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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

[live] UTOPIAS: COMO IMAGINAR NOVOS MUSEUS?

Eu e minhas colegas do GEPPS receberemos o museólogo mineiro André Leandro Silva para uma conversa aberta com o tema Utopias: como imaginar novos museus?



André é autor de uma pesquisa sobre o trabalho artístico “A nova crítica”, de Frederico Morais, que propôs algumas utopias para o museu de arte pós-moderno.

Nesta conversa, queremos levantar pistas daquela produção para pensar: qual é o papel da utopia num museu? Como imaginar novos formatos e relações entre instituição, acervo e público? Como ativar a potência criativa e a crítica sensível dos museus a fim de rever suas formas de captura e ampliar acessos?


André Leandro Silva é bacharel em museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi eleito Conselheiro Municipal de Cultura em Belo Horizonte. Tem se dedicado a pensar a relação entre museus e acervos, considerando os agenciamentos provocados pelos acervos e as idealizações de museu neles encontradas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

HISTORINHA PARA DESPERTAR

Foto de Camila Jacques em Unsplash


Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

SELEÇÃO OU CURADORIA?

 

Foto de Martino Pietropoli em Unsplash


Acho impressionante como o mundo corporativo rapidamente se apropria de termos de outras áreas para lançar modas, quase sempre os deturpando em seu favor. Um dos mais recentes é “curadoria”, oriundo dos museus e comum às exposições de arte e demais eventos culturais, que algumas empresas têm usado especialmente durante a quarentena para se referirem, com pretensa diferenciação, às suas seleções de programas educativos e de entretenimento. Curar, ao que parece, é mais nobre do que escolher, listar, reunir.

Dia desses ouvi uma colaboradora – não se diz mais “funcionária” e muito menos “empregada” – de multinacional afirmar que vem fazendo curadoria de experiências culturais – não se diz mais “atividades” – para seus clientes usufruírem em casa, quando na realidade ela apenas compartilha links para sites de filmes, cursos ou dicas de bem-estar gratuitos. Com a única preocupação de não ferir as políticas da empresa onde trabalha nem o gosto do cliente, o qual anda cada vez menos tolerante, diga-se de passagem.

Não vou negar que existem semelhanças, mas curar uma exposição de arte, por exemplo, é um tanto mais complexo. 1) Se em ambos os casos existe um rol de trabalhos a serem exibidos, no que tange às artes visuais há um cuidado excepcional com o que permanece invisível ao espectador. 2) Se, assim como aquela colaboradora, o curador do museu planeja disponibilizar itens para apreciação pública, ele está atento não apenas ao conjunto, mas também às potencialidades que se desenvolvem entre eles. Pois a proximidade entre uma e outra obra é capaz de modificar o sentido percebido das duas, do espaço e inclusive das pessoas que estão a observá-las. 3) Enquanto a seleção de atrações enviadas aos clientes daquela empresa visa “produzir conteúdo” por meio de um “storytelling que agregue valor e traga resultado específico” para a marca, a curadoria de arte, em especial a da arte contemporânea, visa criar aberturas nas narrativas, tanto nas oficiais hegemônicas quanto nas da própria mostra em questão, sejam relacionadas ao contexto, à biografia do artista, ao tipo de produção exibida etc. Essas aberturas são bem o contrário do resultado desejado com antecedência: são mais como vacúolos onde um acontecimento qualquer pode advir; são reservas para o imprevisível, por paradoxal que seja, onde o ímpeto criativo do outro possa se manifestar.

Para esse outro existir, não basta expressar sua satisfação em pesquisas ao consumidor; ele deve se deixar instigar, provocar, inquietar o suficiente para executar um movimento, dar um sinal de vida, deixar-se tocar de maneira irreversível. Talvez a curadoria mais bem-sucedida seja essa que, ao pôr em contato um espectador e um trabalho artístico, cria a condição para que ambos jamais sejam os mesmos novamente, ao menos um em relação ao outro.

