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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR

Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira

A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.

O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?

Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.

A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.

O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.

Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?

No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.

Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A VIDA COMO A ARTE É

Cena de Empire (1964), de Andy Warhol

Andy Warhol é bastante conhecido pelas serigrafias de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Liz Taylor. Ele também retratou outros ícones da cultura norte-americana, tais como as latas de sopa Campbell’s e as caixas de esponja Brillo. Acontece que todos esses trabalhos são de um período inicial de sua carreira. Com o passar dos anos, o artista foi se interessando cada vez mais pelo cinema e, depois, pela televisão, produzindo em ambos os formatos. Filmes, por exemplo, são cerca de setenta e cinco. Talvez o mais emblemático seja Empire, de 1964, que ultrapassa oito horas de duração.

O enredo de Empire é mínimo: Warhol levou uma câmera até um prédio vizinho – uma janela do Rockefeller Center –, apontou-a para o Empire State e deu início à gravação, substituindo os rolos na medida em que acabavam, a cada trinta e cinco minutos. O resultado, para o espectador, pode ser tão entediante quanto o artista desejava; Warhol dizia adorar o tédio.

Difícil encontrar alguém com disposição de ver o filme inteiro. Por que Warhol o quis assim, afinal? Por que gravar oito horas de um prédio – estático, naturalmente –, se nada acontece? Por que produzir um filme quase impossível de ser assistido?

O primeiro ponto é que, apesar da inércia aparente, muita coisa acontece nesse retrato de um dos mais célebres edifícios de Nova York. As nuvens transitam no céu, o sol se põe, os refletores da fachada se acendem. Não bastasse isso, uma infinidade de ações tem lugar além do alcance visual do filme e, por consequência, dos nossos olhos: pessoas trabalham dentro e fora do Empire State, caminham nas ruas, nascem e morrem. Em outras palavras, a vida acontece ao mesmo tempo em que o filme roda.

Por mais fiel a ela que pretenda ser, o filme não é a vida que retrata, embora passe a fazer parte dela depois de ser produzido; trata-se de uma elaboração técnica disposta à apreciação estética do espectador. Por mais realista que se queira, Empire é uma conformação artística que se destaca do banal. É um “objeto de arte”, além de um objeto qualquer. Esse paradoxo nos leva a uma possível definição da arte, esteja ou não relacionada a um objeto material: um gesto poético dado à experiência estética que se distingue da vida comum.

Claro que toda tentativa de encerrar a arte numa definição absoluta está fadada ao fracasso. Nosso objetivo aqui é somente instaurar uma referência que possibilite pensar quais práticas ditas “artísticas” se enquadram ou não naquele quesito, e a partir daí elaborar conceitos críticos, comparativos, referenciais etc.

Se Empire apresenta certo realismo formal, notamos que esse sufixo “ismo” já denota imitação, criação ou fingimento, no sentido da ficção e da ilusão de que mesmo a arte realista não escapa. Quer dizer, ainda que o Empire State seja mostrado “tal como é”, o enredo é de natureza criativa, o registro é poético e momentâneo, e o retrato o mostra “tal como Warhol o quis”, conforme a sua perspectiva e o objetivo do seu projeto cinematográfico. Pois mesmo a arte realista é ainda uma elaboração que se distingue da “vida real”.

Essa ideia nos ajuda a olhar proposições mais contemporâneas, especialmente as de cunho relacional, e a nos perguntar o que detêm daquele modelo de arte e o que escapa a ele. Arte social, arte política, arte terapia etc. são cada vez “menos arte”, no sentido convencional, na medida em que se aproximam da vida comum. Sob o risco de se tornarem outra coisa, colocando-se em diferente registro de apreensão. Não digo isso num sentido conservador, como se a arte precisasse ser preservada de um jeito determinado; pelo contrário, talvez esse seja um risco promissor, se junto forem assumidas também as consequências do afastamento da “instituição Arte”.

Com o artifício do tédio e do realismo, o filme Empire nos convoca a pensar a rotina da metrópole, a falta de tempo, o vício no consumo de novidades e assim por diante. Sua lentidão incomoda porque nos desacostumamos a ela. Fomos educados a gostar dos filmes repletos de reviravoltas, adrenalina, personagens ou relacionamentos idealizados. A disposição que o filme de Warhol requer, entretanto, parece muito além do que podemos oferecer. Mesmo que se trate de uma celebridade encantadora como o Empire State.

