Pesquise aqui

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

CONSCIÊNCIA DO CORPO

A apresentar o garoto Jorge Alberto Gomes, de 14 anos, que acendeu a pira olímpica na praça da Candelária, a repórter mencionou que ele “estuda atletismo” na Vila Olímpica da Mangueira. Achei bonita essa expressão: estudar atletismo. Porque é comum usar os verbos “treinar” e “fazer” quando falamos de esporte; enquanto “estudar” acaba associado a outras atividades de conhecimento, a maioria delas mais valorizadas, como se pudesse haver grau hierárquico nesse quesito. Pois existe um conhecimento que é próprio do esporte, que vai além do aprendizado técnico e da prática exaustiva, ou seja, vai além de treinar e fazer. É uma inteligência especial que se produz através do corpo – pelo desenvolvimento físico, pelo aguçamento da sensibilidade e pelo atravessamento do mundo no corpo. Uma inteligência tão difícil de localizar que por vezes acaba desconhecida, menosprezada e raramente experimentada nesta atualidade em que os corpos são quase sempre objetos de violência, suportes de cabeça ou prolongamento de máquinas. Onde o esporte, em geral, é considerado apenas instrumento de saúde, fábrica de beleza ou mero entretenimento.

Eu mesmo não sou nada esportista, sinto-me pouco afeito à prática e muito menos ao seu aperfeiçoamento. Minhas atividades físicas se resumem a caminhadas e bicicletadas eventuais, despretensiosas, que me fazem sair do escritório, habitar um pouco a cidade e chegar a um destino específico. Porém faz alguns anos que me aproximei das interfaces entre arte e clínica, que encontram recursos para a intervenção terapêutica nas atividades de sensibilização e de linguagem corporal. Isso me leva a acreditar que o esporte é um poderoso meio de expressão dessa humanidade encarnada, que não existe somente por causa da razão esclarecida, mas também porque está implicada num ser sensível, ou seja, num corpo que sente o mundo ao mesmo tempo em que age no mundo. Um ser que existe não apenas porque pensa logicamente, como afirmou Descartes, mas porque incorpora pensamentos, afetos e sensações para assim gerar uma existência singular, que percorre outras estradas na interioridade e exterioridade da vida, tanto no âmbito particular quando no coletivo.

O filósofo José Gil fala de uma “consciência do corpo” que se encontra além do simples reconhecimento de que o corpo existe, possui forma e pode sentir dor ou prazer. Seria a impregnação da consciência pelo corpo; uma instância de recuperação das forças do mundo e de devir as suas formas, intensidades e sentidos. Não falaríamos mais de separação do físico e do psíquico, como se corpo e mente fossem entidades alheias; carne e consciência seriam, em sua ambiguidade, manifestação de uma outra inteligência.

Segundo Gil, a percepção do mundo não provém do interior nem do exterior do corpo, mas desse lugar fronteiriço em que ambos se sobrepõem. Um conhecimento formado na ambiguidade do dentro e do fora, que exige um importante trabalho de abertura do corpo aos afetos. Em suas palavras, “é todo o corpo que se transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (...) Abrir o corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do em-redor do corpo próprio. (...) Um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem fim. (...) O espaço e o corpo-consciência são afetivos porque neles se formam turbilhões poderosos de vida”.

Como podemos nutrir esse espaço relacional ao redor de nós mesmos, de nossos corpos, de nossas vidas? Além da simples prática do esporte, devemos investir no seu estudo. De modo que seja possível apurar essa consciência do corpo e o abrir aos afetos que nos convocam o tempo inteiro. Estudar o esporte para que possamos, por meio da consciência que ele gera, experimentar os problemas do mundo numa outra perspectiva, com outros valores e sentidos.

Isso não significa transformar o esporte num objeto de análise acadêmica, como as faculdades de educação física ou mesmo a medicina e suas ramificações fazem há muito tempo. Significa perseguir e aguçar aquele conhecimento que só é possível através da atividade corporal enquanto linguagem; ou seja, da consciência, da sensibilização e da expressão que se desenvolvem através do corpo do esportista.

Nos últimos séculos a humanidade vem ignorando enfaticamente diversas instâncias de conhecimento em prol de uma única, hegemônica, que é a da razão, da lógica, das justificativas de ordem pragmática. Acho vital, para nossa sobrevivência diante da hostilidade capitalista que nos oprime cotidianamente – e que é vivida no corpo e pelo corpo –, que providenciemos lugar onde outras inteligências possam se desenvolver e onde elas se complementem. Onde possamos partilhar o que existe de sensível no mundo e, daí, colher uma sabedoria mais adensada e intensificada.

Costumo defender que a arte é um desses lugares de sobrevivência. Outro com certeza é o esporte. Mais do que a prática de ambos, devemos lutar pela consciência que eles podem aprimorar. Lutar para que a educação pelo esporte seja tão relevante quanto pela matemática, pela história, pela biologia etc. Uma sociedade com tamanha defasagem educacional como esta em que vivemos jamais será justa com os seus desejos e as suas potências. Por ora, como bem sabemos, ela só condiz com o próprio sistema que a oprime.

Quem sabe os jogos olímpicos, apesar de toda a problemática política, econômica e social que trouxeram ao Brasil, não provoquem também algum contágio em relação ao esporte? Que esse contágio seja grave o suficiente para irromperem regimes de consciência mais complexos, que deem conta de apreender a situação do país, unir as pessoas e transformar o sistema político-social de forma mais efetiva, onde os demais modos de consciência e de conhecimento têm falhado dia após dia, ato após ato.