal compromisso com a realidade que entrevejo na escolha de publicar introdução, prefácio, posfácio, vinte e três apêndices, notas e bibliografia, que somam cinquenta e cinco páginas e fazem da HQ uma espécie de estudo de caso. Os aspectos “técnicos”, por assim dizer, são explicados, argumentados e justificados em minúcias. As pesquisas preparatórias, infelizmente, têm mais espaço do que as empíricas. Os excessos são inúmeros, como, por exemplo, a nota referente ao quadro 5 da página 44, que explica: “Acredite, foi isso mesmo que eu disse”. Outras tentam remendar trechos mal resolvidos pela narrativa, como a nota ao quadro 7 da página 65: “Só para esclarecer – ela estava recusando a gorjeta, não o cachê da meia hora”. Nos apêndices encontramos até mesmo comentários de um amigo quadrinista que leu o manuscrito e quis acrescentar explicações, fazendo uma espécie de réplica.

Isso tudo, deixado de fora, não faria a menor diferença se tomássemos o livro como uma ficção, não como um ensaio a respeito da prostituição no Canadá. Sem dúvida Pagando por sexo ajuda a conhecer e problematizar o tema. E seu ponto forte é a sinceridade com que o autor empresta sua voz, nome e fisionomia a um personagem para lidar com tamanho tabu.

Por sua vez, quem espera um mergulho no submundo da prostituição se decepcionará. Chester contrata apenas os serviços de profissionais com padrão econômico razoável, como se fosse ao shopping center. Prostitutas que às vezes sequer permitem ser chamadas assim; preferem o termo “acompanhantes”, ainda que o serviço prestado dure meia ou uma hora inteira, a depender da remuneração, e sempre acarrete relação sexual.

Esse nível aburguesado resulta na aventura de um personagem homem, branco e classe média num ambiente controlado, portanto não muito aventureiro. Poderia ser radical, politicamente incorreto, comovente, asqueroso, violento, dramático etc. Mas sustenta esse lugar da crônica do sujeito ordinário que se propõe um novo hobby, ainda que não muito bem aceito pelos seus próximos nem completamente repelido por eles.

Por fim, vale a constatação de que temos um homem a refletir sobre a legalidade da prostituição, sua aceitação social, benefícios e malefícios etc. Duas mulheres têm papel de coadjuvantes na trama: a ex-namorada e uma amiga. Ambas pouco opinam; são meros ouvidos que acolhem os argumentos do protagonista e raras vezes o interpelam. As demais mulheres, apesar de numerosas, são figurantes. Esse ponto de vista pode não inviabilizar a obra, mas deve ser considerado por quem se propõe a ler.

No apêndice 23, o amigo quadrinista e personagem Seth diz que, na vida real, apelidou Chester Brown de “robô” dada a sua “ausência de emoções humanas”. Isso nos ajuda a compreender a escassez de sensibilidade do livro. A superficialidade afetiva em momento algum adquire caráter crítico, portanto não é uma estratégia estética do autor em sua abordagem; é mesmo uma limitação que compromete o resultado e mantém Pagando por sexo num lugar-comum. Para compensar a falta de afeto, o autor optou por embasar seus argumentos tanto quanto pôde em seções exaustivas, que acabam por sufocar a narrativa. Costuma-se criticar a falta de preliminares num ato sexual. No caso desta HQ, é o excesso delas, somado à frieza do texto, que prejudica o prazer da leitura.

terça-feira, 2 de abril de 2019

EQUILÍBRIO INSTÁVEL

Dois trabalhos do artista suíço Paul Klee me chamaram a atenção durante a visita à mostra Equilíbrio instável, em cartaz no CCBB São Paulo até 29 de abril. O primeiro é uma água-forte de 1903; o segundo, feito com cola colorida sobre papel, data de 1940. Trinta e sete anos os separam, portanto. E nesse meio-tempo: duas guerras mundiais, dezenas de movimentos artísticos de vanguarda, ascensão e queda de instituições, culturas, projetos sociopolíticos, entre inúmeros outros acontecimentos que marcaram a primeira metade do século XX na Europa.

A gravura em questão não chega a vinte centímetros de altura. Apresenta uma mulher magérrima, algo deformada, com ancas deslocadas que lembram as de um centauro; tem o corpo retorcido pela vida até uma forma de quase morte. Nua, de pé num cenário apenas sugerido com traços mínimos onde nada há para ver, ela é quase uma entidade. Desenha com os braços amplas curvas no ar; dança na aridez do papel em branco, exultando a sua potência criadora. De suas mãos caem pequenos pontos negros que flutuam e desaparecem. São sementes retiradas da bolsa que ela traz à cintura, atada por uma cinta larga.

