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quinta-feira, 15 de abril de 2021

O CAMINHAR NA HISTÓRIA DA ARTE RUMO A PAULO NAZARETH: ALGUNS PONTOS DE PARADA E OBSERVAÇÃO



Em 2019, tive o prazer de apresentar mais uma pesquisa no Seminário de Estética e Crítica de Arte provido pelo Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da USP. 

Falei sobre a caminhada como prática artística, com destaque para uma performance do artista Paulo Nazareth (em especial no que dialoga com a história da arte e com transformações do olhar, identidade latino-americana e condição de estrangeiro na atualidade). 

O texto decorrente agora pode ser lido neste belo livro recém-publicado, disponível online gratuitamente, que você acessa clicando aqui >> Anais do IV Seminário de Estética e Crítica de Arte da USP: Políticas da Recepção

domingo, 27 de dezembro de 2020

CIDADE EM BRANCO

Foto de Frank Busch


O lugar é amplo e bem iluminado. Tudo é pintado de branco: as paredes, o teto e até o piso, tal como nos famosos e muito criticados museus “cubos brancos” surgidos com a arte moderna, ainda bastante comuns. Para esta performance, é importante que seja assim, o que não implica, necessariamente, uma ideia ultrapassada. Veremos.

No centro do recinto há uma mesa grande e redonda, talvez com um buraco no meio, como se olhássemos para o aro de uma roda de bicicleta gigante. É importante que seja circular e branca. Do lado de fora dessa mesa há cadeiras, no mínimo duas dezenas. São brancas. E são belas, quer dizer, não são simples cadeiras plásticas, dessas que usamos em ocasiões quaisquer. Temos ali uma ocasião especial.

A mesa se encontra forrada com papel manteiga, como nos restaurantes que eu frequentava quando criança. Toalhas brancas de tecido por baixo, folhas de papel manteiga em cima. Tocá-las é prazeroso, é como acariciar uma tépida combinação de lisura e veludo, quase uma pele de bebê. De fora, não temos como saber; contudo se trata de mais um detalhe importante.

A mesa está posta também com pratos, garfos, facas, colheres, taças e guardanapos de tecido. Todos eles brancos e em número exato e correspondente à quantidade de cadeiras.

O público não deve se aproximar demais por enquanto, embora não exista nenhuma barreira concreta que o impeça, como um cordão de isolamento, por exemplo. Basta uma iluminação diferente. A mesa e as cadeiras estão dispostas sob fortes holofotes. O público, ao redor, permanece em certa penumbra, como acontece durante um espetáculo convencional de teatro. Ou nos cinemas. Assim, todos saberão para onde direcionar o olhar.

Nenhuma produção sonora é necessária; por ora, ouvimos o burburinho controlado típico dos ambientes museais. Em breve, esse ruído amansará naturalmente, quando os convidados chegarem.

Eles demoram apenas uma brevidade, o suficiente para o público começar a se perguntar se tudo corre conforme o planejado. Não há dúvidas de que existe um roteiro. Mesmo assim, conhecemos a nossa ansiedade. Também ela se faz presente.

Os convidados entram aos poucos, um ou dois por vez, no máximo. São de idades, etnias e gêneros diversos e têm suas marcas físicas pessoais preservadas. Todavia, vestem-se inteiramente de branco. O detalhe é importante: apenas branco em todos os trajes, que exceto por isso podem ser de qualquer modelo. Lembrando apenas que se trata de uma ocasião especial, uma celebração pública e coletiva, em que a vestimenta de um manifesta o valor da presença do outro.

Cada convidado ocupa seu lugar à mesa. Aproxima-se, senta-se e aguarda até o último se acomodar e todas as cadeiras estarem ocupadas. Pega então seus talheres e, junto com os demais, passa a rabiscar o papel manteiga. Quem já frequentou restaurantes com mesas forradas dessa maneira sabe que o papel branco, à menor pressão, produz uma marca branca em tom diferente, portanto é possível, com a ponta de uma faca, por exemplo, desenhar em branco sobre branco. Kazimir Malevich pintou um quadrado assim mais de um século atrás na Rússia revolucionária, porém utilizando tinta a óleo sobre tela. A referência me ocorre agora, mas não sei dizer até que ponto influencia a performance a que assistimos.

