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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus