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domingo, 10 de dezembro de 2017

SILÊNCIOS NA HISTÓRIA DA ARTE

Tive o prazer de participar do XII Encontro de História da Arte da Unicamp, promovido na semana passada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. O tema que norteou os quatro dias de evento era o mesmo deste texto. Acredito que ele é relevante não apenas para a academia ou para a história da arte, mas também para pensar a nossa condição sociocultural agora e sempre. Por isso retomo aqui algumas ideias debatidas na ocasião.

A começar com a constatação de que as histórias da humanidade são contadas por meio de rastros e arquivos. Constituem-se daquilo que resta dos apagamentos, esquecimentos e silenciamentos do vivido. Uma parcela ínfima da imensurável totalidade da vida sobrevive ao tempo. Por isso a natureza da história é lacunar, “resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé”, diz Georges Didi-Huberman. Para quem “o arquivo é cinza não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu, onde temos a experiência de uma barbárie documentada em cada documento da cultura”.

Uma tarefa do historiador seria esta: investigar reminiscências da cultura e buscar, na sua memória, a silenciosa barbárie que a produziu.

Por sua vez, a arte pode colocar em xeque as narrativas hegemônicas da humanidade? Romper com certa ordenação do passado e do presente, sugerir desvios e linhas de fuga, abrir fissuras na solidez dos fatos? Dar a ver apagamentos que produzem regimes estético-políticos?

Acredito que sim: alguns trabalhos de arte podem provocar as certezas estabelecidas, abalar as estruturas, ouvir os silêncios. Essa hipótese se fundamenta na obra de Adriana Varejão, em especial na sua pintura intitulada Mapa de Lopo Homem II, criada a partir da apropriação de uma cartografia portuguesa do século XVI na qual a artista intervém com o artifício das feridas e tentativas de sutura. Incisões numa dada realidade colonialista que deixam ver não uma verdade por detrás, mas as infecções daquilo que permanecia oculto sob a pálida superfície do banal. Como se as feridas da história não tivessem cicatrizado e agora inflamassem. Como se uma força silenciada quisesse irromper de dentro da pintura. Como se as cinzas do passado ardessem outra vez.

Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão


Poderíamos dizer que Adriana profana a história maior, contada pelos colonizadores, que requer para si o estatuto de verdadeira, oficial, comumente aceita. Como alternativa, cria histórias outras, menores, experimentadas na carne e impressas nos corpos.

Vimos que a natureza da história é lacunar, uma vez que pouco sobrevive ao esquecimento. Portanto, “cada vez que depomos nosso olhar sobre uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição”, sugere Didi-Huberman. Uma força poderosa contrariou o desaparecimento ao qual tudo está fadado e contribuiu com alguma narrativa da humanidade. É dever do historiador perseguir as pistas que levam ao como, ao por quê, ao quando e ao quem de tal força, que quase sempre são plurais, complexos e um pouco inexatos. Mas invariavelmente estão relacionados com o poder e o possível.

Para exercer o seu poder, essas forças incidiram sobre os possíveis da vida, tornando parte deles impossíveis de se realizarem, num processo de submissão que produz outra espécie de desaparecimento. Digo outra espécie porque não se trata daquele lacunar, relativo ao que não sobreviveu na memória dos homens, mas a um desaparecimento perverso, provocado pela opressão, pelo descaso, pelo autoritarismo, pelo policiamento higienista e/ou moralista que frequentemente se exerce para silenciar as insurgências daquilo que está vivo, que é menor e que se inflama sob a superfície domesticada da existência.

Se dermos uma dobra no que Didi-Huberman propõe, encontraremos um dever ainda mais exigente do historiador: investigar os desaparecimentos que sustentam as evidências, os discursos, os conhecimentos da História. Desaparecimentos que sobrevivem ao extermínio, às extirpações e às demais violências exercidas por aquilo que é hegemônico. E que não estão nas lacunas, mas nos próprios arquivos da História, nas entrelinhas das suas narrativas legíveis e legitimadas. Pois tampouco o que sobreviveu está completamente explicitado. Além do silêncio do que desapareceu há os silêncios implícitos: o não dito, o censurado, o tabu, o insignificante, o desprezível, as vozes menores sufocadas por autoridades.