Por conta desses tensionamentos entre o banal e a maneira como a arte o concebe, o gesto do artista retorna e nos convoca a rever a vida tal como ela é para nós, espectadores. Com sorte, cada um se põe a reinventar o próprio viver. A irreconciliabilidade entre o comum e o estetizado é o ponto de inflexão dessa arte contemporânea que pode de fato produzir transformações, deslocamentos e reconfigurações da vida, indicando como ela ainda pode vir a ser.

domingo, 23 de julho de 2017

A VIOLÊNCIA DO BANAL

Um sobrevivente de Auschwitz retorna, já velhinho, ao campo de extermínio onde perdeu quase toda a família. Chega acompanhado de sua filha e três netos adultos. Eu os vejo e espero o momento da comoção. A música triste, as frases de efeito sobre violência, opressão e fragilidade da vida. Nada disso acontece. O que ouço são as notas iniciais da animada I Will Survive, trilha sonora de qualquer festa de formatura ou casamento. O velhinho judeu não chora, ele dança; a família acompanha seus passos desengonçados. É bizarro. Difícil segurar o riso. Por que eu deveria segurar? Que sentimento é esse que me proíbe rir de Auschwitz?



O vídeo está disponível no Youtube sob o título de I Will Survive Auschwitz. Eu o assisti durante a palestra de Gonçalo M. Tavares na Unibes Cultural, centro de iniciativa judaica em São Paulo. O escritor é um dos meus contemporâneos favoritos, em especial pelo que pensa da literatura. Naquela ocasião, defendeu que uma das piores violências contra a realidade é o banal. Eu concordo. E acredito que a literatura, o cinema, as artes em geral têm o seu mérito quando conseguem romper essa banalização.

Veja bem, não se trata de chamar atenção para a banalização da violência, o que em si já é interessante. Trata-se de questionar uma violência de outra ordem, tão sutil e próxima que é difícil notá-la: uma espécie de corrupção da potência do vivo pelo banal.

Quem a combate é a arte que subverte o já visto, que já é conhecido e esperado, e que eventualmente emociona, tal como seriam as belas palavras embaladas pela música triste em Auschwitz, a acompanharem o retorno de um velho sobrevivente. Tal apresentação seria de fato tocante, como tantas outras que nos puseram a pensar e chorar. Esse pressuposto nos violenta. Porque conduz o olhar, as expectativas, as compreensões de mundo. Ele reitera o senso comum sobre como as coisas devem ser. Enquanto eu quero acreditar que a arte é capaz de questionar esse banal e sugerir a invenção de como as coisas podem ser.

O pressuposto mantém a todos num mesmo conjunto de referências, sentimentos e lógicas. Uma circularidade que não escapa da ordem estabelecida e não deixa conhecer possibilidades outras. Sufoca a chama da vida, que não quer amansar, não quer ser morna; ela quer arder, queimar, transformar. Um ímpeto criativo que sobrevive em algum canto do ser. A violência não está em perturbar a solenidade dos mortos. Está na solenidade que impede dançar.



Descobri depois, no breve documentário Dancing Auschwitz, que aquele velhinho se chama Adolek Kohn. Ele decidira casar com uma moça em questão de horas para que ela pudesse fugir da guerra. A viagem os levou ao campo de extermínio. Ambos sobreviveram. Mudaram-se para a Austrália em 1949. Na ocasião em que se produzia o documentário, em 2012, eles continuavam casados. Adolek completava 90 anos. Ainda tinha coragem, e é preciso muita coragem, para falar em destino. Tinha coragem para voltar ao inferno e dançar. Ele explica que, “se você dança pela criação da vida, pode dançar em qualquer lugar, mesmo em Auschwitz”.

Minha primeira reação à dança foi de repúdio. Um absurdo! Segundos depois, eu percebi que havia naquilo algo de interessante. Na metade do vídeo, eu sorria e chorava ao mesmo tempo. Isso tudo me causou um grande incômodo. Sinceramente, gosto da arte que não oferece conforto, embora não seja prudente generalizar. Para mim, a poesia está no que desloca o senso comum, inquieta o corpo, “sabota a realidade”, como disse Tavares.

Não existe fórmula. Um trabalho poético pode provocar reações diversas em uma pessoa e absolutamente nenhuma reação em outra. É por isso que não existe arte melhor ou pior em si mesma; a crítica se faz sempre numa relação com o outro, com o contexto, com quaisquer que sejam os parâmetros.

A violência implícita na arte que conforta é similar a das notícias prontas, do corpo esculpido na capa da revista, da propaganda que afirma como ser e do que gostar, do manual de política, da indústria cultural que subestima o espectador, que pensa conhecer seu gosto e para se identificar com ele reproduz o que já viu inúmeras vezes antes. As mesmas situações com os mesmos personagens, o mesmo ângulo, as mesmas risadas gravadas, a mesma música eletrizante nas perseguições de carro. As mesmas capotagens e explosões, os mesmos diálogos, os mesmos conflitos, o herói a salvar o mesmo mundo, a mocinha apaixonada pelos mesmos motivos. Assim os preconceitos, os pressupostos e os estereótipos persistem. Assim a violência se impregna, passa despercebida, convida para um pouquinho mais. Violência do prazer vendido como produto ou que requer um produto para acontecer. Violência contra a potência criativa da vida, mantendo-a estática, aborrecida, neurótica.

O entretenimento é quase sempre a domesticação do olhar, do pensar e do dizer. Não creio que deva ser banido, afinal é impossível viver o tempo inteiro no caos da criação. Mas é preciso cuidado com a maneira como o banal educa: pela via do clichê, do hegemônico, da verdade fabricada e pronta para o consumo.

