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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

TODO OUVIDOS


Fico intrigado ao ver tradutores de libras num show de música. Bem ali no palco, ao lado do Nando Reis. Não entendo os sinais, que às vezes se assemelham a uma palavra, outras vezes parecem uma dança. Como funciona essa linguagem? Traduz algo além dos versos e eventuais comentários do artista? Será que dá sugestões do som? Tais sugestões fariam sentido a alguém que nunca ouviu, portanto não tem referências para entendê-las? Não tenho amigos nem parentes surdos, sou leigo no assunto. Sentado na plateia, observando aquelas pessoas se desdobrarem em gestos que nada dizem para mim, fico a pensar um amontoado de questões.

A mais evidente delas é: por que um deficiente auditivo viria a um show de música? Não se trata de um espetáculo pirotécnico, não há quase nada interessante para ver. Há o Nando Reis e o seu violão. E só. Quero acreditar que o tradutor não está ali obrigado por uma lei esdrúxula, gesticulando para ninguém. Quero acreditar que está li porque existe demanda, ou seja, porque os surdos frequentam shows de música e devem ser acolhidos conforme for mais conveniente a eles. Se essa conveniência inclui a libras, que seja a libras.

Agora, se os surdos vão aos shows apesar de seus ouvidos não perceberem a sonoridade, será que “ouvem” de alguma outra maneira?

Presto atenção às vibrações produzidas pelas caixas sonoras. É alta e faz tudo vibrar junto, o copo em minha mão, a poltrona, o ar. As ondas reverberam na pele, na carne, nos ossos. Além da música tocada, há essa música que nos toca, como se fôssemos seus instrumentos.

Observo a plateia, imaginando uma imensa orquestra a produzir música em seus próprios corpos, cada qual com seu timbre singular. Entretanto o que vejo não são instrumentos nem ouvidos, mas celulares. Centenas de telinhas brilhantes a competirem com as luzes do palco. Tenho assim a segunda revelação da noite: estes espectadores, tanto quanto os deficientes auditivos, ouvem mal, talvez nada ouçam com os seus ouvidos. Talvez ouçam com os olhos, através da tela. Fotografam, gravam, postam imediatamente nas redes sociais. Quem é surdo, afinal? Quem não pode ouvir ou quem pode mas não ouve realmente, ocupado que está com os olhos, os dedos, a comunidade digital?

Neste momento Nando Reis se distanciou, preciso fazer um esforço para reencontrá-lo. Fecho os olhos, procuro, sim, aqui está ele, dedilhando o violão, cantando no tom.

Lembro das minhas próprias aventuras musicais, tocando contrabaixo com amigos num estúdio, pura diversão. Quem tem ou já teve banda sabe o que digo a respeito de uma qualidade chamada entrosamento. Para a qual não há explicação lógica, é uma espécie de sentimento coletivo que produz um dissenso harmonioso, com notas diferentes que por alguma desrazão torcem o tempo. É uma qualidade que possibilita antecipar o movimento do colega, oferecer suporte para que tal movimento se realize ou apoiar nele a sua própria ação, conforme o andamento da música.

Todos os membros da banda podem tocar as notas certas no momento certo e ainda assim não estarem entrosados. Nessas horas a música soa correta, porém sem cor. O entrosamento de uma banda soa diferente. Como uma tessitura irregular que se adapta às imperfeições do espaço. Quando a banda entra em sintonia, a música atravessa o corpo de todos; ela é mesmo incorporada, ou seja, expande-se para além dos ouvidos, da racionalidade das escalas, da teoria e do metrônomo; ao ponto de ser tocada pelo corpo inteiro da banda e por reger o corpo de cada músico individualmente. Quem tem ou já teve banda sabe o que eu digo. Quem nunca teve talvez não entenda. Não é fácil por em palavras. É uma espécie de sensação que precisa ser experimentada.

Ouvir a música apenas com os ouvidos e tocá-la apenas de acordo com os ouvidos, obedecendo à matemática musical, rende um som artificial, quase uma aberração mecânica. Você pode tocar o instrumento com perfeição técnica, porém sua música não tocará ninguém. É preciso avançar esse estágio se quiser ser um músico que toca as pessoas, mais do que toca o próprio instrumento; é preciso sentir a música como uma entidade que o envolve por completo, que para o tempo e coloca você em afinidade com um presente contínuo. Todo o tempo da vida está naquele instante. Suponho que seja por esse motivo que as horas voam quando fazemos música.