Para que isso ocorra, o curador precisa deixar que inclusive o seu projeto mais arrojado escape ao programa e se renda ao inusitado, ao ingovernável, ao não instituído. Deve mirar o real dos trabalhos de arte e errar. Não falo aqui de margem de erro na comunicação com um público-alvo, mas de um grau intensivo de falha da linguagem, lapso da razão, fratura; isso é constitutivo do gesto curatorial, não algo a ser corrigido.

Há poucos meses, Luiz Camillo Osorio publicou um artigo na revista Ars em que esmiúça a “função-curador”. Em certo momento sintetiza que “curadoria é isso: produzir relações conceituais, afetivas, históricas, políticas, formais, enfim, fazer ver as semelhanças no seio das diferenças e constituir diferenças onde tudo parece idêntico”.

Não quero aqui engrandecer o mundo da arte, que já sofre de desmedidas suficientes para afastar as pessoas menos aficionadas, o que é uma pena para ambas as partes. Tampouco é minha intenção restringir o uso do termo “curadoria” às exposições de arte ou museus em geral. Só alerto para as complexidades implicadas nele porque o trabalho no mundo corporativo com certeza deixará a desejar se comparado ao que se espera de uma curadoria feita naqueles lugares onde ela se originou.

O que eu gostaria de ter dito à tal colaboradora de grande empresa é que nada adianta mudar o nome e não mudar a coisa. Para evitar frustrações, o melhor é manter as expectativas mais realistas, fazer uma boa seleção de indicações aos seus clientes e deixar que ela fale por si mesma.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

[live] LANCEI UM LIVRO. E AGORA?

Participo desse bate-papo sobre publicação e divulgação de livros, que será transmitido ao vivo pelo Facebook da plataforma Vida de Escritor. Clique no link e acompanhe!

 

TRÊS CONCHAS CINZA

Côncavo IV - série azul (2016), Lúcia Quintiliano

Talvez você se pergunte o que significam estes longos períodos de silêncio entre um escrito e outro. Desde a chegada da pandemia ao Brasil, quase não toquei no caderno de memórias que pretendo lhe entregar no futuro, quando você for adulta. Claro que muito tem acontecido, mesmo se a história lhe disser que o mundo parou. Não parou sequer quando deveria ter parado. Estamos confinados numa correria impensável, sobrevivendo precariamente entre o trabalho remoto, o ensino à distância e todas as atividades mal realizadas que só produzem frustração. Nossa situação é privilegiada. A falência geral sangra mais onde não vemos. Há pessoas fragilizadas, vulneráveis, obrigadas a se arriscarem para sustentar o nosso isolamento social. Elas habitam os silêncios entre um relato e outro da história. Se puder, tente ouvir seus sussurros nas conchas que guardei na prateleira da biblioteca, elas falam da fenda entre o que chamamos de sociedade e o que ela de fato é. Por ora, só posso dizer de minha perspectiva parcial e insuficiente, como são todas.

Recolhi da praia três conchas cinza bastante semelhantes, exceto pelo tamanho. Uma maior, outra média, outra pequena. Guardei-as como lembranças de nossa estada no litoral durante alguns dias da pandemia, onde você enfim pôde correr pela areia e tomar sol, após três ou quatro meses isolada em um apartamento. Você não cabia em si; eu e sua mãe ficamos aliviados. Peguei as conchas intuindo que de alguma maneira elas se pareciam conosco. Só agora me pergunto por que, exatamente. A vida que as habitava já não está. Qual teria sido o seu destino? O que significam conchas vazias na areia, trazidas pelas ondas, neste contexto atual? Como é viver numa concha, encontrar segurança apenas no interior daquela estrutura rígida? Ser levada para um lado e para o outro, a dança conduzida pelo mar?

Em casa, folheio poemas escritos pelo chinês Ai Qing na época de sua viagem à América do Sul, em 1954, por ocasião do aniversário de cinquenta anos do amigo Pablo Neruda. A última fotografia reproduzida no livro mostra o poeta agachado na areia, recolhendo o que parecem ser conchas. A mão direita, mais baixa, tenta agarrar uma delas. Na esquerda estão as já escolhidas, posso ouvi-las tilintarem, quase caindo entre os vãos de seus dedos. Os cabelos estão revoltos pelo vento que sopra do Pacífico, o mesmo oceano que contorna sua terra natal. As mangas e pernas de seu terno escuro estão esbranquiçadas pela areia fina do litoral chileno, talvez de Viña del Mar ou El Quisco, conforme a legenda da imagem.

