Foto de Frank Busch |
domingo, 27 de dezembro de 2020
CIDADE EM BRANCO
sexta-feira, 11 de dezembro de 2020
SEMPRE PENSEI QUE MORRERIA
Foto de Dasha Urvachova em Unsplash |
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
CRIATIVIDADE EMBOTADA
Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe) |
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
OUTRO OLHAR PARA UMA HISTÓRIA
A adoração dos Magos (1564), de Pieter Bruegel, o Velho |
Adoração dos Magos (1460), de Andrea Mantegna |
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR
Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira |
A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.
O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?
Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.
A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.
O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.
Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?
No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.
Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
LIDA
Foto de Henry & Co. em Unsplash |
No reflexo dos olhos
deste livro que me lê
está posto o lugar-comum
aqui, entre as páginas abertas
o meu encerramento vivo
em pretensa diferenciação
identidade
individualidade, não
nada mais previsível que
uma unidade fabricada
em larga escala, induzida
a testes rígidos
para se manter um padrão na lida
e a repulsa pelo que dele escapa
Não consigo me ver assim, na realidade
é como sou – visto
tudo isto evidenciado
frente ao livro impassível
Enquanto a moldura
me oferece o paraíso
a preços módicos, uma vida
próxima, tranquila, todavia eu
sou encarado pelo poema e até
lido
suficientemente bem
com ser objeto de
complexa trama
algum desinteresse
irresoluta observação
Faço meu esforço convocado
pela leitura desse suposto eu
nos olhos que sequer pestanejam
translúcidos, adiante
e me ofuscam como a luz
no fim da vida.
terça-feira, 6 de outubro de 2020
NA COMPANHIA DE GOETHE
Goethe na campanha romana (1787), pintado pelo amigo Johann Heinrich Wilhelm Tischbein durante a estada do escritor na Itália |
Tem sido bom ler um livro imenso como o Viagem à Itália, de Johann Wolfgang von Goethe, com suas seiscentas páginas de letras miúdas. Desde o início da quarentena, meu sentimento do tempo é o que mais se desorganizou. As tarefas deixaram de caber nos horários reservados a elas, os dias ficaram iguais, minhas ações tornaram-se reações atrasadas. Uma sensação de não dar conta daquilo que é exigido na administração da casa, na paternidade, no trabalho; verdadeiro descompasso com tudo que se apresenta ao redor. Então à noite, pouco antes de dormir, acompanho Goethe desde a sua Alemanha em fins do século XVIII até Nápoles, cruzando a Itália a partir do nordeste, passando por Roma e outras cidades menores. Viajo a pé ou de carruagem madrugada adentro, observando as montanhas no horizonte, os vales cultivados, os dialetos dos povoados. Elaboro as minhas impressões com desenhos e com palavras.
O livro é composto por uma reunião de cartas e anotações. Seu formato de diário me surpreende: como Goethe consegue percorrer tamanhas distâncias, visitar lugares e pessoas, admirar obras de arte e ainda escrever de maneira tão minuciosa a cada vinte e quatro horas? Não bastasse a percepção desse tempo alargado, seus escritos também produzem em mim um distanciamento através dos séculos que nos separam, que chega como um verdadeiro fôlego para suportar o imediatismo de hoje, as preocupações de prazo curtíssimo, a constante ameaça da morte. “Impossível conhecer o presente sem reconhecer o passado, e o equilíbrio entre ambos demanda mais tempo e tranquilidade”, diz meu companheiro.
Surpreende-me, ainda, seu amplo conhecimento. Ele observa, por vezes em longas descrições, as latitudes, a meteorologia, a composição do solo, a vegetação, as histórias da arte e da arquitetura. Sua curiosidade a respeito de tudo é uma coisa linda de tão viva. Emociono-me, com ele, à vista das primeiras oliveiras, que não germinam em sua terra natal. Tenho o mesmo prazer ao experimentar as uvas, as peras e os figos, suas frutas favoritas. Ao visitar as livrarias e aprender com outros mestres, anteriores ao próprio Goethe, enquanto este busca apreender tudo o que pode sobre os artistas, a antiguidade, os costumes, as vestimentas, os trajetos. Em Roma, ele se esforça para comparar os mapas da nova e da velha cidade. Se no início da viagem prometeu a si mesmo não andar com peso excessivo, assume seu fracasso ao recolher “cerca de seis quilos” de certa barrita. “E lá vou eu mais uma vez, carregado de pedras!”, diz, ampliando sua coleção. Ao seu lado, quero saber: o que é barrita? O que Winckelmann pensava sobre aquela escultura? Como é possível guiar-se pelas montanhas, observando somente o curso dos rios?