Nando Reis pausa o violão e diz que tem um irmão surdo. Que nasceu sem audição e não aprendeu a língua dos sinais; ele lê os lábios. As pessoas ao meu redor tiram fotos e gravam vídeos e compartilham suas imagens nas redes sociais enquanto o músico conta suas histórias de juventude. Eu fico curioso, imaginando como deve ser, para um artista famoso como ele, crescer na companhia de um violão e de um irmão surdo. Como será que essa experiência afetou sua obra? Que Nando Reis é esse que somente aquele irmão ouve? Qual é a semelhança e a diferença entre ele e esse outro Nando Reis que nós ouvimos, fotografamos e compartilhamos? Será que o irmão toca algum instrumento musical? O que será que os deficientes auditivos da plateia teriam a dizer, que histórias teriam a contar? Eu adoraria conhecê-las.

Outra canção já começou e eu nem mesmo percebi.

domingo, 1 de março de 2015

NOTAS SOBRE UM PIANO

Banner que acompanha o piano.
Clique na imagem para ampliá-la
Eu quis escrever este texto no mês passado, assim que vi a recepção incrível do projeto Piano no Metrô, em São Paulo. Um projeto bastante simples: botaram um piano na estação e uma placa convidando os usuários a tocar. Desde então, não importa a hora, não importa o dia, toda vez que passo ali ouço alguém tocando, desde curiosos tendo o primeiro contato com o instrumento até músicos talentosos complementando a apresentação com canto lírico, desde o jazz mais complexo ao mais tímido dó-ré-mi-fá fá-fá. Passo todo dia pelo piano. Diversas vezes parei com intuito de ouvir a música até o final. Vi dezenas de pessoas se acumularem ao redor, vi pianistas serem ovacionados em plena hora do rush. E pensei algumas coisas a partir disso:

1) Vivemos um vazio. Não é que vivemos no vazio, pelo contrário: vivemos um vazio de experiências no excesso da metrópole, neste conturbado cotidiano de horários rígidos, informações desencontradas, imagens, consumo, whatsapp, imagens, imagens, baboseiras, bobagens, violência, impessoalidade, banalização, imagens, desafeto. O que falta para preencher o vazio? Existência, claro. Falta experiência de vida, experiência estética e política; ser, estar, ouvir, participar, compartilhar. Então o sujeito se depara com um piano no metrô e começa a tocar. Outro acha bonito, aproxima-se. A mulher, atrasada para o compromisso, reconhece a música e canta baixinho. Antes do fim, são quinze, vinte desconhecidos cantando juntos, batendo palmas no ritmo, preenchendo um pouquinho do vazio alheio.
      (A 28ª Bienal de SP: Em Vivo Contato, à época criticada como "bienal do vazio", volta à memória, revela potencial e pertinência, dando sequência à 27ª: Como Viver Junto. Não é lindo?)

2) Vão quebrar o piano, esse povo sem educação. Pois não quebraram. Não depredaram, não fizeram arruaça. E o piano vai completar dois meses. Vândalo não ouve música, é a conclusão mais fácil, que farão você apoiar, e não poderia ser mais enganosa. Os mesmos usuários do transporte público que cantam ao piano são os que quebram trens e plataformas. Somos os mesmo sujeitos, somos iguais; nem eu nem você: nós. Diferenciar-nos não leva a nada, exceto a mais violência. O que "resolve" a questão é andar de metrô, ocupar os espaços públicos, participar do dia a dia da cidade. É preciso mais piano e menos lotação, mais qualidade e menos tarifa, mais respeito e menos acusação, mais vontade política e menos pilantragem. É preciso que os cidadãos gostem do transporte público, que experimentem e cuidem da cidade. Convidá-los a fazer parte em vez de fazer vítimas. As ciclovias e corredores de ônibus seguem o mesmo caminho. Um dia você vai usá-los. E vai gostar.

3) Um responsável quis barrar o projeto, disso você pode ter certeza. Existe sempre quem duvida que um insetinho pode emitir luz própria. Talvez tenha sido você, que num primeiro momento achou bobagem, achou que não daria certo, que a prioridade seria outra. Afinal, somos todos responsáveis, não é necessário o cargo. Seja quem for essa pessoa, tenho um recado: bem feito. Seja por ter perdido o páreo, seja por ter cedido ou apoiado, bem feito, deu certo, foi uma experiência válida. Ninguém precisou construir estádios de futebol ou desviar bilhões de reais. Bastou um piano para irromper uma experiência coletiva positiva. O show fica por conta dos participantes, cidadãos, vândalos, pode nos chamar do que quiser, obrigado.