Sabe-se que Ai Qing recebeu com muito carinho a coleção de conchas com que “el capitán” o presenteou e que o encantou pela diversidade de cores e formatos, guardadas como relíquias de uma experiência de liberdade, trocas culturais, inspiração para um ideal de sociedade sempre porvir. Pouco depois de retornar à China, o poeta foi preso pela repressão e condenado a um confinamento de vinte e um anos, que lhe retirou todos os direitos civis e políticos.

Tive o prazer de visitar a casa-museu de Neruda em Valparaíso, apelidada de La Sebastiana, toda decorada com os mesmos motivos náuticos que se encontram nas suas demais residências. Da sua cabine de comando se vê o Pacífico, cujo nome se dilui num horizonte infinito. Diz o longo poema que Ai Qing dedicou ao anfitrião, intitulado Sobre um promontório no Chile: “O dono da casa é / amigo de Lorca, o poeta assassinado / testemunha do martírio da Espanha / diplomata aposentado e / não almirante”. Mais adiante, lemos: “Alguém se levanta e / com uma lupa / busca lugares no mapa-múndi / onde ainda não botou os pés / O mundo em que vivemos / parece-nos tão imenso / mas é de fato pequeno / Num mundo como este / a vida deveria ser melhor”.

Enquanto sobrevoava outro oceano, vindo da Europa e da África e antes ainda de chegar a Recife, Ai Qing escreveu também um longo poema de evidente caráter anti-imperialista, olhando para baixo pela janela do avião. Chama-se Atlântico, do qual recorto uns versos: “Vida é preciosidade sem preço, / Mas, na opinião dos vendedores da guerra, / Vida é insignificante, / Na balança deles, / Para equilibrar com contrapeso, / É preciso um caderno / De mil páginas cheias de nomes de pessoas.”

Será que, ao vasculhar a areia na praia chilena, Ai Qing sonhava com a revolução comunista, que pretendeu criar um país igualitário? Sua poesia viajante, seu olhar estrangeiro voltado à nossa América do Sul.

Neruda escrevia sempre com caneta-tinteiro e uma tinta verde-mar. Já tive um vidro dessa tinta, mas não consigo desaguar no papel sequer uma amostra da sua imensidão poética.

Caminho pela praia do litoral norte de São Paulo, recolho três conchas cinza, olho para as águas que são outras e são as mesmas de Neruda e Ai Qing, separadas por mera convenção. Afundo meus pés na areia sem poder distinguir o que nela são fragmentos de conchas antigas, há muito desbastadas, e o que não é.

Enquanto isso você olha para cima. São andorinhas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

ASSUMO A DERROTA

Foto de Mark Eder em Unsplash

Abandono os planos no papel

rasgo sonhos ao meio

atiro os fragmentos pela janela

e fico a ver navios

partirem rumo ao destino

que pensava ser o meu



É preciso assumir

a precariedade que se instalou

a distância impossível no horizonte

que meus olhos um dia tentaram alcançar



Não é a idade

a saúde financeira

o desgaste das relações

é mesmo uma percepção

da vida submetida a instâncias superiores

crueldade e perversão sociais

quase uma iluminação profana

de que não haverá amanhã

nem motivo para tentá-lo

outra vez, por teimosia



Assumir a derrota agora

me chega como um alento

no final, quem diria

uma realização,

espécie de vitória

vazia.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

ANTICORPO

Foto de Velizar Ivanov em Unsplash

Fechado
num esforço coletivo
insuficiente, paliativo
sem tocar nem ser
tocado, sem poder
tocar ou fazer
proibido
pela própria consciência
de um comum
possível
sem sorriso, só smile
sem encontro sem reflexo
de mim sobreposto ao outro
a fantasmática do corpo
– ou o seu contrário?
cadáver ainda vivo
apenas
mais um e
nada mais.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

