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domingo, 27 de dezembro de 2020

CIDADE EM BRANCO

Foto de Frank Busch


O lugar é amplo e bem iluminado. Tudo é pintado de branco: as paredes, o teto e até o piso, tal como nos famosos e muito criticados museus “cubos brancos” surgidos com a arte moderna, ainda bastante comuns. Para esta performance, é importante que seja assim, o que não implica, necessariamente, uma ideia ultrapassada. Veremos.

No centro do recinto há uma mesa grande e redonda, talvez com um buraco no meio, como se olhássemos para o aro de uma roda de bicicleta gigante. É importante que seja circular e branca. Do lado de fora dessa mesa há cadeiras, no mínimo duas dezenas. São brancas. E são belas, quer dizer, não são simples cadeiras plásticas, dessas que usamos em ocasiões quaisquer. Temos ali uma ocasião especial.

A mesa se encontra forrada com papel manteiga, como nos restaurantes que eu frequentava quando criança. Toalhas brancas de tecido por baixo, folhas de papel manteiga em cima. Tocá-las é prazeroso, é como acariciar uma tépida combinação de lisura e veludo, quase uma pele de bebê. De fora, não temos como saber; contudo se trata de mais um detalhe importante.

A mesa está posta também com pratos, garfos, facas, colheres, taças e guardanapos de tecido. Todos eles brancos e em número exato e correspondente à quantidade de cadeiras.

O público não deve se aproximar demais por enquanto, embora não exista nenhuma barreira concreta que o impeça, como um cordão de isolamento, por exemplo. Basta uma iluminação diferente. A mesa e as cadeiras estão dispostas sob fortes holofotes. O público, ao redor, permanece em certa penumbra, como acontece durante um espetáculo convencional de teatro. Ou nos cinemas. Assim, todos saberão para onde direcionar o olhar.

Nenhuma produção sonora é necessária; por ora, ouvimos o burburinho controlado típico dos ambientes museais. Em breve, esse ruído amansará naturalmente, quando os convidados chegarem.

Eles demoram apenas uma brevidade, o suficiente para o público começar a se perguntar se tudo corre conforme o planejado. Não há dúvidas de que existe um roteiro. Mesmo assim, conhecemos a nossa ansiedade. Também ela se faz presente.

Os convidados entram aos poucos, um ou dois por vez, no máximo. São de idades, etnias e gêneros diversos e têm suas marcas físicas pessoais preservadas. Todavia, vestem-se inteiramente de branco. O detalhe é importante: apenas branco em todos os trajes, que exceto por isso podem ser de qualquer modelo. Lembrando apenas que se trata de uma ocasião especial, uma celebração pública e coletiva, em que a vestimenta de um manifesta o valor da presença do outro.

Cada convidado ocupa seu lugar à mesa. Aproxima-se, senta-se e aguarda até o último se acomodar e todas as cadeiras estarem ocupadas. Pega então seus talheres e, junto com os demais, passa a rabiscar o papel manteiga. Quem já frequentou restaurantes com mesas forradas dessa maneira sabe que o papel branco, à menor pressão, produz uma marca branca em tom diferente, portanto é possível, com a ponta de uma faca, por exemplo, desenhar em branco sobre branco. Kazimir Malevich pintou um quadrado assim mais de um século atrás na Rússia revolucionária, porém utilizando tinta a óleo sobre tela. A referência me ocorre agora, mas não sei dizer até que ponto influencia a performance a que assistimos.

É importante dizer que os convidados não desenham qualquer coisa: foram instruídos a registrarem os locais da cidade que frequentam com prazer. Seus espaços públicos favoritos, agora reproduzidos de memória. Daí a importância de que essas pessoas sejam selecionadas entre os habitantes da cidade específica onde a performance é realizada. Exceto por isso, cada um tem liberdade para desenhar o que quiser e da maneira como achar mais conveniente. São pessoas comuns, que se dispuseram a participar de acordo com o roteiro propositivo.

Cinco a dez minutos me parecem suficientes para que alguns croquis ganhem forma. Um dos convidados, que observa o tempo em seu relógio de pulso, é o primeiro a depositar de volta na mesa os talheres utilizados. Atentos, os demais repetem seu gesto, até que ninguém mais desenhe nada. Nesse momento, todos se levantam e caminham ao redor da mesa, fazendo o percurso que preferirem, tomando alguns minutos para apreciarem os desenhos dos companheiros. As impressões da experiência são guardadas para si; o silêncio não é quebrado em momento algum.