4) Ultimamente, à noite, tenho visto gente se reunir em volta do piano, botar as mãos ao alto e cantar música religiosa, transformando a estação numa espécie de culto, usando a oportunidade da experiência estética para pregação ideológica. Muita gente, mesmo. Fazem isso apesar do aviso de que "o projeto Piano no Metrô não tem finalidade política, religiosa ou esotérico-mística e não pode ser utilizado para a prática de cerimônias religiosas ou atividades afins". Ainda não sei o que pensar, já debati o assunto sem chegar a um acordo (liberdade de expressão, respeito ao espaço do outro, apossamento, segregação, profanação da música sacra, e se fosse Bach, poderia tocar?). Deixo aqui somente a constatação, além da suspeita de que logo isso vai se tornar um problema (aliás, o aviso sempre esteve ali ou foi incluído depois?).

5) O piano no metrô é um vaga-lume, cujo brilho resiste ao excesso de esclarecimento que ofusca sua tentativa de sobrevivência. "Desapareceram mesmo os vaga-lumes?", pergunta Georges Didi-Huberman. "Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (...) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (...) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes". Caminhamos pela cidade sem os notar, esses pequenos lampejos de beleza. Assim eles desaparecem para nós.

Eu quis escrever um mês atrás, mas foi bom esperar o projeto se desenvolver. Agora posso afirmar que a melhor realização do metrô de São Paulo, nos últimos anos, foi colocar o piano na estação República (parece que há outro na Luz). Poderia ter sido a construção de 50 estações, mas foi o piano. E mesmo que houvesse as 50 estações, mesmo que tivessem sido construídas sem corrupção, eu ainda gostaria mais do piano. Porque a ampliação da rede é obrigação do governo. Já o piano é um toque de sensibilidade na vida de quem habita aquele vazio superlotado tão carente de afeto.

domingo, 14 de setembro de 2014

terça-feira, 1 de abril de 2014


"Todos os hospitais psiquiátricos eram semelhantes, prédios vitorianos de aparência discreta, nos quais o instrumento terapêutico era indistinguível do equipamento de punição. Uma prisão, um hospício, um quartel – cada uma dessas instituições podia converter-se rapidamente em outra. Um programa de tratamento era um programa de correção. Qualquer um daqueles prédios era um hospício em potencial."

Geoff Dyer, Todo Aquele Jazz (referindo-se à esquizofrenia de Bud Powell)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

sábado, 4 de maio de 2013

HOFESH SHECHTER


"Arrebatador" é a palavra que melhor resume o espetáculo Political Mother, da companhia inglesa comandada por Hofesh Shechter, que assisti ontem no Auditório Ibirapuera. Com música ao vivo - das pancadas heavy metal aos violinos clássicos -, a banda dividia a atenção do público com os bailarinos, e todos dançavam juntos sob a opressão do totalitarismo. Havia momentos de escuridão, sentimentos de dor e compaixão, manifestação e repressão popular, tudo pura dicotomia, pontos de vida completamente apartados e extremistas. Lembrei o tempo todo do romance 1984 (George Orwell), daquele clima de sociedade vigiada e controlada, sobrevivendo à repressão. Pensei em campos de extermínio, em refugiados de guerra e também nos momentos singulares de força que surgem ali com objetivo de tornar a existência suportável. Tudo ilusão. Essa história toda sem narrativa, sem verbo, somente linguagem corporal e música, muita música alta para impulsionar os corpos e fazê-los falar. Foi lindo. O auditório estava lotado de uma maneira que eu jamais imaginaria. Se me perguntassem quantos brasileiros se interessariam por dança contemporânea, eu responderia "poucos". Mas seria uma resposta errada. Juntos, aplaudimos a companhia por longos e entusiasmados minutos. Saí de lá arrebatado.