É importante dizer que os convidados não desenham qualquer coisa: foram instruídos a registrarem os locais da cidade que frequentam com prazer. Seus espaços públicos favoritos, agora reproduzidos de memória. Daí a importância de que essas pessoas sejam selecionadas entre os habitantes da cidade específica onde a performance é realizada. Exceto por isso, cada um tem liberdade para desenhar o que quiser e da maneira como achar mais conveniente. São pessoas comuns, que se dispuseram a participar de acordo com o roteiro propositivo.

Cinco a dez minutos me parecem suficientes para que alguns croquis ganhem forma. Um dos convidados, que observa o tempo em seu relógio de pulso, é o primeiro a depositar de volta na mesa os talheres utilizados. Atentos, os demais repetem seu gesto, até que ninguém mais desenhe nada. Nesse momento, todos se levantam e caminham ao redor da mesa, fazendo o percurso que preferirem, tomando alguns minutos para apreciarem os desenhos dos companheiros. As impressões da experiência são guardadas para si; o silêncio não é quebrado em momento algum.

Aos poucos, assim como adentraram o recinto, os convidados partem. Cada um em seu ritmo e no máximo dois por vez. A ordem não é combinada previamente e varia. Importante é que não haja pressa. Quando o último se vai, todas as luzes do salão se acendem, sugerindo que o público se aproxime.

Uma conversa com os convidados é organizada no dia seguinte, na qual eles já vestem suas roupas pessoais e falam sobre a experiência para que os interessados, ali presentes, possam ouvir. Quais questões surgem, então? Desde esse dia seguinte, as folhas de papel manteiga com os desenhos ficam expostas no mesmo ambiente onde a performance se realizou, penduradas em varais com pregadores brancos, de modo que possam ser observadas em ambos os lados por quem visitar a mostra.

Enquanto ela durar, mesas e cadeiras também permanecerão no local, com as folhas de papel manteiga sendo repostas toda vez que estiverem suficientemente preenchidas. Os visitantes estarão convidados a desenhar nelas com os palitos de dentes brancos disponíveis. Demais utensílios como pratos, talheres e taças terão sido recolhidos.

As folhas desenhadas pelos visitantes devem ser levadas por eles ou destruídas, caso não haja como reciclá-las. As folhas produzidas na performance podem ser incorporadas ao acervo da instituição promotora ou ao acervo público da cidade; se não houver interesse dessas partes, serão destruídas.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

FAZER-ME ÁGUA PARA SEUS OLHOS


Janmari não falava nem interagia com qualquer outra criança ou presença próxima. Era fascinado pela água, capaz de passar horas a ver o córrego que cortava os morros de Cévennes, na França, onde os aracnianos da rede de acolhimento se refugiavam. Entre eles se encontrava Fernand Deligny – poeta, educador e etólogo que o adotara. O córrego, o balde içado do poço, a caneca de chá. Dizia-se inclusive que Janmari era capaz de encontrar acessos ao lençol freático onde os “normais” viam apenas terra comum. Como ter certeza? Mais incrível – talvez de fato inacreditável se tomarmos como base a forma hegemônica como nos relacionamos hoje no Ocidente – é que de Janmari nada se cobrava. Tampouco se pretendia retirá-lo do seu viver autista e fazê-lo observar o mundo com olhos “sãos”. A ele era permitido ser, simplesmente, assim como às demais crianças autistas da morada. Imagino o sentimento do pai adotivo, jamais visto pelo menino, sua presença imperceptível. Deligny não podia nem deveria moldar Janmari aos seus modos, “incluí-lo na sociedade”, no sentido mais brutal dos termos. Ao contrário, ele apenas se perguntava como fazer-se água para os olhos do filho. A pergunta ecoa até hoje uma afinada ética das relações.

