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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

É PRECISO SER FORTE PARA SER DELICADO


Em 2010, Sandra Cinto realizou uma pintura na sala expositiva redonda do Instituto Tomie Ohtake, na cidade de São Paulo. A parede foi tingida de azul profundo, sobre o qual a artista criou ondas imensas, compostas por uma infinidade de linhas prateadas desenhadas à mão. O ambiente era como um mar intempestivo e ao mesmo tempo calmo, inquietante e acolhedor, sublime. Na época eu trabalhava ali perto e aproveitava o horário do almoço para mergulhar – uma experiência poética revigorante. Por quê? Qual a força daquele mar, que me fazia sentir um náufrago na concretude da metrópole? Por que a condição de náufrago fazia tão bem?

Passaram sete anos até que assisti Sandra Cinto apresentar sua trajetória artística no III Seminário Internacional Arte e Natureza, realizado na USP em agosto. Sua fala soava ingênua, aclamando a beleza das pessoas, do mundo, da vida. Nestes tempos sombrios, tomados por violências e intolerâncias de diversas ordens, o discurso parecia alienado. Como é possível, eu me perguntava, que uma artista contemporânea se ponha a falar sobre as flores que enfeitam o seu ateliê enquanto as ruas ardem? Como é possível que, enquanto alguns se armam de paus e pedras, Sandra Cinto escolha uma canetinha qualquer e fique a desenhar marolas?

Minha incredulidade foi aos poucos se deixando infiltrar pela perseverança do seu trabalho. Que no início dos anos 1990 consistia em pintar céus e também contemplar os céus de outros artistas, desde Giotto, no Gótico italiano, à nossa Carmela Gross. Um trabalho que se mobilizava pelo desejo de céu em uma cidade que já não conseguia admirá-lo, fosse por causa do ar poluído, fosse pelos prédios que dominaram o horizonte, pela falta de hábito ou pelo excesso de luz que ofusca as estrelas.


“Se houve outra vida, fui japonesa”, diz Sandra Cinto, apaixonada pelo modo como aqueles orientais celebram os menores acontecimentos e não separam o homem da natureza. Com a mesma dignidade ela se coloca a desenhar por três semanas ininterruptas, desde a manhã prematura à madrugada plena, para realizar um trabalho que ficará exposto durante o mesmo tempo e depois será destruído. Pela efemeridade da obra, a artista exercita a própria finitude e se concilia com a morte.

Usa borracha para não se ludibriar com a utopia da perfeição; prefere negociar os erros e incorporá-los à obra, ao ponto em que nada parece fora de lugar. A beleza se encontra na própria imperfeição.

Em determinado momento, a artista quis experimentar tintas mais fluídas, que escorriam pela tela independentemente da sua vontade de controlá-las. Foi, assim, aceitando os acasos da criação.

São palavras suas. Sandra Cinto define o próprio trabalho como “muito simples e de coração”. Ao término da palestra, tal ingenuidade aparente tinha diluído minha expectativa árida e me deixava ver, debaixo daquela água toda, uma aposta política. Cuja força não pretende impor uma vontade – sua natureza é outra, menos combativa e mais sensível, menos destrutiva e mais vital, menos razão e mais corpo. Uma força política pautada na delicadeza, que age na contramão da guerrilha ou, em outras palavras, que desvia do puro e simples enfrentamento.

Isso não implica covardia ou irresponsabilidade, mas a busca por outro modo de agir. Ela não se arma para enfrentar o adverso; ao contrário, evita os velhos estratagemas e corre na direção do mar. “Toda poética é também política”, explica. E pode operar de maneiras diversas. Por vezes, bater contra uma ameaça apenas concede a ela relevância.

A poética é ainda mais potente quando não reproduz nem reitera as artimanhas do poder. Resta a questão: como? Como desativar os mecanismos da opressão sem recorrer a atitudes semelhantes? Como criar linhas de fuga em meio à perversidade? Como dançar em plena batalha?

As demonstrações de força quase sempre implicam abuso de autoridade, incapacidade de dialogar e medo do diferente. Sim, a força bruta se apresenta como uma reação amedrontada à vontade de mudança ou à existência outra. Já a potência política da arte de Sandra Cinto está na delicadeza exercida com rigor e tenacidade, e que oferece uma alternativa às tormentas atuais. A força dos seus mares coloca certezas em suspensão, permite ao espectador flutuar e se deixar levar, experimentar a segurança da superfície e a imensidão desconhecida que se encontra logo abaixo.

A artista aposta no belo. Pois acredita que o ímpeto transformador desse gesto é mais promissor do que a verborragia, a perseguição e o julgamento dogmático. Porém eu não acredito que o belo baste. Não é só disso que se trata. Acontece que Sandra Cinto consegue romper a beleza superficial para encontrar um ponto sísmico profundo, capaz de abalar a sensibilidade do espectador. Um ponto que toca a estrutura da sua subjetividade.

Para isso ela não precisa recorrer à bomba atômica. Sua obra é mais forte porque consegue, em meio às tensões do presente, sustentar a delicadeza. A qual, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, nada tem de ingênua ou frágil. Em tempos de violência, é preciso ser muito forte para ser delicada.