Aqui tem mais informações sobre o festival: O Boticário na Dança

terça-feira, 13 de março de 2012

UM PASSO QUE É UM SALTO


"Hoje se pode viver de tocar só o que se quer. Nem é preciso fazer outros estilos. O tamanho de Tulipa Ruiz e Criolo, por exemplo, é o tamanho que almejo. Tocar no Brasil inteiro sem precisar fazer programa tosco de TV, sem precisar se ídolo popular. No entanto, fora Tulipa e Criolo, não há muitos outros artistas assim. O formato da grande estrela parece ter acabado. No lugar disso, há outro tipo de artista, aquele que pode viver só do que gosta, sem precisar tocar no shopping ou em festas. Essa geração ainda não está grande para viver de trabalhos autorais exclusivos, mas está grande o suficiente para que os artistas transitem por bons projetos."

Romulo Fróes em entrevista para a revista Continuum n. 35 (fevereiro e março de 2012)


Romulo fala acompanhado pelos três integrantes do projeto Passo Torto, que está sendo recebido pela crítica como um passo a mais na história do samba e, como os músicos dão a entender, de toda a MPB, uma vez que ela tem sua origem naquele. São eles: Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos.

Cada um dos músicos possui diversos projetos paralelos, contribuem com bandas, acompanham amigos em turnês e, por meio dessa multiplicidade toda, vão compondo a nova música brasileira.

É uma tendência? Parece que sim. Eu sou a favor. Principalmente quando vejo bandas mais antigas insistindo em fazer mais do mesmo que fizeram nas últimas décadas simplesmente porque têm fãs. Sem criatividade, sem renovação, sem fôlego.

Acredito muito em quem salta de galho em galho, ou seja, que experimenta, produz trabalhos diferentes, pesquisa, troca conhecimento, vive numa jam session permanente. Em tempos de multiculturalismo, de informação acessível e rápida, acredito que esse seja o caminho. Vamos acompanhar para ver onde dá.

Que tal começar ouvindo o primeiro - e talvez único - disco do Passo Torto? Está disponível gratuitamente no site oficial da banda: Passo Torto. Basta registrar seu e-mail e baixar.

Baixe o PDF da revista e leia a entrevista completa: Continuum


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

COM A MÚSICA ENGASGADA NO PESCOÇO

Há mais ou menos uma semana, o maestro Allan Gilbert interrompeu a apresentação da Sinfônica de Nova York porque um celular não parava de tocar na plateia. Foi a primeira interrupção nos 170 anos da orquestra, e ocorreu durante o último movimento da nona sinfonia do compositor Gustav Mahler.

Segundo o maestro, o aparelho tira a concentração dos músicos e compromete a qualidade da apresentação.

Um exemplo de como isso acontece pode ser visto abaixo. O músico Lukas Kmit se apresentava na Sinagoga Ortodoxa de Presov, na Eslováquia, quando um celular o levou a uma reação inesperada, que caiu no gosto do público e ganhou destaque na internet:




Todo mundo sabe que é falta de educação deixar o celular ligado durante apresentações como essa, do mesmo modo como no cinema ou no teatro. Mas elas persistem. Imagino que o insulto estava engasgado no pescoço desses artistas há tempos. Agora, as reações começam a aparecer.

Fica a questão: qual é a melhor maneira de lidar com o problema?


Saiba mais sobre a interrupção da Sinfônica de NY (Toque de celular interrompe concerto da Filarmônica de Nova York) e do músico Lukas Kmit (Músico reage com bom humor ao ser interrompido por um celular).

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

IT'S THE END OF WORLD AS WE KNOW IT

(clique na imagem para ampliá-la)

Fim dos jornais, fim dos discos, fim das cartas, fim dos livros, fim dos casamentos, fim da arte, fim dos bate-papos entre amigos. Cada vez que se inventa uma engenhoca, declara-se o fim de outra. Mas nada termina de verdade, certo? Não dá para acreditar nessas conclusões antecipadas.

Para 2012, previram o fim do mundo. Mas ele não vai acabar, claro – vai acabar a maneira como nós o conhecemos. Tudo para dar início a um mundo melhor, feito de alegrias, conquistas e amizades sinceras. Nisso dá para acreditar.

Como canta o R.E.M., "It's the end of the world as we know it. And I feel fine."
(É o fim do mundo como nós o conhecemos. E eu me sinto bem.)

Então, feliz ano novo!


