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sábado, 5 de dezembro de 2009

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO - RENÉE



“Podemos ser tão semelhantes e viver em universos tão distantes? É possível que partilhemos o mesmo frenesi, nós que não somos do mesmo solo nem do mesmo sangue e da mesma ambição?”

Acho que todo mundo tem um pouco de Renée, co-protagonista do romance A elegância do ouriço, de Muriel Barbery. Trata-se da concierge (espécie de zeladora) de um pequeno edifício de alto padrão em Paris, que, diferentemente do que se imagina de seus semelhantes, é inteligente, educada e intelectual. Só que Renée não quer decepcionar seus preconceituosos contratantes e, por conta disso, se faz de ignorante na presença deles, fingindo ser a concierge que eles esperam ter.

“Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado”.

Nascida em um lugarejo do interior da França, fruto de uma família embrutecida pelo isolamento e pela falta de estudo, Renée se desviou do rumo que o destino lhe reservava; mudou-se para Paris, passou a frequentar bibliotecas, a se interessar por cultura e, mais do que isso, a apurar sua visão crítica. Com o passar dos anos, tornou-se sócia fiel do bom gosto (principalmente estético), autodidata e praticante da filosofia por puro prazer – ideal ainda longe de acontecer a todos. Às escondidas, Renée lê Husserl, divaga sobre o belo, saltita entre referências pop e clássicas, assiste aos mestres do cinema oriental, exalta a gramática, visita museus e se deixa emocionar tanto por Mozart quanto por Eminem. Admira a pintura acadêmica, em especial a da escola holandesa. Deu a seu gato o nome de Leon por causa de Tolstoi, seu escritor favorito entre os expoentes da literatura russa. Valoriza a alta gastronomia e, se compra “comida de pobre”, é só para disfarçar, seu gato gordo que o diga. Em outras palavras, Renée é uma personagem fantástica, cheia de mistérios e reflexões inusitadas, dona de seus pensamentos, consciente de que não pode mudar o mundo, embora possa aproveitar o melhor dele quando ninguém está olhando, basta que aprofunde seu conhecimento. Ela dispensa o clichê da intelectual marxista revolucionária: seu único propósito é ser feliz (de preferência, sem ser perturbada pelo desprezo alheio).

Quando digo que todos nós temos um pouco de Renée, não é porque somos inteligentes e críticos do gosto, muito pelo contrário – é porque estamos sempre tentando ser aquilo que os outros esperam de nós. A concierge deve ter QI limitado, vestir-se mal e falar errado?, então é assim que Renée agirá frente aos ricaços esnobes de seu condomínio. No entanto, ela é muito mais do que isso: possui a elegância do ouriço: é crivada de espinhos por fora, mas por dentro é solitária, falsamente indolente e requintada, tal como a autora a define.

A crítica recai justamente sobre essa estranha atitude de tentarmos apreender aquilo que está preconcebido para nós. Ora, quem nunca sentiu vergonha de exibir suas vontades? De dizer suas preferências, principalmente quando elas vão contra a ordem corrente? Ou, pior ainda, discuti-las com os outros? Mas... por quê? Talvez porque nosso lugar na sociedade seja o mesmo de um ator no “espetáculo da vida”, como dizem. Tentamos desempenhar um papel que nem sempre está de acordo com o que somos fora do palco. Quem você quer ser quando crescer? O mocinho, a perversa, o chefe mal-humorado, o boa-praça, a mãe dedicada, o adolescente rebelde, a esposa submissa? Às vezes, é difícil quebrar paradigmas e ser político sem ser corrupto, ser negro sem ser menosprezado, ser pobre sem ser ignorante; o meio faz suas exigências. Duras exigências. Se bater de frente é missão para raros, há determinados que ao menos tentam contornar a situação. É o que Renée faz, criando um alter ego de defesa, uma espécie de anti-herói que também presta socorro. Uma fuga. Afinal, o que as pessoas ao redor poderiam pensar? “Danem-se eles”, dá vontade de responder. De certo modo, esta é a atitude de Renée. Só que ninguém ouve sua refutação. Ao invés de mandar todo mundo às favas e assumir publicamente seu “eu interior”, Renée os ignora e vive a felicidade à triste luz da solidão. Para ela, as outras pessoas podem continuar com suas concepções pré-fabricadas, mesquinhas e estúpidas, contanto que lhe deixem em paz durante as horas de folga. É uma conclusão pouco otimista, mas que vai mudando ao longo da história. Vale a pena ler.

Com sua proposta ao mesmo tempo filosófica e divertida, o livro de Muriel Barbery detém muitas qualidades, com destaque para esta que nos induz a pensar sobre a maneira como agimos em sociedade. “É preciso que alguma coisa acabe, é preciso que alguma coisa comece”, escreve ela em determinado momento. Pois, do começo ao fim, trata-se de uma leitura elucidativa.