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terça-feira, 5 de março de 2013

O HOMEM DA CAVERNA


Eu me senti um tanto abandonado quando assisti ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, que o alemão Werner Herzog realizou com maestria num dos lugares mais incríveis do planeta. Descoberta no sul da França em 1994, a Caverna de Chauvet, como foi batizada, estava isolada há milhares de anos devido a um deslizamento de terra. Espaço de tempo amplo demais para ser compreendido por quem raramente vive mais de um século. Havia ali vestígios de homens e animais, antepassados nossos. São ossadas, pegadas, desenhos nas paredes; sonhos que ficaram esquecidos, dos quais praticamente nada sabemos. Quem foram aqueles homens? Por que fizeram os desenhos? Podemos apreender alguma coisa da caverna com o imaginário de hoje, tão diferente? Quais são os significados possíveis? Restam suspeitas, hipóteses, ficções – é com o que devemos nos contentar. Foi dessa lacuna que emergiu a sensação de abandono; da fissura na rocha e no tempo. Uma sensação de vazio, de solidão, de "falta de chão", como se diz, por causa da nossa origem desconhecida. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos; somos o "meio" de algo apenas imaginável.

"Para o ser humano, mais importante que viver é sentir-se real, mais importante que preservar a vida é dotar a existência de sentido", escreveu o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Revi minha caderneta e deparei com uma série de citações, colhidas ao acaso, com essa temática "existencial". A Caverna de Chauvet ativou certa inquietação em mim. Levantei a antena e comecei a captar sua frequência na tentativa de pertencer a algo tão maior e misterioso que se deixa facilmente confortar nos abraços do sagrado.

Quem eram os homens que passaram por Chauvet há mais de 30 mil anos? E os animais, já extintos? Ursos, mamutes, bichos enormes feitos para habitar um território infinito.

Lembrei do título de uma das obras de Bruno Munari exibidas na última Bienal de São Paulo: Reconstrução teórica de um objeto imaginário. Não é assim a nossa história? Uma construção hipotética que se refaz a cada descoberta. "Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá", escreveu Vanessa Carneiro Rodrigues no Jornal Rascunho. 

Herzog mostra as pegadas de um lobo junto das de um menino. E completa: jamais saberemos se a criança foi acuada pelo lobo, se eram amigos, se as pegadas foram deixadas com um dia ou com cinco mil anos de diferença. Todas são histórias possíveis e, a seu modo, existem. Discorrer sobre a verdade e a mentira não cabe; a caverna está além desse maniqueísmo.

"Tentando calcular a probabilidade de dúvida de uma certeza quase absoluta", brincou o escritor Felipe Borges Valério no Facebook. Um trabalho definidamente imprevisível. A ciência exata não basta. Um dos responsáveis pelas pesquisas em Chauvet conta a importância de mergulhar nas profundezes dos seus silêncios inquietos e depois se afastar. Mergulhar na memória que se solidificou a cada gota de água, calcificada na forma de colunas para sustentar um tempo antigo perdido no presente. Colunas que, em muitos casos, ainda estão na forma de devir. Deixar-se pertencer. Depois, afastar-se fisicamente, para a superfície; afastar-se também no tempo e na teoria. Buscar em outras culturas significados ocultos na experiência sensível recém-vivida, buscar pontos de vista menos reticentes, usar outra linguagem. Não para descobrir a verdade, mas justamente para não acreditar em afirmações rígidas, para não se render a elas. Ninguém saberá nada sincero a respeito da caverna se a observar com olhos acostumados com a luz do exterior.


O filósofo Maurice Merleau-Ponty propõe um tempo que não existe por si só, com autonomia, mas que se estabelece por relações: a experiência do tempo. "O passado não é passado nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva".

Em 1994, a caverna se reabriu a relações. A despeito de todas as câmaras e corredores que contém, ali dentro só conseguimos nos aprofundar em nós mesmos. "Mas o que somos nós?", quer saber a psicanalista Melanie Klein. "Tudo de bom e de mau pelo que passamos desde os primeiros dias de vida; tudo o que recebemos do mundo externo e tudo o que sentimos no nosso mundo interno. Se fosse possível apagar algumas das nossas relações do passado, com todas as memórias a que estão associadas, todos os sentimentos que desprendem, como nos sentiríamos empobrecidos e vazios!"


O escritor Mia Couto propõe uma solução para tal angústia que se baseia em aceitação e criação: "Temos sempre que explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. (...) Essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso".

É natural sentir-se pequeno diante da grandiosidade de Chauvet. Mesmo assim, como mostra o deslizamento de terra que a isolou e a preservou até hoje, devemos ter consciência de que tudo tem seu peso e sua medida, e que mesmo um pequeno deslocamento é uma revolução.