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A ÓTIMA ESQUISITICE DE KARINA BUHR



Na primeira vez em que ouvi Karina Buhr, achei bastante esquisito. Eu tinha lido uma nota sobre o lançamento do disco Longe de onde em uma revista especializada e fiquei curioso; afinal, é uma estreia que ganhou boas recomendações, que conta com patrocínio da Natura* e com as parcerias talentosas de Edgard Scandurra, Fernando Catatau e Guizado. Baixei o disco gratuitamente do site da artista, ouvi uma faixa ou outra cujo nome me chamou a atenção e fiz uma busca no Youtube para assistir ao clipe Cara Palavra; no geral, achei tudo bastante esquisito, como disse no início.

Comecei então a questionar o que me causava tanto estranhamento. À primeira ouvida, acho que foi o próprio corpo do som – quando soube de mais essa jovem cantora despontando, esperava que ela fosse justamente isso, mais uma como as outras. O que já seria um grande mérito, dada a boa fase da nossa cena musical. Porém, vieram aquelas batidas fortes de coração nordestino, junto com o sotaque que carrega sua origem na ponta da língua; aquelas guitarras distorcidas conectadas diretamente dos fones aos meus ouvidos, bagunçando tudo por ali; aquela mistura muito bem dosada de rock, punk e percussão… fui pego desprevinido. Era uma música diferente, forte e com vontade de expressão.

As letras também dizem muito, vide a própria Cara Palavra, que abre o disco explorando os significados das coisas quando elas mudam de contexto, ou quando as pessoas que as utilizam se transformam. Tudo vira outro, tudo se multiplica. Karina vai unindo palavras para construir novas, acentuando a sílaba errada para sugerir o significado correto. É uma experiência puramente lírica. E também bastante divertida, que vai se desvendando ao longo de uma faixa tão breve e ao mesmo tempo tão ampla.

Outro exemplo bacana é Cadáver, em que as palavras “em defesa” e “indefesa” soam praticamente idênticas, revelando-se somente no contexto (“Sua dúvida é produto da sua escravidão / Mantenha então / Sua sanidade em defesa do seu estômago. / Se você pensou que tinha solução / Mantenha então / Sua integridade indefesa.”).

Não dá para analisar o disco inteiro aqui, até porque cada faixa deve encontrar seu próprio ouvido-metade e sussurrar ali seus segredos mais intrínsecos. Talvez você não se identifique com nenhuma, o que eu acho difícil, mas vale a pena tentar mesmo assim.

Se a esquisitice de Karina Buhr incomoda, isso é bom, é sinal de que existe algo novo e interessante em seu trabalho, algo distante do lugar-comum e que lhe dá evidência nessa fase tão fresca da música brasileira. O disco exige que a gente vença o estranhamento aos poucos, sem apressar o tempo, sem pular as faixas. A cada repetição, ele fica melhor.

Agora, quero saber aonde Karina Buhr vai nos levar. Espero que para bem longe de hoje.

*Projeto selecionado no Edital Nacional 2010 do Natura Musical.


Conheça o site da artista e baixe o disco gratuitamente: www.karinabuhr.com.br

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Eu continuo a escutar Norah Jones. E continuo a cantar Norah Jones. As músicas permanecem em repeat perpetuum em minha cabeça. Mas é um pop disfarçado de jazz, você vai dizer, melancólico e inocente. Também é. Além de pop jazz, é uma porção de outras coisas.

Eu gosto cada vez mais de Norah Jones. A cada disco, descubro uma nova artista. Só que o disco que continua a tocar, nesse momento, é o seu primeiro. Come away with me, vou explicar por quê. Porque gosto tanto dele, apesar dos pesares que a crítica ácida insiste em corroer. Há um lirismo escondido atrás daquela banalidade toda. Um lirismo que, inclusive, ganha forças com a tal banalidade.

Em Feelin’ the same way, letra assinada pelo baixista Lee Alexander, Norah canta: o sol acaba de escorregar sua mensagem por debaixo da porta, e eu não posso me esconder, enterrada em meus lençóis. Eu já li aquelas palavras antes, então agora sei que o tempo chegou novamente para mim. E eu me sinto do mesmo jeito, de novo, eu canto os mesmos versos, de novo, não importa o quanto eu finja que não.

Acho lindo. Se fosse simplesmente banal, ela poderia dizer “vejo o sol na fresta, sob a porta, e eu não posso ficar na cama para sempre”. Mas o lirismo dá as caras, para nossa sorte, e o sol não aparece, ele não se deixa ver, apenas escorrega um bilhete. Um bilhete que ela já leu muitas outras vezes, e que insiste: o tempo está correndo, o novo dia veio lhe buscar, ávido por novidades; não adianta se enterrar, não adianta morrer, é preciso vencer. Dia após dia, é preciso vencer a mesmice de ser sempre você.