***

A aldeia foi reconstruída numa ilha, em meio ao rio volumoso, num local conhecido como resguardo. O território pertencia aos indígenas do que hoje chamamos Colômbia, para quem a coca é uma planta sagrada, utilizada em rituais pelos homens da tribo para se reconectarem com a feminilidade. Foi dominado por traficantes durante muitos anos, retomado pelo governo e devolvido aos habitantes originais como terra demarcada. A ameaça recente é a pecuária. A aldeia foi instalada numa ilha. Chega-se a ela percorrendo estradinhas sinuosas na floresta, caminha-se um tanto até a beira do rio; é necessário estar acompanhado de um membro da tribo, que grita do alto da montanha para que alguém na outra margem libere a jangadinha. Os visitantes são puxados um a um através da correnteza, pois é essa a capacidade da embarcação. A aldeia é feita com tijolos, galinhas, teares, um fogão a lenha. A coca é cultivada entre as hortaliças. Quase tudo ali, desde os menores apetrechos até os maiores equipamentos, chegou cruzando o rio na jangadinha, puxado por uma corda pelos indígenas. O lugar é conhecido como resguardo.

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Um dos significados de errar é caminhar a esmo, sem objetivo, desinteressadamente. Erro pode ser aquele momento de deriva em que o motor do barco é desligado, as velas são recolhidas e o destino segue o pulso das águas. O erro pode ser uma falha, e a falha pode ser uma fissura, e a fissura na concretude da vida pode oferecer um espaço por onde olhar para fora ou pode deixar a luz entrar e afogar a todos os enclausurados em demasiado esclarecimento. Errar pode acarretar um desvio do lugar-comum; pode também ser uma alternativa ao acerto de contas. O erro pode ser o desencontro entre o dito e o compreendido, entre o sentido e o significado, entre o pretendido e o resultado; o que muitos chamam de poesia.

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Pai farmacêutico, mãe psicóloga, um esquizofrênico em busca de lugar. A partir do qual pudesse conhecer outros. Lugar que desse vontade de tirar o sapato, talvez até vontade de dormir. Lugar de onde pudesse falar, ainda que de si mesmo. Aí começa a história. Deambulou pelo tempo. Aonde chegou? Que lugar é esse? Como ter certeza? Sente que encontrou o lugar em meio a um grupo de teatro, que instaura um estado poético capaz de transformar qualquer espaço num palco para performances. Lugar fictício, talvez um dos mais potentes porque pode ser muitos lugares, pode deixar de ser num acender de luzes. Seu lugar é ali, que paradoxo!, onde por princípio não há vaga para nenhum eu bem determinado; lugar de criação, não lugar, sempre um novo lugar, utopia.

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Todo o ambiente é cuidado com rigor, as coisas retiradas e devolvidas. Essa construção meticulosa é fundamental para o acolhimento das crianças autistas ao mesmo tempo em que se desconstrói a maneira convencional de estar com elas. Por ausência de um sujeito que o limite, o corpo do autista se esparrama pelos arredores. Para ele, qualquer objeto fora do lugar pode ser traumático como ter um órgão removido. Habitar todo o território, vagar sem finalidade, livre da domesticação cultural, da linguagem, dos preceitos morais que estabelecem sociedade. Talvez a única liberdade possível seja a consciência do limite. Como a compreensão é também um confinamento, não podemos, na “normalidade”, estar realmente no mundo; habitamos um mundinho apropriado ao homenzinho-que-somos.

***

Basta sua estranheza para contestar a ordem local. Como é possível oferecer hospitalidade ao estrangeiro? Como lidar com a diferença entre nós? O estrangeiro não aceita apenas ser incluído, submetendo-se à nossa cultura; ele vem para transformar. Fazer junto. Como acolhê-lo senão mudando a nós mesmos, assumindo a nossa estranheza, tornando-nos estrangeiros em nossa própria pátria? Muitos são interrogados numa língua que desconhecem e deportados de volta contra a vontade, como se houvesse possibilidade de retorno, como se a experiência de deslocamento não fosse ao seu modo irreversível. Mesmo se falar a língua mãe daquele que o acolhe, jamais será reconhecido como irmão. A maior proximidade é assumir o longínquo do outro, diz Jean Oury. Para Jacques Derrida, a hospitalidade absoluta seria possível apenas se suspendêssemos a linguagem, de maneira a não mais interrogar nem submeter o estrangeiro à autoridade da Lei. Utopia. Viveríamos assim, quem sabe, uma liberdade real, muito além dessa que nos obriga a conceituá-la para exercê-la e que, contraditoriamente, impõe as suas fronteiras.