Mulher semeando ervas daninhas (1903), de Paul Klee
A imagem se chama Mulher semeando ervas daninhas. É um plantio contraprodutivo, verdadeiro disparate se pensarmos em termos de agricultura com intuito capitalista. Um plantio delirante, provocador, imprevisível. O que pretende? Afirmar que figuras miseráveis espalham pelos campos elementos danosos? Duvido. Paul Klee não é literal como um panfleto. O crítico italiano Mario De Micheli, ao comentar os variados protestos do expressionismo alemão, diz que Paul Klee tende a se exprimir sempre por alegorias, analogias e símbolos. A curadora Fabienne Eggelhöfer, por sua vez, deu no CCBB grande destaque à seguinte declaração do artista: “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”.

Seria fácil afirmar que a gravura denuncia a disseminação de maldades. Para mim, ela provoca a pensar o que é danoso, a quem e por qual motivo. Klee provém de uma escola crítica ao positivismo. “Daninha”, afinal, implica um ponto de vista a respeito das ervas; são consideradas assim apenas porque preferimos que outras se desenvolvam naquele terreno. Caso contrário, são plantas quaisquer dispostas na natureza.

O próprio gesto da semeadora cria tensão com o título: é um movimento delicado, nada ameaçador. Contradição sugestiva. Não bastasse isso, a mulher habita um deserto. Ali, as daninhas serão as únicas ervas; sem elas, o ambiente permanecerá vazio, numa improdutividade radical.

Depois do ato de violência (1940), de Paul Klee
O segundo trabalho que me instigou se chama Depois do ato de violência. Resume-se numa imagem abstrata de contornos marcantes e cores sem gradientes. Lembra um vitral de igreja gótica, mas é difícil identificar ali qualquer referência a tempo, espaço, enredo ou personagem.

Uma série de outros trabalhos de Klee apresenta o ato de violência em si, como os seus desenhos de observação das primeiras manifestações fascistas semeadas pelo governo alemão, que germinavam nas ruas na forma de perseguições a judeus, artistas, comunistas etc. Atitudes, a princípio, da melhor estirpe moral, que acabaram por se revelar uma praga inextinguível.

Os atos de violência costumam ser evidentes; nós é que muitas vezes nos recusamos a vê-los. Como imaginar, entretanto, o seu momento posterior? Em outras palavras, como atravessar o instante do ato e elaborar o que vem a seguir, que é quase sempre algo arrebatador, cujo mero relato jamais daria conta? Como fazer dessa força uma obra de arte?

Paul Klee não parece mesmo preocupado com reproduzir o visível em suas criações. As obras no CCBB nada têm de realistas; elas apresentam conflitos de maneira torta, que não se esgota com rapidez nem com facilidade. Ainda assim, ele fala de uma realidade tão sua quanto nossa. Dá visibilidade a questões modernas que persistem no contemporâneo, como se um século não bastasse para resolvê-las. Mostra, de fato, como o aparente equilíbrio da nossa existência é instável e pode se transformar de uma hora para a outra.

A retrospectiva mais completa do artista já realizada na América Latina apresenta cento e vinte e três obras pertencentes ao acervo do Zentrum Paul Klee, instituto responsável por cuidar de seu legado. Não é visualmente deslumbrante porque traz um grande número de esboços e estudos. Porém nos ajuda a conhecer melhor o intrincado mundo desse artista, seus processos criativos e as questões que se propôs investigar. Trata-se de uma excelente história da arte e, sendo assim, uma história da humanidade.

quarta-feira, 6 de março de 2019

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA


“Minha mãe só me faz estudar. Não adianta estudar se a pessoa é burra”, reclamou uma garota à amiga que a acompanhava no metrô de São Paulo. Tinham uns treze anos e mochila nas costas. Eu estava próximo, lendo a Pedagogia da autonomia, portanto a situação não podia ser mais contraditória. A pessoa em questão era a encarnação do fatalismo neoliberal que Paulo Freire critica em seu livro. Estava bem ali, diante de mim, a comprovar que a teoria se fundamenta na realidade.

Eu ainda não tinha lido um livro inteiro de Paulo Freire. Sentia uma vergonha danada por desconhecer a obra do intelectual brasileiro mais influente nas ciências humanas – é o terceiro autor mais citado em trabalhos científicos da área em nível mundial, batendo gigantes como Karl Marx e Michel Foucault, por exemplo. Fiquei ainda mais curioso por conta das faixas de protesto que, a favor da candidatura de Bolsonaro, pediam o fim da “doutrina Paulo Freire”.