Estamos cansados de viver a banalização da violência. Que são os abusos de autoridade, a corrupção na política, a seca no Nordeste, a apropriação das terras pelos latifundiários, a redução dos direitos do cidadão, a precarização da pesquisa e do ensino, enfim, as misérias todas do pão. Já a violência do banal é da ordem do circo. É aceitar o conforto e reprimir o próprio ímpeto. Ignorar toda espécie de diferença que a vida produz. Desnutrir a potência de si e do outro.

Se não é possível escapar de vez, vale experimentar desvios ocasionais. Afastar-se, produzir e sustentar distanciamentos, habitar o ambíguo, permitir que o outro permeie e transforme o eu. Fazer algo verdadeiramente inútil e inexplicável. Criar tensão quando todos sorriem. Dançar quando todos choram.

Ps.: A poesia implica também uma espécie de violência, que é própria da criação, do nascimento e do aprendizado, mas essa discussão fica para outro dia.

sábado, 26 de dezembro de 2015

UM BRINDE AOS VAGA-LUMES



A última lembrança nítida que tenho deles remete à infância, às férias vividas no litoral. Já naquela época era difícil vê-los na cidade grande. Desde então, é possível que um ou outro tenha se exibido para mim, assim como é possível ter sido apenas o relampejar de uma fantasia minha que logo se apagou.

Onde estão os vaga-lumes?, Pier Paolo Pasolini quis saber ainda na primeira metade do século passado. Questão retomada por Georges Didi-Huberman num dos livros mais tocantes que li neste ano assombroso, intitulado Sobrevivência dos vaga-lumes. Nele, o autor retoma o trabalho poético e político do cineasta italiano para refletir sobre as situações que vivemos na atualidade. Faz isso com graça, delicadeza e maturidade invejáveis, que resultam num inspirador modo de fazer crítica.

É um texto lindo, sensível, flutuante e muito urgente no que diz respeito a inventar curvas nesta barbárie reta e veloz que estamos produzindo em escala local e mundial, cuja trajetória leva certamente ao precipício.



Naquele contexto, os vaga-lumes são luzes menores que lutam para sobreviver em meio ao iluminismo feroz dos holofotes. Essas máquinas espetaculares, que pretendem trazer tudo à luz do dia e expor à razão exacerbada, ofuscam a existência daquelas luzinhas pulsantes, frágeis, ansiosas por uma escuridão que possam habitar, onde possam mostrar seus dotes, encontrar seus pares; enfim, onde possam viver as suas vontades e alegrias. Luzes intermitentes, que dançam a poesia da resistência.

Desses vaga-lumes pude ver uma porção em 2015. Um pequeno grupo aqui, uma reunião pouco maior ali, movimentando-se, requerendo a atenção dos nossos olhos para questões invisíveis, para demandas suplantadas pelos refletores dominantes, pela ignorância e pela indiferença em relação ao outro. Vaga-lumes que insistiram em brilhar apesar de todas as tentativas de repressão; os cassetetes, as palavras de ordem, as manobras políticas, os abusos de poder, a incitação e a execução de violências as mais diversas, desde o rompimento com a ética até a violação de direitos constitucionais, desde a verborragia à agressão física, as prisões, os silenciamentos, preconceitos, menosprezo e morte.

Para Didi-Huberman, os vaga-lumes desaparecem da nossa vista porque já não estamos no melhor lugar para vê-los. Não é que deixam de existir, eles simplesmente se reorganizam e se realocam quando seu habitat é invadido. Portanto fica a nós uma tarefa vital: reinventar os territórios de modo que os vaga-lumes possam habitá-los, seja esse território um país, uma cidade, uma comunidade, uma casa ou um jardim, seja esse território nem mesmo um espaço, mas uma temporalidade ou um registro afetivo. Nas palavras do filósofo, "há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes".

Existem mais de duas mil espécies desses insetos. Milhares de modos de ser. Para conhecê-los, não devemos capturá-los e os trazer à luz, "é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite", diz o autor. Pois jamais compreenderemos os vaga-lumes se os arrancarmos de seu lugar; para falar deles é necessário experimentar a escuridão.

Humanos têm algo de vaga-lume, uma vibração interior que pode ganhar vida e iluminar o arredor. A luminescência de alguns esmaece por conta da carapaça grossa, pesada e enrijecida que a oprime. Despojar-se das couraças, abrir-se à experiência sensível, amolecer o juízo e desconstruir os dogmas implicam expor a si mesmo a ameaças variadas. Mas existe outro jeito de produzir luz própria?

Sustentar o próprio brilho é um gesto poético corajoso; um ato político, social, estético. Tanto quanto deixar-se encantar pela luz dos outros. Ser atraído por ela, desejá-la; ambos tão frágeis e tão belos! Capazes de brilhar uma única vez e marcar para sempre a retina de quem os viu.