Aos poucos, assim como adentraram o recinto, os convidados partem. Cada um em seu ritmo e no máximo dois por vez. A ordem não é combinada previamente e varia. Importante é que não haja pressa. Quando o último se vai, todas as luzes do salão se acendem, sugerindo que o público se aproxime.

Uma conversa com os convidados é organizada no dia seguinte, na qual eles já vestem suas roupas pessoais e falam sobre a experiência para que os interessados, ali presentes, possam ouvir. Quais questões surgem, então? Desde esse dia seguinte, as folhas de papel manteiga com os desenhos ficam expostas no mesmo ambiente onde a performance se realizou, penduradas em varais com pregadores brancos, de modo que possam ser observadas em ambos os lados por quem visitar a mostra.

Enquanto ela durar, mesas e cadeiras também permanecerão no local, com as folhas de papel manteiga sendo repostas toda vez que estiverem suficientemente preenchidas. Os visitantes estarão convidados a desenhar nelas com os palitos de dentes brancos disponíveis. Demais utensílios como pratos, talheres e taças terão sido recolhidos.

As folhas desenhadas pelos visitantes devem ser levadas por eles ou destruídas, caso não haja como reciclá-las. As folhas produzidas na performance podem ser incorporadas ao acervo da instituição promotora ou ao acervo público da cidade; se não houver interesse dessas partes, serão destruídas.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

LITERATURA E IMAGENS: DESEDUCAÇÕES

Um texto requer imaginação tanto para ser escrito quanto para ser lido. E o que significa “imaginar” senão dar forma imagética a ideias e sentimentos? Daí não ser absurdo dizer que uma obra literária também se faz por imagens, algumas descritas com minúcia, outras apenas sugeridas, que o leitor complementa à sua maneira. Essa capacidade de sugestão e abertura é sem dúvida uma qualidade da escrita, na medida em que confere ao leitor alguma liberdade de criação. Ainda que duas pessoas leiam o mesmo romance, por exemplo, cada uma o imaginará a seu modo, e isso vale para personagens, ambiente, situações etc. Ao ponto em que algumas imagens sejam mais marcantes em nossa memória do que o texto propriamente dito. Lembro-me de cenas muito especiais dos livros que li sem ter certeza de como e com quais palavras foram escritas. O comandante sendo morto pela própria máquina de sacrifício em Na colônia penal, de Franz Kafka. O estupro no Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Os soldados bebendo vodca sob a radioatividade em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch. A lista seguiria até o fim do artigo. Tenho certeza de que cada leitor também pode fazer a sua sem dificuldades.

Esse debate remonta à máxima “ut pictura poesis”, de Horácio, no século 1 a.C. “Tal como a pintura, assim é a poesia”, com o que ele propunha a equivalência – ou correspondência e similitude – entre essas artes. O poeta se referia à possibilidade de se representar e reconhecer o real na poesia do mesmo modo como os pintores faziam, ainda que esse real fosse imaginário como o escudo de Aquiles (na Ilíada) ou o drama de Laocoonte e seus filhos (na Eneida). A questão não é recente, portanto.

Podemos levar em conta ainda a inserção literal de imagens no livro, que em sua maioria obedece a três modos de relação, por vezes difíceis de discernir:

Narrativas visuais: aquelas em que o texto, quando aparece, serve apenas de suporte às imagens, as quais contam a história por si mesmas.

Ilustração: aqui o peso se inverte, pois é o texto o principal narrador, e as imagens apenas conferem uma camada de visualidade a esta ou àquela cena. A própria capa do livro muitas vezes ilustra a história que guarda.

Histórias em quadrinhos (ou similares): embora possam ser semelhantes às narrativas visuais ou às ilustrações, a maior força dessa relação entre imagem e texto está nos casos em que ambos narram a história e se apoiam mutuamente, sendo impossível retirar um dos elementos sem que o sentido pretendido se desconstrua.

Com isso chegamos a uma última relação, que tem instigado minhas investigações mais recentes. Ela vale tanto para imagens inseridas de forma literal quanto para as sugeridas pelas palavras. Refiro-me às obras em que imagem e texto não se complementam, simplesmente, mas se atritam, como se sustentassem um desajuste imprescindível para a apreciação estética da obra. Uma inquietação em vez do conforto que quase sempre advém da capacidade de visualizar com clareza a cena descrita pelo autor.

