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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

ETERNIDADE

Aos trinta e dois anos de idade, não tenho mais avô ou avó. Essa frase seria um bom início de conto, pois só é verdade no sentido da fabulação. A realidade é que carrego meus avôs e avós junto comigo; estão vivos em mim. Se acredito em alguma vida após a morte é nesta: a vida que se dissolve em outras, que toma nova forma para permanecer existindo. Dezenas, depois centenas, depois milhares de dissoluções naqueles que nascem, até que perdemos a conta e passamos à eternidade. Passar à eternidade significa permanecer a existir em infinitos outros.

Carrego comigo não apenas parcelas dos meus avôs e avós, mas também os ascendentes de gente que sequer conheci. Que se legaram à posteridade e hoje constituem o eu, o eles, o nós. Por vontade própria ou contra a própria vontade, com ou sem intenção de deixar heranças boas e ruins, sempre boas para uns e ruins para outros. Já não lembramos deles de tanto que se pulverizaram sobre o campo fértil da humanidade; a cultura em que fui cultivado.

Lembro bem apenas dos mais próximos, na medida em que é possível lembrar bem de algo. Porque na maior parte do tempo lembramos muito mal. Avivamos uma cena, um cheiro, uma frase, um beijo. E nos iludimos com esse pouco, acreditamos assim lembrar muito bem daquele passado que hoje é uma reminiscência. Não lembro bem porque meus avôs e minhas avós não cabem na memória, eles foram muito maiores, mais complexos e mais vivos do que qualquer memória poderia guardar, inclusive a deles mesmos. Quem dera a minha pudesse!

Também as lembranças são verdade apenas para a fabulação. Ou, melhor dizendo, elas são fabulações enquanto as consideramos verdadeiras. Tudo o que trazemos na memória tem algo de inventivo. Um recorte do passado, uma narrativa, uma ficção feita de substantivos, adjetivos, imagens e afetos. Existiu de fato? Impossível afirmar. Mas agora existe, pois me recordo. Existe numa forma outra. Existe enquanto parte de mim. Parte que trago comigo, inclusive as lembranças que não são minhas, as memórias compartilhadas em volta do fogo, ao redor da mesa; um saber ancestral.

Sou uma tartaruga que carrega no casco a memória da terra. Ao mesmo tempo em que pisa a terra, ao mesmo tempo em que habita a sua própria casa que não é a terra mas dela se originou e a ela voltará um dia, como se um incrível paradoxo conectasse a nós todos. Voltaremos um dia à terra onde nascemos. Mas hoje não. Hoje a tartaruga não se lembra muito bem. Apenas algumas cenas se apresentam a ela.

Lembro-me de meu avô, que se sentava no sofá com um volume de enciclopédia sobre a fauna do mundo. Apontava os animais coloridos nas páginas e contava suas histórias. O rinoceronte, o lince, os pássaros todos; sim, ele era apaixonado pela liberdade dos pássaros. Ainda muito pequeno, recém-saído do ovo, aprendi a ler a vida naquelas fotografias fantásticas. Mesmo sem compreender uma letra sequer.

Essa mesma tartaruguinha se lembra do outro avô, forte como uma árvore. Seus bracinhos não bastavam para contorná-lo, suas patinhas não se encontravam do outro lado. Seu rostinho se perdia naquele tronco tão antigo, que cheirava a sabão em pedra. Que tinha uma textura áspera de algodão muito usado e muito lavado. Esse avô sentava-se na escada do quintal, onde picava fumo numa lata tão enferrujada quanto o hábito. Demorava-se na tarefa, a tarde inteira se fosse preciso. Era também tartaruga, sem pressa nem ansiedade; era sábio porque vivido. Depois lambia a seda, enrolava o cigarro e tragava uma fumaça acre que jamais poderia lhe fazer mal, tão lindo aquele rito.

Das avós a tartaruguinha lembra mais e melhor. Uma delas fazia farofa e se atrapalhava toda na cozinha, comprava presentes na feira e se atrapalhava toda nos tamanhos; os médicos diziam que seu sangue ia mal, ela se atrapalhava na dieta. Porém tinha bom coração. Fazia a família rir e ria junto, estourava numa gargalhada saudável que curava todo o restante. E seguia feliz da vida, mesmo sem jamais ter ganhado na Tele Sena.

Essa avó teve um cunhado de quem gostava muito. Ele havia casado com uma das suas irmãs. Depois de viúvo, casou-se com outra. Faleceu no mesmo dia de minha avó, e ambos me deixaram essa história incrível do homem que se casou com duas irmãs e foi-se embora com a terceira.

