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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

RETALHOS (E COLAGENS)



O futuro pode até parecer linear, com um novo dia se iniciando insistentemente na sequência do anterior, mas o passado é sempre uma colcha de retalhos. O desenhista e escritor Craig Thompson relembra suas vivências dessa maneira, misturando umas às outras, deixando com que se influenciem e se complementem para se transformarem em algo maior, com novos significados, assim como acontece num trabalho de colagem. O resultado é a ótima história em quadrinhos intitulada Retalhos, que a editora Companhia das Letras lançou em maio deste ano, inaugurando o selo Quadrinhos na Cia.

Ao longo de quase seiscentas páginas, o autor revisita momentos cruciais de seu passado, em especial a infância, vivida ao lado de seu irmão mais novo, e a adolescência, quando a descoberta do amor o leva a redescobrir a si mesmo e o mundo ao seu redor.


Retalhos, de Craig Thompson, página 43

Apesar de Craig não ser o único com dificuldades de crescer em uma família pobre e beata do interior americano, sua companhia mais fiel é a solidão. Dela brotam os devaneios que o libertam da dura realidade, da qual ele é refém e que se mostra na escassez de amigos, nas surras constantes na escola e na religiosidade cega dos pais.


Retalhos, de Craig Thompson, página 93

A história é contada com delicadeza excepcional. Texto e imagem se unem para narrar a uma só voz o estado de espírito dos personagens – a voz da confidência. Penetramos seus pensamentos através de cenas oníricas e cheias de movimento, que às vezes são simples e por isso retratadas com traços leves, econômicos e precisos. Às vezes, são trágicas e trazem pinceladas praticamente expressionistas. Em ambos os casos, no entanto, o entorno sufoca. Tem um movimento vertiginoso quando as coisas vão bem e é denso, pesado ou mesmo assombroso quando as coisas vão mal. O mesmo recurso vale para ilustrar a angústia com que Craig vê o mundo: enquanto seus afetos são retratados com sutileza, as crises são desenhadas grosseiramente, com pouca tinta, o pincel arranhando o papel e criando uma textura agressiva. Ao utilizar tais oscilações de humor, Craig mostra que seus personagens têm alma e nos convida a afundar nelas. Em poucas páginas, já estamos junto deles, sentindo com seus sentidos, vivenciando uma experiência encantadora.



Fun Home, uma tragicomédia em família, de Alison Bechdel

Enquanto ele se recorda do passado, nós o presenciamos. Em muitos aspectos, seus relatos se assemelham aos de Fun Home, excelente autobiografia em quadrinhos de Alison Bechdel, principalmente em relação ao enredo – o problema de crescer em meio a uma infinidade de outros problemas, entre os quais estão a própria família e os amigos. Há também a forma não-linear de relembrar o passado, indo e voltando, produzindo flashes de acontecimentos que se apresentam consecutivamente, amalgamados em um único momento: o livro. Cenas esparsas que nos fazem pensar nossas próprias vidas e imaginá-las como uma série de retalhos costurados em forma de colcha, essa coisa artesanal, tão íntima e pessoal.

Colocado desta maneira, a metáfora de Craig se mostra mais do que pertinente – é também muito mais interessante.