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Aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para conhecer o coral Cidadãos Cantantes. Mal conseguia falar uma frasezinha sequer. Mas isso já tem muito tempo, foi no início de tudo. Distante dali, num outro país, quando uma criança autista realiza um novo gesto, ele é sinalizado num mapa, que mais parece uma partitura de movimentos do que um instrumento científico de localização. A criança pode ter devolvido à mesa um prato recém-lavado. Pode ter mexido nos próprios pés. Pode ter desprendido um gomo da laranja. Seu gesto inédito é chamado de acontecimento inaugural. O que se pode falar sobre a força de tamanha sutileza? Ouça-a: mal conseguia articular uma frasezinha; aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para aprender a cantar.

***

Nos últimos dias de outubro tive o prazer de organizar o ciclo de encontros Linhas Erráticas junto com minhas companheiras do Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Sob o mote da errância e com mesas que derivaram pela arte, clínica, política, comum, filosofia, entre outros territórios, debatemos com convidados e participantes formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio da perambulação, desvios, aventuras, falhas e recusas à domesticação. Nesse ínterim, histórias, experiências e pensamentos vieram à tona. Alguns deles, que permanecem a flutuar num oceano sensível, tive vontade de compartilhar aqui.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

GEPPS & CPF SESC PROMOVEM CICLO DE ENCONTROS PARA DISCUTIR A EXPERIÊNCIA DA ERRÂNCIA NO CONTEMPORÂNEO

Outubro está cheio de alegrias. Uma delas, muito especial, é esse curso/evento que estou organizando desde o começo do ano junto com o GEPPS e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

Os encontros do ciclo Linhas erráticas pretendem discutir formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio de perambulações, desvios, aventuras, erros e recusas à domesticação.

O conceito, que se inspira no trabalho de Fernand Deligny com crianças e jovens “inadaptados”, se expande de maneiras variadas em mesas que derivam pela clínica, arte, coletivo, política, ética, filosofia, saúde, educação, entre as demais singularidades oferecidas pelos debatedores, trazendo à tona invenções e outros modos de existir, habitar, criar, cuidar e conviver.

Serão dois encontros, nos dias 29 e 30 de outubro e na companhia de muita gente bacana.
Clique aqui, confira a programação completa e faça sua inscrição!


Mesas de debate

29/10
14h às 16h
Experiências erráticas em Fernand Deligny e ressonâncias atuais
Com Mariana Louver Mendes e Marlon Miguel

16h15 às 18h15
Errâncias entre arte, estética e política
Com Eduardo A. A. Almeida e Dália Rosenthal

30/10
14h às 16h
Errâncias sismográficas: abalados, resistimos!
Com Gisele Dozono Asanuma e Juliano Pessanha

16h15 às 18h15
Criação à deriva: convivência e diferença em coletivos artísticos em São Paulo
Com Isabela Umbuzeiro Valent e Jayme Menezes

18h30 às 20h
Alinhavar jangadas - derivas acompanhadas
Com Eduardo A. A. Almeida, Gisele Do. Asanuma, Isabela U. Valent e Mariana L. Mendes

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

ESTAREI NO IV SEMINÁRIO DE ESTÉTICA E CRÍTICA DE ARTE, NA USP


O Seminário de Estética e Crítica de Arte é organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Nesta quarta edição, falarei sobre "O caminhar na história da arte rumo a Paulo Nazareth: alguns pontos de parada e observação". A mesa se chama "Performance, corpo e cidade" e se realizará em 3/9, das 14h às 16h, na sala 104 A.