Restou a última vovó. Que era ligeira, inquieta, estava sempre de ouvidos atentos às novidades da tartaruguinha. Decidiram viajar juntos para desvendar as origens da família. Todo aquele esforço, todo aquele passado revisitado foi necessário para compreender que a origem é pura fabulação. A família se fazia ao longo dos dias, das trocas, da própria viagem. Nos pés inchados pelas caminhadas, nos castelos antigos tanto quanto nas ruas mais modernas, no pêssego mais gostoso que já foi partilhado um dia. Na satisfação de viver uma experiência junto de quem se ama. Nos encontros, no prato favorito, na vontade de que tudo jamais termine. Nas histórias que se pode contar. Nos gestos que repito e só então percebo como somos parecidos.

As lembranças são várias, ainda que insuficientes. São o que resta, afinal. Jamais trarão de volta os vovôs e as vovós da tartaruguinha, por mais intensa que seja a memória, por mais intenso que venha o desejo. Ainda assim as lembranças pulsam, sugerindo que todos eles sobrevivem em mim. As lembranças preenchem o vazio. Ao ponto de que neste casco não haja solidão.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

TODO OUVIDOS


Fico intrigado ao ver tradutores de libras num show de música. Bem ali no palco, ao lado do Nando Reis. Não entendo os sinais, que às vezes se assemelham a uma palavra, outras vezes parecem uma dança. Como funciona essa linguagem? Traduz algo além dos versos e eventuais comentários do artista? Será que dá sugestões do som? Tais sugestões fariam sentido a alguém que nunca ouviu, portanto não tem referências para entendê-las? Não tenho amigos nem parentes surdos, sou leigo no assunto. Sentado na plateia, observando aquelas pessoas se desdobrarem em gestos que nada dizem para mim, fico a pensar um amontoado de questões.

A mais evidente delas é: por que um deficiente auditivo viria a um show de música? Não se trata de um espetáculo pirotécnico, não há quase nada interessante para ver. Há o Nando Reis e o seu violão. E só. Quero acreditar que o tradutor não está ali obrigado por uma lei esdrúxula, gesticulando para ninguém. Quero acreditar que está li porque existe demanda, ou seja, porque os surdos frequentam shows de música e devem ser acolhidos conforme for mais conveniente a eles. Se essa conveniência inclui a libras, que seja a libras.

Agora, se os surdos vão aos shows apesar de seus ouvidos não perceberem a sonoridade, será que “ouvem” de alguma outra maneira?

Presto atenção às vibrações produzidas pelas caixas sonoras. É alta e faz tudo vibrar junto, o copo em minha mão, a poltrona, o ar. As ondas reverberam na pele, na carne, nos ossos. Além da música tocada, há essa música que nos toca, como se fôssemos seus instrumentos.

Observo a plateia, imaginando uma imensa orquestra a produzir música em seus próprios corpos, cada qual com seu timbre singular. Entretanto o que vejo não são instrumentos nem ouvidos, mas celulares. Centenas de telinhas brilhantes a competirem com as luzes do palco. Tenho assim a segunda revelação da noite: estes espectadores, tanto quanto os deficientes auditivos, ouvem mal, talvez nada ouçam com os seus ouvidos. Talvez ouçam com os olhos, através da tela. Fotografam, gravam, postam imediatamente nas redes sociais. Quem é surdo, afinal? Quem não pode ouvir ou quem pode mas não ouve realmente, ocupado que está com os olhos, os dedos, a comunidade digital?

Neste momento Nando Reis se distanciou, preciso fazer um esforço para reencontrá-lo. Fecho os olhos, procuro, sim, aqui está ele, dedilhando o violão, cantando no tom.

Lembro das minhas próprias aventuras musicais, tocando contrabaixo com amigos num estúdio, pura diversão. Quem tem ou já teve banda sabe o que digo a respeito de uma qualidade chamada entrosamento. Para a qual não há explicação lógica, é uma espécie de sentimento coletivo que produz um dissenso harmonioso, com notas diferentes que por alguma desrazão torcem o tempo. É uma qualidade que possibilita antecipar o movimento do colega, oferecer suporte para que tal movimento se realize ou apoiar nele a sua própria ação, conforme o andamento da música.

Todos os membros da banda podem tocar as notas certas no momento certo e ainda assim não estarem entrosados. Nessas horas a música soa correta, porém sem cor. O entrosamento de uma banda soa diferente. Como uma tessitura irregular que se adapta às imperfeições do espaço. Quando a banda entra em sintonia, a música atravessa o corpo de todos; ela é mesmo incorporada, ou seja, expande-se para além dos ouvidos, da racionalidade das escalas, da teoria e do metrônomo; ao ponto de ser tocada pelo corpo inteiro da banda e por reger o corpo de cada músico individualmente. Quem tem ou já teve banda sabe o que eu digo. Quem nunca teve talvez não entenda. Não é fácil por em palavras. É uma espécie de sensação que precisa ser experimentada.

