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segunda-feira, 2 de julho de 2018

OFICINA DE REDAÇÃO E APRIMORAMENTO DA ESCRITA


Vou oferecer uma oficina na FMU de São Paulo para quem deseja aprimorar a redação de textos em geral, seja no trabalho, na escola ou em qualquer outra situação. É um curso prático, livre, sem pré-requisitos. Vamos botar o português para se exercitar! Sejam bem-vindos e espalhem a novidade para os amigos.

Inscreva-se aqui: https://fmu.educaz.com.br/curso/oficina-de-redaco-e-aprimoramento-da-escrita/

Principais tópicos do curso:

– Fundamentos do texto bem escrito
– Forma e conteúdo
– Principais erros e como evitá-los
– Como transformar ideias em texto
 – A escrita no trabalho e na sala de aula
– A escrita informal
– Técnicas e truques para o dia a dia
– Esboçar, escrever e revisar o próprio texto
– Ferramentas e recursos do Word

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O SONHO IMPOSSÍVEL

Terminei na semana passada minha tese de doutorado em Teoria e Crítica de Arte. Naquela mesma noite, minha esposa perguntou: e agora, qual é o seu sonho? A princípio não tenho nenhum, respondi. Ela não acreditou e me contou uma série de sonhos seus. Para mim, eram desejos, dos quais também tenho vários. Os desejos são realizáveis. Por outro lado, penso no sonho como algo de natureza utópica e definitivamente impossível de realizar, sob pena de que o sonhador desperte no deserto do real. Na tese, influenciado pela filosofia de Alain Badiou, chamo isso de “ponto de impossível”.

O ponto de impossível do capitalismo é a igualdade, afirma Badiou. Ponto declarado como princípio embora, acaso realizado, acarrete na destruição do seu operador. O capitalismo jamais levará à igualdade social, uma vez que depende da desigualdade para continuar operante. Em outras palavras, o capitalismo continuará possível enquanto a igualdade social for impossível, embora sonhada, nem que seja apenas como discurso falacioso.

Pintura Suprematista (1915), de Kasimir Malevich
A mesma lógica, aplicada à história da arte, indicará como ponto de impossível o anacronismo. Georges Didi-Huberman tem se esforçado para tensionar as linhas do tempo, inspirado no legado de Aby Warburg, em especial no Atlas Mnemosyne. Ele chega mesmo a afirmar que só existe razão em pensar a história da arte, nos tempos atuais, como disciplina anacrônica. Entre as tensões e torções experimentadas pelo autor, notamos que a história continuará a exigir um fio de tempo e um espaço para suas narrativas. De fato, o século XX viu em diversas oportunidades declarações de fim da história da arte por conta de crises na historiografia, sem, entretanto, reinventar por completo os velhos métodos de narrar. Quando o anacronismo se realizar, não haverá história, mas outra coisa, possivelmente similar à literatura.

O ponto de impossível da política é o consenso, ao menos quando se pensa numa política apartada da barbárie. Na barbárie plena, o consenso é possível e serve de justificativa às violências; aliás, quase sempre é pelo consenso que se chega à barbárie. Por sua vez, a política depende do dissenso para existir enquanto lugar de trocas, de coletivização, de diferenciação. Qualquer contexto plenamente consensual é outra coisa que não política, ainda que esta pregue o consenso como comportamento de ordem, no limite até democrático. O consenso implicaria seu fim; a política sobrevive apenas na diferenciação.

Mais uma vez chegamos à arte, cujo ponto de impossível é a vida. Apesar de desejável, quando a arte abandonar sua elaboração poética e coincidir com a vida banal, deixará de existir. Ferreira Gullar usava o jargão de que a arte existe porque a vida não basta. De fato, quando a arte tentou enveredar pela funcionalidade, pela positividade ou pela objetividade, como em diversos aspectos da Bauhaus, por exemplo, tornou-se design, arquitetura, desenho industrial, comunicação. Quando se tornou ferramenta de regimes totalitários como o stalinista, o nazista ou o da china comunista de Mao Tsé-Tung, a arte tornou-se meio de comunicação que apenas reiterava ideias previamente estabelecidas pelo programa do governo.

Lygia Clark levou a arte à fronteira com a clínica, e sua Estruturação do Self confunde-se com metodologias terapêuticas. Joseph Beuys fez movimento semelhante na relação entre arte, educação e sociopolítica, misturando-se a associações de agricultores e criando modelos de universidade.

De alguma maneira, todos esses casos comprovam que o sonho modernista de estetização da vida nasceu fadado ao fracasso, ao menos no sentido de apontar um futuro para a arte. Seus resquícios no contemporâneo seguem o mesmo caminho. As artes comunitárias, por exemplo, ou mesmo as práticas artístico-terapêuticas tendem a fazer ruir o conceito europeu tradicional da arte. Não se trata de julgar o mérito de cada vertente, mas de constatar que o afastamento da estética na direção da vida comum desconfigura certo lugar da arte enquanto instituição, cujas consequências são ainda incertas.

De volta à pergunta de minha esposa, percebi que não tinha pensado a finalização da tese como realização de um sonho, mas de um desejo, e isso não me fazia menos feliz. Pelo contrário, eu me sentia pleno. O sonho, no caso, talvez fosse o conhecimento: como é impossível obtê-lo, a pesquisa não termina nunca, mesmo que tenha havido uma monografia, depois uma dissertação de mestrado e agora uma tese de doutorado, entre outras etapas da trajetória acadêmica.

Claro que cada um usa a palavra que preferir; longe de mim querer estragar os sonhos ou os desejos de ninguém, e muito menos determinar um ponto final sobre o assunto. Aliás, quanto mais estudo, mais tenho consciência do pouco que sei. Não digo isso apenas com objetivo de parodiar Sócrates, o qual “só sabia que nada sabia”, mas para afirmar que tal consciência nutre uma ética social e profissional.

De qualquer maneira, fico a pensar que o sonho precisa ter um ponto de impossível para que sua busca não cesse e a vida não perca o encanto com a sua realização. A busca é, afinal, a grande satisfação que jamais se satisfaz. É o sonho que mantém sua pulsação.

sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.