Resultou que Pedagogia da autonomia é um dos escritos ensaísticos mais bonitos que já li. Sensível, esperançoso e necessário, como parece ser toda a obra freireana. Também ficou claro o motivo da oposição reacionária a ele: sua “prática educativo-progressista” se põe contra toda discriminação, aposta no diálogo entre pessoas com concepções de mundo diversas e trabalha a inserção do educando na realidade, e não a sua mera adaptação a ela. Segundo Freire, somos condicionados às formas da vida, então somos também capazes de mudar tal condição – justamente o contrário daquele fatalismo mencionado há pouco, que implica a subordinação às situações vigentes. Diferente do que acreditava a garota no metrô, para Freire ninguém é e permanecerá “burro” e ponto final: nada é determinado, tudo pode ser modificado.

Vem daí a noção de autonomia, associada à formação dos estudantes, e não à sua domesticação. Formar é muito mais do que treinar habilidades técnicas. De acordo com o autor, implica reforçar sua capacidade crítica, sua curiosidade epistemológica, sua insubmissão. Não é o educador que molda os educandos – seu papel é oferecer condições para que eles encontrem suas próprias formas de ser, o que requer tanto uma ética quanto uma estética. De modo que se assumam como sujeitos do próprio saber e das responsabilidades subsequentes.

Esse é o ponto em que começa a incomodar os reacionários. Porque, ao deixar de ser objeto de um governo, o sujeito assume o poder, o direito e o dever de agir para transformar a sua realidade. Ele não será vítima da fatalidade que o quer apático. Aprender a pensar criticamente é um gesto emancipatório de empoderamento e insurgência contra todo tipo de violência governamental; não apenas contra políticas de Estado opressoras, mas também formas menos evidentes de governança sobre a vida.

Freire defende a rebeldia legítima das minorias, fazendo-as perceber que podem transformar a história, se assim quiserem. Rebeldia que tem potencial para revolucionar e assim necessariamente perturbará a ordem em vigor, a qual o conservadorismo pretende manter a todo custo.

É muito bonito porque incentiva o pulso da vida que pode e faz. Vida que opera os próprios desejos em vez de esperar que sejam realizados por seus representantes.

A fome, por exemplo, não é uma fatalidade, mas uma imoralidade, diz Freire. É imoral que haja fome nos tempos atuais. Se deixamos que aconteça é porque não assumimos responsabilidade sobre ela. O rompimento de barragens é uma imoralidade; a corrupção, a discriminação e a repressão idem. O desmanche dos sistemas educativo, previdenciário, trabalhista e de saúde. Se aceitamos tamanhas imoralidades é porque nosso desejo foi colonizado por uma lógica que privilegia o aspecto financeiro em detrimento do desenvolvimento social e nos destitui da condição de sujeitos políticos.

Daí a impossibilidade de a prática educativa ser neutra, como querem iniciativas do tipo “escola sem partido”. Já em 1996 Paulo Freire alertava para o fato de que um espaço pedagógico assim é aquele em que a ideologia dominante treina os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser neutra. O professor em sala de aula não deve ser omisso, mas um sujeito de opções, capaz de analisar, optar, romper.

No lugar da pretensa neutralidade, Paulo Freire propõe o respeito entre educador e educando, de maneira que opiniões divergentes possam se ouvir e se deixar afetar uma pela outra.

A pedagogia da autonomia é toda fundamentada na liberdade, na dignidade e na escuta dos envolvidos. Não confunde autoridade com autoritarismo. Mais do que conteúdos decorados, ensina a manter uma postura vigilante. E acredita na educação como meio de problematizar e reverter ordens injustas.

Se por vezes parece utópica, sonhadora ou “otimista”, como o próprio Freire diz, nada tem de ingênua. É uma proposta baseada na vivência e no exercício da pedagogia. É plausível, pragmática, passível de ser implementada. Se a julgamos idealista – ou pior, “ideológica”, como alguns sugerem – talvez seja porque nós, capturados pela subjetividade capitalística, sustentamos certa desesperança.

Uns anos atrás, ao término de uma disciplina de pós-graduação na USP com a qual colaborei, eu e a docente responsável pedimos aos estudantes que avaliassem o semestre, tanto em relação ao conteúdo quanto às próprias trajetórias. Uma moça deu um depoimento que me marcou profundamente. Sentia-se burra no início do curso – foram estas as suas palavras. Não compreendia os textos, não acompanhava os debates, cogitou desistir. A mãe fez com que sustentasse a insegurança e persistisse, pois acreditava na capacidade da filha.

Hoje percebo que a estudante não desistiu também porque encontrou um contexto de sala de aula que a acolheu e ofereceu condições para enfrentar o novo. Uma abertura que possibilitou o desenvolvimento da sua autonomia. A estudante terminava o semestre mais forte, satisfeita com o que experimentara. Não sei dizer como se apropriou dos conteúdos da disciplina, e na verdade isso não me preocupa. Importante foi ter revertido o fatalismo que se impunha e, com isso, exercido o corajoso gesto de formar-se.