Ouvir a música apenas com os ouvidos e tocá-la apenas de acordo com os ouvidos, obedecendo à matemática musical, rende um som artificial, quase uma aberração mecânica. Você pode tocar o instrumento com perfeição técnica, porém sua música não tocará ninguém. É preciso avançar esse estágio se quiser ser um músico que toca as pessoas, mais do que toca o próprio instrumento; é preciso sentir a música como uma entidade que o envolve por completo, que para o tempo e coloca você em afinidade com um presente contínuo. Todo o tempo da vida está naquele instante. Suponho que seja por esse motivo que as horas voam quando fazemos música.

Nando Reis pausa o violão e diz que tem um irmão surdo. Que nasceu sem audição e não aprendeu a língua dos sinais; ele lê os lábios. As pessoas ao meu redor tiram fotos e gravam vídeos e compartilham suas imagens nas redes sociais enquanto o músico conta suas histórias de juventude. Eu fico curioso, imaginando como deve ser, para um artista famoso como ele, crescer na companhia de um violão e de um irmão surdo. Como será que essa experiência afetou sua obra? Que Nando Reis é esse que somente aquele irmão ouve? Qual é a semelhança e a diferença entre ele e esse outro Nando Reis que nós ouvimos, fotografamos e compartilhamos? Será que o irmão toca algum instrumento musical? O que será que os deficientes auditivos da plateia teriam a dizer, que histórias teriam a contar? Eu adoraria conhecê-las.

Outra canção já começou e eu nem mesmo percebi.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

EXTRAORDINÁRIO


Vai ficar um troço extraordinário, dizíamos a nós mesmos com a convicção explosiva das crianças. Tínhamos acabado de aprender o adjetivo. A ideia nos instigava a continuar. Uhuu! Demais! Já pensou como será quando terminarmos? Tudo vai ser diferente. Quero ver quem terá coragem de tratar a gente desse jeito de novo. É, vão nos respeitar! Os adultos vão nos respeitar. E não só eles. Aqueles folgados do colégio vão ajoelhar e beijar nossos tênis. Seremos famosos no mundo inteiro. É!

Nós passávamos o tempo todo trabalhando na ideia. Desenhávamos durante a aula de português, trocávamos bilhetes codificados na aula de geografia, matávamos a aula de química para não perder o fio da meada. Química era, na verdade, grego. E continua a ser. A professora de artes gostou da ideia e nos ajudou em algumas etapas, mas é claro que não revelamos para ela as minúcias. Os nossos segredos supersecretos. Não éramos crianças estúpidas assim. Aquele era o grande projeto das nossas vidas. Incrível! Gigante! Um troço extraordinário! O mundo inteiro ia ver, cada país de cada continente ouviria falar de nós. Apareceríamos na televisão! Nem mesmo uma guerra conseguiria nos impedir.

Só fazíamos uma pausa para a educação física. Porque, bom, a gente jogava bola, era divertido. E todo gênio precisa de um descanso mental. Após três ou quatro partidas na quadra da escola, reuníamos a turma novamente para planejar os passos seguintes. Ninguém poderia descobrir, então cuidávamos para afastar os espiões com bexigas cheias de água da privada. Era um planejamento complexo. Desenhávamos cada detalhe numa cartolina branca, que emendávamos nas demais e pendurávamos com fita crepe nas paredes do quartinho de bagunça do Cabeça. Os pais dele nunca entravam lá, só a faxineira, que era nossa cúmplice. Assim o projeto estaria seguro.

Não vou dizer que foram só maravilhas. Às vezes custávamos a chegar num acordo. As assembleias do conselho duravam horas. Houve também questões resolvidas no tapa. No par ou ímpar. No campeonato de pum. Cada assunto demandava um método específico, bolacha Maria e leite com chocolate.

No meio do processo o Biró se afastou por um tempo, disse que não queria mais saber daquilo, não concordava com o jeito como conduzíamos o projeto. Muita pressão, coitado. Nossas expectativas eram altas. Ele queria mudar de assunto, fazer algo diferente, para variar. Mas nós queríamos continuar, então ele tocou a campainha uns três dias depois, contou que seus pais iam se separar e retomou seu posto na missão. Vai ser um troço extraordinário, gritamos juntos para selar o pacto. Biró engoliu o choro. Seu papel era fundamental na execução do plano, ele era o mais alto da turma.