“DIANTE DOS MEUS OLHOS” É FINALISTA DO PRÊMIO GUARULHOS DE LITERATURA

Muito feliz aqui com a notícia de que sou finalista na categoria Livro do Ano! Junto comigo tem um monte de gente talentosa e de editoras que acreditam na produção brasileira contemporânea. Você pode conferir a lista completa aqui. Parabéns a todos! 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A LEITURA COMO DESREGRAMENTO DE SENTIDOS

Há livros que me causam uma sensação de abstinência quando deixo de lê-los. Ainda é um mistério por que acontece com alguns e não com outros. Resta essa espécie de nostalgia de uma experiência de vida fictícia, uma vontade de voltar ao que nunca vivi de fato, mas que vivenciei de alguma maneira por intermédio de palavras e imagens. 

Penso se ler poderia mesmo desestabilizar o continuum da vida comum e levar a uma “iluminação profana” – para usar a expressão de Walter Benjamin – por meio dessa embriaguez não alcoólica, quer dizer, sem o uso de outras drogas senão o próprio livro, com o delírio sugerido pelo cheiro de tinta em papel. Uma suspensão de certa ordem que nos abre para outra; pensamento que irrompe de um jogo e remonta toda uma cadeia de significações já formada e banalizada.

Abrir as páginas de um livro de prosa ficcional implica abrir a mim mesmo e me dispor a encarnar um personagem outro; a possessão da sua existência imaginária, dos seus sentimentos contornados pela sintaxe. Viver inclusive uma alteridade radical, como a produzida por William Faulkner na primeira parte de O som e a fúria, em que adentramos a lógica torta de um deficiente intelectual, ou a de Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em sua estranha animalidade.

A experiência é exigente porque requer desativar mecanismos pessoais já muito aprimorados para inventar outro funcionamento. Acaso se consiga decorrerá o horror ou o prazer da ebriedade estética, por assim dizê-la; esse desregramento dos sentidos que expande a percepção para além das fronteiras do senso-comum.

Há pouco li O museu do silêncio, romance escrito pela japonesa Yoko Ogawa em que um museólogo é chamado a um vilarejo para lidar com uma coleção de objetos especiais. Enquanto se avizinha à nova situação, passeia pelos arredores e nos envolve num enredo inquietante e ao mesmo tempo aconchegante, do qual é difícil sair ileso. Cada vez mais implicado no projeto do futuro museu que está organizando, esse personagem transborda a própria margem e dá a ela nova forma; entre os copos de uísque, enamora-se por uma menina, aproxima-se da natureza com o uso do microscópio e se afasta da própria história familiar. Com ele, passo também a operar segundo outra modulação. As regras se desestabilizam, afrouxam, confundem os sentidos e me levam a uma vida não vivida na realidade, mas na ilusão, da qual ainda assim podemos falar, traduzir em imagens, descrever e interpretar; não menos real, portanto.

Sabemos que a criação da perspectiva na representação visual depende de um ponto de fuga; uma formulação matemática para que se possa escapar da banalidade da vida e adentrar um contexto ilusório disposto na realidade. Puro artifício a enganar os olhos, que veem profundidade num plano preenchido de pigmentos coloridos. E na representação literária, seria muito diferente?

Bacchus (1596-1597), de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio
Traço aqui mais um ponto de fuga em busca de nova perspectiva: Caravaggio pintou um famoso Baco, composto por um misto de juventude, quimera e podridão, que olha para fora do quadro, desatento. Tudo ao seu redor parece organizado à perfeição. Ao observarmos a pintura, em seu universo ilusório, vemos a mera banalidade de todos nós. Interessa-me, contudo, saber o que ele vê através da superfície pictórica, com seu olhar desviante e suas bochechas rosadas que denunciam um abandono de si. Aquele Baco é um leitor do nosso mundo; o deus que deixa o sagrado perpétuo para habitar a realidade profana. Quem somos diante da sua imortalidade? Uma existência finita, da qual pouco se preserva. Precisamos desaparecer suficientemente bem para que exista o movimento da vida e os momentos de suspensão que denominamos história.