Uma tortuosa tarefa, pois esses invisíveis são também um pouco indizíveis e impensáveis. Porém, uma vez dispostos numa cadeia de produção de subjetividades, eles mantêm em operação máquinas de governo.

Tais desaparecimentos, que habitam o fora da linguagem e que portanto não se inscrevem, talvez sejam os pontos em que os arquivos falham. É para eles que devemos olhar. Didi-Huberman propõe que o historiador da arte recupere as cinzas do passado, e que a princípio parecem inertes. “É preciso acercar o rosto e soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo”.

À sua maneira, é o que Adriana Varejão faz nos interstícios da História da Arte: ela reaviva a chama dos fatos e dados que parecia extinta, reabre os arquivos, atacando as aparências domesticadas, superficiais, e assim revive a experiência no corpo da obra. Seu trabalho tem o potencial de reordenar imaginários, forças e fragilidades. Sua aposta é a própria pintura. Pois tornar visíveis os imaginários, apresentando aquilo que têm de ambíguos, suspeitos, paradoxais, talvez seja um passo para fazer a história falar e tornar os silêncios perceptíveis.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

XII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE DO CHAA (UNICAMP)

Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão - detalhe

Na próxima quinta-feira, às 8h, eu estarei na Unicamp para falar sobre Silêncios na história (da arte): as pistas do Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão. A palestra é um breve recorte da minha atual pesquisa de doutorado.

A mesa "Cartografias de um imaginário fantástico" faz parte do XII Encontro de História da Arte, promovido pelo Centro de História da Arte e Arqueologia.

Venham, venham! A programação completa está no site do evento: www.unicamp.br/chaa/eha

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

EVANESCÊNCIAS


Eu costumava sonhar que lutava com um sujeito sem rosto, nunca soube quem era. Para mim, no sonho, não fazia diferença. Eu sequer tentava descobrir. Nós lutávamos, isso era tudo. Podia ser boxe ou uma briga desregrada. Era sempre uma luta de mãos. Eu me lembro bem porque sonhei muitas vezes. E também porque era lenta, eu diria que era uma luta excessivamente lenta, como se assistisse a um filme frame a frame. Às vezes, com a câmera em primeira pessoa, pelos meus próprios olhos. Outras vezes eu me assistia de fora, consciente de que um dos lutadores ali adiante continuava a ser eu mesmo. Fosse como fosse, a luta seguia em ritmo vagaroso. Com um esforço imenso, eu tentava atirar o punho na direção do adversário. Era pesado demais. Eu acompanhava cada milímetro do movimento. A pele do cotovelo enrugava, a musculatura do antebraço ganhava forma alongada. O suor escorria da testa, contornava as curvas da face até pingar no chão. Ssssppllaaasssssssshhh. A gota mergulhava em si mesma, explodia em gotículas. Eu via acontecer em detalhes. Meu punho errava o alvo, passava perto, mas errava e abria a guarda. O golpe contrário também era lento, porém nem tanto. Ele se projetava na minha direção um pouco mais rápido do que o necessário para eu desviar. Antes da certeza de ser atingido, o sonho acabava. Eu costumava acordar nessa hora com os ombros rijos, tentava me virar na cama para dormir de novo. Fechava os olhos e a luta recomeçava.

* * *

Eu costumava sonhar que voava. Na verdade, eu corria uns metros para pegar impulso, saltava no ar e planava para cima, como se fosse possível. No sonho era. E não havia voo sem a decolagem. Era preciso correr, saltar e manter o corpo reto, horizontal em relação ao solo, os braços estendidos para frente como faz o Super-Homem. Eu nada tinha de super. O voo, no sonho, era sempre a iminência da queda. Eu despencaria a qualquer instante, bastaria um vacilo para me estatelar, talvez bastasse duvidar da minha própria capacidade. Eu não duvidava. Planava perto do chão, a mais ou menos um metro de altura, e o máximo que consegui alçar foi a copa de uma árvore calva. Apesar do movimento nem um pouco vigoroso, a sensação era boa demais. Meu corpo desengonçado mantinha-se suspenso no nada. De fato, sequer o ar me sustentava. Eu só voava por causa da frágil disposição do corpo. Era tudo perfeitamente crível, podia saltar e funcionaria. Eu não me lembro de como despertava desse sonho. Não queria despertar jamais.

