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domingo, 29 de novembro de 2009

JOSÉ ANTONIO DA SILVA, “DITO” PRIMITIVO


Sem título, 1971

“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou.” J. A. Silva

É bobagem dizer que José Antonio da Silva (1909-1996) fez carreira como artista bruto, primitivo ou mesmo naïve. Ele apenas começou assim, espontaneamente, em São José do Rio Preto, 1946 – ex-lavrador e atual empregado de hotel, tinha 37 anos quando resolvera contrariar a família, comprar tintas, uns metros de flanela e enviar o resultado de suas experiências pictóricas ao Salão da Casa de Cultura da cidade, que seria inaugurado na ocasião. Para sua sorte, o crítico Paulo Mendes de Almeida havia sido convidado a compor o júri e o descobriu em meio às muitas telas de “um academismo rançoso” ali inscritas. Mantendo a tradição da história da arte, o bruto precisa ser revelado por alguém do circuito oficial; precisa ser escavado do limbo, do submundo da cultura, e lançado às bestas ferozes do mercado. Se isso acontece com o artista ainda vivo, sua barbárie falece invariavelmente, mais ou menos como acontece com os indígenas “não-civilizados” que de repente se veem visitados por uma tribo de brancos. Em outras palavras, o artista primitivo só permanece primitivo de verdade até ser trazido à civilização. Depois disso, passa a agir de acordo com o mercado e a pertencer, de uma maneira ou de outra, à história da arte.

Podemos dizer então que o primitivismo de José Antonio da Silva durou apenas esses poucos dias entre a realização de suas primeiras pinturas sobre flanela e a descoberta delas por Paulo Mendes de Almeida. Naquela circunstância, a comissão organizadora do salão anulou o veredicto do júri e concedeu a Silva somente o quarto lugar, desprezando a originalidade de sua obra. Dali para frente, ele jamais seria ingênuo novamente; viria para São Paulo, passaria a ter plena consciência das atitudes que tomava e, se aparentemente suas pinturas permaneciam primitivas, era porque ele assim as desejava. O público queria um artista bruto? Silva magistralmente lhe concedia.



Sem título, 1980


Natureza-morta com magnólias (1941), de Henri Matisse

Isso não desmerece sua arte. É apenas um fator irreversível e ao qual todos os artistas espontâneos estão sujeitos. Mas as pinturas de José Antonio tinham outras qualidades que permaneceram, além de muitas mais que foram sendo adquiridas com o tempo. Elas eram essencialmente críticas. Seus retratos da vida no campo, por exemplo, mostram árvores remanescentes de queimadas, pretas por fora, carne por dentro, violentadas, esquartejadas e abandonadas ao léu. Parece que, para o artista, homem e mundo são feitos do mesmo estofo, tal como escreveu Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Suas pinturas detêm um incrível poder de síntese, principalmente as flores de folhas verdes, miolos coloridos e perspectiva reinventada ou simplesmente ignorada. Silva também parece ouvir as orientações de Matisse, que buscava pintar apenas o que era essencial à pintura; esquematizar sem pôr nem tirar, realizar uma pintura exata, fiel às ideias e aos sentimentos do pintor.



Sem título, 1968

Há também na obra de Silva um simbolismo incutido, talvez até mesmo inconsciente. Seu horizonte, por exemplo, é sempre alto, quase não deixa ver o céu, privilegiando a terra e a forte relação que o artista tinha com ela. As lavouras, os trilhos do trem e as procissões, por sua vez, são infinitos, traçam curvas pela tela e se perdem em algum ponto longínquo, como se o mundo fosse tão grande que não se pudesse medir – um mundo que vai para além do que os olhos de José Antonio podiam ver.



Sem título, 1969

Mas nem só o campo foi objeto de suas pesquisas pictóricas. Quando a crítica o acusou de imitar Van Gogh e o deixou de fora da IV Bienal de São Paulo, apareceu imediatamente enforcada em uma pintura. Quando não compreenderam suas ações ou não as valorizaram como ele gostaria, Silva também se vingava artisticamente; na negação do prêmio principal em São José do Rio Preto, por exemplo, o povo foi vendado e os jurados transformados em jumentos. Neste caso, a pintura cumpriu um papel místico, semelhante ao dos bonecos de vodu. Quando incendiaram a floresta, Silva pintou “A burice dos homens” (1987).

Sua personalidade forte não o impediu de conhecer os grandes mestres. Teve contato a obra de modernistas, inclusive europeus. Chegou a dizer que só existiam três grandes artistas no mundo: Van Gogh, Picasso e ele mesmo. Ou melhor: ele, em primeiro lugar, seguido por Van Gogh e Picasso. Seu primitivismo era um rótulo, utilizado apenas quando lhe interessava. Por trás da simplicidade que suas pinturas apresentam à primeira vista, encontra-se uma complexidade louvável, seja na escolha do tema, seja na relação deste com o artista, seja no discurso que produzem. Algumas de suas soluções estéticas são também interessantes, fruto de um olhar apurado em contraste com uma técnica medíocre. Sendo assim, podemos afirmar que José Antonio da Silva extravasou a ligação estrita que tinha com as tradições do campo e passou a pertencer também à tradição da pintura, bastou ser revelado pela crítica. Ele hoje ocupa um lugar na história; um lugar que escolheu e batalhou para conquistar. Justamente por conta disso, é muito difícil considerá-lo primitivo, mesmo esteticamente falando, tendo em vista que suas atitudes foram propositadas, voltadas ao circuito oficial, conscientes e, muitas vezes, assistidas. Como escreveu Paulo Pasta, artista plástico e curador da exposição realizada recentemente na Galeria Estação (SP), “Silva apoiou-se muito nessa noção de pintor primitivo, não só nos primeiros anos de sua carreira. Inteligente, aceitou-se como o artista que o meio queria ver”. Assim, podemos chamá-lo de pintor, músico e escritor espontâneo, muitas vezes esperto e outras tantas ingênuo, cheio de vontades e exageros, brasileiro típico da roça, embora mudado para a metrópole; explorador crítico tanto do universo ao seu redor quanto de seu universo interior. Um artista de fato, dito e assumido primitivo apenas porque o título lhe convinha.