Didi-Huberman conta que, na década de 1970, após intensa batalha contra o neofascismo incorporado aos modos de agir italianos, Pasolini caiu em desespero e não conseguiu mais sustentar sua resistência poética. Os vaga-lumes deixaram de existir para ele. Não porque foram extintos, embora ele acreditasse nisso, mas porque ruiu algo central no seu desejo de ver. "O que desapareceu nele", diz o autor, "foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade 'inocente', no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar".

Vivemos tempos sombrios, em que é difícil enxergar ao longe. Tempos varridos por refletores de vigia ou de espetáculo. Também são tempos propícios para compartilhar nossa luminescência interior. Neste ano que se inicia, desejo que você brilhe, se puder. Que se deixe sensibilizar pela poesia dos vaga-lumes. E, independentemente do que venha a acontecer, que jamais deixe de procurá-los. Eles estarão dançando em algum lugar, mais perto do que você imagina.

>> Este texto é dedicado aos estudantes e professores que têm lutado em diversas frentes pela educação no Brasil, porque acreditam que toda transformação social passa necessariamente por ela. Pessoas que têm ensinado a importante lição de que política não se faz de cima para baixo nem de baixo para cima, mas horizontalmente: disponível, dialogada e, claro, com respeito pela potência luminosa dos demais.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Lucioles (2008), Renata Siqueira Bueno
 
"Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (…) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar para vê-los. (…) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes."

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

terça-feira, 29 de julho de 2014

"Agamben lembra que a mídia nos oferece fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá, portanto, um fato em relação ao qual somos impotentes. A mídia gosta do cidadão indignado, mas impotente, o homem do ressentimento. Em contrapartida, um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e, ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibi-la enquanto tal, como no caso de Godard ou Debord, introduz-se uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 296]

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

terça-feira, 5 de março de 2013

O HOMEM DA CAVERNA


Eu me senti um tanto abandonado quando assisti ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, que o alemão Werner Herzog realizou com maestria num dos lugares mais incríveis do planeta. Descoberta no sul da França em 1994, a Caverna de Chauvet, como foi batizada, estava isolada há milhares de anos devido a um deslizamento de terra. Espaço de tempo amplo demais para ser compreendido por quem raramente vive mais de um século. Havia ali vestígios de homens e animais, antepassados nossos. São ossadas, pegadas, desenhos nas paredes; sonhos que ficaram esquecidos, dos quais praticamente nada sabemos. Quem foram aqueles homens? Por que fizeram os desenhos? Podemos apreender alguma coisa da caverna com o imaginário de hoje, tão diferente? Quais são os significados possíveis? Restam suspeitas, hipóteses, ficções – é com o que devemos nos contentar. Foi dessa lacuna que emergiu a sensação de abandono; da fissura na rocha e no tempo. Uma sensação de vazio, de solidão, de "falta de chão", como se diz, por causa da nossa origem desconhecida. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos; somos o "meio" de algo apenas imaginável.

"Para o ser humano, mais importante que viver é sentir-se real, mais importante que preservar a vida é dotar a existência de sentido", escreveu o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Revi minha caderneta e deparei com uma série de citações, colhidas ao acaso, com essa temática "existencial". A Caverna de Chauvet ativou certa inquietação em mim. Levantei a antena e comecei a captar sua frequência na tentativa de pertencer a algo tão maior e misterioso que se deixa facilmente confortar nos abraços do sagrado.

Quem eram os homens que passaram por Chauvet há mais de 30 mil anos? E os animais, já extintos? Ursos, mamutes, bichos enormes feitos para habitar um território infinito.

Lembrei do título de uma das obras de Bruno Munari exibidas na última Bienal de São Paulo: Reconstrução teórica de um objeto imaginário. Não é assim a nossa história? Uma construção hipotética que se refaz a cada descoberta. "Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá", escreveu Vanessa Carneiro Rodrigues no Jornal Rascunho. 

Herzog mostra as pegadas de um lobo junto das de um menino. E completa: jamais saberemos se a criança foi acuada pelo lobo, se eram amigos, se as pegadas foram deixadas com um dia ou com cinco mil anos de diferença. Todas são histórias possíveis e, a seu modo, existem. Discorrer sobre a verdade e a mentira não cabe; a caverna está além desse maniqueísmo.

"Tentando calcular a probabilidade de dúvida de uma certeza quase absoluta", brincou o escritor Felipe Borges Valério no Facebook. Um trabalho definidamente imprevisível. A ciência exata não basta. Um dos responsáveis pelas pesquisas em Chauvet conta a importância de mergulhar nas profundezes dos seus silêncios inquietos e depois se afastar. Mergulhar na memória que se solidificou a cada gota de água, calcificada na forma de colunas para sustentar um tempo antigo perdido no presente. Colunas que, em muitos casos, ainda estão na forma de devir. Deixar-se pertencer. Depois, afastar-se fisicamente, para a superfície; afastar-se também no tempo e na teoria. Buscar em outras culturas significados ocultos na experiência sensível recém-vivida, buscar pontos de vista menos reticentes, usar outra linguagem. Não para descobrir a verdade, mas justamente para não acreditar em afirmações rígidas, para não se render a elas. Ninguém saberá nada sincero a respeito da caverna se a observar com olhos acostumados com a luz do exterior.