* * *

Eu costumava sonhar que um carro me perseguia na rua. Não um motorista, por favor, não me entenda mal. Era somente o carro. Certeza que desejava me matar, não pergunte por quê. Eu corria e ele vinha atrás, eu tentava enganá-lo e ele logo percebia. Não havia tempo para discussão. Eu subia com toda a velocidade por uma escada caracol e ainda assim o carro insistia, ele fazia a curva devorando os degraus, espremendo-se entre corrimãos, e atirava-se no meu encalço. A perseguição se estendia por quarteirões, esquinas, elevadores, túneis, desertos, rios. Não parecia haver escapatória, ainda assim eu continuava a fugir. Hoje penso que, se o carro quisesse de fato me matar, não demoraria tanto. Não precisaria demorar.

* * *

Eu costumava sonhar que caía. Jamais chegava ao chão, eu apenas caía e caía e caía, cada vez mais para dentro desse fosso ininterrupto. Eu voltava a cabeça para trás e não enxergava nada, não havia luz de onde eu vinha. Tampouco havia luz adiante, eu caía direto no escuro sem de fato atingi-lo, sem saber do que me afastava e do que me aproximava. Se tudo ao meu redor era cego, como ter certeza de que caía? Não havia referência exterior. Eu não passava por objetos estáticos ou em queda menos brusca, tampouco havia qualquer parede no fosso; aliás, eu não deveria chamá-lo assim, era apenas um completo breu. Nada havia para ver, mesmo com os olhos bem abertos. Evidente, eu sabia que despencava por causa da sensação; o frio na barriga, a falta de ar provocada pelo excesso de velocidade, o vento ruidoso que agitava meus cabelos e esticava as bochechas para trás. Eu podia despencar no meu próprio vazio? A queda era somente a sensação da queda, isso é tudo o que posso afirmar. A certeza ia até aí. Eu despertava em minha cama. Aquele era o fim.

* * *

Eu costumava sonhar. Agora não mais. A neurologia diz que a atividade cerebral não para. A psicanálise sugere que eu já não me recordo dos sonhos porque desenvolvi algum mecanismo de defesa contra eles. Eu gostaria de chamá-los de pesadelos, tamanha a inquietação que provocavam, tamanha a estranheza deles e a impotência minha, mas ao mesmo tempo não acho justo. Aposto que há sonhos piores. Seja como for, se não me lembro mais, meus sonhos ainda existem? Que existência é essa? Não sei. Eu apenas durmo e horas depois desperto como se nada tivesse se passado entre um momento e outro. Na maioria das vezes durmo bastante, de acordo com o relógio. Em outras noites pareço dormir muito, só que na realidade acordo apenas uma hora após ter me deitado. Como saber se não me engano? Como saber se desperto para fora do sono ou para dentro do pesadelo?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

É PRECISO SER FORTE PARA SER DELICADO


Em 2010, Sandra Cinto realizou uma pintura na sala expositiva redonda do Instituto Tomie Ohtake, na cidade de São Paulo. A parede foi tingida de azul profundo, sobre o qual a artista criou ondas imensas, compostas por uma infinidade de linhas prateadas desenhadas à mão. O ambiente era como um mar intempestivo e ao mesmo tempo calmo, inquietante e acolhedor, sublime. Na época eu trabalhava ali perto e aproveitava o horário do almoço para mergulhar – uma experiência poética revigorante. Por quê? Qual a força daquele mar, que me fazia sentir um náufrago na concretude da metrópole? Por que a condição de náufrago fazia tão bem?

Passaram sete anos até que assisti Sandra Cinto apresentar sua trajetória artística no III Seminário Internacional Arte e Natureza, realizado na USP em agosto. Sua fala soava ingênua, aclamando a beleza das pessoas, do mundo, da vida. Nestes tempos sombrios, tomados por violências e intolerâncias de diversas ordens, o discurso parecia alienado. Como é possível, eu me perguntava, que uma artista contemporânea se ponha a falar sobre as flores que enfeitam o seu ateliê enquanto as ruas ardem? Como é possível que, enquanto alguns se armam de paus e pedras, Sandra Cinto escolha uma canetinha qualquer e fique a desenhar marolas?