Na música que dá nome ao disco, essa sim escrita por Norah, para você não dizer que o mérito é alheio, ela canta o amor do jeito mais banal possível. Porém, ao invés do escorraçado “eu amo você”, que o nosso sertanejo pop esfolou ao limite, até que ele não significasse mais nada, até que não passasse de mera rima, Norah diz: venha comigo, num ônibus; venha para onde eles não podem nos tentar com as suas mentiras. Eu quero acordar com a chuva caindo num telhado de lata, enquanto estou a salvo em seus braços.

Cenas banais, fugazes, porém belíssimas. Belas justamente porque banais.

É possível ser pop, jazz e lírico, tudo ao mesmo tempo? É possível falar a mesma coisa, mas diferente? É possível retirar do banal, da rotina, do dia a dia, algo estupendo? Fazer complexo das coisas simples? Norah acredita que sim. Então eu a deixo tocar.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

PARA CAMINHAR DE OLHOS FECHADOS*

Tenho ouvido muito esse disco [Chopin: The Nocturnes, de Nelson Freire]. Aliás, desde que o comprei, é praticamente tudo o que tenho ouvido. Ele acalma e ajuda a controlar os nervos – para explicar de maneira racional –, e depois da ansiedade que vivi nos últimos dois meses, em diversos momentos precisei dele para manter a cabeça no lugar. Mas não é só isso, claro. Sempre admirei os Noturnos de Chopin. Acho incrível como um músico e seu piano conseguem nos transportar pelo mundo dos sonhos, e então nos trazer de volta para a noite clara, imprimindo sensações de bailes agitados e também de solidão, desde a inércia contemplativa à ludicidade total. Ouvir os Noturnos é como caminhar livremente pela inconsciência, ou sonhar acordado num outro século, num outro continente, dentro da própria imaginação. Foram minhas melhores fugas da realidade, com certeza, e não há por que me envergonhar delas se acabo sempre por retornar mais forte, mais seguro de mim mesmo, pronto para enfrentar a sólida natureza do dia que vai se impor. Enfim, não basta um músico e um piano para provocar tudo isso, claro, assim como não é possível explicar racionalmente o que Chopin, pelas mãos de Nelson Freire, me possibilitou sentir. Só posso dizer que devo muito a ele. Séculos depois, continuamos todos a dever. Espero sinceramente que, de uma maneira ou de outra, ele também lhe possibilite uma experiência especialmente bela. Já que a explicação racional não basta, é melhor ligar o som, fechar os olhos e mergulhar por si mesmo nessa nova realidade.
Um forte abraço,

*Carta aberta ao amigo João A. Frayze-Pereira.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O LAGO DOS CISNES, OP. 20

Não faz muito tempo, escrevi uma crítica do filme Cisne Negro e depois acabei por citá-lo novamente numa crônica do Correio Popular de Campinas. Ainda assim, aquela trilha não me saía da cabeça. Eu sabia que podia encontrá-la em algum dos meus CDs, porém foi só no último fim de semana que consegui procurá-la devidamente. Como não me permitem disponibilizar um arquivo de áudio aqui no blog, você precisa utilizar o vídeo abaixo para ouvi-la. É só clicar em 'play'.



Aproveitando a deixa, aqui vão algumas curiosidades a respeito:

O lago dos cisnes foi o primeiro dos três balés do russo Piotr Il’yich Tchaikovsky.

• Composto em 1876, é bem mais antigo do que os seguintes – A bela adormecida, de 1889, e O quebra-nozes, de 1892 –, além de ter sido criado em circunstâncias diferentes.

• Enquanto O lago dos cisnes foi feito por iniciativa própria, os outros dois foram encomendados para os Teatros Imperiais de São Petersburgo e aceitos apenas porque o compositor se encontrava em situação econômica difícil – digamos que o gênero não era muito respeitado na época.

