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quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ARTE, CONJUNÇÃO ADVERSATIVA

 
Plugue (2018), de Nina Beier
 
O título da 34ª Bienal de São PauloFaz escuro mas eu canto – é um verso escrito por Thiago de Mello em 1963. Embora seu poema fale do trabalho na lavoura, podemos lê-lo sob a chave das tensões sociopolíticas entre os movimentos libertários e as repressões da época, muitas das quais, infelizmente, continuamos a vivenciar. Faz escuro. Mas eu canto. A escuridão persiste, assim como as formas de resistência a ela, entre as quais a esperança, a poesia, a alegria. E a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada cria espaço propício para que se possa exercitar o ato verdadeiramente revolucionário, sugerido no poema pela conjunção “mas”. Está aí o levante, a indignação, a denúncia, a resiliência, a afirmação da adversidade, o rompimento do ciclo, o desejo de mudança, a experiência alternativa, a apreciação da complexidade do mundo através de mais do que apenas um ponto de vista. “Mas” é a arte que se apresenta no Parque do Ibirapuera, na capital paulista, até 5 de dezembro de 2021.
 
Os mais de 1,1 mil trabalhos em exibição, criados pelos 91 artistas participantes, elaboram por vezes o escuro, por vezes o canto, se quisermos usar a mesma metáfora que parece balizar as escolhas dos organizadores. Eles abrangem um arco temporal que remete à formação do universo – representada pelos dois meteoritos – às produções desenvolvidas especialmente para a ocasião. Isso tudo disposto de modo a suscitar relações e, claro, sentidos interpretativos, questionamentos, atritos, reflexões, diferenciações, encontros de forças, entre inúmeras outras possibilidades.
 
Gustavo Caboco
Essa “poética da relação” tem base no pensamento do martinicano Édouard Glissant, filósofo, poeta, ensaísta, autor de um livro com esse mesmo título e uma das grandes referências conceituais da mostra. Tais relações já podem ser notadas na entrada, numa “sala” montada em torno do meteorito de Bendegó, símbolo de sobrevivência por ter resistido a variadas situações de risco, sendo o incêndio do Museu Nacional em 2018 a mais recente delas. Embora não esteja fisicamente presente por conta da dificuldade de se transportar suas 5,36 toneladas desde o Rio de Janeiro até São Paulo, sua história é retomada junto a outros trabalhos de arte que também colocam em questão a memória, a ancestralidade, a origem e a extinção nos seus mais variados sentidos.

Vemos ali, além de um meteorito menor – o de Santa Luzia, segundo em tamanho encontrado no Brasil – e de bonecas indígenas doadas pelos seus criadores para substituírem as originais queimadas – ambos os itens também provenientes do acervo do museu incendiado –, uma espécie de cosmologia inventada pelo artista Gustavo Caboco para problematizar sua identidade indígena; performances com declamações de livros feitas de memória, que aludem às deliberadas destruições por fogo do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; cerca de 150 monotipias da série Boca do Inferno, de Carmela Gross, criadas a partir de imagens de vulcões; entre outros trabalhos.

Coloquei aspas na palavra “sala” porque não se trata exatamente disso: a bienal apresenta as obras em nichos, separados por três tipos de divisórias chamadas “peles”. Elas são feitas de policarbonato, juta ou madeira, e suas transparências e opacidades remetem tanto à filosofia de Glissant quanto aos ocultamentos de culturas, saberes, pessoas etc. realizados por gestos opressores conscientes ou não.
 
Ainda que algumas peças ocupem o espaço com maior liberdade, boa parte delas fica reunida sob a imantação dos 14 enunciados propostos pela curadoria. Esses enunciados são objetos, ideias ou narrativas que não pertencem necessariamente ao campo das artes, mas que carregam histórias e simbologias. O Museu Nacional é um deles, assim como o sino da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, dita Capela do Padre Faria, em Ouro Preto; os retratos do abolicionista estadunidense Frederick Douglass; a obra de Paulo Freire; o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais; e assim por diante.

Mais do que um punhado de grandes nomes, me parece que os curadores conseguiram fazer do conjunto de obras e artistas a verdadeira potência da exposição. A temática, de modo geral, trata das relações entre culturas, temporalidades, valores, atitudes, com destaque para questões oriundas do colonialismo – entre as quais, e talvez principalmente, as sobre a diáspora africana por meio do tráfico de escravos e o extermínio dos povos originários. Há também menções a práticas democráticas ou autoritárias, como por exemplo em A carga e Presunto, trabalhos criados nos anos 1960 e que se atualizam no Brasil de 2021. Isso tudo configura a força de resistência, assim como as limitações que toda exposição de arte apresenta.
 
Arjan Martins
As diferenças entre os participantes e as muitas semelhanças estéticas e formais de suas obras, por um lado, fazem pensar em como essas proximidades são construídas na contemporaneidade. Já as dificuldades que senti para assimilar certas propostas talvez indiquem minha condição de estrangeiro, inclusive em minha própria terra e entre as pessoas que aqui habitam. Isso é algo previsto, pois existe na mostra um convite declarado a que se estabeleçam relações, mesmo que as partes não sejam perfeitamente compreensíveis entre si.
 
“Da adversidade vivemos”, afirmou Hélio Oiticica em seu famoso ensaio sobre a Nova Objetividade brasileira. Esse artista, falecido em 1980, compõe um dos enunciados da 34ª Bienal de São Paulo. E a exposição, como um todo, parece reiterar sua proposta, mostrando que pela diferença entre as formas de vida se produzem também variadas criações artísticas.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR

Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira

A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.

O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?

Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.

A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.

O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.

Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?

No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.

Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

[live] UTOPIAS: COMO IMAGINAR NOVOS MUSEUS?

Eu e minhas colegas do GEPPS receberemos o museólogo mineiro André Leandro Silva para uma conversa aberta com o tema Utopias: como imaginar novos museus?



André é autor de uma pesquisa sobre o trabalho artístico “A nova crítica”, de Frederico Morais, que propôs algumas utopias para o museu de arte pós-moderno.