Essa relação entre imagem e texto é comum em obras surrealistas e fantásticas, que mais explicitamente ferem o senso comum e disparam certo inusitado. Desde o Peixe solúvel, título do livro de André Breton, ao coelhinho Teleco, de Murilo Rubião, que se transforma em outros animais ao longo de sua convivência com o humano narrador da história. Cito ainda o conto Simulacros, de Julio Cortázar, em que uma família entediada decide construir um patíbulo, entre outros instrumentos de tortura e morte, em seu jardim, apenas com propósito de passar o tempo, o que instaura uma verdadeira celeuma na vizinhança.



Com as pequenas experiências chamadas de Isso não é literatura, no coletivo Discórdia, buscamos explorar formatos inusitados capazes de apresentar narrativas fora do livro. Meu primeiro projeto ali foi um poeminha estampado num filtro de café, que se refere à característica da pele de controlar fluxos entre o corpo e o mundo exterior.

Aqui já não se trata de ilustrar ou de elucidar nada, mas de tensionar os limites semânticos e sugerir diferentes possibilidades interpretativas. Como se alargássemos o significado imediato com um rolo de macarrão. Ao longo da vida somos educados a aceitar algumas relações entre texto e imagem como legítimas, as quais vão se acumulando como clichês da compreensão. O clichê é muito amável com o leitor, que não precisa de grande esforço para entender; tudo na narrativa já está dado da maneira como ele conhece e reconhece. As conexões são as mesmas, os limites de significação e de abertura ao diferente permanecem intocados; o leitor apenas lê uma vez mais o que se acostumou a ler. Mas a apreciação estética de uma obra literária – e artística em geral – vai além. Ela opera numa deseducação desse olhar domesticado, levando-o a entrever outras formas de vida, trazendo à tona o que se faz invisível no cotidiano, fazendo-nos estranhar o banal. São imagens que rompem a ordem do dia, arejam palavras, pegam as expectativas com a calças na mão. Todavia, aí existe também um paradoxo: tais imagens deseducam o olhar ao mesmo tempo em que nos ensinam a ver por outra perspectiva. Tudo bem, pois ainda assim ampliam, em complexidade, a visão de mundo.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O GESTO MÍNIMO

Monotipias de Mira Schendel (1964-5)


A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.

Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?

Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.

Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.

Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br


Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.

Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.

Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.

A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

É PRECISO SER FORTE PARA SER DELICADO


Em 2010, Sandra Cinto realizou uma pintura na sala expositiva redonda do Instituto Tomie Ohtake, na cidade de São Paulo. A parede foi tingida de azul profundo, sobre o qual a artista criou ondas imensas, compostas por uma infinidade de linhas prateadas desenhadas à mão. O ambiente era como um mar intempestivo e ao mesmo tempo calmo, inquietante e acolhedor, sublime. Na época eu trabalhava ali perto e aproveitava o horário do almoço para mergulhar – uma experiência poética revigorante. Por quê? Qual a força daquele mar, que me fazia sentir um náufrago na concretude da metrópole? Por que a condição de náufrago fazia tão bem?

Passaram sete anos até que assisti Sandra Cinto apresentar sua trajetória artística no III Seminário Internacional Arte e Natureza, realizado na USP em agosto. Sua fala soava ingênua, aclamando a beleza das pessoas, do mundo, da vida. Nestes tempos sombrios, tomados por violências e intolerâncias de diversas ordens, o discurso parecia alienado. Como é possível, eu me perguntava, que uma artista contemporânea se ponha a falar sobre as flores que enfeitam o seu ateliê enquanto as ruas ardem? Como é possível que, enquanto alguns se armam de paus e pedras, Sandra Cinto escolha uma canetinha qualquer e fique a desenhar marolas?

Minha incredulidade foi aos poucos se deixando infiltrar pela perseverança do seu trabalho. Que no início dos anos 1990 consistia em pintar céus e também contemplar os céus de outros artistas, desde Giotto, no Gótico italiano, à nossa Carmela Gross. Um trabalho que se mobilizava pelo desejo de céu em uma cidade que já não conseguia admirá-lo, fosse por causa do ar poluído, fosse pelos prédios que dominaram o horizonte, pela falta de hábito ou pelo excesso de luz que ofusca as estrelas.