O filósofo Maurice Merleau-Ponty propõe um tempo que não existe por si só, com autonomia, mas que se estabelece por relações: a experiência do tempo. "O passado não é passado nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva".

Em 1994, a caverna se reabriu a relações. A despeito de todas as câmaras e corredores que contém, ali dentro só conseguimos nos aprofundar em nós mesmos. "Mas o que somos nós?", quer saber a psicanalista Melanie Klein. "Tudo de bom e de mau pelo que passamos desde os primeiros dias de vida; tudo o que recebemos do mundo externo e tudo o que sentimos no nosso mundo interno. Se fosse possível apagar algumas das nossas relações do passado, com todas as memórias a que estão associadas, todos os sentimentos que desprendem, como nos sentiríamos empobrecidos e vazios!"


O escritor Mia Couto propõe uma solução para tal angústia que se baseia em aceitação e criação: "Temos sempre que explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. (...) Essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso".

É natural sentir-se pequeno diante da grandiosidade de Chauvet. Mesmo assim, como mostra o deslizamento de terra que a isolou e a preservou até hoje, devemos ter consciência de que tudo tem seu peso e sua medida, e que mesmo um pequeno deslocamento é uma revolução.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CENSURAR A PRÓPRIA BOCA JÁ É UM BOM COMEÇO

Clique na imagem para ampliá-la. Fonte: Metro São Paulo nº 1396 (27/9/2012).

Algumas curiosidades sobre a classificação indicativa de filmes no Brasil:

• Se há usuário de drogas, você só pode assistir se tiver mais de 10 anos. Se o usuário de drogas se dá bem, você precisa ter 14 anos.

• Se tem estupro no filme, você precisa ter 16 anos para assistir. Mas se o estupro é consequência de uma paixão, só entra no cinema com 18 anos ou mais.

• Com 12 anos, você pode ver alguém pelado, mas só de perfil. Se o pelado ficar de frente para a câmera, você precisa ser 2 anos mais velho.

Apesar de todas essas peculiaridades, é prudente avisar – em especial o senhor deputado Protógenes Queiroz – que a censura às artes quem faz é o próprio público, que assiste àquilo que quiser. Se você não quiser ver determinado filme, simplesmente não vá ao cinema e deixe o assento livre para quem se interessar. Se você não quer que seu filho de 11 anos veja prostituição e uso de drogas, não o leve para ver um filme "não recomendado para menores de 16 anos", como foi o caso. E também não o deixe assistir TV, sair de casa com os amigos, ler jornais e acessar a internet. Ao invés disso, compre uma casa com masmorra.

Ou, se você tiver um mínimo de consideração pelas outras pessoas, faça valer seu cargo público e tente construir um Brasil mais decente ao invés de ficar falando bobagens no Congresso e na imprensa.

domingo, 1 de abril de 2012

RECOMENDADO PARA O FIM DE SEMANA. O FIM DA VIDA. O FIM DO POÇO.

Como é que eu vim parar nesta porra de hotel imundo? Boca quente, boca suja, bico fechado. Tem algo rolando ali. Me ajoelho para espiar o buraco da fechadura. Bate uma vontade de vomitar. Bate forte. Vejo a cena num plano fechado, é o máximo que o buraco permite. É também o máximo que consigo suportar. Um instantâneo da tragédia. De todo tipo de tragédia. "Tem puta. Cafetão. Leitinho quente. Tem sacanagem a cabo. Fita cacete. Tem velho com criança pequena. Que baba de dor. De medo. De tesão. Tem gente levando por fora. Por trás. Por onde. Porque." Não tem explicação. Não é um livro sociológico, não julga, não denuncia, não analisa de fora. Não está nem aí. Melhor fingir que não acontece. Tenho nada a ver com isso.

Troco de fechadura. Faço isso a cada capítulo. Um passo à frente no corredor decrépito do Hotel Trombose, cujo dono, Felipe Valério, está sendo procurado. O diabo fez alguma coisa boa, o que é muito suspeito. Precisa dar depoimento, dar a cara à tapa, ser escorraçado pela mídia. Não pode ficar escondido atrás de escrivaninha de escritório. Ah se ele aparece na minha frente! Corro para lhe apertar a mão até ficar roxa. É mesmo um belo livro, desgraçado.

Suas frases curtas e bem arquitetadas apresentam jogos de palavras, frases-defeito, manipulação inteligente de forma e conteúdo. Cada um apreende dali o que puder. O que puder carregar. Tem que ser rápido. Se bobear, vai em cana. A cada vez que relemos um capítulo – é um romance, um apanhado de contos ou um cortiço? –, vemos melhor, como se a cena fosse se revelando aos pouquinhos. Strip-tease literário. Tesão.