Nesta conversa, queremos levantar pistas daquela produção para pensar: qual é o papel da utopia num museu? Como imaginar novos formatos e relações entre instituição, acervo e público? Como ativar a potência criativa e a crítica sensível dos museus a fim de rever suas formas de captura e ampliar acessos?


André Leandro Silva é bacharel em museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi eleito Conselheiro Municipal de Cultura em Belo Horizonte. Tem se dedicado a pensar a relação entre museus e acervos, considerando os agenciamentos provocados pelos acervos e as idealizações de museu neles encontradas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

SELEÇÃO OU CURADORIA?

 

Foto de Martino Pietropoli em Unsplash


Acho impressionante como o mundo corporativo rapidamente se apropria de termos de outras áreas para lançar modas, quase sempre os deturpando em seu favor. Um dos mais recentes é “curadoria”, oriundo dos museus e comum às exposições de arte e demais eventos culturais, que algumas empresas têm usado especialmente durante a quarentena para se referirem, com pretensa diferenciação, às suas seleções de programas educativos e de entretenimento. Curar, ao que parece, é mais nobre do que escolher, listar, reunir.

Dia desses ouvi uma colaboradora – não se diz mais “funcionária” e muito menos “empregada” – de multinacional afirmar que vem fazendo curadoria de experiências culturais – não se diz mais “atividades” – para seus clientes usufruírem em casa, quando na realidade ela apenas compartilha links para sites de filmes, cursos ou dicas de bem-estar gratuitos. Com a única preocupação de não ferir as políticas da empresa onde trabalha nem o gosto do cliente, o qual anda cada vez menos tolerante, diga-se de passagem.

Não vou negar que existem semelhanças, mas curar uma exposição de arte, por exemplo, é um tanto mais complexo. 1) Se em ambos os casos existe um rol de trabalhos a serem exibidos, no que tange às artes visuais há um cuidado excepcional com o que permanece invisível ao espectador. 2) Se, assim como aquela colaboradora, o curador do museu planeja disponibilizar itens para apreciação pública, ele está atento não apenas ao conjunto, mas também às potencialidades que se desenvolvem entre eles. Pois a proximidade entre uma e outra obra é capaz de modificar o sentido percebido das duas, do espaço e inclusive das pessoas que estão a observá-las. 3) Enquanto a seleção de atrações enviadas aos clientes daquela empresa visa “produzir conteúdo” por meio de um “storytelling que agregue valor e traga resultado específico” para a marca, a curadoria de arte, em especial a da arte contemporânea, visa criar aberturas nas narrativas, tanto nas oficiais hegemônicas quanto nas da própria mostra em questão, sejam relacionadas ao contexto, à biografia do artista, ao tipo de produção exibida etc. Essas aberturas são bem o contrário do resultado desejado com antecedência: são mais como vacúolos onde um acontecimento qualquer pode advir; são reservas para o imprevisível, por paradoxal que seja, onde o ímpeto criativo do outro possa se manifestar.

Para esse outro existir, não basta expressar sua satisfação em pesquisas ao consumidor; ele deve se deixar instigar, provocar, inquietar o suficiente para executar um movimento, dar um sinal de vida, deixar-se tocar de maneira irreversível. Talvez a curadoria mais bem-sucedida seja essa que, ao pôr em contato um espectador e um trabalho artístico, cria a condição para que ambos jamais sejam os mesmos novamente, ao menos um em relação ao outro.

Para que isso ocorra, o curador precisa deixar que inclusive o seu projeto mais arrojado escape ao programa e se renda ao inusitado, ao ingovernável, ao não instituído. Deve mirar o real dos trabalhos de arte e errar. Não falo aqui de margem de erro na comunicação com um público-alvo, mas de um grau intensivo de falha da linguagem, lapso da razão, fratura; isso é constitutivo do gesto curatorial, não algo a ser corrigido.

Há poucos meses, Luiz Camillo Osorio publicou um artigo na revista Ars em que esmiúça a “função-curador”. Em certo momento sintetiza que “curadoria é isso: produzir relações conceituais, afetivas, históricas, políticas, formais, enfim, fazer ver as semelhanças no seio das diferenças e constituir diferenças onde tudo parece idêntico”.

Não quero aqui engrandecer o mundo da arte, que já sofre de desmedidas suficientes para afastar as pessoas menos aficionadas, o que é uma pena para ambas as partes. Tampouco é minha intenção restringir o uso do termo “curadoria” às exposições de arte ou museus em geral. Só alerto para as complexidades implicadas nele porque o trabalho no mundo corporativo com certeza deixará a desejar se comparado ao que se espera de uma curadoria feita naqueles lugares onde ela se originou.

O que eu gostaria de ter dito à tal colaboradora de grande empresa é que nada adianta mudar o nome e não mudar a coisa. Para evitar frustrações, o melhor é manter as expectativas mais realistas, fazer uma boa seleção de indicações aos seus clientes e deixar que ela fale por si mesma.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A LEITURA COMO DESREGRAMENTO DE SENTIDOS

Há livros que me causam uma sensação de abstinência quando deixo de lê-los. Ainda é um mistério por que acontece com alguns e não com outros. Resta essa espécie de nostalgia de uma experiência de vida fictícia, uma vontade de voltar ao que nunca vivi de fato, mas que vivenciei de alguma maneira por intermédio de palavras e imagens. 

Penso se ler poderia mesmo desestabilizar o continuum da vida comum e levar a uma “iluminação profana” – para usar a expressão de Walter Benjamin – por meio dessa embriaguez não alcoólica, quer dizer, sem o uso de outras drogas senão o próprio livro, com o delírio sugerido pelo cheiro de tinta em papel. Uma suspensão de certa ordem que nos abre para outra; pensamento que irrompe de um jogo e remonta toda uma cadeia de significações já formada e banalizada.

Abrir as páginas de um livro de prosa ficcional implica abrir a mim mesmo e me dispor a encarnar um personagem outro; a possessão da sua existência imaginária, dos seus sentimentos contornados pela sintaxe. Viver inclusive uma alteridade radical, como a produzida por William Faulkner na primeira parte de O som e a fúria, em que adentramos a lógica torta de um deficiente intelectual, ou a de Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em sua estranha animalidade.

A experiência é exigente porque requer desativar mecanismos pessoais já muito aprimorados para inventar outro funcionamento. Acaso se consiga decorrerá o horror ou o prazer da ebriedade estética, por assim dizê-la; esse desregramento dos sentidos que expande a percepção para além das fronteiras do senso-comum.

Há pouco li O museu do silêncio, romance escrito pela japonesa Yoko Ogawa em que um museólogo é chamado a um vilarejo para lidar com uma coleção de objetos especiais. Enquanto se avizinha à nova situação, passeia pelos arredores e nos envolve num enredo inquietante e ao mesmo tempo aconchegante, do qual é difícil sair ileso. Cada vez mais implicado no projeto do futuro museu que está organizando, esse personagem transborda a própria margem e dá a ela nova forma; entre os copos de uísque, enamora-se por uma menina, aproxima-se da natureza com o uso do microscópio e se afasta da própria história familiar. Com ele, passo também a operar segundo outra modulação. As regras se desestabilizam, afrouxam, confundem os sentidos e me levam a uma vida não vivida na realidade, mas na ilusão, da qual ainda assim podemos falar, traduzir em imagens, descrever e interpretar; não menos real, portanto.

Sabemos que a criação da perspectiva na representação visual depende de um ponto de fuga; uma formulação matemática para que se possa escapar da banalidade da vida e adentrar um contexto ilusório disposto na realidade. Puro artifício a enganar os olhos, que veem profundidade num plano preenchido de pigmentos coloridos. E na representação literária, seria muito diferente?

Bacchus (1596-1597), de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio
Traço aqui mais um ponto de fuga em busca de nova perspectiva: Caravaggio pintou um famoso Baco, composto por um misto de juventude, quimera e podridão, que olha para fora do quadro, desatento. Tudo ao seu redor parece organizado à perfeição. Ao observarmos a pintura, em seu universo ilusório, vemos a mera banalidade de todos nós. Interessa-me, contudo, saber o que ele vê através da superfície pictórica, com seu olhar desviante e suas bochechas rosadas que denunciam um abandono de si. Aquele Baco é um leitor do nosso mundo; o deus que deixa o sagrado perpétuo para habitar a realidade profana. Quem somos diante da sua imortalidade? Uma existência finita, da qual pouco se preserva. Precisamos desaparecer suficientemente bem para que exista o movimento da vida e os momentos de suspensão que denominamos história.

Cansado, não posso controlar o sono e durmo com O museu do silêncio nas mãos. As páginas do livro aberto fazem as vezes de um portal por onde afluxos de sentimentos vêm e vão. Imagens. Palavras. Afetos. Tomo o mesmo trem que leva o museólogo à vila no interior do Japão; o trem que ele jamais pegará de volta. Parte de mim permanece com ele naquele lugar incrustrado nas montanhas e florestas. Parte de mim observa à distância a coleção de objetos que pretende rememorar cada vida extinta naquela comunidade. Outra parte não será vista novamente; esta última talvez seja a única verdadeiramente liberta.

domingo, 29 de março de 2020

VER APESAR DE TUDO

Já li uma porção de coisas sobre o holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial, ou Shoah, em hebraico. Não porque sou aficionado pelo assunto, mas porque qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e interesse histórico naturalmente se depara com livros, filmes, notícias, obras de arte, exposições, que de alguma maneira mantêm vivo aquele acontecimento. Há pouco li Cascas, misto de relato poético e ensaio produzido pelo filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman após sua visita aos campos de Birkenau, hoje parte do museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, onde colheu fotografias, impressões – de início intuitivas – e cascas de bétulas. Essas árvores são as poucas testemunhas remanescentes do genocídio perpetrado pelos nazistas naquele empreendimento sociopolítico que perseguiu judeus, entre diversos outros povos, culturas e ideologias menos falados e, assim, menos conhecidos hoje.

Fotografia feita por um avião de reconhecimento da Força Aérea Britânica em 23 de agosto de 1944, que veio a público apenas em 2004. A fumaça provém de um dos crematórios. Na época, os Aliados não compreenderam as instalações de Auschwitz-Birkenau porque eram inimagináveis, apesar das imagens.

Didi-Huberman comenta uma história já bastante escrita e bem estruturada, que justamente por isso vem até nós sem que estejamos procurando por ela. O que ele faz no livro, porém, é colocar em questão os modos como essa memória vai se transformando em história, em vez de apenas a reiterar tal como se costuma contá-la. Em especial ali, no museu erigido sobre o antigo campo de extermínio, onde o ser humano foi capaz de matar vinte e quatro mil dos seus semelhantes num único dia de 1944 e, algumas décadas depois, abrir uma loja de lembrancinhas especializada no tema.

O autor fala dessa cultura capaz de realizar ambas as coisas. “A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar”, diz. Sua observação parte das três cascas de árvore colhidas na ocasião da visita – “Birkenau” significa “campo de bétulas” –, que até a Idade Média eram usadas para registrar textos e desenhos. Para reescrever a história, por exemplo, o museu substituiu os velhos arames farpados da época por novos, que de artefatos de barbárie passaram a se apresentar como produtos culturais. Didi-Huberman observa transformações similares no “paredão das execuções”, restaurado feito um simulacro do original, e nos galpões 13 a 21, que abrigavam prisioneiros, agora “pavilhões expositivos”, cada um dedicado a uma nacionalidade vitimada.

Apaga-se assim uma memória para fazer dela história, a qual é fundamentalmente uma criação humana. Nas palavras do autor: “todos os centros culturais – bibliotecas, salas de cinema, museus – podem construir uma memória de Auschwitz. Mas o que dizem quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?”

Quando o fim da guerra era certo, os nazistas dedicaram todos os esforços à dita “solução final”, que pretendia exterminar o maior número possível de judeus. Com a impossibilidade de se fabricar suficiente Zyklon B, pesticida usado nas câmaras de gás para as execuções em massa, as vítimas eram atiradas ainda vivas nos fornos crematórios. Ler sobre isso me provoca uma sensação de abismo, um medo profundo porque real e possível, como um pesadelo inimaginável que se materializa. Volto à minha realidade deslocado, sem jamais poder recuperar o prumo ou conseguir olhar as pessoas com os olhos de antes.

“Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo”, afirma Didi-Huberman num ato de resistência. Pois o “impasse da imaginação foi uma das grandes forças estratégicas – via mentiras e brutalidades – do sistema de extermínio nazista”. Com a aproximação do exército soviético, em 22 de janeiro de 1945 os administradores do campo dinamitaram os fornos para apagar as evidências do inferno, mostrando que sabiam da gravidade do que fizeram.

Daí o mérito desse novo ensaio sobre o holocausto que Didi-Huberman se propôs escrever. Como ele diz, “o fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios, soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a imaginar porque não há nada – ou muito pouco – a ver? Certamente não. Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. Pois é a partir dessa suposta invisibilidade que ele vai revendo e problematizando o papel dos museus, das curadorias, das imagens e livros; das maneiras, enfim, como produzimos discursos na história e, no limite, a subjetividade do presente. Porque “a memória não requer apenas nossa capacidade de fornecer lembranças circunstanciadas”. Escavar esses apagamentos do passado é uma dívida inegociável que herdamos.

De minha parte, penso em como aquela estratégia nazista de impasse da imaginação via mentiras e brutalidade persiste em nosso dia a dia, nas grandes e nas pequenas mídias, nas redes sociais, na publicidade, nos discursos oficiais, em moralismos, nos gestos a princípio inocentes feitos em nome de um suposto bem. Penso nas histórias outras que ainda não conseguiram se estruturar como a da Shoah, ao ponto de permearem o imaginário coletivo com tamanha força, e que, ainda assim, lutam bravamente por visibilidade. O holocausto negro, o indígena, o feminino, o dos perseguidos políticos, o dos miseráveis, cujos escombros estão postos diante dos nossos olhos, convocando-nos a escavá-los, e muitas vezes nos recusamos a ver, apesar de todos os que ali sucumbem sem a dignidade que merecem na morte e, claro, na vida.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

MUSEU DE ARTE EFÊMERA DE LETHE


Tenho um orgulho danado desta peça, que deu um trabalho mais danado ainda para escrever. Orgulho maior é vê-la publicada junto com outras 11 peças do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, que integrei em 2018. Isso porque a experiência de acompanhar o processo criativo dos autores foi única, suas peças são incríveis e o livro ficou lindo.

Leia! Você pode baixar a versão e-book dos dois volumes gratuitamente, é só clicar nestes links:

Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council (10ª turma): volume 1 (ePub)
Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council (10ª turma): volume 2 (ePub)

Sinopse: Zakhor está inconformada porque ninguém se lembra da criança que se afogou no rio. Ela é o estopim para que venham à tona histórias de outras personagens, que têm em comum a indiferença diante de uma tragédia. As histórias são compartilhadas no espaço vazio do museu nepalês, em torno de um fogareiro onde ferve o chá. Zakhor faz de tudo para que as tragédias permaneçam lembradas na história da comunidade. Lethe, entretanto, oferece às vítimas o conforto das suas águas do esquecimento.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

NÓSONS


O 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM/SP, será inaugurado em 26 de setembro. Tive o prazer de participar, junto com um pequeno grupo de pessoas, do projeto Conversas-Coletivas, do artista Ricardo Basbaum.

Ao longo de alguns encontros nós trocamos ideias, expusemos desejos, negociamos possibilidades, experimentamos comuns e diferenças. Verdadeiro exercício político. O resultado é um roteiro que orquestra nossas vozes, a ser lido durante a abertura da exposição. Haverá também uma gravação para quem visitar o museu depois.

Um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons.

Se você puder, vá à abertura para nos assistir ao vivo.
Será terça-feira, 26 de setembro, a partir das 20h.
No MAM/SP (dentro do Parque do Ibirapuera).

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

COMO CURAR O INVISÍVEL?

Todos estão convidadíssimos para este encontro no próximo 10 de agosto. Estarei junto com gente muito bacana a discutir curadoria, arte, visibilidades e invisibilidades. Não precisa se inscrever, é só aparecer no MAC/USP, no Ibirapuera, às 14h. Vamos! Vamos! :D



II Seminário de Pesquisa Poéticas e Políticas do Sensível

O que as imagens artísticas dão a ver? Como organizar esse campo visível? Quais dizíveis são possíveis de enunciar a partir dele? O que permanece não visto e não dito? As imagens da arte teriam força para expor o que ainda não se pode pensar?

As narrativas da história da arte e da curadoria quase sempre fundamentam ordens discursivas sobre o que é visto e exposto, as quais provocam modos de ver, pensar e dizer. Por sua vez, poderíamos fazer história e curadoria do que não está dado a ver?

Este seminário de pesquisa parte de uma desconfiança das certezas pautadas na ordem do visível e deseja mobilizar uma troca de conhecimento sobre incertezas, lacunas e invisibilidades das artes visuais.

Abertura e coordenação da mesa:
Dra. Eliane D. Castro (PGEHA/USP)

Convidados:
Dra. Galciani Neves (FAAP)
Felipe Góes (artista)

Palestrantes do GEPPPS/PGEHA:
Gisele D. Asanuma
Eduardo A. A. Almeida

INSCRIÇÕES NO DIA DO EVENTO
10 de agosto de 2017, das 14h às 17h
Museu de Arte Contemporânea da USP
Av. Pedro Álvares Cabral, 1301, Ibirapuera

Organização:
Grupo de Estudo e Pesquisa das Poéticas e Políticas do Sensível (GEPPPS)

Realização:
Programa Interunidades de Pós-Graduação em Estética e História da Arte (PGEHA/USP)

terça-feira, 17 de maio de 2016

A ARTE DO ESQUECIMENTO


Haveria essa exposição em Lethe, um vilarejo incrustado nas montanhas do Nepal, distante dos clichês culturais que engordam sites de viagens, afastado dos circuitos turísticos mais populares de todos os tempos. Uma exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, com sutis intervenções curatoriais, proposta por uma artista que preferiria não fazer – se possível ela apenas seria, existiria, aconteceria. Pois haveria, distribuídos pela sala expositiva, livros encadernados com papéis vulgares, oriundos de cantos desconhecidos do planeta. Páginas e páginas em branco, imbuídas de narrativas desviantes, numa lógica irracional. Haveria também fragmentos do Mapa absoluto revelado por Borges, produzido por antigos Colégios de Cartógrafos na exata medida do Império que esquadrinhava, coincidindo pontualmente com ele. Perfeição tamanha que o tornou inútil – as ruínas do Mapa acabaram nos desertos do Oeste, habitadas por Animais e Mendigos. Tais fragmentos foram cuidadosamente selecionados para que a sua "linguagem de um fim" aludisse à decadência das utopias modernas.