Sua experiência de estranhamento com a religião católica, alvo de duras críticas de viés protestante; com o sentimento de solidão e anonimato em meio à multidão italiana, um século antes de Baudelaire escrever sobre o mesmo assunto; com a necessidade de educar o olhar para apreciar as pinturas dos museus; isso tudo se coloca como questões de um estrangeiro no embate com o outro e com a cultura local.
Mesmo bem preparado intelectualmente, Goethe encara sua viagem com o rigor de quem ainda tem muito para ver. Diz ele: “preciso agora concentrar minhas energias da melhor maneira possível, é preciso que haja ordem. Não estou aqui para me divertir de acordo com meus desejos. Quero dedicar-me ao estudo dos grandes objetos, aprender e me instruir antes de completar quarenta anos”.
Acho difícil dissociar essa sede de conhecimento e seus desejos; ela é o próprio desejo manifesto. Já eu, que me aproximo da mesma idade, quero assumir que não dá mais, sinto que preciso admitir a derrota, pois a vida que resta não basta. É ainda pior nas circunstâncias atuais. Caminho pé ante pé, mas Goethe se encontra lá adiante, quase não consigo vê-lo. Impossível aumentar o ritmo para alcançá-lo.
Então leio seus pensamentos registrados em Roma no dia 20 de dezembro de 1786, que mostram não apenas o quanto ele próprio se sentia pouco instruído, como também a sua necessidade de desconstruir o que já sabia para perceber o novo. Em suas palavras: “é certo que eu pensava poder aprender algo aqui. Eu não sabia, entretanto, que teria de retroceder tanto em minha formação escolar, que teria de desaprender tanta coisa, ou mesmo aprender de outro modo. Agora, porém, encontro-me totalmente convencido disso, tendo me entregado por completo ao processo, e quando mais eu tenho de renegar a mim mesmo, mais me alegro”.
Respiro fundo. Sigo com Goethe. Ainda mal cheguei à metade de sua viagem. Acalmo a pressa, redimo-me com a ansiedade. Sinto o pulso da terra, assim como ele o fez. Foi bom até aqui. Antevejo que continuará a me fazer bem explorar o tempo e o espaço, mesmo sem sair de casa, folheando páginas e páginas de uma longa jornada de aprendizado.
quarta-feira, 30 de setembro de 2020
[live] UTOPIAS: COMO IMAGINAR NOVOS MUSEUS?
André é autor de uma pesquisa sobre o trabalho artístico “A nova crítica”, de Frederico Morais, que propôs algumas utopias para o museu de arte pós-moderno.
Nesta conversa, queremos levantar pistas daquela produção para pensar: qual é o papel da utopia num museu? Como imaginar novos formatos e relações entre instituição, acervo e público? Como ativar a potência criativa e a crítica sensível dos museus a fim de rever suas formas de captura e ampliar acessos?
André Leandro Silva é bacharel em museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi eleito Conselheiro Municipal de Cultura em Belo Horizonte. Tem se dedicado a pensar a relação entre museus e acervos, considerando os agenciamentos provocados pelos acervos e as idealizações de museu neles encontradas.
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
HISTORINHA PARA DESPERTAR
Foto de Camila Jacques em Unsplash |
Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.
sexta-feira, 4 de setembro de 2020
SELEÇÃO OU CURADORIA?
Foto de Martino Pietropoli em Unsplash |
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
[live] LANCEI UM LIVRO. E AGORA?
Participo desse bate-papo sobre publicação e divulgação de livros, que será transmitido ao vivo pelo Facebook da plataforma Vida de Escritor. Clique no link e acompanhe!