Vamos subindo os andares do Hotel Trombose e o calão vai baixando. Fica ao rés do chão, como um capacho. Limpamos nele nosso falso moralismo. É uma fuga tão intensa da realidade que, quando nos damos conta, já entramos de cabeça em outra muito pior, de onde o difícil é sair ileso.

O livro trata de sacanagem, violência, asco; da tragédia de sobreviver. Uma excursão ao inferno, que nem fica tão longe assim, tem busão a cada dez minutos e sai sempre lotado. Talentoso do caralho! Se tudo o que Felipe Valério põe em palavras choca, é só porque não estamos acostumados, porque nossa vidinha, por acaso, não está encalhada naquele deserto inconsolável. Porque o sol brilha para nós enquanto deixa os outros mundos mofarem. Quem se importa?

Caminhar pelo Hotel Trombose. Espiar a desgraça alheia pelo buraco da fechadura com a curiosidade de um visitante de zoológico. É uma experiência marcante. Os sons, os cheiros, o submundo pegajoso. Nem sabonete importado dá conta. Ele se embrenha no corpo, contamina, vira parte de nós.

Tem momentos em que, de tanta imagem sobreposta, de tanta certeza deslocada, a narrativa fica quase abstrata. Porque não decodificamos aquela linguagem. É gutural. Incompreensível. Uma realidade sem sentido.

O sobe-desce do elevador, as goteiras marcando o compasso, os corredores como veias, o cada um por si, o coração na garganta, tudo entupido de desgraça, de falta de noção, de distorção de caráter. Humanidade em excesso. O sangue pronto para vazar. O sangue não corre, fica parado, botando medo. Quem corre é o leitor. Para onde? Não tem remédio. É a vida. Doença social grave: trombose. Puta livro.

Vai encarar?


Leia. Ok? E assista ao curta abaixo, de Manu Sobral e Felipe Valério, que foi inspirado no livro e exibido pela primeira vez na ocasião do lançamento.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

SR. PAMUK, EU LI TODOS OS SEUS LIVROS. EU O CONHEÇO MUITO BEM.

O mês da vindima (1959), de René Magritte

"Nunca me senti embaraçado quando meus leitores pensavam que as aventuras de meus heróis também haviam ocorrido comigo, porque eu sabia que isso não era verdade. Ademais, eu tinha o suporte de três séculos de teoria do romance e da ficção, que podia usar para me proteger dessas afirmações. E estava bem ciente de que a teoria do romance existia para defender e manter essa independência da imaginação em relação à realidade. No entanto, quando uma leitora inteligente me disse que sentira, nos detalhes do romance, a experiência da vida real que 'os tornavam meus', eu me senti embaraçado como alguém que confessou suas coisas íntimas a respeito da própria alma, como alguém cujas confissões escritas foram lidas por outra pessoa."

Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental

domingo, 5 de fevereiro de 2012

MELHOR QUE A ENCOMENDA


O livro é melhor que o filme, o filme é melhor que a peça, a peça é melhor que o livro. Como é? Sim, sempre que ouço esses comentários, ouso perguntar por quê. Quero entender o que faz uma pessoa esculhambar e a outra elogiar. Muitas vezes, ambos citam os mesmo motivos, positiva e negativamente. É incrível. Por isso, o gosto se discute sim, foi o que Daniel Piza me ensinou. Todo mundo pode – e deve – criticar. Mas exige-se algum conhecimento para o comentário ser produtivo. "Porque sim" e "porque não" não são respostas, como já esclarecia o personagem de Marcelo Tas às crianças do Castelo Rá-Tim-Bum. Tudo tem explicação. Achismo é bom, mas argumentação é melhor ainda. Quem "gosta porque gosta", na verdade, não conhece a si próprio, enquanto quem "gosta e ponto final" nem merece entrar na conversa. Em matéria de gosto, a discussão não acaba nunca.

Agradar a todos é uma tarefa impossível. Muitos leitores já deixaram esta crônica no primeiro parágrafo. Faz parte. O importante é perceber que sempre é possível aprender com o que nos propomos a experimentar, gostando ou não. "A peça é melhor do que o filme". Por quê? Talvez porque a dinâmica dos atores, ao vivo, acrescenta significado ao texto, ou porque o ambiente do teatro acolhe melhor a proposta. "Mas o livro... é melhor ainda!" Por quê? Pode ser que, na adaptação, o roteirista foi obrigado a cortar passagens complexas ou subjetivas demais. Ou porque o espectador imaginava um personagem assim e o diretor o fez assado. Ou simplesmente porque essa pessoa prefere degustar a história no conforto do seu sofá a engoli-la de uma só vez, no cinema, sentada perto de um grupo de aborrescentes que não para de falar. E sem direito a pausa para xixi.

Adaptar obras de uma linguagem para outra, sejam quais forem, é sempre um trabalho arriscado. Exige cuidado para selecionar o material, entender como ele se comporta no novo formato, excluir cenas ou inventar diálogos para complementar.