Faria parte do programa emancipatório do museu cultivar as artes do encontro, da narrativa e do esquecimento. Todos os dias, habitantes de Lethe sentir-se-iam convidados a ler seus particulares livros manuscritos, seus papéis biográficos vulgares; contariam os acontecimentos daquele vilarejo onde nada acontece, como se vê, conforme acreditam as pessoas de fora, cidadãos de lugares onde acontece de tudo, conforme acreditam cegamente.

Chega uma senhora para contar do marido, morto num incidente anos antes, que foi visitá-la logo cedo. Fizeram o desjejum com chá preto, tâmaras e figos, pão seco e coalhada, seus alimentos favoritos. Passaram cerca de duas horas muito agradáveis em companhia um do outro, relembraram amores antigos, confortaram-se. Até o marido pedir licença e retornar à eternidade.

Uma menina contou que o universo seria muito menor do que imaginamos. Foi o que concluíra durante a aula de universidades, quando notou que o homem é a medida de toda a cultura; que só é capaz de ver o que cabe em seus olhos.

O padeiro de Lethe revelou que consertava relógios num continente vizinho, até incerto dia em que o pensamento se adiantou: nada acontecia quando os mecanismos deixavam de funcionar! O Sol e a Lua não se atrasavam. Em tempo, deduziu que seu trabalho tratava de uma ilusão aprisionante. Mudou-se para Lethe, onde faz pão, onde a massa cresce conforme a própria vontade. Às vezes antes da fome, às vezes depois.

Uma cabra baliu que a relva no alto da montanha é mais saborosa. Ao compartilhar tal sentimento, percebeu que, acaso morasse por lá e só provasse daquele sabor, a relva do sopé possivelmente lhe pareceria melhor. Além do mais, no inverno há neve no alto da montanha, ponderou a cabra. Tanta neve quanto não há relva.

Um grupo de velhos amigos cantou uma coletânea de odes ao passado, sobre costumes antepassados, sobre heróis que ninguém mais conhece, cujos grandes feitos parecem hoje pequenos e sem propósito. Alguns velhos não tinham certeza dos versos, mas continuavam a cantar, mesmo sem harmonia, com vozes dissonantes. Cantavam como podiam, num coletivo que jamais desafina. Não se tratava de cultuar o passado, mas de fazê-lo presente conforme ainda ressoasse.

Houve mais, muito mais; realizações sem registro técnico, apenas registros sensíveis. Por vezes sequer havia alguém a ouvir as histórias narradas pelos visitantes do museu. Elas existiam por si mesmas, celebravam o próprio ato da contação. Nenhuma era maior que a outra; não havia como mensurar intensidade, extensão ou relevância. Não havia como contá-las, pois interessava a qualidade mais do que a quantidade. Uma começava antes mesmo que a anterior estivesse finalizada. Essas histórias fizeram a exposição durar enquanto durou. Foram elas que fizeram o museu existir enquanto existiu. Terminadas, se é que terminaram de verdade, a tradição já não estava na linguagem, mas na consistência dos corpos que a carregam como a um fardo.

Da exposição se produziu um catálogo adornado com singelas páginas brancas, posteriormente distribuído a bibliotecas e a influentes intelectuais de todo o mundo. Não há nada escrito na capa, na lombada, no verso, na folha de rosto, no prefácio, no índice, no glossário. Não há texto, tampouco há imagens. Trata-se de um livro impecavelmente branco.

As cópias restam esquecidas, sem catalogação nem carimbo oficial, numa prateleira qualquer. Jamais publicaram resenha a seu respeito. Certos intelectuais sequer retiraram o invólucro. Outras cópias repousam em locais desconhecidos, aguardando o leitor desatento que as encontrará.

No museu, o texto de parede situava o visitante:

Para os antigos gregos, a palavra lethe significava "esquecimento". Seu oposto, alétheia, representaria a verdade, o desvelamento, a base de toda crença e de toda forma de realidade. A verdade é o que permanece. Ou seria o contrário, o que persiste na memória acaba por se fazer verdadeiro para os homens de juízo e boa intenção?

Lethe é também um rio do Hades. Quem bebe das suas águas abandona uma existência, uma cultura, um espaço e um tempo. Esquece quem foi, torna-se porvir. Toda verdade abandonada num processo de assepsia do real, à margem da excessiva humanidade. Livre.

Li a respeito do vilarejo de Lethe um dia desses, em algum lugar. Chega-se a ele através de um imenso rio de águas cristalinas, muito convidativas. Além dele, nada há.

Haveria essa exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, uma exposição que nunca existiu.

Haveria, no lugar, somente uma inquietação: qual história perdurará?

domingo, 16 de agosto de 2015

UM MUSEU INCOMODA MUITA GENTE

No último final de semana prolongado que tivemos, fui com minha esposa visitar familiares em Marília. Pela enésima vez tentei conhecer o museu de paleontologia, que em tese possui fósseis e registros científicos da região. Como sempre, não consegui; ele estava fechado. Não abre aos finais de semana e, descobrimos dessa vez, nem mesmo em dias úteis da "emenda" de feriados.

Estávamos com meu sobrinho de quatro anos, que foi ao zoológico de São Paulo meia dúzia de vezes para ver reproduções gigantes de dinossauros numa exposição que ficou longo tempo em cartaz. Ele é apaixonado pelos bichanos pré-históricos. Até quando, não sabemos dizer, e o museu público de Marília não tem incentivado esse seu interesse. Será que ninguém cogitou abri-lo aos finais de semana, quando chegam pessoas de fora, e compensar esses dias numa segunda e terça, se for necessário?