Dediquei as férias de julho daquele ano ao projeto. Meu pai procurava trabalho, e mesmo quando os amigos viajaram eu continuei empenhado. Achei bom fazer sozinho, era mais fácil quando não precisava debater cada detalhe com a turma ou decretar questão de ordem a cada cinco minutos porque o assunto descambava mais uma vez para as figurinhas raras do Campeonato Brasileiro. Eu conseguia até jogar videogame nas horas vagas. Porém meu desempenho era apenas razoável, com aquele monte de coisas me atazanando a cabeça. Seria melhor ficar com a ideia só para mim? Os outros me odiariam se eu ficasse famoso sozinho? Dariam uma surra? Quem precisa de amigos que batem nos outros amigos? Se eu não roubasse a ideia, eles continuariam meus amigos para sempre? Assim me esquecia por completo das tarefas da escola, o que minha mãe fez questão de sublinhar quando sentenciou o castigo. Tudo bem ficar sem televisão, tudo bem fazer toda a lição das férias em apenas três dias, era por uma boa causa. Eu estava trabalhando no grande projeto da minha vida. Um dia ela entenderia. O sacrifício valeria a pena.

Eu dizia que nem tudo eram flores. Nosso troço extraordinário sofreu uma concorrência desleal no segundo semestre escolar, quando parte da equipe trocou as figurinhas de futebol por meninas do colegial. Não conseguiam falar de outra coisa, as hipóteses eram diversas, ficou impossível manter o foco. Percebi na hora que vivíamos uma crise. Eu quis me adaptar, sem saber direito como, então chegaram as provas parciais, os jogos interclasses, a feira de ciências, as provas de fim de ano, a recuperação, o Natal. Foi difícil. Com a saúde bastante debilitada pelo excesso de inconvenientes, nosso troço extraordinário não sobreviveu às longas férias de verão.

Seria um negócio como nunca visto! Talvez nos faltasse experiência para gerenciar um empreendimento daquele porte; talvez faltasse maturidade, como meus pais repetiam a todo instante. Talvez o troço extraordinário fosse, enfim, um pouquinho impossível, mesmo para nós. Não sei. São tantos imprevistos que atravessam o caminho das ideias mais incríveis! De tanto desviar, em algum momento nos perdemos.

Como seria quando terminássemos? Eu sonhava com esse momento. Depois pensava apenas em terminar. Depois planejava fazer, nem que fosse um tantinho por dia. Até que eu só me dedicava a tarefas mais urgentes, estava imerso nos outros projetos que o mundo tinha preparado para mim. Não havia mais tempo para o nosso troço extraordinário. Impossível, eu dizia, agora não tenho a menor condição! Todas as pessoas iriam me respeitar. Eu seria reconhecido, tudo ficaria diferente. Ninguém me trataria desse jeito. Nada seria banal, tudo seria grandioso. Muito bem, o que aconteceu? Sinceramente, não sei. Hoje é difícil explicar.

sábado, 8 de outubro de 2016

VOO NO ZOO


Entre escaravelhos, cronópios e bumbam meus bois, entre macunaímas, utopias e botos cor de rosa, havia aquela girafinha. Sim, eu a via. E ela voava! Baixo para uma girafa, alto o bastante para uma girafinha. Toda aquela liberdade frouxa nos céus! Coisa bonita de se ver, a girafinha. Depois pousava no galho. Bem ali, naquele galho, é. Entre gatos pardos e folhas de relva, entre nenúfares e tritões. Tantas árvores frondosas dentro da sua jaula e ela preferia a menor, mais próxima das grades de aço, de onde esticava a cabeça e comia amendoins nas mãos dos visitantes. Toda a gente de bem. Os cidadãos e citadinhos. Tinha o jabuti, o rinosoro, o macaco prego. Tinha a girafinha, coisa linda! Voava, pousava, comia os amendoins. Mascava junto uns dedinhos, os visitantes nem faziam questão, a gente boa. Croque croque, monsieur; croque croque, madame; croque como o crocodilo faziam falanges e metacarpos na mandíbula da girafinha. Que língua enorme!, admiravam-se os puritanos. Que esfomeadinha! Quando a família notava os cotoquinhos restantes na mão direita do papai, na mão esquerda da mamãe, nas mãos conjuntadas dos filhotinhos, todos achavam graça, riam das travessuras da girafinha. Ela voava de alegria. Passava o dia a exercitar sua liberdade assistida no zoo-safári. As famílias, fiéis, voltavam sempre. Pois adoravam esticar amendoins para dentro da jaula e alimentar a girafinha, mesmo que a maioria caísse por entre os dedos que já não existiam. A girafinha tinha um longo pescoço para alcançá-los no chão. A cada dia sua vivacidade era maior e maior. A cada dia voava mais e mais alto, mais alto do que as árvores, mais alto do que as grades de aço. O que nos deixou senão o vazio?