Para participar, basta chegar. Você encontra outras informações sobre o evento aqui: IV Seminário de Estética e Crítica de Arte

segunda-feira, 22 de julho de 2019

CAMINHAR, OLHAR, TRANSFORMAR

O trabalho mais conhecido do artista brasileiro Paulo Nazareth é a caminhada realizada entre março de 2011 e outubro de 2012, que o levou de Minas Gerais aos Estados Unidos. Ela gerou uma série de narrativas contadas por meio de fotografias, relatos escritos, objetos, mapas, performances documentadas e entrevistas, reunidas sob o título de Notícias de América. “Narrativas errantes”, nos dizeres de Paola Berenstein Jacques, não apenas porque são o que resta a ser compartilhado da experiência da errância, mas também porque dão lugar a vozes menores, a personagens coadjuvantes e a cenários invisíveis nas narrativas hegemônicas.

Paulo Nazareth partiu com destino certo e com a proposição de percorrer a América Latina calçando apenas chinelos, acumulando a terra dos países nas rachaduras de sua pele, até que enfim lavasse os pés no rio Hudson, em Nova York. O trajeto, porém, foi se definindo pelos próprios passos, que o desenhavam num mapa imaginário de dimensão coincidente com a do território, como no famoso conto de Jorge Luis Borges intitulado Do rigor na ciência, e como se o artista pusesse em prática os versos de Antonio Machado, segundo os quais o caminho não existe por si só, ele se faz pelo caminhar.

sem título (da série Notícias de América, 2011-2012), de Paulo Nazareth

A viagem do brasileiro sugere muitas questões. A que nos interessa aqui, em especial, é a que dialoga com demais manifestações artísticas realizadas ao longo dos dois séculos precedentes, desde a flânerie parisiense ao Stalker italiano, passando pelas visitas dadaístas, as deambulações surrealistas e as derivas situacionistas. Proposições que transformaram o olhar na medida em que fizeram da errância uma forma de experiência estética. Essas transformações também trouxeram consigo maneiras outras de dizer e de pensar, uma vez que se caminha como o camelo – animal que, segundo Henry David Thoreau, rumina enquanto avança. Trata-se de caminhar, talvez, em busca do que o próprio intelectual norte-americano chamou de “pensamento selvagem”: incivilizado, livre, indomado.

O encontro com outras pessoas e outras culturas pelo caminho fez Paulo Nazareth olhar diferente inclusive para si mesmo, percebendo a própria identidade se transformar. “Em minha mestiçagem me faço”, disse ele, cuja ascendência negra, latino-americana, indígena e italiana veio à tona e o fez sentir-se mais negro quando se aproximava de um índio, mais índio quando comparado a um latino e assim por diante. Revelando um “corpo que é muito e pouco negro, muito e pouco índio, muito e pouco branco, a depender do lugar onde se situa, sempre provisoriamente”, como escreveu Moacir dos Anjos. Pois não seria esse o tônus do corpo brasileiro, mestiço, que muda a depender do lugar e de com quem se encontra? Legítimo exemplo do “eu” que se forma a partir das diferenças oriundas na relação com o outro, ou com muitos outros, como é o nosso caso; princípio fundamental de psicanálises e filosofias contemporâneas, desde Donald Winnicott e Jacques Lacan a Gilles Deleuze e Félix Guattari, para citar alguns.

“O estrangeiro tem que deixar a terra dos pais, a casa, a memória. Se mesmo a mais tênue raiz o detivesse – um estremecimento de saudade que fosse –, tornaria a cair no antigo vício da identidade que se espelha em si mesma”, propõe Mauro Maldonato, para quem a errância se faz rumo ao aberto, ao deserto, inclusive a errância do pensamento.

Thoreau, por sua vez, não via sentido em caminhar num jardim ou numa alameda urbana; para ele, a “arte de caminhar” consistia em se abrir aos bosques e neles se abandonar. Perder-se propositadamente no selvagem, de modo a desorientar sua domesticação.

Pois é somente esse grau de abertura que possibilita a Paulo Nazareth questionar a própria identidade. Para outrar-se, ou seja, para se fazer estrangeiro de si, não basta vontade própria. É preciso caminhar na direção do outro e encontrá-lo, abrir os olhos para discernir “o vulto do Outro”, que para Maldonato é quem nos remete à nossa própria estranheza, fazendo-nos perceber diferentes e nos sugerindo valorizar essa diferença tão constitutiva.