A revista Piauí nº 105, de junho passado, publicou um texto em que crítico de arte Hal Foster provoca: afinal, museu para quê? Seu incômodo tem fundamento. Embora se refira às imensas instituições que têm surgido na Europa e nos Estados Unidos, acho possível estender a pergunta ao tímido museu de paleontologia de Marília e a quaisquer outros do Brasil: será que eles conseguem dialogar com a sociedade, sustentando esse formato tradicionalista? Será que conseguem oferecer a possibilidade de alguma experiência transformadora ao invés de entretenimento raso e fotos para redes sociais?

Foster não é o único nem o primeiro a pensar nisso – esse problema é constante em instituições culturais do mundo inteiro, e debatido amplamente sem que se obtenha soluções muito interessantes. Trata-se de uma questão-chave para quem administra museus hoje em dia.

A última grande renovação dos museus de arte ocorreu quase um século atrás, quando foram concebidos prédios herméticos, utópicos e supostamente neutros para acolher a produção modernista, com o propósito de isolá-la da vida exterior. Ficaram conhecidos como "cubos brancos" porque, na prática, eram exatamente isso: paredes brancas sem janelas, tudo limpo e silencioso, como templos onde se podia admirar a criação dos "gênios" da arte. Se a ideia já não condiz com o contemporâneo, tampouco encontramos outra que dê conta das novas demandas, embora haja boas experiências, claro.

O consenso até agora afirma que não pode haver consenso. Não existe fórmula de sucesso. Pelo contrário: entende-se que as instituições devem ser diferentes umas das outras e também de si próprias, adequando-se com frequência aos novos desafios.

Não sou profundo conhecedor do assunto, e talvez esse olhar distanciado permita ver as coisas por outro ângulo: em resposta à provocação de Foster, suponho que o museu contemporâneo não deva ser exatamente um museu. Ele deseja ser outra coisa. Em vez de "Instituição Cultural" (com maiúsculas), um espaço de experiências. Um local que possibilite encontros ao invés de forçar interações. Cuja vontade é ativar o sensível em vez de lotar galerias com pessoas, informações e números. Que deixe arte à disposição, porém antes se pergunte: qual é o interesse dos visitantes? De que maneira a arte poderia participar da vida deles? Como criar diálogo em vez de impor conhecimento goela abaixo, por meio de autoridades e autoritarismos? Qual é a melhor forma, aqui, nesta situação específica, para manter vivo e pulsante certo campo ampliado de cultura? E como fazer acolá?

Passeando por Marília, vi uma série de galpões (aparentemente) abandonados às margens da linha do trem. Lindos. Deu vontade de instalar ali centros de convivência que incentivem encontros e experiências estéticas, que envolvam os cidadãos e cultivem o interesse por descobertas. Onde tivesse um palco para bandas da cidade ensaiarem, onde grupos de teatro pudessem se desenvolver. Um salão silencioso para oficinas literárias e círculos de livro. Um ginásio de esportes. Ciclovias. Cozinha coletiva. Biblioteca e brinquedoteca. Pomar, gramado para piquenique, ateliê para pintar e bordar. Espaço expositivo. Café. Enfim, um ponto de encontro de jovens e adultos, ricos e pobres, indivíduos e famílias, verdadeiramente aberto às práticas comunitárias. Tive vontade de implementar algo assim antes que façam shopping center no lugar. Convenhamos, estruturas do tipo são investimento pequeno (para um país que se dá ao luxo de construir estádios de futebol "padrão Fifa") e são capazes de acolher pessoas sempre carentes por atividades que as coloquem em contato com si próprias e com as demais. Vejam o SESC Pompeia e o CCSP, por exemplo, e como eles mobilizam a cidade de São Paulo.

Instituições culturais que permanecem a alimentar preconceitos em relação aos seus frequentadores, acreditando que a sua "função" é "educá-los", que os olha de cima para baixo e os determina, tendem a ir do cubo branco ao elefante branco. Reformulando a questão inicial: quem precisa delas?

O próprio Hal Foster conta, logo na introdução do livro O retorno do real, a ocasião em que visitava uma mostra de arte contemporânea na companhia de um amigo e sua família. Enquanto conversavam, a filhinha do amigo brincava entre vigas de madeira que compunham um dos trabalhos expostos. "Ali estávamos nós, um crítico e um artista bem informados sobre arte contemporânea, tomando aula de uma criança de seis anos de idade, cuja prática deixava nossa teoria muito para trás".

Se não abrirem as portas da mente, os museus jamais testemunharão qualquer brincadeira reveladora sobre o futuro, seja deles próprios ou do público. E restarão esquecidos como os fósseis que guardam. Por sua vez, as instituições culturais que insistem em modelos de consumo de informação e que resumem cultura a mero entretenimento e espetáculo não têm potencial para transformar nada nem ninguém. No fim das contas, não servem para muita coisa.

segunda-feira, 10 de março de 2014

MUSEUS: TRADIÇÃO / REINVENÇÃO

Clique na imagem para ampliá-la

Adorei este comparativo entre 'tradição' e 'reinvenção' dos museus. É assunto para muito debate.

Dá para ver a imagem original, entre outras matérias, aqui: Revista Select [ano 4, ed. 16, fev./mar. 2014]

sábado, 19 de outubro de 2013

DENTRO E FORA DA 30X BIENAL

A história oficial jamais dá conta de todos os seus personagens, ainda que reivindique para si o título de "absoluta". A mostra em cartaz no parque Ibirapuera, que reúne protagonistas das 30 edições da Bienal de SP, está sendo criticada por aqueles que ficaram de fora. Claro, é natural que alguns não participem, dados os limites da proposta. Mas qual é o critério? Quais são as questões ética envolvidas? Para a artista Maria Bonomi, a instituição se curvou ao mercado, conforme denúncia divulgada no vídeo abaixo. Alguém discorda?