TRÊS CONCHAS CINZA
Côncavo IV - série azul (2016), Lúcia Quintiliano |
Talvez você se pergunte o que significam estes longos períodos de silêncio entre um escrito e outro. Desde a chegada da pandemia ao Brasil, quase não toquei no caderno de memórias que pretendo lhe entregar no futuro, quando você for adulta. Claro que muito tem acontecido, mesmo se a história lhe disser que o mundo parou. Não parou sequer quando deveria ter parado. Estamos confinados numa correria impensável, sobrevivendo precariamente entre o trabalho remoto, o ensino à distância e todas as atividades mal realizadas que só produzem frustração. Nossa situação é privilegiada. A falência geral sangra mais onde não vemos. Há pessoas fragilizadas, vulneráveis, obrigadas a se arriscarem para sustentar o nosso isolamento social. Elas habitam os silêncios entre um relato e outro da história. Se puder, tente ouvir seus sussurros nas conchas que guardei na prateleira da biblioteca, elas falam da fenda entre o que chamamos de sociedade e o que ela de fato é. Por ora, só posso dizer de minha perspectiva parcial e insuficiente, como são todas.
Recolhi da praia três conchas cinza bastante semelhantes, exceto pelo tamanho. Uma maior, outra média, outra pequena. Guardei-as como lembranças de nossa estada no litoral durante alguns dias da pandemia, onde você enfim pôde correr pela areia e tomar sol, após três ou quatro meses isolada em um apartamento. Você não cabia em si; eu e sua mãe ficamos aliviados. Peguei as conchas intuindo que de alguma maneira elas se pareciam conosco. Só agora me pergunto por que, exatamente. A vida que as habitava já não está. Qual teria sido o seu destino? O que significam conchas vazias na areia, trazidas pelas ondas, neste contexto atual? Como é viver numa concha, encontrar segurança apenas no interior daquela estrutura rígida? Ser levada para um lado e para o outro, a dança conduzida pelo mar?
Em casa, folheio poemas escritos pelo chinês Ai Qing na época de sua viagem à América do Sul, em 1954, por ocasião do aniversário de cinquenta anos do amigo Pablo Neruda. A última fotografia reproduzida no livro mostra o poeta agachado na areia, recolhendo o que parecem ser conchas. A mão direita, mais baixa, tenta agarrar uma delas. Na esquerda estão as já escolhidas, posso ouvi-las tilintarem, quase caindo entre os vãos de seus dedos. Os cabelos estão revoltos pelo vento que sopra do Pacífico, o mesmo oceano que contorna sua terra natal. As mangas e pernas de seu terno escuro estão esbranquiçadas pela areia fina do litoral chileno, talvez de Viña del Mar ou El Quisco, conforme a legenda da imagem.
Sabe-se que Ai Qing recebeu com muito carinho a coleção de conchas com que “el capitán” o presenteou e que o encantou pela diversidade de cores e formatos, guardadas como relíquias de uma experiência de liberdade, trocas culturais, inspiração para um ideal de sociedade sempre porvir. Pouco depois de retornar à China, o poeta foi preso pela repressão e condenado a um confinamento de vinte e um anos, que lhe retirou todos os direitos civis e políticos.
Tive o prazer de visitar a casa-museu de Neruda em Valparaíso, apelidada de La Sebastiana, toda decorada com os mesmos motivos náuticos que se encontram nas suas demais residências. Da sua cabine de comando se vê o Pacífico, cujo nome se dilui num horizonte infinito. Diz o longo poema que Ai Qing dedicou ao anfitrião, intitulado Sobre um promontório no Chile: “O dono da casa é / amigo de Lorca, o poeta assassinado / testemunha do martírio da Espanha / diplomata aposentado e / não almirante”. Mais adiante, lemos: “Alguém se levanta e / com uma lupa / busca lugares no mapa-múndi / onde ainda não botou os pés / O mundo em que vivemos / parece-nos tão imenso / mas é de fato pequeno / Num mundo como este / a vida deveria ser melhor”.