“Se houve outra vida, fui japonesa”, diz Sandra Cinto, apaixonada pelo modo como aqueles orientais celebram os menores acontecimentos e não separam o homem da natureza. Com a mesma dignidade ela se coloca a desenhar por três semanas ininterruptas, desde a manhã prematura à madrugada plena, para realizar um trabalho que ficará exposto durante o mesmo tempo e depois será destruído. Pela efemeridade da obra, a artista exercita a própria finitude e se concilia com a morte.

Usa borracha para não se ludibriar com a utopia da perfeição; prefere negociar os erros e incorporá-los à obra, ao ponto em que nada parece fora de lugar. A beleza se encontra na própria imperfeição.

Em determinado momento, a artista quis experimentar tintas mais fluídas, que escorriam pela tela independentemente da sua vontade de controlá-las. Foi, assim, aceitando os acasos da criação.

São palavras suas. Sandra Cinto define o próprio trabalho como “muito simples e de coração”. Ao término da palestra, tal ingenuidade aparente tinha diluído minha expectativa árida e me deixava ver, debaixo daquela água toda, uma aposta política. Cuja força não pretende impor uma vontade – sua natureza é outra, menos combativa e mais sensível, menos destrutiva e mais vital, menos razão e mais corpo. Uma força política pautada na delicadeza, que age na contramão da guerrilha ou, em outras palavras, que desvia do puro e simples enfrentamento.

Isso não implica covardia ou irresponsabilidade, mas a busca por outro modo de agir. Ela não se arma para enfrentar o adverso; ao contrário, evita os velhos estratagemas e corre na direção do mar. “Toda poética é também política”, explica. E pode operar de maneiras diversas. Por vezes, bater contra uma ameaça apenas concede a ela relevância.

A poética é ainda mais potente quando não reproduz nem reitera as artimanhas do poder. Resta a questão: como? Como desativar os mecanismos da opressão sem recorrer a atitudes semelhantes? Como criar linhas de fuga em meio à perversidade? Como dançar em plena batalha?

As demonstrações de força quase sempre implicam abuso de autoridade, incapacidade de dialogar e medo do diferente. Sim, a força bruta se apresenta como uma reação amedrontada à vontade de mudança ou à existência outra. Já a potência política da arte de Sandra Cinto está na delicadeza exercida com rigor e tenacidade, e que oferece uma alternativa às tormentas atuais. A força dos seus mares coloca certezas em suspensão, permite ao espectador flutuar e se deixar levar, experimentar a segurança da superfície e a imensidão desconhecida que se encontra logo abaixo.

A artista aposta no belo. Pois acredita que o ímpeto transformador desse gesto é mais promissor do que a verborragia, a perseguição e o julgamento dogmático. Porém eu não acredito que o belo baste. Não é só disso que se trata. Acontece que Sandra Cinto consegue romper a beleza superficial para encontrar um ponto sísmico profundo, capaz de abalar a sensibilidade do espectador. Um ponto que toca a estrutura da sua subjetividade.

Para isso ela não precisa recorrer à bomba atômica. Sua obra é mais forte porque consegue, em meio às tensões do presente, sustentar a delicadeza. A qual, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, nada tem de ingênua ou frágil. Em tempos de violência, é preciso ser muito forte para ser delicada.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

AGRADEÇO SUA CARTA E A NOTA DE 50 FRANCOS

Quase sempre a história acaba por determinar um ponto de vista hegemônico sobre um assunto, e quase sempre essa "verdade" revela outras facetas quando começamos a escavá-la, removendo o acúmulo de significações que soterrou sua essência. Nunca sabemos com exatidão como as coisas aconteceram, como tal sujeito pensava, por que a humanidade seguiu por este e não por aquele caminho. Temos teses e suposições. Temos realidades ficcionadas. E não devemos desejar mais. Em certo sentido, a história é apenas uma coleção de causos que sobreviveram ao tempo agarrados a uma grande narrativa, escrita conforme certo método científico, interesses particulares e uma dose de imprevisto. O que de maneira alguma invalida o lindo trabalho dos historiadores. Cada vez é mais evidente nossa necessidade de cultivar raízes, pois um povo sem história é um povo sem sabedoria.