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

PARTO



Close nos olhos de uma menina (ver cena inicial do filme Kill Bill vol. 1). O plano se abre e temos um revólver apontado para a cabeça dela. Calibre .38. Tanto a arma quanto a menina são as mesmas que aparecerão no final da história. Há um disparo. Miolos coloridos voam.

O nascimento traz muitas mortes consigo. Talvez o nascimento seja a morte em si. Sua essência. É bobagem falar de essência, eu sei. 'Cause we're living in a material world / And I am a material girl. É bobagem falar de mundo, eu sei. É bobagem falar qualquer coisa. Falar sobre. De cima. Mas há o inominável e falar é o que nos resta. Linguar, linguajar. É tudo o que nos resta. O ser da linguagem. Então falamos. É a nossa essência. Somos enquanto falamos. Falo, logo existo. A voz marca o nascimento. Choramos. A essência do nascimento, a largada, o início da caminhada que leva ao desconhecido. Do lugar algum ao lugar nenhum. Do pó ao pó. Pode dizer o que quiser, pode explicar conforme crê. A morte. Conheço só de nome. Não há nada além. Nem mesmo pó. Há apenas discurso. Discursar é o que nos resta.

Na ocasião de um nascimento, naquele instante imensurável, naquele momento presente que quando se percebe já é passado, mais veloz do que o disparo de um revólver e mais demorado do que tudo o que já aconteceu na história do universo, no primeiro e derradeiro instante, na passagem da vida à morte, ali, exatamente ali, morre toda a pureza das pessoas. Todo o ideal. Toda a perfeição que poderia um dia existir. A utopia? Morre. Inteirinha. Naquele. Exato. Instante. O que nasce é uma farsa. É uma ficção. Uma historinha para boi dormir. Acredite, sei o que estou falando. A fecundação é o primeiro e o último ato verdadeiramente espontâneo das nossas vidas. Dali para frente somos manipulados. Somos levados a acreditar em liberdade. Justiça. Segurança. Certeza. Verdade. Moradia. Tudo ilusão. Tudo ficção. Tudo discursinho. Até quando? Quer saber? Não sei. Sei apenas que, quando o espermatozoide viola o óvulo, a inocência se esvai. Morre. Um morto que jamais choramos. Todo o resto é vazio.

BAM! A menina puxa o gatilho e seus miolos são coloridos. Que lindo. Que poesia. Que fofo.

A manipulação da vida é premeditada. Sim, premeditada por todos os que já morreram um dia. São eles que tocam nosso réquiem. Se há música, há a música dos sons da rua. A crueza do real. A nudez. A surdez potencial. Interesseira. Ignorante. Manipuladorazinha vil e calculista.

Admirável, senhores, admirável. Isto é tudo? É isto um homem?

Os miolos coloridos. Ai, muito lindo! Vejo ali... Veja bem:
As flores, os sonhos, os sorrisos.
Os abraços. Os beijos. Os carinhos e as carícias.
A grama verdinha, o céu azul, a casinha de chaminé. O arco-íris.
Nos miolos coloridos. Vejo isso tudo. Massa cinzenta não. Massinha de modelar.
Tudo vaza pelo buraco da bala. A cova aberta na cabeça da menininha.
Preste atenção porque essa mesma menina vai aparecer de novo no final da história!
Sua cova pode acolher um cadáver ou uma semente, ainda não sabemos. Aliás, eu sei. É você que ainda não sabe.
Sua inocência se esvai pelo buraco aberto, cai como a chuva. Torrenciais miolinhos coloridos. Tudo isso vaza e abre espaço para o preconceito, o pressuposto, o dispositivo, o dogma, a verdade, a certeza, a máquina, a opinião, a bobagem toda, inteira, imensa. Blá blá blá blá blá blá blá blá.

Sente o cheiro? Acre? É pólvora. Enxofre. Fogo. Passa o fogo e resta o buraco. Cheio de lixo. Cheio de quê? Restos, sobras, resquícios de um passado que nunca existiu. Excesso de informação. Toda essa porcalheira de pensamentos produzidos pelos demais. Pensamentos inventados, imaginação, fantasia. Bobagem demais. Demais, tenho demais. Vendo. Vendo pensamento, único dono. Pouco usado. Cheio de preconceito. Cheio de pólvora. Sente o cheiro? Snif, snif. Sniiif.

Sim! Quem se lembra das cores do arco-íris? Vermelho sangue. Azul calcinha. Púrpura... Fúcsia?

(Quem se esquece do pote de ouro?)