Enquanto sobrevoava outro oceano, vindo da Europa e da África e antes ainda de chegar a Recife, Ai Qing escreveu também um longo poema de evidente caráter anti-imperialista, olhando para baixo pela janela do avião. Chama-se Atlântico, do qual recorto uns versos: “Vida é preciosidade sem preço, / Mas, na opinião dos vendedores da guerra, / Vida é insignificante, / Na balança deles, / Para equilibrar com contrapeso, / É preciso um caderno / De mil páginas cheias de nomes de pessoas.”
Será que, ao vasculhar a areia na praia chilena, Ai Qing sonhava com a revolução comunista, que pretendeu criar um país igualitário? Sua poesia viajante, seu olhar estrangeiro voltado à nossa América do Sul.
Neruda escrevia sempre com caneta-tinteiro e uma tinta verde-mar. Já tive um vidro dessa tinta, mas não consigo desaguar no papel sequer uma amostra da sua imensidão poética.
Caminho pela praia do litoral norte de São Paulo, recolho três conchas cinza, olho para as águas que são outras e são as mesmas de Neruda e Ai Qing, separadas por mera convenção. Afundo meus pés na areia sem poder distinguir o que nela são fragmentos de conchas antigas, há muito desbastadas, e o que não é.
Enquanto isso você olha para cima. São andorinhas.
sexta-feira, 7 de agosto de 2020
ASSUMO A DERROTA
Foto de Mark Eder em Unsplash |
Abandono os planos no papel
rasgo sonhos ao meio
atiro os fragmentos pela janela
e fico a ver navios
partirem rumo ao destino
que pensava ser o meu
É preciso assumir
a precariedade que se instalou
a distância impossível no horizonte
que meus olhos um dia tentaram alcançar
Não é a idade
a saúde financeira
o desgaste das relações
é mesmo uma percepção
da vida submetida a instâncias superiores
crueldade e perversão sociais
quase uma iluminação profana
de que não haverá amanhã
nem motivo para tentá-lo
outra vez, por teimosia
Assumir a derrota agora
me chega como um alento
no final, quem diria
uma realização,
espécie de vitória
vazia.
segunda-feira, 27 de julho de 2020
ANTICORPO
Foto de Velizar Ivanov em Unsplash |
quarta-feira, 22 de julho de 2020
“DIANTE DOS MEUS OLHOS” É FINALISTA DO PRÊMIO GUARULHOS DE LITERATURA
segunda-feira, 13 de julho de 2020
A LEITURA COMO DESREGRAMENTO DE SENTIDOS
Penso se ler poderia mesmo desestabilizar o continuum da vida comum e levar a uma “iluminação profana” – para usar a expressão de Walter Benjamin – por meio dessa embriaguez não alcoólica, quer dizer, sem o uso de outras drogas senão o próprio livro, com o delírio sugerido pelo cheiro de tinta em papel. Uma suspensão de certa ordem que nos abre para outra; pensamento que irrompe de um jogo e remonta toda uma cadeia de significações já formada e banalizada.
Abrir as páginas de um livro de prosa ficcional implica abrir a mim mesmo e me dispor a encarnar um personagem outro; a possessão da sua existência imaginária, dos seus sentimentos contornados pela sintaxe. Viver inclusive uma alteridade radical, como a produzida por William Faulkner na primeira parte de O som e a fúria, em que adentramos a lógica torta de um deficiente intelectual, ou a de Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em sua estranha animalidade.
A experiência é exigente porque requer desativar mecanismos pessoais já muito aprimorados para inventar outro funcionamento. Acaso se consiga decorrerá o horror ou o prazer da ebriedade estética, por assim dizê-la; esse desregramento dos sentidos que expande a percepção para além das fronteiras do senso-comum.