O que não podemos é nos deixar enganar pela aparência de verdade da história. Não existe um passado completamente revelado, apenas uma série de ideias de passado, algumas bem complexas, outras fragmentadas, em forma de vestígios. Para Walter Benjamin, "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

Destacar certas cenas do passado é um modo de construir história. Encadear essas cenas numa narrativa plausível é outro. Isso implica, como disse antes, determinar um ponto de vista hegemônico sobre o que pode ter acontecido e sobre como aconteceu. Por conta disso, um número incontável de outras histórias é varrido para debaixo do tapete. Histórias menores, às vezes menos relevantes; porém muitas vezes são histórias incômodas, que alguns querem esquecidas, fazendo triunfar o ponto de vista dos colonizadores. Como Benjamin alerta, a história nunca é contada pelos colonizados. Daí sua célebre conclusão de que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie". Daí também a sua proposta de escovar a história a contrapelo, buscando dar luz àqueles pontos de vista abandonados na escuridão do tempo. Revisitar, desconfiar, pesquisar e reescrever a história é estabelecer uma relação sincera com nós mesmos. É também assim que nos tornamos contemporâneos de nossos ancestrais, dos antigos feitos da humanidade e de tudo aquilo que nos constitui.

* * *


Foi com objetivo de exercitar um pouco esse pensamento crítico que, junto com alunos de pós-graduação em filosofia da USP, li as cartas enviadas por Vincent Van Gogh a seu irmão Théo; reunidas, selecionadas e publicadas pela esposa deste após a morte dos dois. Para nossa surpresa, o Van Gogh das cartas é diferente, em muitos aspectos, daquele conhecido pelo senso comum – o pintor louco, transbordante de emoções, que gostava de girassóis e que decepou a própria orelha.

Ao término da leitura, da comparação entre pelo menos quatro traduções e dos ricos debates que tivemos, ainda acredito que o sujeito do texto teve seus momentos de loucura, era um grande apaixonado pela vida simples na natureza, pintou uma série de girassóis e usou uma navalha para cortar a própria orelha. Os escritos que restaram nos autorizam supor isso tudo, com certa margem de erro interpretativo.

Porém não devemos confundir o autor das cartas com o homem Van Gogh, o qual viveu, pintou e morreu mais de um século atrás. Enquanto o primeiro é acessível e concreto (sujeito feito de texto), o segundo não passa de uma abstração, da qual podemos somente apreciar pinturas e fantasiar a respeito da sua existência.

Com isso em mente, passamos às cartas, que são reveladoras. Elas apresentam, por exemplo, um homem culto, nascido numa família com boas condições, que o possibilitou visitar museus importante da Europa e formar um profundo senso crítico em relação à história da arte. Um homem que demorou quase trinta anos para decidir pela carreira artística. Que, ao invés de grande revolucionário, preocupava-se com a tradição da pintura. Ao invés de apaixonado irracional, foi um pesquisador intenso e convicto, que não abandonou seus princípios e, por conta disso, permaneceu miserável durante toda a vida, sustentado pelos 50 francos que o irmão eventualmente anexava às cartas. Um sujeito cuja doença parece oriunda dos graves problemas de estômago causados pela fome, pela vida rústica e solitária; não uma maluquice estereotipada.

Além disso, impressiona sua consciência político-social, que o impelia a compartilhar seus parcos bens e a imprimir nas telas a força dos trabalhadores anônimos – mineiros, tecelões e lavradores –, cujo valor fora ignorado durante séculos de produção artística. Van Gogh não se considerava um pintor de girassóis, mas um pintor de camponeses. Lutou para dar lugar na arte a essas existências menores e menosprezadas, que permaneceram debaixo do tapete dos nobres e clérigos retratados com frequência entediante ao longo da história ocidental.

Não cabe comentar aqui as 652 cartas, assim fica minha sugestão de leitura a quem se interessar. No lugar de produzir uma imagem "eterna" do passado, Benjamin propõe que façamos dele uma experiência singular. Mais do que reproduzir a história de maneira boçal, temos que narrá-la novamente, pois é apenas assim que produzimos e compartilhamos sabedoria. Antes de falar, convém ouvir. Antes de aceitar, temos obrigação de desconfiar. Antes de exercer juízo é prudente pesquisar e nos implicar na questão.

Não bastassem todas as pinturas maravilhosas do artista, o outro Van Gogh, escritor de cartas, deixou esta linda imagem sobre o passar do tempo: "O moinho não existe mais, o vento continua". Assim segue a história, sussurrando notas em nossos ouvidos, sugerindo leituras e interpretações sem entretanto revelar o livro inteiro, que sustentará certo teor de mistério para nos instigar a imaginá-la.