Fúcsia você! BAM! Sua vida foi concebida. Pronto, feito. Aceite-a. Leve-a daqui. Suma. Seus miolos foram recuperados. Toda a massa. Cinzenta. Lúgubre, paciência. É o que resta da sua inocência. Culpado! Sim, senhor. É tudo questão de culpa. Quem leva? Você aí, leve esta culpa para longe de mim. Não adianta chorar.

Parabéns, você acaba de nascer. Nunca mais será o mesmo.
Você tem um nome: Odisseu.
Quem?
Ninguém.

Alto! Quem vem lá? Quem está aí?
Eu.
Eu quem?
Ninguém.
Ninguém.
Ninguém.

(esboço de prólogo para o romance Ninguém, que ainda está em processo de criação)

sábado, 1 de outubro de 2016

O NÃO DITO

O que está fora de quadro é quase mais importante do que aquilo que a tela exibe, diz o cineasta alemão Wim Wenders no documentário Janela da Alma. O ato de enquadrar uma cena consiste em excluir elementos visuais. A cada enquadramento o diretor decide o que faz parte da história e o que não deve fazer. Algo similar ocorre além do cinema. Nestes tempos de superexposição de imagens é importante abrir os olhos para o que é omitido das histórias que nos contam. Nos veículos de comunicação, nas redes sociais, nos discursos oficiais e nas fofocas do dia a dia, o que é propositalmente não dito? Quem faz essa seleção e com quais critérios? Quem dirige a nossa vida?

A perspectiva pela qual olhamos um acontecimento costuma vir pré-determinada. Pois quase sempre ocorre que não estivemos lá, não vimos com nossos próprios olhos. O instante decisivo é oferecido depois, junto de uma legenda sobre o que pensar a respeito. Nossas opiniões, em geral, se formam e se apoiam nesse terreno movediço. Porém com raras exceções assumimos a sua fragilidade, parcialidade e inconsistência. Nós as levamos a sério e as defendemos com unhas e dentes.

Enquadramento original feito pela fotógrafa Nilüfer Demir

A fotografia do menino curdo afogado numa praia turca após o naufrágio do bote em que se refugiara com outros imigrantes foi manipulada pela imprensa. Em primeiro lugar porque havia diversos registros da tragédia, feitos por uma repórter que passava pelo local, porém somente uma imagem foi amplamente divulgada. Ela foi editada para publicação: além da criança deitada de barriga para baixo na areia e do policial que a resgatou, o enquadramento original mostra outro policial ao lado, com câmera fotográfica na mão. Ao fundo há dois pescadores, possivelmente turistas. Vemos ainda um furgão passando na estrada. Tudo isso foi deixado fora da cena para enfatizar o drama dos refugiados, que acabou simbolizado no mundo inteiro por aquele garotinho.

O cotidiano da praia foi excluído do quadro em prol do que Roland Barthes chamaria de punctum: o detalhe que, quando percebido, sobressai ao plano geral, salta aos olhos e nos afeta. Ele se expande por toda a foto e para além dela, transforma o entorno, a vida do espectador, o passado, o presente e o futuro. No livro A Câmara Clara, o autor fala ainda de outra natureza desse pungir, que não está necessariamente atrelada à forma, mas à intensidade manifesta no tempo que nos faz estremecer por uma catástrofe já ocorrida.

Edição reproduzida pelo NY Times (e pela imprensa em geral)

Não existe foto sem edição. Desde o enquadramento até a publicação e o seu compartilhamento, escolhas são feitas. A imagem original não é mais verdadeira do que a editada, são apenas narrativas diferentes. O que os veículos de comunicação quiseram, no caso daquela fotografia, foi enfatizar o horror do acontecimento eliminando tudo o que havia de banal ao redor. O resultado é praticamente todo um punctum, que jamais passaria despercebido. As consequências da manipulação foram positivas sob muitos aspectos: houve sensibilização dos discursos sobre a questão dos refugiados, ações sociais de auxílio e mobilização política na Europa. Além de que ficou impossível para o resto do mundo ignorar a situação calamitosa da região.

A manipulação que se faz no sentido inverso é mais perigosa: quando o comunicador enfatiza o banal com objetivo de ignorar o que o acontecimento tem de grave. Somos ludibriados o tempo inteiro por esse perverso modo de produzir discurso nas mais variadas instâncias da vida. Precisamos desviar do evidente e nos perguntar: que parte da história foi deixada de fora? Por qual motivo, com qual interesse? Em nome de quê? Talvez o que não foi mostrado tenha mais a dizer do que a informação explicitada que mantém nossos olhos ocupados.

Barthes alerta também para o perigo da fotografia tida como lembrança. Para ele, trata-se de uma contralembrança, uma vez que apaga o antes e o depois, reduzindo o vivido a uma imagem estática. “A fotografia é violenta”, ele diz. “Não porque mostra violências, mas porque a cada vez enche de força a vista e porque nela nada pode se recusar nem se transformar”.