No meio do ano, deve estrear um filme nacional chamado E aí, comeu? Um filme de grande circulação, feito com celebridades e boa produção. Foi adaptado de uma peça bastante popular, escrita pelo veterano Marcelo Rubens Paiva. Já deu para perceber o tamanho da encrenca, né? Imagine lidar com a expectativa desse público!

Conversei sobre isso com o roteirista responsável pelo projeto, Lusa Silvestre, que tem no currículo o premiado Estômago. Para o roteiro original render na telona, ele teve que criar novos pontos na trama, aproveitando que o cinema permite saltar entre os cenários com rapidez e, de certo modo, até exige esse vai e vem para evitar a monotonia. Lusa também precisou cortar passagens que o público do teatro aceita numa boa, mas que deixaria constrangido quem busca entretenimento durante a semana, na sessão da tarde. Estamos falando de um blockbuster, então essas escolhas são feitas com critérios bem definidos.

Vale lembrar que a adaptação é sempre uma leitura particular da obra em questão. O filme V de Vingança, por exemplo, foi feito a partir da história em quadrinhos de Alan Moore. Pois este não apenas detestou o filme como saiu falando mal na imprensa. Tudo bem, ele tem o direito. Admito que o filme não alcança a profundidade psicológica da HQ, mas transmite a ideia e é muito mais deslumbrante. Cada linguagem tem seus prós e contras.

O clássico Jules e Jim, de François Truffaut, é também adaptação do romance modernista de Henri-Pierre Roché. O filme começa mais ou menos na página 50 do livro. Por quê? Opção do diretor. Para ele, aquele pedaço renderia um bom filme. Não precisava contar a história toda, ficaria cansativo. Chamamos isso de recorte – a tal leitura particular que privilegia determinado aspecto da obra, podendo agradar o espectador ou não. Isso não significa, por si só, que a escolha está certa ou errada, ou que foi bem ou mal feita. Trata-se de uma adaptação, e toda obra assim lida também com a expectativa de quem conhece a original.

Se você gosta do assunto e quer pesquisar mais a respeito, eu indico o filme A liberdade é azul, do polonês Kieslowski. Nele, a personagem vivida pela atriz Juliette Binoche perde o marido num acidente de carro. Compositor renomado, ele escrevia uma sinfonia para a comemoração do aniversário da Revolução Francesa. Faltava apenas um pouquinho para terminar e o cara bateu as botas. A esposa, junto com o assistente, tentará finalizar a composição em seu lugar. Resta a ela superar os seguintes conflitos: como se modifica a criação alheia? Até que ponto ela lhe pertence? É possível adaptar sem interferir ou desrespeitar a original?

É um filme lindo, sensitivo e delicado. Porém, se ele não agradar, nem pense em me culpar. Pergunte-se o motivo. Como disse antes, o gosto se discute sim, e tudo deve ser questionado se o propósito é aprender. Melhor do que gostar de uma obra é ter disposição para experimentá-la.

A crítica está aí para ajudar, mostrando outros pontos de vista – apesar de muita gente achar que criticar é sinônimo de falar mal, inclusive profissionais da área. Esse tipo de crítica sim é perda de tempo.

Seja como for, assista ao filme que sugeri. Depois, me diga se gostou ou não. E por que, claro.


(imagens, na ordem: ANT73, ANT 64, ANT54 e ANT13, todas de 1960, por Yves Klein)

sábado, 3 de dezembro de 2011


"Metropolis é o século 20. É a ciência e o obscurantismo. O monumental e o miserável. O alto e o baixo. Os senhores e os escravos. É o século da luta de classes que ali se anuncia. Século do comunismo e do nazismo. Das utopias que viram pesadelos. Das metrópoles que também viram pesadelos. Tudo isso fala da atualidade do filme de Fritz Lang que Hitler e Goebbels, não por acaso, admiravam. Há muitas razões, inclusive equívocas, para gostar de um filme. Mas algo aqui comunga com as ideias dos dois: Metropolis é, por excelência, o filme do preto e branco, das sombras pintadas que discriminam com nitidez o claro do escuro, a luz da treva. De uma certa ordem rígida, absoluta, que devia andar de acordo com o pensamento dos nazistas. No entanto, a ideia de duplicidade que Lang introduz na trama transtorna um tanto esse panorama unívoco. É uma ideia que o acompanha desde sempre, presente em praticamente todos os seus filmes. É como se dissesse: todo homem é duplo, comporta o seu contrário. (...) É esse ambiente de fricção, conflito, dúvida permanente sobre o outro que Lang evoca magistralmente neste que é seu filme mais próximo do Expressionismo."
Inácio Araujo (2010), no jornal Folha de São Paulo 