*Pesquisadores disponibilizaram todas as cartas conhecidas de Vincent Van Gogh neste site, confira só (em inglês): vangoghletters.org As imagens que ilustram o texto foram retiradas daí.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

quarta-feira, 24 de outubro de 2012


Estar é um ponto de vista. 
Ser idem.

(Encontrei esta anotação em minha agenda, depois vi o desenho de Bruno Saggese no blog Imposturas e achei que ambos combinavam. Enfim, é apenas um pensamento perdido que parece ter encontrado alguma conexão.)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

GRANDES MUSEUS REUNIDOS ONDE VOCÊ ESTIVER



Sempre me surpreendo com as invenções da Google. Não tem jeito, eles ficam criando essas coisas espetaculares que, em pouco tempo, se tornam essenciais.

Não bastasse o Street View, que nos permite caminhar digitalmente por ruas do mundo inteiro utilizando o Google Maps, agora apareceu o Google Art Project, que traz os grandes museus para dentro de nossas casas e ainda mata aquela curiosidade gostosa proporcionada pela arte. Porque não dá para visitar pessoalmente todos eles, muito menos com a frequência com que gostaríamos. Então, fazemos a visita pelo computador.

Não adianta ficar fazendo propaganda aqui. Clique logo no link abaixo, faça um bom passeio cultural e torça para que essa tecnologia chegue o mais rápido possível aos museus brasileiros.


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

LEMBRANÇA DE OLINDA

Minha irmã esteve em Olinda e me trouxe de presente este desenho, assinado por Souza, um artista local.

Ele me lembra de quando eu era criança e tinha paciência para fazer desenhos assim, com bico de pena e nanquim, tracinho por tracinho. Naquela época, os adultos se aproximavam e perguntavam: como você tem paciência para fazer isso? É admirável! E eu pensava: ué, como é que você não tem?


(clique para ampliar)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ADVOGADOS ANTIQUADOS ANTIQUADROS




Os desenhos de Gil Vicente escolhidos para participar da 29ª Bienal de São Paulo exibem, de maneira clara, o sentimento de grande parte dos brasileiros em relação aos nossos governantes e também em relação à política mundial como um todo. Os advogados da OAB, que não entendem nada de arte, mas que adoram uma polêmica, fizeram um pedido formal para a retirada das obras. Segundo eles, trata-se de uma apologia ao crime. Na última vez em que vi algo semelhante, eram tempos de ditadura militar. Não é o caso de hoje, ainda bem, só que tem gente que ainda pensa com aquela cabeça. Minhas perguntas:

1) Sobre entender as coisas ao pé-da-letra: depois de ver esses desenhos, você sairá matando políticos Brasil afora?
2) Sobre a novidade: mesmo antes de ver esses desenhos, você já não tinha pensado em algo semelhante?
3) Sobre a expressão "é melhor ouvir isso do que ser surdo": devemos dar atenção à OAB?

A Fundação Bienal decidiu que não. Portanto, os quadros permanecerão à mostra. Achei ótimo, até porque eles já tinham sido exibidos em outras quatro cidades. Pelo jeito, nossos advogados não têm o hábito de visitar exposições de arte. Então, querem dar chilique agora? Me poupem.





Leia mais:
Artista 'mata' Lula, FH e outros políticos na obra mais polêmica da Bienal de SP

RIO - Ninguém foi mais assediado na segunda-feira do que o pernambucano Gil Vicente, por enquanto a grande estrela da 29ª Bienal de São Paulo. Na última sexta-feira, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo fez uma nota de repúdio e ameaçou processar a Fundação Bienal por expor a série de desenhos em carvão "Inimigos", em que Vicente se autorretrata matando personalidades como o presidente Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a rainha da Inglaterra Elizabeth II e o papa Bento XVI. A Bienal já afirmou que não vai retirar a obra, exposta anteriormente em quatro outras cidades.

- Parece que voltamos à ditadura. A OAB alegou que a obra incita o crime. Qual é o crime maior, criar essa ficção ou o roubo de dinheiro público dos nossos políticos? - questionou Gil Vicente.

O curador Agnaldo Farias criticou a ação como "tacanha e mesquinha":

- Dizer que a obra incentiva a violência é o mesmo que dizer que "Édipo rei" incentiva o incesto. Só chamará mais atenção para o artista, cujo trabalho tem muito mais qualidade do que essa polêmica.

Retirado de: O GLOBO