Barthes sugere que existe um grau de veracidade nas fotografias, o qual cristaliza os fluxos de significação do assunto e as pulsações próprias da vida que o contempla. As imagens estão quase sempre tentando nos dar uma prova factual. Mas elas são ilusões, artifícios, ficções. Podem corresponder a um referente na realidade. Mas na prática oferecem uma narrativa que compõe nossa subjetividade sem que a percebamos.

O artista chinês Ai Weiwei reproduz a cena trágica

Para Wim Wenders, uma vez olhada, a imagem permanecerá viva em nós. Concordo. E acrescentaria que, do mesmo modo, o que não foi mostrado ou o que recusamos a ver permanecerá a nos assombrar.

A demasia de imagens na atualidade modifica a todo instante a imagem que produzimos de nós mesmos. Por isso é necessário ter cuidado e querer saber: em que elas estão nos transformando?

Todos nós temos uma câmera no bolso, somos potenciais fotógrafos em tempo integral. Também estamos sendo filmados e temos que sorrir, atuar, obedecer às regras da vigilância. Alimentamos com fartura a alta profusão de imagens que circulam no contemporâneo. Enquanto as artes da fotografia e do cinema tentam produzir alguma resistência. Em vez de mais imagens, deveriam criar não imagens? Contrafotografias? Antiexposições? Como raspar o clichê e dar a ver outras possibilidades visuais? Como perceber o que foi suprimido daquela verdade em que baseamos as nossas opiniões mais rígidas?

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

AQUI NÃO

Meu sotaque chega na frente e anuncia meu nome com i. Num universo de dezenas de milhões de pessoas, minhas marcas de distinção. Sou personagem desta novela chamada Vida Real. Um drama que já estava escrito e agora dizem que é meu. Todo mundo percebe imediatamente que não sou daqui. Todo mundo me percebe, basta eu abrir a boca, talvez nem precise de tanto. Está estampado na minha cara de migrante. Todo mundo vê. E torce o nariz. Quem é todo mundo, afinal? Dezenas de milhões de faces anônimas, indistintas, que reconheço pelo gesto. Que olham e me apontam com o olhar, apontam com o dedo, apontam a faca e me enxotam: você não é daqui, o que você quer aqui?, não temos nada para você. Volte lá pra a sua terrinha, vice? Aliás, eles dizem diferente: volta lá pra sua terra, mano. Eles quem? Todo mundo. Os outros. Que não são eu, são diferentes de mim, sou diferente de todos. Você não vê? Está na cara que sou. E não me querem por perto dos seus. Não suportam meu sotaque estrangeiro. Minha caatinga. Eu queria voltar, mas não posso. Não posso voltar para onde meu sotaque inexistia nem posso ficar nesta terra que é ainda mais árida. As marcas de distinção me abrem feridas na carne e me deixam exposto às moscas da cidade grande. É o meu sangue que reclamam. E não tenho onde me esconder. Então escrevo. Liberto-me do absurdo da Vida Real para viver a realidade do texto. Aqui sou eu que aponto, invento, apago. Sou sujeito, não objeto. Sou escritor. Meu sotaque chega na frente e anuncia meu nome com i. Todos então abaixam os olhos e me respeitam. Ou todos me querem bem. Ou todos são iguais a mim, conforme eu quiser; têm também o mesmo sotaque, têm o nome com i. No texto eu escolho as minhas marcas, sou eu que invento as distinções. Ser diferente rende elogio. Melhor assim. Prefiro habitar minhas mentiras a ser subjugado pela pretensa verdade dos outros. Pode não ser a melhor das histórias, mas quem narra sou eu. A palavra final é minha. E digo que fico. Permanecerei neste inferno, farei dele o meu inferno também. Não preciso de alternativa. Sou um cabra teimoso.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

QUEM PRECISA DE LITERATURA?


Cheguei ao centro de exposições do Anhembi quinze minutos antes de abrirem os portões. Quase desisti de entrar ao ver o que me aguardava: uma horda de crianças e adolescentes. Um grupo formidável, meio apavorante, interessante também. Se a Bienal do Livro de São Paulo deixou de ser um evento da grande literatura, não se pode negar que permanece um evento cultural imenso. Em especial se considerarmos nosso mercado livreiro, que só recentemente alcançou nível satisfatório de profissionalismo, com editoras, escritores e livrarias de portes e focos diversos, conseguindo sobreviver dos seus produtos num país tão populoso e de tiragens tão ínfimas.

