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domingo, 10 de janeiro de 2010

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE EDUARDO DE ALMEIDA


A música (1910), de Henri Matisse

Minha namorada acha surpreendente o fato de eu lembrar da música que tocava no rádio do carro quando passávamos por determinado lugar, ainda que isso tenha acontecido décadas atrás. Não é que eu me apegue muito aos detalhes da vida, ao menos não com essa minúcia toda. Raramente sei precisar a data de um acontecimento, os motivos de termos optado por isso não por aquilo etc. Não tenho a menor noção da idade em que realizei algumas coisas, mais ou menos como se meu passado tivesse ocorrido de uma vez só. O mesmo vale para a história do mundo. Nunca fui bom nas aulas do colégio e jamais pensei que me especializaria em história da arte quando crescido, pois os professores estavam mais preocupados com "quem faz o que e quando" do que com o significado real daquilo tudo. Napoleão foi derrotado em Waterloo no ano de 1815. Tudo bem, mas quem foi Napoleão? Que tipo de música ele gostava de ouvir? Como se relacionava com a família? Suas preferências gastronômicas tinham alguma coisa a ver com a carreira militar? É esse tipo de coisa que sempre me interessou – descobrir a essência de um personagem e seu papel no espetáculo da vida. Essa é a verdadeira História para mim, e não uma mera lista de acontecimentos a serem decorados segundo sua cronologia. Creio que a razão está no modo como minha memória foi configurada. Nunca lembro de nada muito concreto, mas o sentimento produzido em cada ocasião permanece claro, pulsante, como se tivesse sido vivido anteontem. Para mim, ele constitui a chave do tempo, que me permite avançar e retroceder conforme tenho vontade.

Existem músicas, por exemplo, que se encaixam perfeitamente no momento em que são ouvidas; criam uma combinação tão mágica e única quanto o alinhamento dos planetas. Fica impossível esquecê-las. De algum modo, elas elevam o tal momento a outro nível de percepção, a ponto de eu poder apreendê-lo e criar uma relação afetiva com ele. O instante então se fixa em minha memória, concretizando-se de maneira que quase posso tocá-lo. Você já sentiu algo semelhante?

Numa entrevista de 1942, o pintor francês Henri Matisse descreveu uma situação curiosa: "Quando me falam de um de meus quadros, mesmo antigo, me relembrando de alguns de seus elementos, sem conseguir situar a data da execução, vejo de maneira muito precisa o instante sentimental em que o fiz". Pois o sentimento do mundo é algo importantíssimo na concepção artística de Matisse, que sempre buscou pintar não a coisa em si, mas o efeito que ela provoca. Talvez seja por isso que me identifico tanto com ele. Para ambos, a exatidão da data e dos nomes não faz diferença. Percebo isso claramente ao rever fotografias de viagem. Não sei dizer com exatidão onde foi, nem há quanto tempo, mas as imagens reavivam os aromas, os sons e os sabores do lugar. Em outras palavras, não me importam muito os detalhes puramente racionais, mas sim seus significados mais intrínsecos, reunidos no que para mim constitui a essência do viver. Importa a sensação de pertencer ao mundo; de estar presente e ser parte dele. É o tempo vivo da memória, a persistência que Salvador Dali tentou representar. Acho dificílimo discorrer sobre um instante específico de maneira muito cartesiana, pois tudo se funde em uma lembrança essencial e nuclear; como uma música, por exemplo. A música certa no momento certo, a expressão adquirida e compartilhada; um passeio de carro, um jantar romântico, o cantarolar que põe a criança para ninar; ritmo, harmonia e melodia perfeitos. E a alquimia vira ouro. Como disse Matisse, "para meu sentimento, o espaço é um só desde o horizonte até o interior do aposento de meu ateliê, e o barco passando vive no mesmo espaço que os objetos familiares a meu redor, e a parede da janela não cria dois mundos diferentes. (...) Não preciso aproximar interior e exterior, os dois estão reunidos em minha sensação". Pois o mundo não está além de nossos sentidos. E, no final, tudo o que realmente importa é a nossa sensibilidade ao respirar, degustar, ouvir, tocar e assistir. Em outras palavras, quando todo o excesso sucumbir, restará apenas o belo para preencher nossas recordações. É somente este belo que iremos admirar.