• Quando estreou no ano seguinte, em 1877, “foi um tremendo fracasso, não devido à música, mas à interpretação da orquestra e dos bailarinos, assim como à cenografia e à coreografia. Em fevereiro de 1895, depois da morte do autor, voltou a ser encenado no Teatro Marinsky (…) e obteve sucesso enorme”. (RINCÓN, Eduardo. Piotr Il’yich Tchaikovsky: Royal Philharmonic Orchestra. São Paulo: Publifolha, 2005)

Mais informações você encontra no site do museu dedicado ao autor: Tschaikowsky Museum

E também aqui: Coleção Folha de Música Clássica

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

SE ATRAEM OS OPOSTOS

[é uma letra de música. Leia cantando]

Separados pelo parto
Unidos por acaso
Em comum pelo tanto incomum

Seria só um caso
que jamais deixou de ser
Daria tudo errado
se houvesse por quê

Porque sim
Porque não
Por que não sei?

Por que eu
questionar
Por que você?

Por que sim?
Por que não?
Porque não sei

Por que eu?
Questionar


Tanto um quanto outro
Tanto faz quanto fez
Quanto vale se for pra valer?

Uma vez nada mais
que jamais deixou de ser
Tudo aquilo que se enxerga
e não tem nada a ver

[para J. L. A.]

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A VOZ DO JAZZ ÀS GARGALHADAS

Quem gosta de jazz vive falando dos diálogos e improvisos entre os instrumentos, da sintonia com o cotidiano, da verdadeira voz da música, etc. Quem não gosta se faz de desinteressado, considera aquilo tudo invencionice de gente aficcionada, parece tão chato de ouvir quanto de argumentar a respeito.

Nesta cena maravilhosa, o humorista americano Jerry Lewis mostra que o jazz e a vida têm muito em comum. Tudo bem, falo como fã do estilo. Se você também é, assista, vai ser divertido. Se você não é, assista também. Tenho certeza de que os nossos blá blá blás passarão a fazer muito mais sentido.


Jerry Lewis - O garoto dos recados (1961)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

PAGANINI FOR FACE



Esse cara interpreta a música de Paganini com expressões faciais. Divertidíssimo!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ONDE VIVEM OS MONSTROS?



Comprei esse livro porque assisti ao filme e me apaixonei.
Antes, não conhecia a história, não sabia nem mesmo da existência dela, embora tenha ganhado importantes prêmios desde que foi escrita, em 1963.
O livro também me surpreendeu. Muito.
Primeiro, pela concisão do texto. (como foi que fizeram um longa-metragem a partir desse "parágrafo?")
Depois, pelas ilustrações, riquíssimas. São aquarelas e nanquins realizadas pelo autor, Maurice Sendak, que soube onde colocar os detalhes e onde suprimi-los para a criançada poder sonhar.
Por último, porque encontrei aqui a mesma essência selvagem do filme – ainda que seja essa a original –, a mistura da realidade com a ficção, o universo das fábulas infantis.



Fui assistir ao filme simplesmente porque o pôster atiçou minha curiosidade. E porque a música do Arcade Fire ("Wake Up") escolhida para compôr a trilha me pareceu perfeita.
Ele prometia um visual bonito e algo selvagem. Saí do cinema extasiado.
Dirigido por Spike Jonze (o mesmo de "Quero ser John Malkovich"), a história nos oferece uma série de perguntas cruciais:
1. Até onde temos que ir para entender o mundo em que vivemos?
2. Quem são os monstros de verdade?
3. Será que eles não vivem dentro de nós mesmos?
O filme pareceu forte demais para as crianças, queria ver como elas reagiriam. Mas sessão era legendada, então não deu para saber.
O termo "selvagem" do título original (Where the wild things are) me parece traduzir melhor o sentimento proposto, aquele pulso primitivo do livro, instintivo e natural.
As emoções descontroladas e imprevisíveis dos monstros são muitas vezes assustadoras. Será que já vimos algo parecido por aí?
Com certeza.
O que nos difere dos monstros, afinal?
Nossa capacidade de nos relacionar uns com os outros, talvez.
Nossa capacidade de nos organizar.
Nossa capacidade de amar.
Será?