Vi Metropolis pela primeira vez não faz muitos anos. Eu estava curioso para conhecer esse clássico que influenciou todo o cinema posterior. Reconheci nele tantos temas, soluções plásticas, jogo de luzes e ideias de futuro que ele parecia um apanhado de Blade Runner, The Wall, 1984, THX 1138, A ilha e Minority Report, entre muitos outros. Aliás, essa é uma experiência interessante, assistir aos clássicos depois dos recentes, percebendo o que deles ficou como legado. Faz a gente ter certeza de que o presente está em constante diálogo com o passado, tanto que mal conseguimos distingui-los, ou saber onde acaba um e começa o outro. Se é que o passado termina mesmo. Porque, quando a gente se dá conta, o presente já ficou para trás, enquanto o futuro jamais chegará de verdade.






segunda-feira, 21 de novembro de 2011

REFLEXÕES POÉTICAS: INFLEXÕES VERBAIS



No Brasil, poesia é essencialmente uma arte marginal, para não dizer que sempre foi. Digo isso por conta do número de iniciados, não pela posição social deles. Qual dos seus amigos lê poesia? Poucos, imagino. Mas, quem gosta, gosta de verdade, de Drummond e Bandeira a Gullar e Piva, dos caras que fizeram história até os que estão começando a ganhar espaço.

Então, fica a dica do Livro Ruído, de Davi Araújo, recém-publicado em Portugal pela Ecleia Editora. Quem é marginal a ponto de ler poesia, vai gostar e gozar.

Ouça a entrevista que o autor concedeu à rádio Unesp: Davi Araújo – Rádio Unesp

Para saber mais sobre o Livro Ruído: Eucleia Editora

Blog: Não Fique São

sábado, 19 de novembro de 2011

"Tenho 25 anos de profissão. Sempre tentaram me dizer que o cinema é uma arte coletiva. Nunca entendi o que isso queria dizer. Quem me dizia também não sabia o que era. Existe uma indústria feita por um tanto de especialistas, não tenho nada contra isso. Mas ainda há, talvez, um pequeno espaço para os artistas."

Roberto Rossellini (1958)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

RESPEITÁVEL PÚBLICO

Sabe, ando cansado de filmes excessivamente complexos, seja no enredo ou na produção. Cansado de milhares de personagens e reviravoltas, de estética obsessiva, de épicos históricos pautados em batalhas, de histórias pobres sustentadas por efeitos especiais cujo único objetivo é tirar o fôlego do expectador. Por isso, quando me deparo com filmes como O palhaço, de Selton Mello, solto suspiros de alívio. Não porque ele seja banal, no sentido pejorativo do termo, mas justamente porque conta uma história banal, quer dizer, por tratar da vida comum, dos dramas que todos nós vivemos cotidianamente.

Admiro quem consegue fazer poesia com matéria-prima tão simples. É disso que O palhaço trata, de uma crise de identidade que põe em dúvida a carreira profissional do protagonista – uma história pequena, porém rica em significações, semelhante ao que Ernest Hemingway fazia em seus contos.

Uma ocasião breve e pontual. E só. Um capítulo da biografia do tal palhaço, representado com uma fotografia belíssima, saturada e quente; com uma trilha que mistura MPB e temas circenses; com um humor primordial que diverte a todas as idades e com uma direção cuidadosa, de planos fechados e atenção voltada à expressão corporal dos personagens.

O palhaço tem seus clichês e defeitos: talvez pudesse se estender um pouco para que a crise ganhasse peso e a vontade de retomar a carreira convencesse mais, talvez não precisasse cair no lugar-comum do circo decadente, talvez não precisasse dos cenários ermos do interior, talvez Selton Mello pudesse se esforçar para não ser tão Selton Mello; mas a verdade é que as qualidades sobressaem e nos tocam no ponto certo.

Aliás, o filme merece ser visto por um motivo especial: é o único em cartaz, entre outros dez ou doze que ocupam as salas dos cinemas convencionais, a explorar a vida humana de maneira delicada, com simplicidade e sem grandes pretensões ou ideologias. Um verdadeiro respeito ao bom gosto e à inteligência do público.

Site oficial: www.opalhacofilme.com.br 
Blog: blog.opalhacofilme.com.br



terça-feira, 6 de setembro de 2011

ARTE NO LIXO



Lixo Extraordinário, documentário que concorreu ao Oscar deste ano, mostra como a arte pode envolver e transformar pessoas. É emocionante, mesmo para quem não se liga muito no assunto.

Trata-se de uma espécie de making of de um projeto artístico de Vik Muniz, em que fica evidente a complexidade da sua criação. Por trás das fotos exibidas em museus e galerias de todo o mundo existe uma vontade muito grande de fazê-las acontecer, uma equipe de especialistas e um longo tempo de execução.

Vi o filme no sábado passado, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na sequência, houve duas leituras críticas, acompanhadas de um debate aberto com a plateia. Os convidados para a mesa foram o jornalista Manuel da Costa Pinto e o psicanalista Plinio Montagna.

A conversa foi ótima, mas o filme foi melhor ainda, principalmente pelas questões que nos propõe. Por essas e por muitas outras, acho que você também precisa assistir.

Site oficial: LixoExtraordinário.net