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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A MALDADE É UMA ESPÉCIE DE INCAPACIDADE

Soube que o propósito da peça tinha se realizado quando as luzes se acenderam e vi três amigos abraçados, de pé, no meio da plateia. Visivelmente emocionado, um deles chorava. Também sensibilizado pela experiência, eu me dirigia à saída, acompanhado de minha esposa. Logo encontramos duas colegas, que de imediato comentaram: parecia feito para mim, tem uma proximidade muito pessoal. Era isso, fazer com que a plateia se deixasse afetar pela história de outros, desconhecidos, que responderam a um anúncio e enviaram relatos de suas experiências pessoais aos dramaturgos para que se transformassem em teatro. Desde histórias graves às mais singelas, pequenas, por vezes ordinárias e ainda assim tocantes, que remontam à singularidade de pessoas também diversas.


Pensando melhor, o propósito da peça Eu de você já tinha se realizado antes, na cena em que a personagem de Denise Fraga desaba no chão, sobrecarregada pelas neuroses nossas de cada dia. Uma mensagem de WhatsApp fora projetada no fundo do palco, solicitando ajuda. Uma, duas, três vezes. Até que uma jovem na plateia se levantou para socorrê-la. Acaso ninguém se dispusesse a isso, a peça teria que acabar ali, e revelaria que, afinal, a atriz estava errada. Pouco antes ela manifestara sua crença na potência transformadora do teatro. A espectadora que subiu no palco provou que, de fato, houve uma transformação: a ficção se fez realidade.

Esse processo começou quando a maioria sequer notara que já estava participando da encenação. Denise, em meio ao público, cumprimentava, tirava fotos, trocava sorrisos. Ela contou uma banalidade qualquer sobre um espetáculo anterior, intitulado A alma boa de Setsuan, quando iniciou esse ritual de receber os convidados pessoalmente. Foi nesse momento que conquistou nossa atenção, simpatia, disposição para ouvir narrativas alheias que, por um triz, não foram as nossas próprias.

E por que as ouvir? “Porque não há melhor espelho do que o outro. Porque sabemos quem somos a partir do que reverberamos. Porque é urgente ver o outro, olhar pelo olhar do outro, ser eu de você. O quanto nos ampliaríamos se conseguíssemos ser eu de você e você de mim, deixando-nos ambos atravessar por nossas experiências?”, pergunta a própria Denise Fraga no programa da peça, cuja idealização ela assina com José Maria e Luiz Villaça.

Entre os recursos que utiliza está o envolvimento direto com os presentes, que são convocados a contracenar, ler cartas, responder perguntas. Fato e invenção se diluem, assim como o discernimento entre o eu e eles.

Quem são eles? Ricos, velhos, brancos, pobres, negros, jovens. Outros. Cujos relatos são costurados com imagens, canções, filmes, memórias coletivas. E que a todo instante sussurram: o que nos difere? O que nos aproxima?


O espetáculo aposta em nossa disponibilidade para nos deixar sensibilizar e sermos, ainda que por instantes, um pouco como o outro. Viver uma cena da sua vida. Conhecer o mundo por seu ponto de vista.

Em um determinado momento, uma personagem dispara: a maldade é uma espécie de incapacidade. Incapacidade de quê? De nos permitirmos sofrer a dor do outro. De sorrir a felicidade alheia. Experimentar a sua maneira de ser. A incapacidade de estarmos abertos às inúmeras formas do viver resulta nessa maldade tão presente, que vai contaminando aos poucos as imagens, os discursos, os desejos. E que arruína toda capacidade de construirmos um comum – ou uma comunidade, se preferir.

Vivemos tempos turvos que nos convidam diariamente ao isolamento, ao medo do convívio e ao individualismo. Uma espécie de epidemia melancólica que nos tem aprisionado atrás de nossas telas geniais, que nos conectam e distanciam em alternância estroboscópica num abismo de encantamento e retórica. Um tempo que tem confundido e abalado a nossa esperança. Tenho a impressão de que cada dia nos distanciamos mais da potência que poderíamos ser se estivéssemos realmente conectados e acredito que o Teatro ainda é capaz de promover este milagre. Todos nós aqui, nesta sala, celulares desligados, escutando o silêncio, a respiração, a tosse, a risada do outro”, escreve a atriz.

A peça usa o bom humor para abordar temas sérios como política, sociedade, comportamento, abuso, discriminação, sonho, culpa – um artifício para ampliar nossa consciência e mobilizar a sensibilidade. Com singeleza e afeto, transforma o teatro numa praça pública em que as vidas se desenrolam, fazendo de nós mesmos seus atores e testemunhas. Produz assim aquele triz, momento do quase, em que somos arrebatados por uma perspectiva diferente, capaz de nos fazer vislumbrar o que poderíamos ser, caso não ficássemos reduzidos ao nosso euzinho particular.