Clique e assista ao trailer de Onde vivem os monstros

segunda-feira, 26 de julho de 2010

FILHOS DO BRASIL, NOTAS RÁPIDAS



• Musical criado e dirigido por Oswaldo Montenegro
• Não possui narrativa linear. Parece mais um apanhado de cenas com um tema em comum – o perfil do brasileiro
• É uma tentativa de compreender a essência do brasileiro, esse pressuposto filho da nação
• Encontrar uma única definição não é um reducionismo perigoso?
• É difícil conhecer os filhos se não sabemos nem quem é o Brasil
• Os esteriótipos do nordestino, do político corrupto, da loira burra, do povo sofrido, do mineirinho da terra, do homem do morro, do hip hop, entre outros, rendem uma leitura ingênua, patética e banal
• O trabalho dos atores e músicos é muito competente
• Música e dramatização se complementam bem
• Em muitos momentos a peça lembra a antiga "Noturno": aparecimentos repentinos em diferentes lugares do teatro, lanternas no rosto, pontos de luz para direcionar a atenção do espectador
• A cena de Léo e Bia é o melhor momento, embora pertença originalmente a outra peça – a lógica fraca e sem graça de Oswaldo dá lugar à lírica
• A defesa do Brasil como território e cultura faz Oswaldo parecer o Policarpo Quaresma da nova era
• Não creio que o nacionalismo seja o caminho para o brasileiro se encontrar. Isso parece retrógrado, principalmente em tempos de universalização, internet, redes sociais internacionalizadas etc. Gosto mais do conceito de "cidadão do mundo", que Alanis Morrissete inseriu em seu último disco
• Desde quando se deve gostar de MPB só porque nascemos aqui?
• "No Brasil não há preconceito, a natureza faz parte do povo, judeus e muçulmanos convivem decentemente, todos se amam e se abraçam nas ruas" são mentiras em que fingimos acreditar
• Discordo conceitualmente de Oswaldo em diversos pontos, principalmente quanto a querer encontrar a essência do brasileiro e a amar incontestavelmente a nação. Tirando isso, a peça é divertida

Ps.: Alguma ligação com o filme "Lula, o filho do Brasil"?
Ps. 2: Lula seria mesmo o único?

terça-feira, 20 de julho de 2010

SUPERESTREIA EM CD



Fiquei muito feliz ao ver o show de lançamento do CD Supertrunfo, da banda que leva o mesmo nome. Feliz e também aliviado, pois descobri que não se trata de mais uma dessas bandas que apontam e logo desaparecem, vitimadas pela falta de caráter do rock brasileiro. Não, Jorge Neri (vocais), Duda Becker (guitarra), Fell Vieira (baixo) e Thiago Sansão (bateria) são diferentes e vou tentar explicar por que em poucas linhas.

A começar pela qualidade técnica dos músicos, coisa rara nesses tempos de samplers repetitivos, playback e rostinhos bonitos se chacoalhando freneticamente de um lado para outro do palco. Pôxa, dava para ver na segurança de cada compasso que eles sabiam o que estavam fazendo. E faziam por pura paixão, porque acreditavam na própria música e não apenas nas promessas do produtor.

Depois, pela obra propriamente dita, as harmonias criativas e bem resolvidas, a cadência do show, as letras que mais parecem diferentes versões da mesma história, falando de curtir o presente a dois e deixar o resto para depois. Tudo muito redondinho, bonito de se ver e de se ouvir. Mas o melhor mesmo são os riffs de guitarra, as distorções e os refrãos decentemente gritados – que saudade! Afinal, rock brasileiro também é rock, diacho, tem muita banda por aí que se esqueceu disso. Quer saber mais? É maravilhoso assistir a shows como esse, em que os músicos se preocupam mais com o que sai dos amplificadores do que com figurinos e penteados. Dá mais credibilidade, sabe? Dá vontade de comprar o CD e prestigiar.

Isso é outra coisa que me deixou feliz: o Vale do Paraíba compareceu em massa ao SESC São José dos Campos, cidade de origem da banda e lugar onde eles já construíram certa fama. Pois bem, foram três edições do Unifest, além da abertura de shows do Rappa, Charlie Brown Jr. e Detonautas. E, enquanto muitos desses aí já caíram na rotina minimamente produtiva do sucesso, a Supertrunfo está começando com o pé direito.

Pena que o tempo era curto e só pudemos ouvir dois covers além das canções do disco. Foram: Dream on, do Aerosmith e Bohemian Rapshody, do Queen, ambos executados como se deve. Bom, nem preciso falar que tipo de som você pode esperar de uma banda com essas referências. Se bateu aquela curiosidade boa, acesse o site e o myspace dos caras.

Deixo assim meus parabéns. Com o primeiro degrau alcançado com reconhecimento da crítica e do público, já dá para pensar no que está por vir. Fazendo uma gracinha ridícula para terminar, a estreia dessa foi realmente um supertrunfo. Há!