O olhar transformado ao longo da errância revela que a condição de estrangeiro não deveria ser escondida, menosprezada nem deportada; é na verdade um privilégio à disposição daquele capaz de se desfazer de sua própria territorialidade tal como a terra que se desfez dos pés de Paulo Nazareth nas águas do Hudson, desocupando as fendas de uma pele ainda porosa porque viva.

Ao longo da história da arte, a experiência do caminhar tomado como prática estética nos aproxima de questões atuais de cada época em que se realizou. Reside aí uma forma de furar fronteiras, expandir limites, conhecer pontos de vista necessários diante de aventuras hoje tão programadas pela lógica do consumo. Errar, ao contrário, requer desviar do trajeto preparado com antecedência, evadir a zona de conforto, aprender a saudar o outro que se encontra no caminho. É pelo desvio que as invisibilidades se apresentam. É por ele que deparamos com o imprevisível e vivemos para depois termos o que narrar.

Clique na imagem para ver a publicação original no Correio Popular.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

CONVERSAS-COLETIVAS NO MAM-SP

Em uma parede imensa do MAM-SP você encontrará também o diagrama que Ricardo Basbaum produziu para a exposição. Este é apenas um trecho (clique na imagem para ampliá-la)


Nossa criação coletiva para o 35º Panorama da Arte Brasileira já está disponível no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O projeto é de Ricardo Basbaum. Foram sete dias de trabalho intenso para produzir o texto e gravar o áudio. Em visita ao museu você pode se sentar numa grande mesa branca, colocar os fones de ouvido e acompanhar a conversa pelos roteiros deixados à disposição.

Se você não pôde nos assistir ao vivo durante o evento de abertura ou não conseguirá visitar a exposição a tempo, ouça o áudio e leia o roteiro nos links abaixo. Sugestão: use fones de ouvido para perceber melhor as variações do som.

Ouça aqui o áudio e leia o roteiro.

Como mencionado em post anterior, trata-se de "um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons".

Participantes: Bruna Beber, Eduardo A. A. Almeida, Julia de Souza, Marina Jerusalinsky, Monise Rigamonti, Rafa Éis, Ricardo Basbaum, Rodrigo Munhoz.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

NÓSONS


O 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM/SP, será inaugurado em 26 de setembro. Tive o prazer de participar, junto com um pequeno grupo de pessoas, do projeto Conversas-Coletivas, do artista Ricardo Basbaum.

Ao longo de alguns encontros nós trocamos ideias, expusemos desejos, negociamos possibilidades, experimentamos comuns e diferenças. Verdadeiro exercício político. O resultado é um roteiro que orquestra nossas vozes, a ser lido durante a abertura da exposição. Haverá também uma gravação para quem visitar o museu depois.

Um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons.

Se você puder, vá à abertura para nos assistir ao vivo.
Será terça-feira, 26 de setembro, a partir das 20h.
No MAM/SP (dentro do Parque do Ibirapuera).

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

UM MINUTO E UMA VIDA. E MUITO MAIS

"Nos anos 1970, Marina Abramovic viveu uma intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos, viveram num furgão realizando todo tipo de performances. Quando sentiram que a relação já não valia aos dois, decidiram percorrer a Grande Muralha da China; cada um começou a caminhar de um lado para se encontrarem no meio, dar um último grande abraço um no outro, e nunca mais se ver.

Vinte e três anos depois, em 2010, quando Marina já era uma artista consagrada, o MoMA de Nova Iorque dedicou uma retrospectiva à sua obra. Nessa retrospectiva, Marina compartilhava um minuto de silêncio com cada estranho que sentasse à sua frente. Ulay chegou sem que ela soubesse, e foi assim."*


*O texto acima foi retirado após uma série de compartilhamentos, e desconheço o autor. Achei ótimo o conjunto que faz com o vídeo, por isso resolvi reproduzi-los aqui. Se alguém souber o nome, peço que avise para eu conceder os devidos créditos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

FAZER(-SE) E DESFAZER(-SE)

O homem empurra um grande bloco de gelo pelas ruas da cidade, fazendo-o deslizar com algum esforço. Deve pesar cinquenta quilos, talvez mais. Empurra com as costas arqueadas e deixa para trás um rastro de água que lembra o muco dos caracóis. Algumas pessoas olham sem interesse, uma criança aponta mas logo se distrai com outra curiosidade qualquer, ninguém vê nada de errado. Afinal, ele está fazendo alguma coisa, e manter uma atividade é socialmente bem aceito, seja ela tão estranha quanto levar um bloco de gelo para passear. Deve ser o seu trabalho, coitado. E, se trabalha, é um homem de bem, melhor deixá-lo em paz.

A lógica engana. "Às vezes, fazer algo não leva a nada". Este é o título que Francis Alÿs, artista belga radicado no México, escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apoiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na "idade ativa", não é assim que se diz?

A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo nem trabalho nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas. No primeiro caso, tem-se a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no segundo, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como ferramentas construtoras do coletivo. São regimes aos quais a própria arte está sujeita – e que às vezes provocam reações críticas como aquela.

Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade – qualquer atividade se enquadra –, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e "desperdícios" de tempo. São aqueles modos de "fazer algo" que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.

Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo, que são intrínsecas a ele. Porque ignorá-las – ou mesmo negá-las – pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.

Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.

Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o "nada" não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.

A propósito, acabei me esquecendo de contar o final do filme. Pois bem, o bloco de gelo se reduz até ficar do tamanho de um sabonete, que o artista chuta despreocupadamente. Sua postura de trabalhador dedicado também se transforma, agora ele parece um vagabundo que caminha sem rumo pela cidade. Por fim, o gelo é abandonado, desfaz-se numa pequena poça e logo não é mais nada, desparecendo por completo. Sumiu, embora a gente saiba que permanece ali, evaporado no ar, habitando a memória de quem o viu, descrito na proposta do artista ou sugerido na mancha que restou no pavimento. Mesmo que não haja nada para ver, o gelo e o esforço de quem o deslocou estão presentes de alguma maneira. Sempre resta uma evidência, sempre existe a possibilidade de um significado que contrarie a aridez do "nada".

Nós fazemos coisas o tempo todo. Trata-se do bem e do mal-estar da civilização. "Não fazer" é uma promessa que tanto se deseja quanto se condena. Veja a integridade, esse valor social tão benquisto, que também está associado ao fazer: pois moral íntegra é aquela bem constituída, que não se desfaz. Porque trabalhar tornou-se sinônimo de existir, é o ato que tenta nos definir. Ao ponto de, quando conhecemos alguém, perguntarmos "O que você faz?" ao invés de "Quem é você?"

Não que seja um jeito "errado" de viver (se por acaso existem certos e errados). Tampouco é o único jeito. Enquanto fazer algo pode levar a nada, fazer nada também poder ser um caminho ou uma maneira de ser. Não?

Para mim, parece errado apenas não pensar a respeito. Trabalhar a vida inteira sem saber aonde vai chegar, sem consciência das escolhas. A arte incentiva essa reflexão. Temos o quadro na parede, o gelo que escorre por entre nossos dedos e desaparece no chão. Temos todas as nossas realizações e arrependimentos que ainda buscam sentido. O esforço valeu a pena? Se a resposta é "sim", já me parece um ótimo motivo para se fazer.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

ALGUMAS VEZES, FAZER ALGO NÃO LEVA A NADA


A proposta do artista belga Francis Alÿs (assista ao vídeo acima) é chamar atenção para os regimes e processos de produção (inclusive de arte) que operam nas sociedades, sejam elas orientadas por ideias capitalistas ou socialistas. Em um caso, a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no outro, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como construção de um coletivo. Mas não é apenas desse tipo de política que o artista trata. Seu "fazer algo" leva também:

- A uma provocação.
- Ao nada (que, diferente do simples "nada", é um lugar ou alguma coisa).
- Ao trabalho não objetivo. Afinal, por que tudo precisa de uma razão?
- A uma crítica dos valores que direcionam nosso dia a dia.
- A um vídeo/registro que é comercializado por uma galeria de arte e também exibido gratuitamente no Youtube.
- A uma reflexão, o que me parece ser o resultado mais importante.
- E assim por diante.

E você, aonde - ou a quê - o vídeo leva?

Saiba mais sobre o artista em seu site oficial.