Cansado, não posso controlar o sono e durmo com O museu do silêncio nas mãos. As páginas do livro aberto fazem as vezes de um portal por onde afluxos de sentimentos vêm e vão. Imagens. Palavras. Afetos. Tomo o mesmo trem que leva o museólogo à vila no interior do Japão; o trem que ele jamais pegará de volta. Parte de mim permanece com ele naquele lugar incrustrado nas montanhas e florestas. Parte de mim observa à distância a coleção de objetos que pretende rememorar cada vida extinta naquela comunidade. Outra parte não será vista novamente; esta última talvez seja a única verdadeiramente liberta.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DERROCADA

Foto de Alexander Andrews em Unsplash


Eis que a árvore cede
arrancada de suas raízes
tomba na direção do muro
apoia nele seu derradeiro peso
escora num único abraço
sua ordem arruinada de tijolos e cimento,
a qual cederá
assim que a árvore for retirada.

É uma conjunção perdida
mantida por aparelhos enquanto
insistimos na preservação daquilo
que foi e não tornará a ser.

Há esperança, contudo
já não há árvore nem muro.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA


Photo by Andrew Buchanan em Unsplash

Des-ver
estranhar
excomungar
expatriar

ser um pouco estrangeiro
me perder no próprio mapa
tomar distância 
desconhecer melhor a vida 
dada de antemão

ver nessa vida o que
ela não é, vê-la
diversa de mim
e a abrir a vida, esgarçar
sua imagem, escancarar
o olhar para torná-la
imaginariamente
outra e em seguida outra
realmente

embriagar-me das falhas
até que estejam completas
de frescas ligaduras
que também cristalizarão,
desejantes de um olhar
fascinado e perigosamente
próximo.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

QUASE CIDADES


Foto de Issy Bailey em Unsplash

Existem cidades antigas
cidades futuristas
e existem as cidades
que eu conheço
como aquela
onde nasci
onde quase nada vale a pena ser guardado
nem aponta para um sonho
nenhuma utopia
um lugar que é só presente
para sempre, enquanto durar
poderia ser qualquer lugar do mundo
de alguma maneira é
sem graça
uma lembrança que não se assenta
nem aceita carinho
ou gratidão, tão banal
que é só uma cidade de sobrados gradeados
aos poucos derrubados para no lugar
erguerem prédios banais, também gradeados
com sacadinhas onde casais cansados de si
estiveram uma única vez
e prometeram voltar
falaram nisso, fizeram planos
ainda aguardam a oportunidade certa.

Não haverá
futuro ou memória
apenas este presente infinito
ínfimo, cuja intimidade já não tem mistério
ou sonho
– quem dera utopia
não existe
sequer afago que não seja burocrático, rotineiro
automático, não sei
dias iguais como cada andar do edifício parado
com suas sacadinhas estúpidas
sua disposição padronizada de cômodos
vizinhos, uns como os outros
tão semelhantes
que nem mesmo se cumprimentam
nas áreas comuns, no elevador
por exemplo
vizinhos sem passado ou futuro, gradeados.

Mas eu dizia cidades
onde quase nada vale a pena
– e o quase
faz toda a diferença
sinto que preciso buscá-lo, deve estar por aí
naquela luz acesa quando as demais já dormem
num elevador em que não se fala do calor
– dane-se o tempo presente, ainda dá para encontrar o quase
a falha na programação
fôlego retesado de surpresa
que irrompe da sacadinha e salta no vazio
escapa dos tentáculos mórbidos e
voa, enfim, para longe
àqueles lugares clássicos ou revolucionários
deslocados do agora que é igual ao ontem e à semana que vem
onde se pode experimentar um jeito outro
um pensamento fugaz, um desvio, um desejo
a fagulha que inicie o grande incêndio
das cidades onde nasci e conheci e das quais
sequer me recordo
porque nunca habitaram em mim.