Minha incredulidade foi aos poucos se deixando infiltrar pela perseverança do seu trabalho. Que no início dos anos 1990 consistia em pintar céus e também contemplar os céus de outros artistas, desde Giotto, no Gótico italiano, à nossa Carmela Gross. Um trabalho que se mobilizava pelo desejo de céu em uma cidade que já não conseguia admirá-lo, fosse por causa do ar poluído, fosse pelos prédios que dominaram o horizonte, pela falta de hábito ou pelo excesso de luz que ofusca as estrelas.


“Se houve outra vida, fui japonesa”, diz Sandra Cinto, apaixonada pelo modo como aqueles orientais celebram os menores acontecimentos e não separam o homem da natureza. Com a mesma dignidade ela se coloca a desenhar por três semanas ininterruptas, desde a manhã prematura à madrugada plena, para realizar um trabalho que ficará exposto durante o mesmo tempo e depois será destruído. Pela efemeridade da obra, a artista exercita a própria finitude e se concilia com a morte.

Usa borracha para não se ludibriar com a utopia da perfeição; prefere negociar os erros e incorporá-los à obra, ao ponto em que nada parece fora de lugar. A beleza se encontra na própria imperfeição.

Em determinado momento, a artista quis experimentar tintas mais fluídas, que escorriam pela tela independentemente da sua vontade de controlá-las. Foi, assim, aceitando os acasos da criação.

São palavras suas. Sandra Cinto define o próprio trabalho como “muito simples e de coração”. Ao término da palestra, tal ingenuidade aparente tinha diluído minha expectativa árida e me deixava ver, debaixo daquela água toda, uma aposta política. Cuja força não pretende impor uma vontade – sua natureza é outra, menos combativa e mais sensível, menos destrutiva e mais vital, menos razão e mais corpo. Uma força política pautada na delicadeza, que age na contramão da guerrilha ou, em outras palavras, que desvia do puro e simples enfrentamento.

Isso não implica covardia ou irresponsabilidade, mas a busca por outro modo de agir. Ela não se arma para enfrentar o adverso; ao contrário, evita os velhos estratagemas e corre na direção do mar. “Toda poética é também política”, explica. E pode operar de maneiras diversas. Por vezes, bater contra uma ameaça apenas concede a ela relevância.

A poética é ainda mais potente quando não reproduz nem reitera as artimanhas do poder. Resta a questão: como? Como desativar os mecanismos da opressão sem recorrer a atitudes semelhantes? Como criar linhas de fuga em meio à perversidade? Como dançar em plena batalha?

As demonstrações de força quase sempre implicam abuso de autoridade, incapacidade de dialogar e medo do diferente. Sim, a força bruta se apresenta como uma reação amedrontada à vontade de mudança ou à existência outra. Já a potência política da arte de Sandra Cinto está na delicadeza exercida com rigor e tenacidade, e que oferece uma alternativa às tormentas atuais. A força dos seus mares coloca certezas em suspensão, permite ao espectador flutuar e se deixar levar, experimentar a segurança da superfície e a imensidão desconhecida que se encontra logo abaixo.

A artista aposta no belo. Pois acredita que o ímpeto transformador desse gesto é mais promissor do que a verborragia, a perseguição e o julgamento dogmático. Porém eu não acredito que o belo baste. Não é só disso que se trata. Acontece que Sandra Cinto consegue romper a beleza superficial para encontrar um ponto sísmico profundo, capaz de abalar a sensibilidade do espectador. Um ponto que toca a estrutura da sua subjetividade.

Para isso ela não precisa recorrer à bomba atômica. Sua obra é mais forte porque consegue, em meio às tensões do presente, sustentar a delicadeza. A qual, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, nada tem de ingênua ou frágil. Em tempos de violência, é preciso ser muito forte para ser delicada.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

JORNADA DE PESQUISA EM ARTE PPG IA/UNESP 2017


Amanhã, a partir das 14h, eu estarei no Instituto de Artes da Unesp (São Paulo/SP), participando da Jornada de Pesquisa em Arte. O título da minha fala é Humanidade Ficcionada, Humanidade Profanada: Patricia Piccinini e Ron Mueck em São Paulo. Ela faz parte da Mesa 11: Arte Moderna e Contemporânea em São Paulo). Todos estão convidados!

Mais informações sobre o evento estão aqui: https://jornadadearteunesp.wixsite.com/pesquisa2017/2017