Há pouco li O museu do silêncio, romance escrito pela japonesa Yoko Ogawa em que um museólogo é chamado a um vilarejo para lidar com uma coleção de objetos especiais. Enquanto se avizinha à nova situação, passeia pelos arredores e nos envolve num enredo inquietante e ao mesmo tempo aconchegante, do qual é difícil sair ileso. Cada vez mais implicado no projeto do futuro museu que está organizando, esse personagem transborda a própria margem e dá a ela nova forma; entre os copos de uísque, enamora-se por uma menina, aproxima-se da natureza com o uso do microscópio e se afasta da própria história familiar. Com ele, passo também a operar segundo outra modulação. As regras se desestabilizam, afrouxam, confundem os sentidos e me levam a uma vida não vivida na realidade, mas na ilusão, da qual ainda assim podemos falar, traduzir em imagens, descrever e interpretar; não menos real, portanto.
Sabemos que a criação da perspectiva na representação visual depende de um ponto de fuga; uma formulação matemática para que se possa escapar da banalidade da vida e adentrar um contexto ilusório disposto na realidade. Puro artifício a enganar os olhos, que veem profundidade num plano preenchido de pigmentos coloridos. E na representação literária, seria muito diferente?
Bacchus (1596-1597), de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio |
Cansado, não posso controlar o sono e durmo com O museu do silêncio nas mãos. As páginas do livro aberto fazem as vezes de um portal por onde afluxos de sentimentos vêm e vão. Imagens. Palavras. Afetos. Tomo o mesmo trem que leva o museólogo à vila no interior do Japão; o trem que ele jamais pegará de volta. Parte de mim permanece com ele naquele lugar incrustrado nas montanhas e florestas. Parte de mim observa à distância a coleção de objetos que pretende rememorar cada vida extinta naquela comunidade. Outra parte não será vista novamente; esta última talvez seja a única verdadeiramente liberta.
sexta-feira, 26 de junho de 2020
DERROCADA
Foto de Alexander
Andrews em Unsplash |
quinta-feira, 11 de junho de 2020
TOMAR DISTÂNCIA
Photo by Andrew Buchanan em Unsplash |
quarta-feira, 10 de junho de 2020
QUASE CIDADES
Foto de Issy Bailey em Unsplash |
cidades futuristas
e existem as cidades
que eu conheço
como aquela
onde nasci
onde quase nada vale a pena ser guardado
nem aponta para um sonho
nenhuma utopia
um lugar que é só presente
para sempre, enquanto durar
poderia ser qualquer lugar do mundo
de alguma maneira é
sem graça
uma lembrança que não se assenta
nem aceita carinho
ou gratidão, tão banal
que é só uma cidade de sobrados gradeados
aos poucos derrubados para no lugar
erguerem prédios banais, também gradeados
com sacadinhas onde casais cansados de si
estiveram uma única vez
e prometeram voltar
falaram nisso, fizeram planos
ainda aguardam a oportunidade certa.
Não haverá
futuro ou memória
apenas este presente infinito
ínfimo, cuja intimidade já não tem mistério
ou sonho
– quem dera utopia
não existe
sequer afago que não seja burocrático, rotineiro
automático, não sei
dias iguais como cada andar do edifício parado
com suas sacadinhas estúpidas
sua disposição padronizada de cômodos
vizinhos, uns como os outros
tão semelhantes
que nem mesmo se cumprimentam
nas áreas comuns, no elevador
por exemplo
vizinhos sem passado ou futuro, gradeados.
Mas eu dizia cidades
onde quase nada vale a pena
– e o quase
faz toda a diferença
sinto que preciso buscá-lo, deve estar por aí
naquela luz acesa quando as demais já dormem
num elevador em que não se fala do calor
– dane-se o tempo presente, ainda dá para encontrar o quase
a falha na programação
fôlego retesado de surpresa
que irrompe da sacadinha e salta no vazio
escapa dos tentáculos mórbidos e
voa, enfim, para longe
àqueles lugares clássicos ou revolucionários
deslocados do agora que é igual ao ontem e à semana que vem
onde se pode experimentar um jeito outro
um pensamento fugaz, um desvio, um desejo
a fagulha que inicie o grande incêndio
das cidades onde nasci e conheci e das quais
sequer me recordo
porque nunca habitaram em mim.
sábado, 6 de junho de 2020
TOMAR DISTÂNCIA PARA DESCONHECER MELHOR
Carta ao pai (2015), de Élida Tessler |