Site oficial da mostra: 30 vezes Bienal

domingo, 25 de novembro de 2012


Palavrinha rápida sobre o show de Marcelo Jeneci no Auditório Ibirapuera, do qual eu acabo de voltar. Porque os caras merecem. Confesso que não me empolguei tanto com o disco, talvez por não ter prestado a devida atenção, talvez por achar que a "onda fofa" da atual MPB quisesse sobressair, a qual eu considero ingênua e, por vezes, entediante. Mesmo assim, achei que valia a pena ver ao vivo. Pois então o show começou e na mesma hora deu para perceber que só tinha talento grande no palco, e que esse talento sobressaía a qualquer modinha paz & amor. Arranjos bem construídos, tocada emocionante nem um pouco cafona, carisma, boa vontade, postura de palco madura, letras interessantes e show de bom gosto. 

Fiquei impressionado com a qualidade técnica da banda e com a aparente - só aparência mesmo - facilidade com que encantavam a plateia. Porque fazer aquilo não é para qualquer um. Teve também uma nota de sorte (ou talvez de boa providência): garoava em São Paulo, e o clima fora do auditório combinava perfeitamente com o de dentro - confirmamos isso quando o portão se abriu para o parque e o Wurlitzer soou bonito, melancólico, harmonioso. Som de alma lavada. Havia um sorriso em cada canto dos meus lábios. Meus e de todos ao meu redor. Foi um ótimo show de um ótimo disco. "Feito pra acabar". 

Uma pena, pois acabou mesmo. E eu queria mais.

O público sobe no palco a convite dos músicos

Merece palmas também o Auditório Ibirapuera, uma das raras casas de show que oferece programação de qualidade a preços justos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O MUNDO MÁGICO DO CCBB


O comentário de Marcelo Mendonça, diretor do CCBB/RJ, a respeito do recorde mundial de público obtido pela exposição O MUNDO MÁGICO DE ESCHER serve de lição para muitos museus. Não é regra, claro. Mas ajuda a repensar diversas outras.

Os espaços interativos, a permissão para uso de máquina fotográfica e a entrada gratuita foram cruciais. "Na exposição, era comum ver jovens se fotografarem diante das obras e colocarem as imagens nas redes sociais. Tivemos uma divulgação espontânea sem precedentes em nossa história".

Revista BRAVO!, nº 177, maio de 2012. Reportagem de Bruno Moreschi.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A ARTE DO DESAPEGO



Como se livrar da montanha de objetos que fomos acumulando ao longo da vida sem descartar, também, as lembranças atreladas a eles?

O americano Mac Premo propõe uma solução – não exatamente prática, cá entre nós, mas ainda assim uma solução, que cada pessoa pode executar à sua maneira: transformar o lixo em arte.

A ideia surgiu quando Mac teve que se transferir de um espaçoso estúdio em Nova York para um apartamento bem apertado. Na ocasião, ele selecionou cerca de 500 objetos, arranjou-os num contêiner e transformou isso tudo numa instalação aberta ao público. Quem quiser, pode conhecer um pouco da vida do artista por meio de sua tralha.

O contêiner está viajando por diversas cidades dos Estados Unidos. Quem não tiver a oportunidade de visitá-lo pessoalmente pode fazê-lo virtualmente. No site www.thedumpsterproject.com há uma fotografia de cada objeto, acompanhada de uma breve descrição.

A tranqueira que insistimos em guardar não serve apenas como ativadora de memória, ela também ajuda a afirmar nossa identidade. Sim, temos o péssimo hábito de dar aos objetos pessoais a função de dizer aos outros quem somos. Por isso é tão difícil se livrar deles, são como pedaços de nós. O museu de nós mesmos.

O que Mac mostra com seu projeto é que o desapego pode ser uma maneira de descobrir o que resta em nós depois que o excedente vai para o lixo. Se é que sobra alguma coisa.

Seja lá o que for, talvez esteja mais próximo da tão idealizada verdade.

O contêiner de Mac Premo em exibição no Brooklyn, Nova York
(clique nas imagens para ampliá-las)

domingo, 25 de março de 2012

AS MARCAS

Eu estava junto com quatro ou cinco psicóticos, aguardando o médico chegar. Alguns iam e vinham como pessoas absolutamente sadias. Me passou pela cabeça que, se um desavisado cismasse, poderia me internar. Como eu provaria que não sou louco? Pensamento tolo, do qual me envergonho agora, mas que na ocasião pareceu plausível. Até porque não há internação no Espaço Aberto ao Tempo (EAT) – instituição carioca responsável pelo tratamento psiquiátrico de aproximadamente quatrocentas pessoas –, todos vêm para realizar as atividades programadas, comer, tomar remédios, etc., e vão embora ao fim do dia. Eu tinha combinado de conversar com o psiquiatra responsável, que colaboraria com minha pesquisa. Ele chegaria logo.

O problema era esse: Lula Wanderley estava atrasado. E eu estava perturbado, esse era outro problema. Sentado no meio do mato que cresce à porta da instituição, com um cachorro vira-lata averiguando minha procedência enquanto um louco berrava para o além, consultei o relógio. Mal passava das onze e o dia já tinha me chocado de diversas maneiras.

Naquela manhã, eu acordara numa confortável cama de hotel entre Ipanema e Copacabana. Após tomar um café substancioso, caminhei até a estação de metrô e peguei o trem em direção à Central do Brasil. Foi ali que o mundo começou a se transformar. O Rio dos turistas e famosos ficava para trás; seus restaurantes conceituados, as praias badaladas, as roupas de marca. Fiz baldeação para a Supervia, que leva ao subúrbio. Parecia que alguém varrera toda a sujeira da plataforma para dentro do vagão, o que eu sabia não ser verdade, pois o piso lá fora continuava repleto de latinhas, papéis e embalagens plásticas.