Foi um alívio descobrir que eu olhava para a entrada das escolas, que é separada do público comum. O portão principal estava bem mais tranquilo. E o lado de dentro é tão grande que ainda levaria algumas horas para lotar. Dei uma volta rápida para me situar no pavilhão e em seguida fui à sala onde se realizaria um debate com curadores dos principais prêmios literários da língua portuguesa.

Pois foi só o papo começar para o famoso Lucas Rangel subir ao palco no espaço de eventos ao lado. Sabe quem é? Eu também não conhecia. Mas pela ovação pensei que se tratava de Paul McCartney. Madonna. Alguma dessas celebridades que lotam estádios com pessoas da minha geração para trás. Entretanto quem gritava ali era bem mais jovem. Bem mais entusiasmado também.


O debate a que eu tentava assistir perdia a voz para a gritaria da moçada. Interrompia-se a cada gracinha de Lucas Rangel. Ou a cada lançamento, literalmente falando, dos exemplares de seu livro, que ele atirava para a plateia. “O sensacional livro antitédio do Lucas Rangel”. Sem dúvida ninguém ali padeceria desse mal.

Mais uma surpresa me atravessou: alguém na sala descobrira que Lucas Rangel não é escritor, mas youtuber. Seus fãs não estavam ali pela literatura, embora houvesse um livro no meio da história. Centenas de adolescentes, numa bienal do livro, querendo ver de perto um garoto que só conhecem pela internet. E que não escreve. Enquanto que na sala do debate não havia mais de vinte pessoas. Incluindo os cinco palestrantes. E pelo menos outros quatro ou cinco integrantes da equipe técnica.

Assim como o livro do Lucas Rangel jamais ganharia um daqueles prêmios de que falávamos é bem pouco provável que os escritores contemplados com o Jabuti, Prêmio São Paulo, Prêmio Sesc ou Prêmio Oceanos recebam, algum dia, a mesma aclamação do garoto.

Não vejo (quase) problema algum nisso. A literatura dos prêmios e aquela, digamos, “de mercado” têm públicos diferentes e se inserem em registros culturais diferentes. Isso não faz uma melhor do que a outra, pois sequer são comparáveis segundo um mesmo parâmetro. É preciso compreender essa diferença para aceitar que um livro dedicado à arte da literatura não é ruim porque vende pouco – inclusive há autores que fazem questão de provocar, dificultar a leitura e afugentar o leitor. Sua qualidade nem sempre está no deleite. Ao mesmo tempo em que os livros produzidos com objetivo de grandes vendas raramente contribuirão com questões da estética.


Cada público lê aquilo que lhe interessa. A falta de leitura é um problema, sem dúvida. Porém ler um texto qualquer não é o mesmo que vivenciar a experiência estética da literatura. Saber ler e praticar a leitura é necessário porque acessamos informações e convivemos em sociedade por meio da língua, tanto a falada quanto a escrita, e a maior parte das pessoas leem e se expressam muito mal. Não dominar essa linguagem implica abrir mão de todo o aparato que ela oferece, do qual somos muito dependentes, feliz ou infelizmente. Implica dificuldade de relacionamento, conhecimento e exercício político. Literatura não. Ninguém precisa de literatura para viver, em especial a literatura de ficção. Inclusive é nessa falta de necessidade que reside a sua potência.

Como leitor, pesquisador e escritor é evidente que eu adoraria ver cada vez mais pessoas interessadas pela arte da literatura. Adoraria ver debates, clubes de leitura, bibliotecas, oficinas, saraus, prêmios, enfim, eventos literários em geral se multiplicando e se tornando cada vez mais requisitados. Adoraria ver leitores esmiuçando o assunto e produzindo a sua própria literatura de alto nível. Mas entendo que, por mais que deseje, isso não a torna necessidade vital. Mesmo os profissionais do meio viveriam de outra atividade se não existisse literatura.

É necessário, sim, abdicar do discurso de que todos devem ler os clássicos A, B e C. De que devem gostar e reconhecer que são imprescindíveis. Porque é pretensão demais – e também ingenuidade – obrigar à arte. A educação, a sabedoria e a emancipação não se fazem pela força, mas pelo convite, pela garantia do direito de escolher e pela partilha do sensível.

Claro que a lógica do capital não tolera tais princípios. Por conta disso as grandes casas editoriais do Brasil, praticamente todas ancoradas em investimento estrangeiro, tendem a diminuir o espaço dos escritores que fazem arte de alto nível porém vendem pouco. Ao mesmo tempo em que as pequenas editoras acolhem bons profissionais do ramo e começam a se encarregar dos novos autores e do futuro da alta literatura. E a Bienal do Livro de São Paulo? Tudo indica que estará cada vez maior. E mais barulhenta também.