sábado, 6 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA PARA DESCONHECER MELHOR

Carta ao pai (2015), de Élida Tessler

Para desgosto de meus pais, quando criança eu adorava desmontar objetos, sendo a caixa de ferramentas um dos meus brinquedos favoritos. Dos carrinhos de plástico aos rádios de pilha, do sifão do lavabo à base do liquidificador, tudo se reduzia às suas menores peças. Eu também misturava produtos de limpeza e às vezes ateava fogo numa coisa ou outra para ver o que acontecia. Tinha um profundo interesse pela estrutura desses objetos, aliado à curiosidade de saber como se transformariam quando submetidos a condições inusitadas. Hoje sei que fiz isso tudo movido também por outra vontade: a de estranhar aqueles objetos que me eram tão banais, dispostos no meu dia a dia como se estivessem ali desde sempre e para sempre. Desparafusando tampas, removendo fios, forçando lacres e depois remontando tudo numa nova composição disfuncional.

Certa vez, logo que saímos de uma exposição de Mira Schendel no MAM-SP, pedi aos estudantes de graduação que eu acompanhava para descreverem o que tinham visto. Nenhum foi capaz de se ater à elaboração mais fundamental: trabalhos de arte em sua maioria feitos com tinta e papel, dispostos em sequência cronológica nas paredes, as molduras todas na mesma altura média, poucas cores destacadas na brancura do museu etc. Eles logo saltavam às impressões que a exposição lhes provocara e às supostas intenções da artista. Apesar da minha insistência, parecia impossível limitarem-se à descrição formal sem significá-la.

Em oficinas de escrita, costumo propor um exercício: os participantes devem eleger um objeto comum de sua rotina e descrevê-lo como se nunca o tivessem visto. Isso que parece simples revela-se um transtorno. Em primeiro lugar porque, com o tempo, perdemos o hábito de apreciar as formas, os mecanismos, a complexidade, enfim, desses objetos com os quais lidamos invariavelmente. Em segundo lugar porque é automático irmos direto às experiências que nos proporcionam, quer dizer, ao seu uso, assim como às memórias a eles associadas. Objetos pessoais têm uma função e uma história; acontece que por vezes elas ocupam todo o lugar da sua existência. Essa proximidade prejudica nossa aptidão de vê-los como eram antes de terem se tornado familiares.

Na última vez em que fizemos o tal exercício, um dos presentes escolheu descrever um mapa. Foi engraçado porque o título já anunciava algo como: o mapa em cima da mesa. Quer dizer, o objeto já estava nomeado e sua condição, estabelecida, independentemente de todo o esforço que viesse na sequência do texto para apreciá-lo.

O mapa é um dos objetos mais complicados de descrever como se jamais o tivéssemos visto porque, em si, resume-se a cores e traços no papel. A representação que nos propõe exige um tanto de educação para ser decodificada. Somente assim sabemos, por exemplo, que o azul remete às águas; o verde, à floresta; o laranja, a certa topografia; a escala, ao tamanho real; além das direções, longitudes e latitudes, rotas, fronteiras geopolíticas etc. Sem compreendermos toda essa legendagem, o mapa é um desenho abstrato.

Se recusarmos essa intimidade imediata que nos faz perceber o mundo no mapa e tomarmos distância para desconhecê-lo; se negarmos nosso condicionamento e abrirmos sua imagem, desmontarmos seus dispositivos, talvez possamos nos tornar um pouco estrangeiros nesse mapa e questionar por que a Europa é o norte, por que muitas fronteiras na África são linhas retas, por que é tão difícil localizar países como Irã ou Vietnã, enquanto temos um imaginário tão detalhado de Nova York, entre outros inúmeros exemplos. Experimentar, portanto, um estranhamento que é também como uma expatriação, pois nos destitui de um território doméstico e de uma língua mãe.

A descrição, que implica distanciamento, interrupção, desmontagem e remontagem, deixa ver também um segundo ponto: o de que esses objetos todos ao nosso redor mantêm algo irreconhecível, que permanecerá desconhecido apesar de nossas tentativas para esclarecê-lo. Estranhá-los, ou seja, romper com sua aparente imobilidade e com essa familiaridade das relações já estabelecidas, é bem o contrário: conhecer obscurecendo. Tal como acontece quando a racionalidade ocidental, de herança iluminista, tenta lidar com conceitos orientais como wabi-sabi ou ma, que não se reduzem a uma definição e, no limite, são mesmo impossíveis de dizer; é necessário abandonar a linguagem para vivenciá-los em outros registros do sentido. O que nos leva ainda a um terceiro ponto do exercício: o de que escrever jamais será o mesmo que a aparência visual nem substituirá a coisa em si.

Para se consolarem por minha reinação incontrolável, que eventualmente trazia prejuízos de diversas espécies, inclusive financeiros, meus pais ora suspiravam que “ao menos” assim eu me tornaria cientista, ora diziam “inventor”. É verdade que trago ainda aquele ímpeto comigo. Apenas com ele posso inventar meu caminho nas artes e na vida, do mesmo modo como prossigo com minhas investigações nas ciências humanas.

No que diz respeito ao conhecimento, temos atualmente dois partidos muito em voga e não excludentes: aquele que aposta mais em armas do que na educação e outro que, por completa ignorância de como a humanidade é complexa, acredita que bastaria investir nas ciências exatas e biológicas. Todavia há questionamentos que só ganham forma em lugares menos precisos, talvez até menos dizíveis e, não obstante, vitais para o conhecimento de nós mesmos.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TERAPIA INTENSIVA

Vista lateral leste do Palácio do Planalto (fonte: Arquivo Público do DF)

Por que falar agora (ou nunca)
ou num momento qualquer
suspender a voz, as tintas, o tônus
– o que temos, se nada resta
tão pouco que se torna impossível
“sobre”viver entre
residências
desistências
imobilidades
de corpos tão fragilizados, oscilantes, suspirados
como as pausas nas chamadas de vídeo
com seus espectros de aspecto pacato
absorvidos pela iluminação artificial das telas de LED.

Como é possível estabelecer conexão
à fria luz de maio
meia estação, relação entrecortada por
tudo que falha e só faz escancarar a ruína
abismal, escara de um estado de inexistência
falência múltipla de órgãos públicos
quando lá do alto
do planalto berra-se:
e daí?

De seu leito
há quem sinta que é possível ainda
falar porque é preciso
com a voz, as tintas, o ímpeto derradeiro
dar a ver e a ouvir os aflitos
a quem tal violência disparada a esmo
atinge o âmago como uma bala
nem tão perdida assim porque sempre 
fere o mais desprotegido
a existência mínima que só resta
falar e resistir, pois é fundamental
jamais calar diante das ordens de assassínio
e desaparecimento imemorável.

Enquanto houver voz, ouvirá vida.

Leia mais em: Cartas da pandemia

terça-feira, 5 de maio de 2020

O ESPAÇO ENTRE MIM E O OUTRO

Foto de Angèle Kamp em Unsplash
Ainda aprendo, com dificuldade e alguma curiosidade, esses sutis gestos de horror que dominaram o espaço entre mim e o outro. Se antes tal meio parecia esvaziado, agora acolhe a coreografia da tragédia que escapa à cena e se realiza no hall do condomínio, na calçada, nos corredores do mercadinho, onde cabe apenas uma pessoa por vez: devo olhar antes de avançar, ter certeza de que estarei só enquanto o outro, que também precisa fazer seu bolo, titubeia, dá um passo atrás, tenta não violar meu cordão imaginário de isolamento. E se por acaso erro o passo a dança desanda, como o creme que pretendia confeitar com este açúcar, essência, desejo. Os humores, vencidos, talham. A paranoia fermenta admiravelmente, por sua vez. Confunde-se com o cuidado comigo e com meus semelhantes, assassinos potenciais. Isolamento tornou-se atitude social. Cárcere privado eletivo. Os paradoxos não se eximem de aparecer para um café amargo. Dia desses, no trabalho, anunciou-se: ao manter distância você mostra ao colega que se importa com a vida dele. Não fosse terrível, seria divertido. Não fosse atroz, não sei. O tempo dirá. Espero. Mesmo os gestos mais estranhos, aos poucos, tornam-se banais. Há duas semanas eu diminuía o ritmo na calçada para observar meu reflexo mascarado nos vidros dos carros estacionados. Ontem fui beber água e a derramei por todo esse mesmo filtro que me cobre a boca, nariz, corpo, família, futuro.

Leia mais em: Cartas da pandemia

quarta-feira, 15 de abril de 2020

GUARDADAS

Foto de Melissa Paniagua Ponce.

as distâncias na fila
os vazios no horizonte
as câmeras no céu
os olhos na tela
os pássaros no aquário
as crianças no tédio
os pijamas no escritório
os silêncios no elevador
os medos no outro
as angústias no sofá
os amores na gaveta
as invisibilidades no catre
os monólogos na mudez
os ímpetos na despensa
as revoluções na panela
os sonhos no freezer
as vidas no microscópio
os desejos no exterior
as quebras na saída
as mordaças no app
os disfarces na rua
as esperanças na prateleira
os gelos na mão
os próximos na cova
as imprecisões no número
as imagens no obscuro
as sintonias no impossível
as violências no pronunciamento
bem embaladas e guardadas as
indevidas proporções.

domingo, 12 de abril de 2020

VANESSA VASCOUTO LÊ UM TRECHO DO "DIANTE DOS MEUS OLHOS"

Não é todo dia que recebo um presente desses: em plena quarentena, a escritora Vanessa Vascouto escolheu um trechinho do meu livro para compartilhar nas redes sociais. Aproveito para reproduzir o vídeo abaixo, caso você não tenha visto. E, se ainda não tem o livro, pode encomendar com frete grátis clicando aqui.

Daí vem a talentosíssima Vanessa Vascouto e me presenteia com a leitura de um trechinho do "Diante dos meus olhos". Difícil conter a alegria aqui neste canto da quarenta.
Publicado por Eduardo A. A. Almeida em Sábado, 11 de abril de 2020

quinta-feira, 9 de abril de 2020

DO ALTO DAS MINHAS JANELAS


Vejo nada e o nada me devolve o olhar, incorporado
nos demais moradores de apartamento alocados
diante de mim, atrás, ao redor, de esguelha
eles me olham do alto das suas janelas
não porque têm interesse, veja bem
na verdade eles não têm
nada melhor para ver, sou
o que lhes resta, o seu nada e
ao mesmo tempo tudo
o que resta
neste fim de mundo sem fim
nas alturas intermináveis, as horas
enquanto lá embaixo corre a imaginação
– o risco, o medo, o estranhamento
eles habitam algum lugar antes conhecido
onde estive sem saber, sem me dar
conta do que podia via a ser
hoje sei? espero
enquanto certa invisibilidade traiçoeira
aguarda, permeia, infiltra
não se deve agir como se nada estivesse acontecendo
e o nada acontece, de fato
realiza-se diante de mim
eu o vejo através das minhas janelas translúcidas
tão evidente que lá está
em algum lugar – quem duvida? daí
pretendo ver sem incomodar, ouso
ser visto para estar vivo, ser
reconhecido como um corpo
são – não apenas uma ameaça
eu que nunca liguei para isso, que preferi
passar despercebido, hoje me incomodo
com aquele que se oculta
nas cortinas para me evitar e evitar
cruzar os olhos comigo, mesmo
a uma distância segura, maior do que
os dois metros
os doze andares
as quatro semanas
a meio caminho do céu.

Leia mais em Cartas da Pandemia.

terça-feira, 7 de abril de 2020

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Deixo aqui uma nova contribuição à nossa #quarentenaliterária: meu livro Por que a Lua brilha está disponível para download gratuito no site da Amazon até o próximo sábado, 11 de abril. Clique aqui, baixe agora mesmo e me ajude a espalhar a notícia. :)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

E-BOOK GRÁTIS PARA SUA #QUARENTENALITERÁRIA


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