Desembarquei no bairro Engenho de Dentro e subi alguns quarteirões em direção ao IMAS Nise da Silveira, onde fui recepcionado por um guarda. Ele me indicou o caminho para o Museu de Imagens do Inconsciente, que contém obras de arte criadas por doentes mentais. Tive que atravessar o hospital inteiro. Coisa mais triste. Tudo abandonado, caindo aos pedaços; portas empenadas, grades enferrujadas, azulejos quebrados, pintura mofada. Marcas do descaso do governo, talvez de má administração também. Vi doentes nas janelas me seguindo com olhos melancólicos e percebi que curar-se, naquele lugar, era o mesmo que sobreviver.

Visitei o museu, cujas obras são impressionantes pela técnica, a fluência da imagem, o poder de sugestão e a biografia de seus criadores. Tão impressionante que a doutora Nise, sua fundadora, foi acusada de levar trabalhos de artistas "de verdade" ao acervo na calada da noite. Pena que hoje ele seja tão subutilizado. Quem se interessa por aquelas marcas de tinta sobre tela?

Chegara a hora de conhecer as salas de terapia e os ateliês do EAT. Depois de quarenta minutos de espera, Lula Wanderley subiu a rampa de acesso do instituto acompanhado de um paciente. Vinham conversando. O clima do lugar mudou por completo, esse é o poder da sua presença; os rostos ficaram mais coloridos, vieram sorrisos, pude respirar de novo.

O doutor, também artista, me conduziu pelos ateliês de pintura, escultura, música e bijuteria, entre outros. Os pacientes me recebiam com alegria, queriam saber quem eu era, o que fazia, tudo. Mostraram suas criações com orgulho de quem as produz com amor e esperança. Me ofereceram o próprio almoço.

A mais tagarela das mulheres foi explicando tudo a seu modo, e mostrou, na parede, uma placa de madeira com dizeres bonitos sobre criação, magia e vida. "Fui eu que escrevi", afirmou. "Escrevi há dezesseis anos".

Ainda hoje o arrepio me percorre o corpo só de lembrar. Dezesseis anos, talvez mais, frequentando aquele lugar?

Também conheci um homem que, com plena satisfação, mostrava aos colegas um crachá de cozinheiro. Tinha sido contratado para exercer a profissão no cais. Faria centenas de refeições por dia. Lula me revelou que, quando chegou ali, o homem sequer podia se mover. Catatônico. Após o tratamento com a Estruturação do Self, proposição terapêutica da artista Lygia Clark, ele voltava ao trabalho.

Caminhamos mais um pouco pelas instalações, depois pelos jardins do hospital. Conversamos sobre a situação de pobreza em que aquela ideia tão rica se encontra. Ela agoniza, na verdade. Difícil dizer quanto tempo ainda sobreviverá. E pensar que foi exatamente naquele lugar, mais de meio século antes, que a reforma psiquiátrica brasileira se tornara referência mundial.

À noite, no hotel, tentei compilar as anotações feitas durante o dia, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. As impressões em meu caderno não faziam sentido. Fiquei pensando na realidade das pessoas que conheci, em como são ignoradas por governo, família e sociedade, em como se agarram ao pouco que têm e produzem arte encantadora. Para onde retornam todas as noites? Que tipo de mundo insano lhes aguarda do lado de fora do hospital? O que significa, para eles, deixar o ateliê de criação e adentrar um quadro de desolação?

Eu sabia, logo que o despertador soara, que a excursão seria marcante. Só não imaginava que essas marcas não me deixariam mais.

Links intessantes:

Museu de Imagens do Inconsciente

Reportagem sobre a exposição que visitei (com vídeo ótimo)

Enquanto preparava este post, encontrei por acaso o trailer abaixo. Não assisti ao documentário de Rodrigo Séllos e Rená Tardin, mas já fiquei contente por ele existir. Clique para conhecer, com imagens, um pouco mais sobre o EAT.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

ARTE INVISÍVEL CUSTA OS OLHOS DA CARA

É verdade que existem muitas coisas que não podemos ver. Mas... arte também?

MONA (Museum of Non-Visible Art) é o nome do novo Museu de Arte Invisível que o grupo Art-Praxis e o ator James Franco estão lançando. A proposta é que, ao invés de obras materiais, encontremos ali imaginação, ideias e proposições visuais pertencentes ao mundo invisível do pensamento.

A iniciativa, bastante esquisita, não escapa do tal mercado de arte – o que depõe contra o conceito tradicional de museu e acaba por transformá-la numa galeria como outra qualquer. Digo isso porque as obras do MONA podem ser compradas por quantias que variam de mil até dez mil dólares.

Funciona assim: o comprador investe dinheiro de verdade e, em troca, recebe uma descrição da peça adquirida. Por exemplo, a peça intitulada "Ar fresco" chega às mãos do dono da seguinte maneira:

"Uma peça única, somente esta se encontra disponível para venda. Comprar esse ar é como comprar um tanque de oxigênio. Não importa onde você está, sempre poderá inspirar o mais delicioso e limpo ar que a Terra pode produzir. Cada inspiração dá a você uma infinita paz e saúde. Esta peça de arte é algo para carregar sempre com você, caso seja sua. Porque, seja lá onde estiver, você pode se imaginar provando o mais lindo e saboroso ar das montanhas, do campo ou do litoral; o suprimento jamais se extingue."

E alguém põe dinheiro nisso? Claro. Sempre tem quem ponha. Como diz meu pai, para tudo no mundo há um comprador; produto e interessado só precisam se encontrar.

Um exemplo é Aimee Davidson, que pagou dez mil dólares pelo ar fresco descrito acima. Para ele, o MONA pode parecer um golpe, mas na verdade é um movimento artístico de mídias sociais. Seja lá o que for, custa caro. E os preços parecem chamar mais a atenção do público do que as obras em si.

Entre a arte invisível e a convencional (dessas que podemos ver), acho que vale pesar o custo x benefício delas, e deixar que o mercado de arte penda para a mais compensadora. Se é que isso pode ser medido assim, com valores financeiros.


Site do museu: MONA

Assista ao vídeo de divulgação:


Uma reportagem interessante sobre o MONA: Paste Magazine

O CURIOSISMO

Este vídeo de divulgação da nova mostra de longa duração que a Pinacoteca de São Paulo está preparando explica por que a mesma curiosidade que matou o gato também pode matar você. É muito bacana, dê uma espiada: